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Limites do poder normativo da Justiça do Trabalho

Limites do poder normativo da Justiça do Trabalho

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O texto estuda os limites materiais do poder normativo da Justiça do Trabalho, diante das modificações introduzidas pela Constituição Federal de 1988, especialmente em razão das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal delimitando seu alcance.

1) Introdução

Não é propósito deste estudo definir o poder normativo da Justiça do Trabalho, examinar sua natureza e discutir sua conveniência em nosso sistema como meio de solução dos conflitos coletivos de trabalho. A tarefa da qual procurarei me desincumbir é a de estudar seus limites materiais, diante das modificações introduzidas pela Constituição Federal de 1988 quando trata desse poder, especialmente em razão das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal delimitando seu alcance.

Esse intento, no entanto, exige que se verifiquem, ainda que superficialmente, questões que concernem à natureza jurídica do poder normativo, pois seu enquadramento como atividade própria do Poder Judiciário ou do Legislativo influi, sem dúvida, na sua delimitação material. Procurarei fazer esse estudo, dando ênfase especialmente à utilização da eqüidade nas decisões normativas, conceito-chave para a investigação que proponho.

Não será exagero, assim, fazer uma resumida distinção da atuação da Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos, bem como um breve relato do surgimento do poder normativo em nosso sistema constitucional, para estabelecer com clareza qual o objeto de nosso estudo. É necessário não confundir o chamado poder normativo com outras competências específicas da Justiça do Trabalho quando soluciona conflitos coletivos de trabalho, pois nem sempre, nessa intervenção, esse ramo especializado do Judiciário está no exercício de um poder normativo.


2) Definição do poder normativo da Justiça do Trabalho

A diferenciação doutrinária é por demais conhecida. A intervenção da Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos se faz por meio de sentenças proferidas em dissídios coletivos, que se distinguem em dissídios de natureza jurídica e econômica. São jurídicos os "conflitos fundados em norma preexistente em torno da qual divergem as partes, quer para sua aplicação, quer para sua interpretação" [1]. Sua finalidade é a interpretação do Direito, mas sempre diante de um caso concreto. Como lembra pedro vidal neto, em sua monografia sobre o poder normativo da Justiça do Trabalho, "é a declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica. Trata-se de uma ação de natureza declaratória perfeitamente compatível com os princípios processuais comuns" [2]. São ações coletivas declaratórias, inseridas na atividade jurisdicional própria do Poder Judiciário. Não estamos ainda no campo do poder normativo.

Nos dissídios coletivos, muitas vezes a Justiça do Trabalho se vê na necessidade de examinar atos de trabalhadores e empregadores relacionados ao direito de greve. A greve é, por definição, um movimento coletivo de paralisação do trabalho. A abusividade no exercício desse direito, a ação patronal ilegal o impedindo, a necessidade de manutenção de serviços essenciais à população são matérias que decorrem da natureza coletiva desses conflitos. Adequado, assim, o exame dessas questões em sede de uma ação coletiva, ainda que se possa dissentir das regras relacionadas à competência funcional originária para o conhecimento do dissídio coletivo decorrente de greve. Novamente é pedro vidal neto quem destaca que "a hipótese é de ação coletiva de natureza declaratória. Não se trata de interpretação de lei em tese, mas de interpretação da lei frente a um caso concreto: uma determinada greve" [3]. A sentença, no caso, é meramente declaratória, caracterizando típica atuação do poder jurisdicional da Justiça do Trabalho. Também aqui não ingressamos no terreno do poder normativo.

É nos chamados dissídios coletivos de natureza econômica que podemos falar em poder normativo da Justiça do Trabalho. Como preleciona o eminente Ministro orlando teixeira da costa, essa competência normativa é "o poder atribuído pela Constituição (art. 114) à Justiça do Trabalho, para conciliar e julgar dissídios coletivos de natureza econômica, estabelecendo normas e condições para todos os integrantes de categorias empregada e empregadora afins, quando as mesmas, manifestando antagonismos e divergências, recusam-se a resolvê-los mediante negociação coletiva ou arbitragem" [4].

Nos dissídios coletivos de natureza econômica, denominação nem por todos aceita, pois restritiva quanto à abrangência da matéria ali debatida, a Justiça do Trabalho não realiza típica atividade jurisdicional. Sabe-se que a jurisdição se caracteriza pela aplicação do direito já existente a um caso concreto. Como ensina o nosso grande processualista cândido rangel dinamarco, ao tratar dos escopos da jurisdição, "dessa destinação do poder estatal sub specie jurisdictionis, decorre uma característica muito visível, que é a sua aplicação a casos concretos. Não é mais lícito pensar nessa concreção como manifestação de restrições individualistas ao exercício da jurisdição (se bem seja assim a estrutura fundamental da sua disciplina positiva ainda em tempos atuais), mas parece indubitável que a jurisdição não tem vocação às generalizações ou ao abstrato, como é próprio da função legislativa" [5].

Não é hora de debater tão polêmico conceito, nem de aprofundar qual o papel do juiz no exercício da atividade jurisdicional. Mas qualquer que seja a corrente doutrinária, não se nega à jurisdição sua função típica de aplicadora e não criadora do direito. Quando no exercício do poder normativo, no entanto, a Justiça do Trabalho foge desse papel, pois cria direito novo, cria norma nova, abstrata e genérica, buscando a solução de conflitos econômicos ou de interesse entre categorias de trabalhadores e empregadores.

Nesse trabalho, portanto, ao falar dos limites do poder normativo da Justiça do Trabalho, estarei tratando apenas do exercício dessa atividade específica de criação de novas condições de trabalho na solução dos conflitos coletivos de natureza econômica que não são resolvidos pela negociação direta e pela arbitragem. Estão fora dessa análise os dissídios coletivos de natureza jurídica e os que tratam da aplicação da lei de greve, em que a atividade da Justiça do Trabalho é eminentemente jurisdicional.


3) Breve histórico do poder normativo

O poder normativo da Justiça do Trabalho nasceu junto com ela, ainda na sua fase administrativa. Faz parte do processo de implantação da legislação trabalhista de nítido caráter corporativista, que tanto entusiasmava o novo governo que assumia a direção do País no início da década de 1930. Como bem assevera josé augusto rodrigues pinto, o corporativismo nas relações de trabalho era "peça fundamental da integração Estado/empresa, envolvendo o trabalho, fator essencial ao desenvolvimento desta última. Por isso, o traço mais forte do nosso modelo legislativo saiu da Carta del Lavoro italiana, de 1927, que consolidou a autorização ao Judiciário para criar condições de trabalho, fundando-se no princípio da eqüidade que deveria presidir a solução dos conflitos de interesses entre as categorias profissionais e econômicas" [6].

Já com a criação, por Lindolfo Collor, primeiro Ministro do Trabalho do Brasil, em 1932, de Comissões Mistas de Conciliação entre empregados e empregadores, e do Conselho Nacional do Trabalho, buscava-se uma solução para os conflitos coletivos de trabalho. Em 1936 foi remetida mensagem presidencial à Câmara dos Deputados com o anteprojeto de criação da Justiça do Trabalho, que deu origem à famosa polêmica entre Oliveira Viana, um dos responsáveis pela elaboração do projeto, e Waldemar Ferreira, seu relator na Comissão de Constituição e Justiça, que tinha como um dos pontos mais controvertidos exatamente a previsão de competência normativa para o órgão que se criava.

Em 1939, o Dec.-lei n. 1.237, de 1939, deu organização à Justiça do Trabalho, como órgão administrativo, prevendo a competência normativa para os Conselhos Regionais do Trabalho, no julgamento de dissídios coletivos. O art. 94 do mencionado Dec.-lei balizava o conteúdo dessas decisões ao estabelecer que "na falta de disposição expressa de lei ou de contrato, as decisões da Justiça do Trabalho deverão fundar-se nos princípios gerais do direito, especialmente do direito social, e na eqüidade, harmonizando os interesses dos litigantes com os da coletividade, de modo que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público". É a primeira referência legal à solução dos conflitos de interesse pela Justiça do Trabalho, que não se limita a um juízo legal, podendo a autoridade decidir por um juízo de eqüidade.

Em 1946, a Constituição que redemocratizou o País incorporou a Justiça do Trabalho ao Poder Judiciário, mantendo o que já havia sido estabelecido no Dec.-lei n. 9.797, do mesmo ano. Na Carta de 1946, definiu-se a competência da Justiça do Trabalho para conciliar e julgar dissídios individuais e coletivos do trabalho, com expressa previsão, no seu art. 123, § 2.º, de um poder normativo, nos seguintes termos: "A lei especificará os casos em que as decisões nos dissídios coletivos poderão estabelecer normas e condições de trabalho". A competência normativa é agora expressa, ainda que condicionada à previsão da legislação ordinária.

A Constituição Federal de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, manteve integralmente o texto da Carta de 1946, substituindo apenas o vocábulo "casos" pela palavra "hipóteses". A Justiça do Trabalho manteve sua competência para estabelecer novas condições de trabalho, quando autorizada pela lei ordinária.

Na Constituição Federal de 1988, significativa alteração sofreu a regra que previa essa competência normativa. O art. 114 do novo texto constitucional dispõe sobre a competência da Justiça do Trabalho na solução dos conflitos coletivos de trabalho dizendo, no seu § 2.º, que "recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho".

A modificação é significativa. O poder normativo, exercido nos casos especificados pela lei, passaria apenas a respeitar as disposições convencionais e legais mínimas. Alargou-se o poder normativo da Justiça do Trabalho, que agora tem apenas um limite mínimo a ser respeitado, ou permanece ele ainda limitado por outros parâmetros fornecidos pelo ordenamento jurídico. É essa a questão que esse trabalho passa a enfrentar.


4) Os limites do poder normativo no sistema constitucional anterior a 1988

Não parece haver dúvida de que o poder normativo da Justiça do Trabalho, nas Constituições de 1946 e 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, sofria limitações da lei ordinária. A referência era expressa no texto constitucional, pois o legislador ordinário iria especificar em que hipóteses a Justiça do Trabalho poderia criar novas normas e condições de trabalho no julgamento dos dissídios coletivos.

Há que se considerar, no entanto, como bem registra o Ministro orlando teixeira da costa, que "essas hipóteses jamais foram sistematicamente enumeradas por qualquer lei, o que levou os Tribunais a um esforço de pesquisa e de exegese, para encontrar a autorização legislativa quanto ao uso dessa competência..." [7]. Em raras oportunidades se encontrava lei tratando da matéria, podendo ser lembrada a regra do art. 766 da CLT, quando se refere a "dissídios sobre estipulação de salários", como um desses casos isolados em que o poder normativo podia ser exercido por expressa autorização da lei. Na maioria dos casos, no entanto, a competência normativa era desenvolvida por um esforço de interpretação a fim de descobrir a autorização legal necessária.

Essas dificuldades fizeram com que a doutrina apresentasse concepções diversas sobre a limitação do poder normativo àquela época. Aproveitando-se do estudo aprofundado da matéria realizado pelo Professor e Magistrado pedro vidal neto [8], talvez quem mais tenha cuidado desse tema sob o ângulo jurídico, verifica-se que parte considerável da doutrina tinha a convicção de que o âmbito de atuação do poder normativo da Justiça do Trabalho era o mesmo das convenções coletivas. Cita o Professor Pedro Vidal Neto o entendimento de Rezende Puech, para quem havia identidade do campo de ação da convenção coletiva e da sentença normativa, pois ambas cobriam a mesma lacuna. Sustentava esse entendimento o papel desempenhado pelos dois mecanismos de solução dos conflitos coletivos de trabalho, já que a sentença normativa era o sucedâneo da convenção coletiva malograda. Dessa forma, aquilo que poderia ser objeto de convenção coletiva também poderia ser objeto de decisão da Justiça do Trabalho. A autorização legal se encontrava exatamente na obrigatoriedade da negociação coletiva (art. 616 e parágrafos) para a instauração do dissídio coletivo.

Essa interpretação foi contestada por doutrinadores como Wilson de Souza Campos Batalha, Eduardo Gabriel Saad e Antonio Lamarca, que apresentavam concepção restritiva do poder normativo. Para Batalha, o poder normativo estava restrito às chamadas cláusulas salariais, como as de reajustes e suas cláusulas acessórias, concernentes à data-base, aos critérios aplicáveis aos empregados admitidos posteriormente, à data de vigência e outras da mesma natureza. Segundo batalha, citado por pedro vidal neto, à Justiça do Trabalho "não foi deferida competência para fixar normas além das normas legais e muito menos para modificar ou alterar cláusulas dos contratos existentes ou do direito consuetudinário laboral" [9].

lamarca, lembra pedro vidal neto, é taxativo: "o poder normativo da Justiça do Trabalho limita-se à cláusula salarial, porquanto o legislador não editou lei regulamentadora, senão da parte salarial" [10]. Havendo política salarial estabelecendo índices oficiais de reajustes salariais, o poder normativo é meramente administrativo e se restringe a atos homologatórios de índices oficiais.

A posição intermediária parece que acabou prevalecendo na doutrina e na jurisprudência. O próprio Professor pedro vidal neto é defensor dessa concepção, observando não ser possível a decisão da Justiça do Trabalho, de caráter heterônomo, ter a mesma extensão que o poder negocial das partes: "As partes podem ajustar validamente a concessão de número indefinido de benefícios de toda a sorte, não conferidas ao trabalhador por lei. Não se vê com que fundamento a sentença normativa poderia impor benefícios cuja obrigatoriedade não é estatuída pela própria lei e que não tenham sido voluntariamente acatadados" [11].

Por outro lado, lembra o eminente Professor, nem toda autorização legal está expressa no ordenamento jurídico. Afirmando que o poder normativo é uma modalidade do poder jurisdicional comum, quando orientado para o preenchimento das lacunas do ordenamento jurídico, e fazendo uso da chamada doutrina dos poderes implícitos, pedro vidal neto delimita a amplitude do poder normativo da Justiça do Trabalho com o seguinte enunciado: "à Justiça do Trabalho cabe dar eficácia às normas trabalhistas em vigor, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com suas finalidades e com os princípios do ordenamento jurídico; em conseqüência, tem competência para dispor as normas complementares necessárias à efetiva atuação do direito positivo vigente" [12]. Trata-se de um comando implícito da norma, que podia ser revelado pelo poder normativo, visando concretizar direitos previstos no ordenamento que encontravam obstáculos para serem concretizados. É o esforço hermenêutico ressaltado por Orlando Teixeira da Costa, servindo o poder normativo para realizar o direito objetivo.

A jurisprudência forneceu exemplos demonstrando a preponderância desse entendimento. A estabilidade provisória da mulher gestante foi consagrada em sentenças normativas como meio para assegurar à trabalhadora o gozo da licença-maternidade prevista na lei. A fixação do adicional de horas extras na sentença normativa também era admitida, até pelo Supremo Tribunal Federal, em razão de a lei utilizar a expressão "pelo menos", quando estabelece os percentuais para o trabalho extraordinário. A estabilidade ao menor em idade de alistamento militar, ao trabalhador acidentado, o abono de falta ao estudante nos dias de exames escolares e a comunicação escrita do motivo da dispensa são exemplos da aceitação do critério intermediário defendido pela maior parte de nossos doutrinadores.

O poder normativo passou, assim, a ser exercido como mecanismo de integração da lei, por autorização implícita desta. Seus limites eram indefinidos, mas poderíamos dizer que, ao contrário do que estabelecia a Constituição então vigente, eram eles muito mais negativos do que positivos, não se admitindo a competência normativa da Justiça do Trabalho apenas quando houvesse clara restrição legal.


5) A Constituição Federal de 1988

Sensível mudança na compreensão do poder normativo da Justiça do Trabalho surgiu com a redação do § 2.º do art. 114 da atual Constituição Federal. Como já visto, o novo preceito autoriza a Justiça do Trabalho a criar novas condições de trabalho, respeitados os patamares mínimos fixados em lei ou convenção coletiva. A modificação causou repercussão imediata na doutrina.

O Ministro orlando teixeira da costa, no artigo já citado, considera que o esforço hermenêutico exigido pela Constituição anterior "agora não se faz mais necessário, pois o texto constitucional não subordinou o estabelecimento de ''normas e condições'' à existência de qualquer especificação de lei precedente. Concedeu, pura e simplesmente, à Justiça do Trabalho, o poder de estabelecer normas e condições, exigindo apenas, afora obediência às limitações inerentes ao princípio da harmonia e independência dos poderes, respeito às disposições convencionais ou legais mínimas de proteção ao trabalho" [13].

Lembra ainda o saudoso Ministro do TST que não há sequer restrição quanto à natureza da norma, podendo a Justiça do Trabalho no exercício dessa competência excepcional estabelecer novas condições de trabalho e normas de natureza contratual, obrigando os sindicatos que participam do processo.

O mais novo Ministro do TST, Ives Gandra da Silva Martins Filho, também considera superada a disputa hermenêutica existente até 1988. Afirma ives gandra que, pela nova redação do art. 114, § 2.º, da Constituição Federal, "o poder normativo da Justiça do Trabalho saiu fortalecido e, de certa forma, ampliado, uma vez que não sujeito quer à limitação da lei ordinária ao seu exercício, quer à interpretação castrativa levada a cabo pelo Pretório Excelso" [14]. Para o eminente ex-Procurador e atual Magistrado, os limites do poder normativo são fixados pelos patamares constitucional e legal que estabelecem os direitos mínimos do trabalhador, e pelo teto que representa a justa retribuição ao capital, de que trata o art. 766 da CLT. Do limite ao teto, degraus serão ultrapassados como resultado da atividade do Magistrado do Trabalho, baseada na eqüidade e no bom-senso, que decidirá como legislador, sem apoiar-se em norma jurídica.

Assevera ives gandra que "nesse sentido, no período inicial de implantação da nova ordem constitucional, em que muitos dispositivos constitucionais carecem da legislação que os tornem aplicáveis, mormente na orla trabalhista, teremos um poder normativo da JT ainda mais amplo, pois inexistindo as leis complementares (que seriam limitações ao exercício desse poder), caberá aos tribunais trabalhistas realizarem a integração das normas constitucionais de eficácia limitada, no âmbito das categorias para as quais estabelecerem novas condições de trabalho" [15].

Ainda que continue não admitindo a atividade de caráter legislativo da Justiça do Trabalho no exercício do poder normativo, Pedro Vidal Neto reconhece que as novas disposições constitucionais a respeito da matéria alargaram o campo de atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos de natureza econômica. Lembrando as concepções doutrinárias anteriores à Carta de 1988, afirma pedro vidal neto que "a luz do novo texto constitucional torna-se extreme de dúvidas que as decisões normativas poderão regular toda a matéria pertinente às convenções coletivas de trabalho" [16]. Sua limitação estaria apenas nos patamares mínimos fixados em lei ou convenção coletiva, observando pedro vidal neto que dentro desses limites deve o poder normativo "ser informado por critérios de oportunidade e conveniência, assim como pelas exigências da eqüidade" [17].

Para o então Ministro Corregedor do Tribunal Superior do Trabalho, luiz josé guimarães falcão, também houve um alargamento do campo de atuação normativa da Justiça do Trabalho. Diz o eminente Magistrado que "examinando-se os dispositivos da atual Constituição, nota-se claramente que o Constituinte de 1988 decidiu alterar substancialmente o sistema anterior substituindo o poder normativo condicionado e restritivo por outro mais livre e amplo. Fosse a intenção instituir um poder normativo condicionado não precisaria alterar o texto da Constituição anterior" [18].

Busca o Ministro guimarães falcão distinguir a atividade legislativa como algo diverso do poder normativo, para caracterizá-la como nítida atuação jurisdicional da Justiça do Trabalho, afirmando que "a função legislativa do Congresso Nacional configura os direitos e condições legais mínimos de proteção. A partir desse piso, a Constituição autoriza a função normativa da Justiça do Trabalho, com fundamento na eqüidade, desde que o poder se exerça estritamente nos limites da instituição de normas e de condições de trabalho..." [19].

Esse mesmo entendimento, com pequenas discrepâncias, aparece em vários outros doutrinadores, podendo-se mesmo afirmar que é preponderante a posição de que houve um alargamento da competência normativa da Justiça do Trabalho. Mas juristas de renome se posicionaram de forma contrária. arion sayão romita é o mais contundente entre eles. Para o Professor do Rio de Janeiro, "não é exato que, para o poder normativo da Justiça do Trabalho, à luz da Constituição de 1988, o céu é o limite" [20]. Diz romita que "realmente, a Constituição explicitou o mínimo, mas esse procedimento não autoriza a ilação de que ela deixou de consagrar limite máximo para o exercício da competência normativa" [21].

Segundo sua concepção, o poder normativo da Justiça do Trabalho continua a ter limites mínimos e máximos. Os mínimos, expressamente referidos no texto constitucional. Os máximos acham-se implicitamente fixados por fontes materiais e formais. As fontes materiais são representadas por valores constitucionalmente consagrados, como o direito de propriedade, da livre iniciativa e da livre concorrência. As fontes formais encontram-se nos arts. 5.º, II, e 49, XI, da Constituição Federal. O primeiro assegura o direito fundamental de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O segundo estabelece que o Congresso Nacional deve zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes. Resulta da interpretação desses dois preceitos que, havendo texto de lei regulando determinada matéria, a competência normativa respeitará o comando legal, não podendo ampliar nem reduzir a garantia ali estabelecida. Na ausência de texto legal, afirma romita, haverá o intérprete que concluir pela impossibilidade do exercício do poder normativo, diante de duas considerações essenciais: "a) o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito (Constituição, art. 1.º) e este, como se sabe, é o Estado que se submete à lei (lei em sentido formal); b) no exercício da competência normativa, o Judiciário Trabalhista não pode, sem violação da ordem constitucional, usurpar a atribuição legislativa do Poder respectivo, ante o respeito, que se lhe exige, ao disposto no art. 2.º da Constituição, segundo o qual os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si" [22]. Encerra romita observando que o poder normativo deve ser exercido "com respeito à lei e nos limites impostos pela lei" [23].

Também Otávio Bueno Magano considera o poder normativo da Justiça do Trabalho, na nova ordem constitucional, limitado ao ordenamento jurídico. Definindo essa competência especializada como típica atividade jurisdicional, pois do contrário estaria o Poder Judiciário invadindo área do Poder Legislativo, magano afirma que a Constituição de 1988 apenas extinguiu a compartimentação do campo de atuação do poder normativo que antes existia. Não há mais que esperar o legislador ordinário indicar qual a matéria possível de ser decidida pela Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos. A descompartimentalização "não significa, contudo, mudança na natureza da atividade, a cargo da Justiça do Trabalho, que continua a ser jurisdicional. Mais pormenorizadamente há de se dizer que, ao julgar dissídios coletivos de natureza econômica, cabe-lhes apenas aplicar normas latentes do ordenamento jurídico" [24]. São os comandos implícitos da lei, que embasavam a atuação normativa da Justiça do Trabalho ainda no sistema constitucional anterior a 1988. Faz o Professor Magano inclusive uma analogia com o poder regulamentar do executivo, que jamais pode confrontar a lei, lembrando estudo feito nesse sentido pelo Ministro do TST Manoel Mendes de Freitas.

Com efeito, o Ministro Manoel Mendes de Freitas, em interessante trabalho, faz uma análise comparativa do poder normativo da Justiça do Trabalho e do poder regulamentar do Chefe do Executivo, lembrando que o decreto regulamentar está, na hierarquia das normas, em posição inferior à da lei, não podendo conter disposições que a contrariem ou que tenham conteúdo inovador. No uso do poder regulamentar, o Chefe do Poder Executivo limita-se a torná-las mais claras e, portanto, de execução mais fácil. Quando se trata de um regulamento autônomo, a atividade do Chefe do Executivo é caracteristicamente criadora, destinando-se aos espaços vazios da lei.

Observa o Ministro do TST que é semelhante a natureza do poder normativo da Justiça do Trabalho. Destacando que essa atividade normativa continua limitada, pois não pode ser exercida contra a lei, lembra o eminente Magistrado que "o poder normativo da Justiça do Trabalho é excepcional, como o é, também, o poder normativo do Chefe do Poder Executivo da União, eis que envolvem ambos exercício de atribuições que são típicas do Poder Legislativo. Basta, pois, que se considerem as razões da separação dos poderes do Estado, para que se compreenda logo que é impossível o confronto entre os dois Poderes quando idêntica a matéria versada na atividade normativa de ambos" [25].

Para o Ministro manoel mendes, no entanto, há um grande espaço regulamentador para a atuação normativa da Justiça do Trabalho. Trata-se de uma atividade "com discreto conteúdo criador, na qual o juiz do trabalho, pelo seu conhecimento especializado e contato permanente com os conflitos do trabalho, fica em ótima posição para completar a legislação trabalhista, explicitando-a e tornando-a ainda mais adequada às áreas específicas de cada categoria no período de interesse da decisão normativa" [26].


6) A jurisprudência

Com a Constituição Federal de 1988, imediatamente Tribunais Regionais do Trabalho passaram a atuar como verdadeiros legisladores, animados pela corrente doutrinária que viu nas modificações do texto constitucional uma ampliação da atividade normativa da Justiça do Trabalho, limitada agora apenas pelos patamares mínimos da lei e das convenções coletivas. Os benefícios concedidos em sentenças normativas foram inúmeros, muitos referindo-se a matérias expressamente reguladas em lei.

O Tribunal Superior do Trabalho, muito em razão de pressões da classe empresarial e do próprio Executivo, vinha limitando a concessão desses benefícios, com base mais em argumentos de oportunidade e conveniência do que em entendimentos restritivos quanto à atuação do poder normativo pela Justiça do Trabalho. Apenas a título de exemplo desse posicionamento do TST, trago a Ementa do Acórdão da SDC 0005/95, no RO do DC n. 112.888/94.3, de 6 de fevereiro de 1995, cujo Relator foi o próprio Ministro Manoel Mendes de Freitas, na qual a mais alta Corte trabalhista entendeu que "não se afina com as funções específicas da Justiça do Trabalho, ainda que no exercício do Poder Normativo (art. 114 da Carta Magna), a tarefa de descobrir qual o índice correto, justo, equânime, para o reajuste dos salários dos trabalhadores. No período de indexação da economia, limitavam-se os Tribunais Trabalhistas à aplicação dos índices oficiais. A partir da Lei n. 8.030/90 e terminado o período de indexação, cabe às partes interessadas estabelecer o reajuste, mediante negociação coletiva ou valendo-se da arbitragem, sob pena de a Justiça do Trabalho estar contribuindo para a volta à indexação e para o desestímulo à composição direta. Recurso ordinário provido para afastar-se o reajuste com base no IPC" [27].

Percebe-se nessa decisão do TST a preocupação com a indexação salarial e com a composição direta entre as partes, sendo esses os fundamentos apresentados para a limitação do exercício do poder normativo. Não havia, ainda, na jurisprudência, uma clara tomada de posição no tocante aos limites materiais da atuação normativa da Justiça do Trabalho, tendo em vista a ordem constitucional estabelecida pela Carta de 1988.

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, a partir de 1996, quando do julgamento do RE n. 197911/PE, pela sua 1.ª Turma, que teve como relator o Ministro Octávio Gallotti, fixou diretrizes diversas daquelas até então obedecidas nas decisões da Justiça do Trabalho. Entendeu a mais alta Corte do País ser a decisão da Justiça do Trabalho, em sua competência normativa, fonte subsidiária do direito, suscetível de operar apenas no vazio legislativo, sujeita à supremacia da lei formal. Não pode a sentença normativa invadir reserva legal específica, assegurada na própria Constituição, nem tampouco contrariar dispositivo constitucional ou legal, ainda que estabelecendo vantagens aos trabalhadores.

A 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 114836/MG, cujo relator foi o Ministro Maurício Correa, adotou posição ainda mais restritiva, pois decidiu que a competência normativa apenas pode ser exercida quando a lei expressamente permitir, sob pena de exorbitar a Justiça do Trabalho de suas funções constitucionalmente definidas, invadindo área de atuação do Poder Legislativo.

O Supremo Tribunal Federal, ao assim decidir, adotou a concepção restritiva do poder normativo da Justiça do Trabalho, com certeza entendendo ser preciso compatibilizá-lo com a necessidade de preservar a competência legislativa do Congresso Nacional. Cabe, no entanto, ressaltar que esse entendimento contraria a tese ampliativa do poder normativo, defendida pela maior parte da doutrina e por muitos de nossos Tribunais Regionais, controvérsia que, mesmo diante das recentes decisões do STF, temos certeza, não terminará tão facilmente no âmbito da Justiça do Trabalho.

Por essa razão, para completar esse trabalho, cumpre tentar encontrar fundamentos para melhor definir a delimitação material do poder normativo da Justiça do Trabalho, que nos permitam concluir se está correta a orientação de nossa mais alta Corte, ou se é certa a tese daqueles que defendem um poder normativo amplo. Para tanto, não há como deixar de examinar a exata natureza dessa atividade excepcional da Justiça do Trabalho.


7) Poder normativo – jurisdição ou legislação – o problema da eqüidade

Os defensores da tese ampliativa do poder normativo partem do pressuposto de que essa atividade da Justiça do Trabalho é tipicamente jurisdicional, não havendo assim nenhuma invasão da esfera própria de atuação do Poder Legislativo. O Professor pedro vidal neto, na sua monografia sobre o tema já citada várias vezes durante este estudo, é quem mais busca ressaltar o conteúdo jurisdicional do poder normativo, afirmando, ainda antes da Constituição Federal de 1988, que o poder normativo é "ato jurisdicional destinado à colmatação de lacuna do ordenamento jurídico. Lacuna originária, intencionalmente deixada pelo legislador constituinte" [28]. Logo a seguir, acrescenta pedro vidal neto que "trata-se de lacuna intencional, técnica, cujo preenchimento deve ser feito mediante a utilização do poder normativo dentro dos limites do ordenamento jurídico e dos princípios e valores nele inerentes. Dessarte, para preencher tais lacunas, o juiz atua enquanto juiz, valendo-se dos processos idôneos à interpretação e integração do direito" [29].

Entre esses processos de interpretação e integração do direito, o Professor da USP faz especial referência à eqüidade, ressaltando que o "julgamento por eqüidade não difere nos dissídios individuais e nos coletivos. Autorizado a decidir por eqüidade, o juiz fica investido de um poder discricionário..." [30], lembrando ainda Pedro Vidal Neto que a discrição judiciária, assim como a administrativa, está sujeita ao controle de legalidade e ao controle de abuso ou desvio de poder.

Após a promulgação da Carta Magna de 1988, em que o texto constitucional foi alterado no tocante ao poder normativo da Justiça do Trabalho, pedro vidal neto voltou ao tema no também já mencionado artigo publicado na revista LTr, reiterando a sua posição de que a ampliação dos limites materiais dessa atuação especial da Justiça do Trabalho não modifica sua natureza tipicamente jurisdicional. Citando o art. 5.º, LICC, da Constituição Federal e os arts. 8.º e 766 da CLT, reforça o autor que "salta aos olhos que esses dispositivos, mais do que normas legais são princípios de justiça, é dizer, de eqüidade. De resto, é cediço que a competência normativa é uma jurisdição de eqüidade" [31].

A referência à eqüidade, como mecanismo próprio de interpretação e integração do ordenamento jurídico, é afirmação corrente na doutrina, como justificadora da natureza jurisdicional da atividade normativa da Justiça do Trabalho. Apenas para lembrar, recorre à eqüidade o Ministro Luiz José Guimarães Falcão, no texto acima destacado, quando diz que a Constituição autoriza essa atuação normativa "com fundamento na eqüidade". Ives Gandra da Silva Martins Filho, também na obra aqui citada, ainda que reconheça um certo conteúdo legislativo no exercício do poder normativo, igualmente recorre à eqüidade para fundamentar a atuação do Juiz do Trabalho nos conflitos coletivos econômicos de trabalho.

Irani Ferrari, jurista que também vem dedicando estudo a esse tema, em artigo publicado na revista LTr, igualmente defende a concepção ampliativa do poder normativo da Justiça do Trabalho, limitado, na Constituição de 1988, pelas disposições legais e convencionais mínimas, devendo esse poder especial ser exercido de acordo com os princípios gerais do Direito, dos usos e costumes, da analogia e da eqüidade. Destaca irani ferrari que "a ênfase, contudo, estará no exercício legítimo e razoável do juízo de eqüidade, já apresentado por Aristóteles como uma forma ''superior'' de justiça..." [32]. Logo adiante, o autor assinala que "o poder normativo, existente somente na Justiça do Trabalho, age flexibilizando o direito coletivo, através da aplicação precípua da eqüidade, apesar dos riscos da arbitrariedade e da incerteza, a fim de contornar a predeterminação normativa que por vezes se mostra inadequada e, portanto, injusta" [33]. Conclui IRANI FERRARI observando que "o eqüitativo é o justo, embora às vezes contrarie o justo legal, este quase sempre firmado para atender interesses ou conveniências particulares ou de grupos, deixando-se de parte o bem-comum que é o escopo de toda lei" [34].

A eqüidade, portanto, seria o grande suporte do poder normativo da Justiça do Trabalho, fornecendo a ele elementos caracterizadores de uma atividade jurisdicional. Utilizando-se desse mecanismo especial de interpretação e integração do ordenamento jurídico, o Juiz do Trabalho atuaria sem escapar dos limites constitucionais da atividade própria do Poder Judiciário, o que afastaria os obstáculos que alguns colocam ao poder normativo por considerá-lo invasor da esfera de atuação do Poder Legislativo.

Essas considerações a respeito da eqüidade não podem, no entanto, ser acolhidas sem alguma reflexão. Há mesmo uso da eqüidade nas sentenças normativas da Justiça do Trabalho, quando normas genéricas e abstratas são criadas pelo juiz, ainda que para aplicação no âmbito de determinadas categorias profissionais e econômicas? A eqüidade é de fato um instrumento adequado ao exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho? A resposta a essas indagações obriga a um rápido estudo a respeito desse instituto, muito discutido na filosofia do Direito.

A idéia da eqüidade como uma forma de encontrar a justiça, ou da eqüidade como uma forma superior de justiça, é estudada desde a Grécia antiga. Aristóteles é o grande formulador de seu conceito, até hoje repetido, pois não suplantado por mais ninguém. Vale a pena ir à fonte e estudar os ensinamentos do Estagirita. Para ARISTÓTELES, fazendo a distinção entre os conceitos de eqüidade e justiça, "a eqüidade, mesmo sendo superior a um certo tipo de justiça, é, em si mesma, justa; quero dizer, que não é superior à justiça, no sentido de que ela representaria uma realidade diferente. Assim, justo e eqüitativo são uma só e mesma coisa, são ambos bons, ainda que o eqüitativo o seja de maneira superior" [35].

Prossegue o grande filósofo grego esclarecendo que "se a eqüidade é assim, é porque a lei é sempre uma disposição universal e, em certos domínios, é impossível falar corretamente, permanecendo no plano universal; onde, pois, se deve promulgar uma disposição universal, sem que haja a possibilidade de o fazer corretamente, a lei toma em consideração o que se decide na maioria dos casos, sem ignorar a margem de erro de que está enferma". E logo a seguir ARISTÓTELES ensina que "quando, portanto, a lei coloca uma regra universal e aparece inesperadamente um caso particular que se lhe escapa, é, então, legítimo – na medida em que a disposição tomada pelo legislador é insuficiente e errada por causa do seu caráter absoluto – aplicar um correctivo, para abviar a esta omissão, promulgando o que o legislador teria no seu lugar e que teria previsto na lei, se tivesse tido conhecimento prévio do caso" [36].

Vale a pena a longa citação quando se trata de Aristóteles. Não posso, no entanto, deixar de completá-la, com a afirmação mais conhecida do filósofo sobre o tema, feita logo a seguir, no mesmo texto, quando observa que "a eqüidade é justa e melhor que uma determinada justiça; mas não é em sentido geral, mas apenas naquilo em que, pela sua formulação absoluta, pode enfermar de erro. A natureza essencial da eqüidade é de ser um corretivo aplicado à lei, na medida em que a sua universalidade torna esta incompleta" [37].

Não há na história da ciência do Direito, nas mais variadas correntes filosóficas e doutrinárias, quem apresente concepção muito divergente dessa formulada por Aristóteles a respeito da eqüidade. S. Tomás de Aquino, citado por Maria Helena Diniz, filósofo conhecido por retomar muitos dos conceitos de Aristóteles a respeito da Justiça, destaca que a lei não pode abranger todos os casos, pois os atos humanos são particulares e contingentes, podendo variar no infinito, nada podendo fazer o legislador a não ser legislar tendo em vista o que sucede com maior freqüência. Em certos casos, diz tomás de aquino, quando o caso concreto foge à finalidade da lei, "seria um mal observar a lei estabelecida; nem seria, ao contrário, bom, pondo de parte suas palavras, observar o que reclamam a idéia de justiça e a utilidade comum. E com isso se harmoniza a Epieiqueia, que nós chamamos de eqüidade" [38]. É a ponte que Tomás de Aquino estabelece entre os princípios da razão e as necessidades concretas da vida social.

O filósofo do Direito Giorgio Del Vecchio, normalmente identificado à corrente de pensamento neokantiana, também sustenta que o caráter genérico do Direito permite o surgimento de dificuldades na aplicação da norma jurídica ao caso concreto. Lembra que o intérprete não deve ficar parado ante a letra da lei e sim buscar, por um trabalho especial de aplicação e interpretação, o significado intrínseco da norma, o seu sentido próprio. Da mesma forma, acrescenta o jurista italiano, o intérprete deve ir fundo ao caso concreto a que a norma se aplicará. É nesse momento que se justifica o uso da eqüidade. "A eqüidade", afirma del vecchio, "não quer a infração da norma, mas a sua adaptação às diversas circunstâncias de fato, pois só assim satisfará o seu fim e a sua função. Além disso, sempre que faltar norma aplicável, surgirá, em nome da eqüidade, a exigência imposta ao juiz de estabelecer uma nova norma, adequada ao caso não previsto pelo legislador" [39].

Se examinarmos o que diz um jurista que se afasta da lógica racional do Direito para defender uma lógica do razoável, que miguel reale [40] prefere chamar de lógica do plausível, vamos verificar em Chaim Perelman definições praticamente idênticas para a eqüidade. Perelman busca demonstrar que a regra de justiça é uma regra formal, o que já se chamou de justiça estática, pois de conformidade com a regra estabelecida ou com o precedente reconhecido, sejam eles quais forem. A regra de justiça, por exigir a uniformidade, conduz à previsibilidade e à segurança. Permite o funcionamento coerente e estável da ordem jurídica. Mas, lembra perelman, isto não basta para satisfazer a nossa necessidade de justiça. Ensina o filósofo que "a eqüidade pode prevalecer sobre a segurança e o desejo de evitar conseqüências iníquas pode levar o juiz a dar nova interpretação à lei, a modificar as condições de sua aplicação. Mesmo recusando ao juiz o direito de legislar, é-se obrigado a deixar-lhe, em nosso sistema, o poder de interpretação. Graças ao uso que dele fizer, o juiz poderá, em certos casos, não se contentar com a interpretação tradicional e com a aplicação correta da lei, em conformidade com a regra de justiça" [41].

Entre nós, o grande civilista miguel maria de serpa lopes esclarece em seus comentários à Lei de Introdução ao Código Civil que a eqüidade se apresenta no plano jurídico com tríplice função: a eqüidade na elaboração das leis, na aplicação do Direito e na sua interpretação. A eqüidade na elaboração da lei não é matéria que se relacione à atuação do Poder Judiciário. Nesse caso, a eqüidade atua "como uma noção idealista, imperando no espírito do legislador para o fim de se cristalizar em normas condizentes com as necessidades sociais, com o equilíbrio dos interesses" [42]. É a idéia do equitativo como uma noção genérica e abstrata de justiça. Mas não é dessa eqüidade que cuida a ciência jurídica e sim, como lembra Serpa Lopes, da eqüidade na aplicação e na interpretação das leis.

O ilustre jurista assevera que o problema da eqüidade aparece sob o aspecto de um aparente conflito entre sua noção e o direito positivo, cujo enunciado seria o seguinte: "o direito positivo é corporificado sob a forma universal da norma jurídica e esta, muitas vezes, pode se encontrar em conflito com os princípios justos, aplicada à particularidade de um dado caso" [43]. Ensina SERPA LOPES que o conflito, no entanto, é apenas aparente, "pois no fundo, direito e eqüidade se polarizam numa só direção idêntica. Se o direito representa as justas exigências coletivas, a eqüidade o completa, tendo em vista as circunstâncias individuais" [44]. Não é um campo para o livre arbítrio do juiz, pois quando utilizada como um elemento interpretativo, a eqüidade "deve buscar o sistema que preside a lei, a própria idéia de lei e mais particularmente do instituto aplicável ao caso particular, em conformidade com os dados morais, econômicos, e não inspirações interiores, nascidas puramente do sentimentalismo do intérprete" [45].

Como se verifica em todas essas definições da eqüidade, serve ela ao aplicador do Direito para buscar justiça no caso concreto. A eqüidade, como método de aplicação e interpretação do Direito, ajusta-se como instrumento próprio de atuação do Poder Judiciário, nos seus objetivos de encontrar na norma genérica uma solução justa para o caso particular. É mais um meio de concreção do Direito e individualização da norma. Como bem lembra a Professora MARIA HELENA DINIZ, não é a eqüidade "uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade condicionada às valorações positivas do ordenamento jurídico" [46].

O legislador, sim, age com liberdade, com absoluta discricionariedade. Seus limites estão na Constituição Federal, obra aliás criada por ele. O legislador faz opções axiológicas, escolhe caminhos, estabelece regras genéricas a serem obedecidas no âmbito de sua vigência temporal e territorial. Se usa da eqüidade, não é desta tratada na filosofia e ciência do Direito, mas apenas daquela relacionada a uma idéia abstrata de equilíbrio.

O juiz, não. Sua liberdade não é a mesma, o que é próprio do poder que exerce. A eqüidade lhe fornece apenas mais um mecanismo para melhor revelar o direito existente e nunca para criá-lo arbitrariamente. Pois a eqüidade, como demonstra MARIA HELENA DINIZ, "é um ato judiciário e não legislativo. É poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente..." [47], compatibilizando a norma genérica ao caso particular.


8) Conclusão – poder normativo – atividade jurisdicional ou legislativa – seus limites materiais

Diante do breve estudo feito no tópico anterior a respeito da eqüidade como mecanismo de aplicação e interpretação do Direito, arrisco-me a afirmar que não há uso da eqüidade no exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho, especialmente dentro da concepção ampliativa de seus limites, defendida por parte da doutrina após a Carta de 1988. O caráter genérico e abstrato da sentença normativa, típico de uma lei, não se compatibiliza com a idéia de justiça para o caso concreto, própria da eqüidade. Na sentença normativa, a Justiça do Trabalho cria direito novo, com eficácia genérica no âmbito das categorias envolvidas no conflito de trabalho. Age o Juiz do Trabalho, nesse caso, movido por argumentos de oportunidade e conveniência, com o arbítrio de um legislador. Não busca temperar nem aplicar um corretivo à lei genérica na sua aplicação a um caso concreto, pois na atuação normativa o Juiz do Trabalho cria a regra genérica, que depois será ou não bem aplicada.

A doutrina, na realidade, vem utilizando a eqüidade como um suporte para defender a alegada natureza jurisdicional do poder normativo da Justiça do Trabalho. Mas a incompatibilidade dessa atividade legislativa do Poder Judiciário com o uso da eqüidade como mecanismo de aplicação e interpretação do Direito me parece evidente, o que revela bem como o poder normativo efetivamente escapa dos limites próprios de atuação jurisdicional a que deveria se ater a Justiça do Trabalho.

Tais considerações a respeito da eqüidade me convencem da absoluta necessidade de limitação material do poder normativo, para impedir que ele invada a esfera de atuação do Poder Legislativo, respeitando assim nosso sistema constitucional que preserva a separação de poderes, ou melhor, a separação de funções no exercício do poder estatal, pois na realidade esse poder é único. Reconheço mesmo o acerto das posições defendidas pelo Professor Arion Sayão Romita, no artigo destacado, no sentido de que o poder normativo não pode ser exercido onde haja expressa definição legal, nem mesmo para assegurar mais vantagens aos trabalhadores, como também não pode ser exercido no silêncio da lei, pois não pode o juiz legislar. A bem da verdade, não há nenhum espaço para o poder normativo no nosso sistema constitucional, nem naqueles chamados comandos implícitos da lei, pois também aí o Juiz do Trabalho não usa da eqüidade, já que não decide casos particulares e sim elabora, com meros argumentos de oportunidade e conveniência, normas genéricas e abstratas, invadindo o campo de atuação assegurado pela Constituição Federal ao legislador.

Por essa razão, a posição adotada pelo STF no estabelecimento de limites ao poder normativo da Justiça do Trabalho, a meu ver, se corrige os exageros da concepção ampliativa defendida por parte da doutrina, não resolve o problema maior, pois sempre que a Justiça do Trabalho estabelecer norma genérica e abstrata na solução dos conflitos econômicos de trabalho estará legislando e não julgando, invadindo o território do Poder Legislativo, definido na Constituição Federal.

Concluo afirmando que a verdadeira solução para a delimitação material do poder normativo da Justiça do Trabalho é a sua simples extinção, compatibilizando a atividade desse ramo do Poder Judiciário aos limites do exercício do poder jurisdicional, ainda que em ações coletivas como nos dissídios coletivos de natureza jurídica, quando então sim, adotando mecanismos de aplicação e interpretação do Direito, inclusive a eqüidade, a Justiça do Trabalho procurará na norma genérica a solução justa para o caso concreto.


Notas

01. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito Sindical. São Paulo: LTr, 1982. p. 238.

02. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 1983. p. 154.

03. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 149.

04. Do poder normativo da Justiça do Trabalho na Nova Constituição. LTr, São Paulo, vol. 53, n. 11, p. 1.286, 1989.

05. A instrumentalidade do processo. São Paulo: RT, 1987. p. 164.

06. Direito Sindical e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 351.

07. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho na Nova Constituição. p. 1.287, 1989.

08. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 146-149.

09. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Apud VIDAL NETO, Pedro. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 148.

10. LAMARCA, Antonio. Apud VIDAL NETO, Pedro. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 148.

11. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 147.

12. Idem, ibidem. p. 151.

13. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho na Nova Constituição. p. 1.288.

14. O dissídio coletivo na nova ordem constitucional. LTr, São Paulo, vol. 53, n. 2, p. 199-200, 1989.

15. Idem, ibidem. p. 200-201.

16. Poder normativo da Justiça do Trabalho. LTr, São Paulo, vol. 53, n. 2. p. 160-162, 1989.

17. Idem, ibidem.

18. O dissídio coletivo na nova Constituição Federal. LTr, São Paulo, vol. 53, n. 2, p. 12, 1989.

19. Idem, ibidem. p. 13.

20. A competência normativa da Justiça do Trabalho. LTr, São Paulo, vol. 53, n. 8, p. 909, 1989.

21. Idem, ibidem.

22. Idem, ibidem

23. Idem, ibidem. p. 910-911.

24. Poder normativo da Justiça do Trabalho. LTr, São Paulo, vol. 55, n. 9, p. 1.028, 1991.

25. FREITAS, Manoel Mendes de. Poder normativo da Justiça do Trabalho – poder regulamentar do Chefe do Executivo – análise comparativa. LTr, São Paulo, vol. 55, n. 5, p. 651, 1991.

26. Idem, ibidem. p. 653.

27. Acórdão extraído da Revista LTr, São Paulo, vol. 59, n. 6, p. 821, 1995.

28. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 145.

29. Idem, ibidem.

30. VIDAL NETO, Pedro. Op. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 135.

31. Op. cit. Poder normativo da Justiça do Trabalho. p. 160-161.

32. Do poder normativo da Justiça do Trabalho. LTr, São Paulo, vol. 57, n. 3, p. 266-267, 1993.

33. Loc. cit. Do poder normativo da Justiça do Trabalho.

34. Idem, ibidem.

35. Livro I – Da Justiça – Livro V – I de Éticas a Nicómaco – textos de Aristóteles reunidos por Paulo Ferreira da Cunha sob o título Obra jurídica. Porto: Edição Resjurídica, 1989. p. 90.

36. Idem, ibidem.

37. Idem, ibidem.

38. AQUINO, S. Tomás. Apud DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. São Paulo: RT, 1981. p. 210.

39. Lições de Filosofia do Direito. 5.ª ed. Coimbra: Editora Armênio Amado, 1979. p. 378-379.

40. Nova fase do Direito Moderno. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 28.

41. Ética e Direito. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996. p. 164-166.

42. Lei de Introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943. vol. I, p. 187.

43. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Op. cit. Lei de Introdução do Código Civil. p. 287.

44. Idem, ibidem. p. 188.

45. Idem, ibidem. p. 204.

46. Op. cit. As lacunas do Direito. p. 230.

47. Idem, ibidem. p. 231.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Pedro Carlos Sampaio. Limites do poder normativo da Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 254, 18 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4864. Acesso em: 25 abr. 2024.