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O ônus da prova e sua inversão no Código de Defesa do Consumidor

O ônus da prova e sua inversão no Código de Defesa do Consumidor

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AGRADECIMENTOS

Ao professor e orientador Dr. Manuel Carlos Cardoso, mestre que dedicou muita atenção e ajudou-me a realizar essa monografia.
          A Dra. Gisele Araújo, amiga que me incentivou e cuja influência ajudou na coleta do material para o desenvolvimento da pesquisa.
          Ao Dr. Frederico Borghi Neto, por toda sua paciência e compreensão.
          Enfim, aos meus pais que caminharam ao meu lado para que eu pudesse chegar até aqui.
          A todos, muito obrigada.


RESUMO

O presente trabalho tem por escopo o estudo da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Este instituto consumerista trouxe para o direito brasileiro uma mudança no eixo da responsabilidade – princípio norteador da responsabilidade objetiva. A Lei 8.078/90 criou esse mecanismo para que, sendo o consumidor hipossuficiente em relação aos conhecimentos técnicos do produto ou da prestação de serviço, e possuindo ele alegações verossímeis, o magistrado possa determinar a inversão. A inversão ope judicis, prevista no Código de Defesa do Consumidor, não se atém às hipóteses taxativas verificadas por força de lei. O Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade do Juiz inverter esse ônus, quando julgar cabível, desde que presentes os pressupostos necessários para a aplicação dessa medida.

No presente trabalho, encontra-se a explanação sobre o momento ideal para a inversão do ônus da prova praticado pelo magistrado, quando cabível ou necessária tal medida.


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO ; CAPÍTULO I: A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA PROCESSUAL, 1.1Considerações, 1.2A Evolução do Direito Processual Civil, 1.3Características e Inovações do Código de Defesa do Consumidor; CAPÍTULO II: O ÔNUS DA PROVA E SUAS PECULIARIDADES, 2.1 O Ônus de Provar, 2.2 Conceito de Ônus da Prova, 2.3Principais Teorias Sobre a Repartição do Ônus da Prova, 2.4O Ônus da Prova e o CPC, 2.5O Ônus da Prova e o CDC, 2.6Regras de Experiência e Presunções, 2.7Critérios do Juiz, 2.8 Verossimilhança das Alegações, 2.9 Hipossuficiência; CAPÍTULO III: A INVERSÃO DAS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CDC, 3.1 Introdução, 3.2 Regra de Julgamento, 3.3 Fase Processual para a Inversão, 3.4 O Ônus Probante, 3.5 A Inversão do Ônus da Prova pelo Juiz, 3.6 A Aplicação das Regras do Ônus da Prova, 3.7 Momento da Inversão do Ônus da Prova; CONCLUSÃO, Exemplos que Confirmam a Tese, Exemplos Práticos, Jurisprudência Comentada, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS; ANEXO.


INTRODUÇÃO

Esta monografia tem como objetivo a análise da inversão do ônus da prova sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor. Dentre as diversas situações probatórias na relação consumerista, cumpre distinguir e examinar como se opera a medida da inversão do ônus probatório em cada hipótese específica.

Nos termos da determinação constitucional, a expedição do Código de Defesa do Consumidor responde a antiga exigência da economia de mercado, que se ressentia de instrumental adequado para contrabalançar os desequilíbrios existentes entre as grandes concentrações empresariais e os consumidores em geral, na aquisição e na fruição de bens e de serviços para a satisfação de necessidades humanas primárias.

Aparelhada na relação de defesa da concorrência com sistema jurídico próprio, não se encontrava, no entanto, a legislação brasileira, sob o outro pólo da relação de consumo, posicionada em condições compatíveis com a magnitude dos valores nela envolvidos e exatamente com respeito à parte economicamente mais fraca.

Completa-se, assim, o binômio em que repousa o regime jurídico da economia do mundo liberal, a saber, a defesa da concorrência e a proteção do consumidor, permitindo-se, de um lado, o respeito aos direitos dos competidores e, de outro, o do adquirente de bens e de serviços colocados no mercado.

Integra-se, desse modo, na regência da matéria, os dois princípios fundamentais, o da lealdade com o concorrente e o da honestidade com o consumidor, erigidos, desde tempos antigos, em vigas mestras do direito negocial.

Nesse sentido e inseto na linha de proteção dos valores fundamentais da pessoa humana em sociedade, o ingresso do Código na realidade jurídica encontra-se preparado, graças à reestruturação constitucional havida em 1988, para a sua efetiva aplicação, com a sagração de inúmeras novas medidas assecuratórias desses direitos e a nível coletivo, dentro da evolução operada nessa área.

De fato, coerente com o espírito que presidiu a Carta de 1988, em que a dignidade da pessoa humana e a preservação de seus direitos de personalidade são as pilastras básicas, o Código vem suprir lacuna existente em nosso direito positivo, acompanhando o progresso legislativo processado na matéria, especialmente em alguns países da Europa e nos Estados Unidos.

Informado por princípios próprios e estratificados sob forma de normas de ordem pública, o Código busca o equilíbrio na relação de consumo, conferindo aos consumidores o instrumental de defesa compatível com as necessidades do mundo presente.

Com efeito, tendo no universo contratual do setor poderosas empresas, detentoras de tecnologias próprias, ao lado de pessoas normais do povo consumidor, além de profissionais e de outras empresas, também consumidoras, o Código arma a parte mais fraca economicamente com mecanismos de proteção, públicos e privados, que lhe permitirão a consecução de justiça na contratação denominada de massa.

Destacam-se, em seu contexto a proteção do consumidor e o reconhecimento explícito de vários direitos básicos do consumidor, bem como a modificação de conceitos e de institutos processuais para efeito de defesa de interesse de consumidores como a inversão do ônus da prova.

O Código de Defesa do Consumidor constitui-se num sistema autônomo e próprio, sendo fonte primária, dentro do sistema da Constituição, para o intérprete.

Dessa forma, no que respeita à questão da produção das provas no processo civil, o CDC é o ponto de partida, aplicando-se a seguir, de forma complementar, as regras do Código de Processo Civil (arts. 332 a 443).

Entender, então, a produção das provas em casos que envolvam as relações de consumo é compreender toda a principiologia da Lei n. 8.078/90, que pressupõe, entre outros princípios e normas, a vulnerabilidade do consumidor, sua hipossuficiência, especialmente em técnica de informação, mas também econômica, como se verá, o plano geral da responsabilização do fornecedor, que é de natureza objetiva etc.

Ao lado disso, têm-se, na lei consumerista, as determinações próprias que tratam da questão da prova.

Na realidade é a vulnerabilidade reconhecida no inciso I do art. 4º do CDC que principalmente justifica a proteção do consumidor nessa questão da prova.

A primeira situação envolvendo provas na lei consumerista é a relacionada à responsabilidade civil objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 14 CDC), bem como a responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 20, 21, 23 e 24 CDC) e que se espraia por todo sistema normado da Lei n°. 8.078/90. Haverá necessidade que o consumidor prove o nexo de causalidade entre o produto, o evento danoso e o dano, para pleitear a indenização por acidente de consumo. E a produção dessa prova preliminar necessária se fará pelas regras do Código de Processo Civil, a partir dos princípios e regras estabelecidas no CDC.

Todavia, também essa prova, como qualquer outra que tiver de ser produzida, deverá guiar-se pelo que está estabelecido no art.6º, VIII, do CDC.

Visando o exame de todos esses aspectos, tratará esta monografia da medida de inversão do ônus da prova precipuamente com relação aos consumidores, por vista no Código de Defesa do Consumidor.

A presente monografia conterá três capítulos principais. Sendo eles:

Capítulo I – A Evolução da Ciência Processual – neste capítulo temos uma visão do direito processual civil brasileiro vivenciado nas últimas décadas, bem como suas renovações e a inserção do Código de Defesa do Consumidor.

Capítulo II – O Ônus da Prova e suas Peculiaridades – neste capítulo analisamos o conceito de ônus da prova bem como as peculiaridades inerentes a este instituto perante o CDC.

Capítulo III – A Inversão do Ônus da prova no Código de Defesa do consumidor – neste momento tratamos diretamente da utilização e demais questões pertinentes aos efeitos que essa instrumental causa ao processo e de que modo atingem as partes legítimas da lide. Analisamos o conceito do ônus probandi, qual o momento processual que ocorre tal fenômeno, questão que divide bastante a doutrina nacional e, principalmente, quais são os requisitos que se fazem necessários para que tal instrumento trabalhe adequadamente e alcance seu objetivo, que será também objeto de amplo desenvolvimento.

Com todas essas considerações, esperamos que logrem um maior conhecimento e uma noção mais ampla sobre o assunto. Ademais, com toda a análise realizada será possível entender e adotar uma determinada posição dentre várias correntes que podem existir quando surgem questões controversas.


CAPÍTULO I
A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA PROCESSUAL

1.1. CONSIDERAÇÕES

O estudo da história, especialmente no caso do Direito, não tem a pretensão apenas de relembrar datas, nomes e fatos ocorridos em tempos pretéritos, mas sim, ressaltar que os hábitos ocorridos nesse tempo continuam ocorrendo e que até mesmo as regulamentações, mesmo tendo sofrido mudanças, influenciam o comportamento contemporâneo.

O intuito da História do Direito é oferecer ao Direito atual a compreensão de sua retrospectiva, esclarecendo as suas dúvidas e levantando, passo a passo, a estrutura do seu ordenamento, seus institutos mais perenes, suas bases de fundo e suas características de forma, até chegar à razão de ser de seu significado e conteúdo.

A importância deste estudo no âmbito do ônus da prova no Direito Processual permite avaliar o desenvolvimento de princípios, alguns até hoje adotados e outros já em desuso e sem fundamento cabível no cenário atual. Trata-se de um entendimento maior do que um simples conceito – faz parte da evolução da própria ciência do Direito.

1.2. A EVOLUÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

O direito processual civil brasileiro está vivenciando nas últimas décadas mais uma etapa de sua renovação. Muito longe do primeiro passo que proporcionou sua autonomia do direito material, ocorrida no século passado, hoje o processo se volta aos seus consumidores e à qualidade de seus resultados.

Se de início, o processo era mera tradução formal de prerrogativas também formais do cidadão (1), atualmente se afigura muito mais como instrumento efetivo de garantias fundadas no devido processo legal e no sistema político constitucional, afastando-se de qualquer possibilidade de denegação da Justiça ou violação de direito fundamental. (2)

Vencidas as duas primeiras ondas renovatórias do processo (3) – destinadas a garantir tanto a assistência judiciária como o reconhecimento e tutela dos interesses difusos, vive-se o desejo em alcançar a universalidade da jurisdição.

Pretende-se, deste modo, questionar a qualidade do serviço jurisdicional, inventariando as carências e obstáculos do atual sistema para confronta-las com as alternativas que viabilizam soluções adequadas. (4)

O processo se traduz como instrumento – revolucionário – a serviço da espiral progressiva e coletiva dos direitos, partindo-se do individual para o meta individual. Sua tendência é tutelar a quarta geração dos direitos – após a tutela das liberdades públicas, dos direitos econômicos e sociais e dos direitos meta individuais, através de sua projeção mundial.

A atual metamorfose da ciência processual exige um repensar de seus institutos, redimencionando-os sob uma ótica macroscópica. (5) Justifica-se esta postura a partir do momento em que há a violação em massa de direitos e não se admite mais a postura de fragmentação das demandas, amparada pela leitura clássica do art. 6º do CDC.

O processo pretende, então, valorizar suas qualidade de efetivo, pois se mostra como canal apto para atingir a educação, a paz social, o bem comum, além de oferecer um provimento justo e legítimo; de instrumental, porque inequívoco seu grau de utilidade e eficiência. (6)

A reavaliação dos institutos processuais poderá aplacar os óbices que impedem a realização destas qualidades (efetividade e instrumentalidade). Com o oferecimento de tutela jurisdicional adequada, eficaz e célere, é possível atingir a justiça acessível e participativa, ideal a que estão comprometidos os operadores do Direito sintonizados com a nova ordem processual.

Esta renovação do processo se reflete na necessidade em se proteger direito indivisíveis de um número indeterminado de pessoas, relativos, principalmente, aos consumidores e ao meio ambiente. (7)

É neste contesto revolucionário de expansão da tutela jurisdicional que se insere o Código de Defesa do Consumidor. Pretende não só resolver o maior número de conflitos como também jurisdicionalizar a imensa gama de litígios pelo Estado e que não são levados para apreciação pelo Estado e que, por isto, guardam alto grau de litigiosidade contida (8), que rege a imperiosa necessidade de reestruturação.

A nova tendência do direito processual civil é questionar o binômio direito-processo e sua relativização frente ao conceito de tutela jurisdicional, enquanto meio para a efetiva satisfação das pretensões.

São estas as bases que projetam a análise do Código de Defesa do Consumidor e, em especial, do momento processual da inversão do ônus da prova.

1.3. CARACTERÍSTICAS E INOVAÇÕES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

É neste passo que, após ser instituído como direito fundamental pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º., inc. XXXII) e a partir de experiências estrangeiras, foi elaborado o nosso Código de Defesa do Consumidor.

Caracteriza-se o CDC como sistema funcional de normas, de aspecto multidisciplinar (9), cujo intuito é a proteção do consumidor, sabidamente a parte vulnerável da desequilibrada relação de consumo, conferindo-lhe paridade de armas frente ao fornecedor. (10)

São escopos do processo, tendo como base às relações de consumo: a) ampliar a forma de representação dos consumidores, de acordo com a tendência associativa; b) garantir a informação aos consumidores, de modo que tenham ciência de seus direitos, pois consumidor informado é consumidor exigente e com poder; c) viabilizar o acesso dos consumidores a diferentes mercados, estimulando o aprimoramento da produção e consciência do fornecedor em oferecer melhores produtos; e d) estipular um sistema de proteção contra produtos nocivos e defeituosos que possam gerar prejuízo à vida e à saúde do consumidor.

Além de garantir a proteção do direito individual do consumidor, buscou-se permitir a tutela coletiva dos direitos, sejam eles individuais homogêneos, coletivos ou difusos, prevendo a coisa julgada secundum eventum litis.

Tipificaram-se infrações penais e administrativas, com a inscrição de regras de responsabilidade objetiva do fornecedor, prevendo a inversão do ônus da prova, sem que isto signifique interferência na livre iniciativa e na política de mercado, com a clara intenção de viabilizar a defesa do consumidor em juízo.


CAPÍTULO II
O ÔNUS DA PROVA E SUAS PECULIARIDADES

2.1. O ÔNUS DE PROVAR

A palavra vem do latim, ônus, que significa carga, fardo, peso, gravame. Não existe obrigação que corresponda ao descumprimento do ônus. O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus condição de parte.

2. 2. CONCEITO DE ÔNUS DA PROVA

Para se compreender a extensão da aplicabilidade da inversão das regras de distribuição do ônus da prova, como previsto no art. 6º., inc. VIII do CDC é necessário fixar o ônus da prova.

Proposta a demanda, a atividade probatória deve se desenvolver de acordo com o interesse em oferecer ao julgador as provas possíveis para a prolação de um provimento legítimo, capaz de solucionar o conflito de interesses.

Para formar a convicção do julgador, o demandante tem o encargo de comprovar as alegações que amparam seu direito, sob o risco de, assim não agindo, sofrer um julgamento desfavorável. O demandado, por seu turno, tem o ônus de oferecer prova que modifique, extinga ou impeça o reconhecimento da pretensão de seu adversário.

Ônus é o agir de determinado modo para a satisfação de interesse próprio, evitando-se uma situação de desvantagem. (11) No caso do ônus da prova, à parte que não quiser ser atingida pelas conseqüências do estado de dúvida do julgador deve provar suas afirmações, pois ônus probatório é, antes de tudo, interesse em oferecer as provas. (12)

2. 3. PRINCIPAIS TEORIAS SOBRE A REPARTIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Entende-se que a grande questão sobre o ônus da prova não é o que se prova ou quem prova, mas quem sofre as conseqüências pela falta de prova.

O pensamento de Micheli sobre o ônus da prova adotado pelo Código de Processo Civil, em seu art. 333 e incisos – contrariou os fundamentos da teoria de Rosenberg, em especial a bipartição do ônus da prova em subjetivo e ônus objetivo.

Isto porque a atividade probatória das partes pode ser insuficiente para produzir no espírito do julgador o convencimento sobre a realidade dos fatos. Então independentemente de ser processo regido pelo princípio inquisitivo ou pelo princípio dispositivo, é lícito permitir que o juiz desenvolva seus poderes instrutórios, completando a atividade probatória, não para auxiliar uma ou outra parte, mas para esclarecer suas próprias dúvidas.

Porém finda a instrução probatória e ainda que utilizados os poderes instrutórios do juiz e apreciada a prova segundo o sistema da persuasão racional, a certeza não poderá se firmar se o juiz permanecer em dúvida.

Não poderá ele proclamar o non liquet, deixando de julgar com o argumento de que não formou sua convicção. Deve, então, socorrer-se das regras do ônus da prova, para determinar qual parte sofrerá a desvantagem por seu estado de dúvida, julgando procedente ou improcedente o pedido.

Entre as principais teorias que se destacam para justificar uma repartição do ônus da prova encontram-se aquelas formuladas por Rosenberg e Micheli. (13)

Segundo Rosemberg, cada parte deve comprovar o estado de coisas do qual externam os pressupostos do preceito jurídico aplicável à espécie. Ao demandante cabe provar os elementos da aplicação da norma constitutiva do direito que ampara, enquanto que o demandado deve demonstrar os elementos da aplicação de norma impeditiva, modificativa ou extintiva.

Ao ônus de afirmar, conferido às partes, correlaciona-se o ônus subjetivo da prova, assim entendido como o encargo de subministrar a prova (qual litigante deve provar os fatos para se desincumbir de seu encargo) e o ônus objetivo da prova, isto é, a aplicação do direito ao caso concreto (onde se dispensa qualquer análise sobre a atividade das partes, apreciando o julgador o quanto demonstrado para, em caso de dúvida, emitir seu julgamento e impor o ônus objetivo a uma das partes).

Para Micheli, é necessário apreciar a hipótese normativa de forma concreta, de acordo com a posição assumida pelas partes na relação jurídica processual e qual é o efeito processual pretendido. É preciso definir a posição real das partes, de acordo com o direito material (que disciplina a hipótese legal) e com o direito processual (que traduz o efeito jurídico pretendido pela parte).

2.4 O ÔNUS DA PROVA E O CPC

O art. 333 do CPC estabeleceu a distribuição do ônus da prova da seguinte maneira:

  1. Ao autor, incumbe provar os fatos constitutivos do seu direito;
  2. Ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Relevante, a esta altura, traçar algumas considerações, breves, todavia, no tocante a noção e classificação dos fatos jurídicos.

Por fato jurídico se denominam os acontecimentos que produzem, modificam ou extinguem as relações de direito, como afirma Chiovenda reproduzido por Amaral Santos.

Emílio Betti, em Teoria Geral do Negócio Jurídico, p.6, expressa que os fatos jurídicos são os frutos a quem o direito atribui transcendência para trocar as situações preexistentes a eles e estabelecer novas, a que correspondam novas classificações jurídicas.

Continua o Autor, traçando um esquema lógico do fato jurídico, para sustentar que se trata de um fato dotado de alguns requisitos, pressupostos pela norma que incide em situação nova (final), de tal sorte que constitua, modifique ou extinga, poderes e vínculos de qualificações e posições jurídicas.

A eficácia do fato jurídico em constitutiva, modificativa ou extintiva que se atribui reside exatamente em relação à situação em que se enquadra, enquanto que forma com ela (a situação como suposto de fato) objeto da previsão e de estimação jurídica por parte da norma que declara aquela eficácia.

Os fatos constitutivos são aqueles que fazem nascer à relação jurídica. Os extintivos fazem cessar a relação jurídica. A seu turno, os impeditivos obstaculizam que um fato produza o efeito que lhe é próprio.

Os modificativos, de outro lado, sem impedir ou excluir a relação jurídica, à qual é anterior, produzem um efeito de modifica-la.

Vale ressaltar ainda, tema muito discutido em doutrina, o da admissibilidade de convenções no tocante à distribuição do ônus da prova.

Tomando por modelos o direito italiano e o direito português, o Código de Processo Civil introduziu no sistema probatório pátrio a inovação de permitir convenções, judiciais ou extrajudiciais, relativas à distribuição do ônus da prova, em descompasso com a regra geral constante o art. 333 que expusemos acima.

Dispõe o parágrafo único deste artigo que é nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando recair sobre direito indisponível da parte ou tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. Daí serem admissíveis e legítimas convenções relativas ao ônus da prova, desde que não incidam nas vedações previstas nos incisos desse dispositivo.

Sem sombra de dúvida e, salvo melhor juízo, a nós parece que o Código de Processo Civil adotou a tese esposada por Carnelutti, como expusemos acima.

2.5 O ÔNUS DA PROVA E O CDC

Há algumas preliminares que necessitam de resolução para que possamos compreender adequadamente a temática relativa à distribuição do ônus da prova e as disposições pertinentes no Código de Defesa do Consumidor.

É bom relembrarmos, que o CDC é um sistema jurídico que basta por si, autônomo, a regular as relações de consumo.

Aliás, é bom relembrar que o surgimento do CDC resultou da necessidade imperiosa de regulamentar uma relação jurídica caracterizada por fenômenos essencialmente de massa, decorrente da konsumgelleshafe, como anotam os alemães. A sociedade de consumo, como bem adverte Antonio Herman V. Benjamim é caracterizada pela produção em massa pelo consumo em massa.

Os instrumentos jurídicos postos à disposição dos membros da sociedade mostraram-se ineficientes, pois cada vez mais é flagrante um profundo vácuo econômico entre os diversos escalões da sociedade. De um lado, os economicamente mais bem aquinhoados e, de outro, a sofrida classe média.

Quem não enfrentou situações em que, na condição de consumidor, não teve assegurado o seu direito?

Os produtos muitas vezes não funcionam, e quando o faziam, apresentavam defeitos. As diversas reclamações não encontravam eco, e o Judiciário não se mostrava adequadamente instrumentalizado, com a existência de regras claras e definidas para a boa prestação jurisdicional.

Juízes atentos aos reclamos da sociedade eram obrigados a aplicar as regras contratuais inscritas no Código Civil ou Código Comercial, onde o liberalismo imperava.

Tornou-se necessário surgir uma legislação própria para as relações de consumo, já que os instrumentos até então existentes, exceto a Lei 7.347 de 24.7.85, ainda assim muito pouco disciplinadora a respeito, não continham regras ajustadas a essa nova faceta da ciência jurídica.

Daí porque a preocupação do legislador nacional em pôr à disposição da sociedade normas que protegessem a saúde, os negócios jurídicos em sua órbita contratual ou pré-contratual, bem como seus prolongamentos processual e penal.

Para bem se compreender as regras da distribuição probatória em sede de Código de Defesa do Consumidor é indispensável lembrar que o Código, como regra geral, adotou a responsabilidade objetiva, tal como prescreve os arts. 12, 14 da mencionada lei.

Em relação aos profissionais liberais, a lei consumerista estabeleceu a responsabilidade civil subjetiva, mediante a verificação de culpa, tal como dispõe o artigo 14, §4º do CDC.

Não passou também, desapercebido o enfoque contratual, com a proibição de cláusula contratual que imponha o encargo probatório em prejuízo do consumidor, consoante dispõe o art. 51, VI do CDC.

Ademais em relação à publicidade, o Código também tratou de disciplinar a matéria atribuindo a distribuição da carga probatória quanto à veracidade e correção de informação ou comunicação publicitária ao patrocinador, conforme o art. 38 do CDC.

Finalmente, o Código inclui como direito básico do consumidor, a facilitação da defesa do seu direito, inclusive com a possibilidade da inversão do ônus da prova, tal como prescreve o artigo 6º. inciso VIII.

A essa altura, se realça uma questão: o Código de Defesa do Consumidor alterou as regras do ônus da prova estabelecido no art. 333 da Lei instrumental brasileira?

A resposta negativa se impõe. Com efeito, em princípio, compete ao autor provar o fato constitutivo do seu direito. Ao demandado demonstrar os fatos extintivos, impeditivos ou modificativos ao direito do primeiro.

Falou-se, em princípio, em relação ao demandante, porque o Código permite, como veremos adiante, a inversão do encargo probatório em benefício do consumidor (art. 6º, VIII, CDC).

As regras da distribuição do encargo probatório no art. 333 do CPC são plena e integralmente aplicáveis nos pleitos judiciais que tenham como matiz os direitos substanciais reconhecidos no CDC.

Ora, as normas de distribuição de carga probatória, se dirigem em regra, ao destinatário maior da prova: o Magistrado. Em todo o debate travado pelos doutrinadores em relação às teorias do ônus probandi, resultou cristalino que quem deve provar tem apenas e tão somente o fardo de demonstrar os pressupostos da norma reguladora que lhe é favorável ao seu pedido deduzido.

Aqui a situação não se mostra diferente.

Substancialmente, como já deduzido, o Código é um microssistema, autônomo e independente, mas instrumentalmente se socorre das regras e princípios gerais que norteiam o CPC, exceto quando diferentemente regule, tal como nos casos de intervenção de terceiro, coisa julgada, e etc...

São essas as questões que passamos a enfrentar, sem, todavia, esquecer que o tema é novo, com muita divergência a respeito.

2.6 REGRAS DE EXPERIÊNCIAS E PRESUNÇÕES

Com intuito de esclarecer suas dúvidas é certo que o julgador, no momento de apreciação das provas e para alcançar a certeza, poderá utilizar-se de regras de experiência e de presunção.

A presunção é um raciocínio lógico utilizado para que, de um fato conhecido (o indício) seja possível chegar a um fato também desconhecido. A regra de experiência é também um processo lógico, baseado em fatos comuns, preexistentes, genéricos e abstratos do conhecimento humano, de uso corriqueiro pelo juiz.

Assim, analisando as provas do processo, aplicará o julgador às presunções e regras de experiência, onde poderá presumir a verossimilhança da existência de um direito alegado não provado, a partir do indício.

Através do raciocínio lógico, o juiz poderá entender que um fato, apesar de não comprovado, reveste-se de alta dose de probabilidade, se inexistir qualquer prova do adversário que contrarie a presunção.

Na apreciação da prova, é permitido ao julgador a utilização de regra de experiência, tanto relativa à matéria probatória quanto pertinente à função integrativa do conceito em branco. (14) Se reconhecida no momento da valoração, sua aplicação favorece uma das partes, que é beneficiada pela presunção originada da regra de experiência, liberando-a de sofrer a desvantagem pela incerteza, transferindo o encargo ao adversário.

Com isto, pretende-se afirmar que, ao se utilizar às regras de experiência, o juiz poderá aplicar de modo diverso as regras do ônus da prova: as alegações do demandante não foram por ele provadas, porém, segundo as regras de experiência, são verossímeis e não foram contrariadas pelo adversário. Apesar de não se desvencilhar de seu encargo em provar, o demandante não sofrerá a desvantagem da incerteza do julgador, pois a seu favor milita uma regra de experiência.

Frise-se, novamente, que as regras de experiência e as presunções somente são utilizadas se o juiz estiver em dúvida sobre a realidade dos acontecimentos. O julgador, no instante da sentença, tendo aplicado regra de experiência, dispensa uma das partes de sofrer as conseqüências a ela desfavorável.

A verossimilhança é um patamar na escala do convencimento dos fatos (15) e o julgador, após analisar as provas, pode formar três estados de conhecimento: de certeza, de ignorância e de dúvida.

Constatada a dúvida, o juiz deverá analisar se as provas fundamentam uma alegação verossímil daquele a quem a presunção, se existente, favoreça, dispensando-o do encargo da prova.

2.7 CRITÉRIO DO JUIZ

Em matéria de produção de prova o legislador, ao dispor que é direito básico do consumidor a inversão do ônus da prova, o fez para que, no processo civil concretamente instaurado, o juiz observasse a regra.

E a observância de tal regra ficou destinada à decisão do juiz, segundo seu critério e sempre que se verificasse a verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência.

Para entender o sentido pretendido pela lei consumerista é preciso primeiramente compreender o significado do substantivo "critério", bem como o do uso da conjunção alternativa "ou".

O substantivo "critério" há de ser avaliado pelo valor semântico comum, que já permite a compreensão de sua amplitude.

Diga-se inicialmente que agir com critério não tem nada de subjetivo. "Critério" é aquilo que serve de base de comparação, julgamento ou apreciação, é o princípio que permite distinguir o erro da verdade ou, em última instância, aquilo que permite medir o discernimento ou a prudência de quem age sob esse parâmetro.

No processo civil, como é sabido, o juiz não age com discricionariedade (que é medida pela conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da legalidade, fundando sua decisão em bases objetivas.

O que a lei processual lhe outorga são certas concessões, como acontece, na fixação de prazos judiciais na hipótese do art. 13 ou do art. 491, ambos do Código de Processo Civil.

Assim, também, na hipótese do art. 6º, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor.

Vale dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará pela decisão entre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência. Presente uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova.

2.8 VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES

É fato que o vocábulo "verossímil" é indeterminado, mas isso não impede que da análise do caso concreto não se possa aferir verossimilhança.

Para sua avaliação não basta, é verdade, a boa redação da petição inicial ou qualquer outra. Não se trata apenas do bom uso da técnica de argumentação que muitos profissionais têm. Isto é, não basta relatar fatos e conecta-los logicamente ao direito, de modo a produzir uma boa peça exordial.

É necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que naquele momento da leitura, desde logo, possa-se aferir forte conteúdo persuasivo. E, já que se trata de medida extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela contestação. E é essa a teleologia da norma, uma vez que o final da proposição reforça, ao estabelecer que as bases são "as regras ordinárias de experiência". Ou, em outros termos, terá o magistrado de se servir dos elementos apresentados na composição do que usualmente é aceito como verossímil.

É fato que a narrativa interpretativa que se faz da norma é um tanto abstrata, mas não há alternativa, porquanto o legislador utilizou de termos vagos e imprecisos ("regras ordinárias de experiência"). Cai-se então no aspecto da razoabilidade e do bom senso que deve ter todo juiz.

2.9 HIPOSSUFICIÊNCIA

O significado de hipossuficiência do texto do preceito normativo do CDC não é econômico. É técnico.

A vulnerabilidade é conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e também técnica. Mas hipossuficiência, para fins de possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.

Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais "pobre". Ou, em outras palavras, não é por ser "pobre" que deve ser beneficiado com a inversão do ônus da prova, até porque a questão da produção da prova é processual, e a condição do consumidor diz respeito ao direito material.

Na realidade, para beneficiar o carente econômico no processo não seria necessária a inversão. Bastaria a determinação judicial de que o fornecedor arcasse com eventuais custas processuais para a produção de provas, tais como as perícias (o que, diga-se, não é ônus para fins de aferição de prova). Determinar-se-ia a inversão do pagamento, ou seja, o consumidor produz a prova e o fornecedor a paga, e aí sim estar-se-ia protegendo, de forma justa, o economicamente fraco.

Não se pode olvidar que, para os "pobres" na acepção jurídica do termo, existe a justiça gratuita, a qual permite ao beneficiário a isenção do pagamento das custas judiciais, o que não significa que ele está isento de provar o seu direito.

E o inverso é verdadeiro: existem consumidores economicamente poderosos, o que não implica a sua não-hipossuficiência técnica. Mesmo no caso de o consumidor ter grande capacidade econômica, a inversão do ônus da prova deve ser feita na constatação de sua hipossuficiência (técnica e de informação).


CAPÍTULO III
A INVERSÃO DAS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

3.1 INTRODUÇÃO

Colocadas às circunstâncias favoráveis ao aparecimento do Direito do Consumidor e as noções sobre o ônus da prova, volta-se à questão da inversão do ônus da prova enquanto forma de tornar efetiva a tutela jurisdicional.

Prevê o CDC a Inversão ope legis e ope judicis.

Neste caso, permite-se ao julgador abandonar as regras de distribuição do ônus da prova, previstas no art. 333 do CPC (que nada mais são do que regras de experiência solidificadas) para inverter as regras de distribuição do ônus da prova em demandas civis, de acordo com os requisitos: a) subjetivo: da verossimilhança das alegações segundo as regras de experiência; e b) objetivo: hipossuficiência do consumidor.

Sobre este aspecto, torna-se necessário compreender o conceito de hipossuficiência como diminuição da capacidade do consumidor, não apenas sob a ótica econômica, mas também sob o prisma do acesso à informação, educação, associação e posição social. (16)

A inversão do ônus da prova é direito do consumidor e com isto não se pretende afirmar que sempre deva o juiz dispensar o consumidor de provar ou então que, com a inversão, a procedência do pedido do consumidor seja automática. Ao contrário, haverá inversão se presente um dos requisitos mencionados, que ensejará a dispensa da prova das alegações do consumidor.

Como já vimos acima, a inversão do ônus da prova não é automática, uma vez que o código deixa a critério do juiz – quando houver uma das duas hipóteses legais – aplicar tal inversão.

Então qual é o momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova?

Eis um tema polêmico. Tanto a doutrina quanto à jurisprudência ainda não se pacificou, sendo certo que há doutrinadores entendendo que o momento de aplicação da regra de inversão do ônus da prova é o do julgamento da causa (Kazuo Watanabe. Nelson Nery Junior) e há também, quem entenda que o momento adequado é o compreendido da inicial até o despacho saneador (Luiz Antônio Rizzatto Nunes).

Temos que, no que tange ao momento da aplicação da regra prevista no art. 6º. VIII, CDC, haveria duas possibilidades de ocorrência, quais sejam:

  1. Quando do julgamento da causa (regra de julgamento), quando se tratar de responsabilidade civil pelo fato do produto e,
  2. Do recebimento da inicial até o despacho saneador, quando se tratar de outro objeto que não reparação por danos decorrentes de acidente de consumo.

A primeira hipótese, a qual vem sendo retratada neste trabalho, ou seja, quando se tratar de ação cujo objeto for responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, acreditamos que é possível a manifestação do juiz acerca da aplicação ou não do art. 6º. VIII da lei consumerista, até o momento da sentença.

É que, nesse caso específico – acidente de consumo – a única defesa do fornecedor é alegar – e provar – uma das excludentes do nexo de causalidade, prevista no art. 12, §3°. II, conforme já detalhado acima.

Entendemos que tais causas eximentes previstas no Código de Defesa do Consumidor nada mais são do que os fatos extintivos (não colocou o produto no mercado); impeditivos (embora tenha colocado no mercado o produto, o defeito inexiste) e, modificativos (culpa exclusiva do consumidor ou terceiros) previstos no Código de Processo Civil, art. 333, II. Porém, nada impede que o consumidor, em seu pedido inicial, já proclame pela inversão. O que ensejará a obrigatoriedade do juiz se manifestar desde o início, garantindo assim uma maior segurança processual.

Mas qual é o motivo para a inversão? Já afirmamos que o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo, que não dispõe de informação ou de acesso aos elementos técnicos do produto. O fornecedor, de outro lado, é à parte detentora dos dados da produção do bem e que se encontra em uma melhor posição para fornece-las ao magistrado.

E qual seria, então, a função do art. 6º. VIII, no caso de responsabilidade pelo fato do produto ou serviço?

A nosso ver, a função do mencionado artigo é justamente equilibrar a relação jurídica estabelecida entre consumidor e fornecedor, colocando-os em pé de igualdade.

Dessa forma, sustentamos a opinião que, o art. 6º. VIII visa, tão somente, proteger ainda mais aquele consumidor que se encontra em situação de desvantagem no processo, desincumbindo-o de provar o fato danoso alegado. Na verdade, no caso de acidente de consumo, o que o consumidor tem é a facilitação da comprovação do nexo causal, com a dispensa do ônus a seu favor.

Em sendo assim, opinamos que o juiz possa decidir-se acerca da aplicação ou não do art. 6º., VIII, até o momento de julgar a demanda. Isso porque, em decidindo pela incidência do mencionado preceito, o juiz apenas estará isentando o consumidor de comprovar o fato constitutivo, o que não irá prejudicar em nada o fornecedor que, sempre terá o ônus de provar o contrário. Não haverá, assim, qualquer surpresa, posto que o fornecedor sabe que, por força de lei, lhe compete o ônus de produzir as provas dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos do direito do consumidor.

Entretanto, como já retratado, nada impede que o juiz se manifeste até o despacho saneador, trazendo maior segurança jurídica para as partes.

O juiz, enquanto homem de seu tempo, deverá deixar eventuais posturas tradicionais e se armar de sensibilidade para apurar imprescindível, sob pena de denegar a prestação jurisdicional à parte vulnerável.

Iniciada a instrução probatória, as partes, tanto o consumidor como o fornecedor, devem apresentar todas as provas possíveis para fundamentar suas pretensões ou embasar uma posição jurídica que seja favorável.

Após a colheita de provas, constatada a incerteza pela insuficiência do material probatório oferecido, o juiz determinará a realização de provas que entenda necessárias para o esclarecimento de suas dúvidas, analisando a possibilidade de aplicação das regras de experiência.

Ainda que o consumidor não ofereça nenhuma prova, o fornecedor poderá rechaçar a pretensão inicial, trazendo toda prova pertinente a fundamentar suas alegações e formar a convicção do julgador. Neste caso, pela ausência de dúvidas, não há que se falar em aplicação das regras de ônus da prova ou sua inversão.

Havendo dúvida e constatando que as afirmações do consumidor são verossímeis e que o fornecedor não fez prova que as contrariasse ou as provas produzidas não ilidiram a presunção, o juiz avaliará o grau de probabilidade dos fatos verossímeis não provados, podendo onerar o fornecedor por sua omissão ou desinteresse em realizar a prova.

Caso contrário, se entender que as alegações do consumidor não são verossímeis, não deve o magistrado inverter as regras do ônus probatório, atribuindo, assim, as conseqüências de sua incerteza ao consumidor.

Idêntica à conclusão no caso de constatação de hipossuficiência do consumidor, onde é impossível produzir as provas que embasam sua pretensão, ainda que suas ilações não sejam verossímeis. De nada adiantaria garantir o acesso formal à Justiça se o demandante não dispõe de meios de produzir a prova.

3.2 REGRA DE JULGAMENTO

Não há momento para o juiz fixar o ônus da prova ou sua inversão (CDC 6°. VIII), porque não se trata de regra de procedimento. O ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu. O sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não a produza (17). No mesmo sentido: TJSP – RT 706/67; Micheli, L’onere, 32,216. A sentença, portanto, é o momento adequado para o juiz aplicar as regras sobre o ônus da prova. Não antes.

3.3 FASE PROCESSUAL PARA A INVERSÃO

O nosso entendimento é no sentido de que, nos casos que envolvam acidente de consumo, em concedendo o juiz ao autor consumidor os benefícios da justiça gratuita, com fulcro na Lei 1.060/50, seja suficiente para que o consumidor tenha proteção da lei, ou seja, os gastos com a produção das provas ficarão então a cargo do fornecedor. Esclarecemos, no entanto, que o momento em que o juiz irá avaliar a quem incumbia o ônus da prova, pode ser realizado até o momento da prolação da sentença, onde concluirá o magistrado, se a alegação do consumidor é verossímil, e então, dirá a quem caberia o ônus da prova.

O Prof. BARBOSA MOREIRA é da mesma opinião, esclarecendo que "as regras sobre distribuição do ônus da prova são aplicadas pelo órgão judicial no momento em que julga". (18)

Contudo, entendemos que o autor consumidor querendo resguardar seu direito, deverá já na inicial requerer a inversão do ônus, e desta forma, a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será logo no ato do primeiro despacho, que não irá tratar-se de mero despacho determinando a citação, mas, de decisão interlocutória, passível, portanto de recurso de agravo. Tal forma irá propiciar a defesa dos direitos do consumidor de forma ampla, de acordo com o espírito do CDC, uma vez que em não sendo concedida a inversão, poderá o consumidor agravar da decisão interlocutória, e ser então revista à decisão. Tal posicionamento evitaria possível cerceamento ou impossibilidade de defesa.

O prof. Nelson Nery Junior, opina no sentido de que "em sendo o juiz destinatário da prova, a regra do ônus é a ele dirigida, portanto, não havendo óbice legal para que ele inverta o ônus já no saneador, ao perceberem estarem presentes os requisitos, mas também afirma que isso poderá ocorrer só quando da prolação da sentença". Em suma, para o Mestre, a inversão poderá dar-se desde o saneador até a prolação da sentença (19).

Concordamos com essa posição e entendemos que a regra legal que possibilita a inversão do ônus é dirigida ao juiz, não porque ele seja destinatário da prova, mas porque é ele quem dirige o processo, conforme preceitua o art. 125 do CPC, cabendo-lhe, portanto decidir se a regra do art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, deve ou não ser aplicada.

Trata-se, em nossa opinião, de "poder de direção" que a lei lhe confere a fim de assegurar às partes a igualdade de tratamento.

Resta-nos ainda, esclarecer que em ocorrendo à inversão pela aplicação da norma citada (art. 6º, VIII), será dentro das normas e princípios constitucionais (20); no dizer do Prof. Nelson Nery Junior "é a manifestação inequívoca do princípio da isonomia" ··.

3.4 O ÔNUS PROBANDI

Há alguma polêmica em torno do momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova, mas, em nossa opinião, como se verá, esta é fruto de falta de rigorismo lógico e teleológico do sistema processual instaurado pela Lei n. 8.078/90.

Acontece, que as partes litigam no processo civil, fora da relação de consumo, têm clareza da distribuição do ônus. Ou, melhor dizendo, os advogados das partes sabem de antemão a quem compete o ônus da produção da prova. Vejamos o art. 333 da lei adjetiva:

"Art. 333. O ônus da prova incumbe:

I – o autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".

É, portanto distribuição legal do ônus que se faz, sem sombra de dúvida. E, claro, nesse caso não precisa o juiz fazer qualquer declaração a respeito da distribuição do gravame. Basta leva-lo em consideração no momento de julgar a demanda. Não haverá, na hipótese, qualquer surpresa para as partes, porquanto elas sempre souberam a quem competia a desincumbência da produção da prova.

Ora, não é essa certeza que se verifica no sistema da lei consumerista.

Não teríamos dúvida em afirmar que nas relações de consumo o momento seria o mesmo se a Lei nº. 8078/90 dissesse: "está invertido o ônus da prova". Aliás, como fez na hipótese do art. 38.

Mas acontece que não é isso o que determina o CDC: a inversão não é automática!

Como vimos antes, a inversão se dá por decisão do juiz diante de alternativas postas pela norma: ele inverterá o ônus se for verossímil a alegação ou se for hipossuficiente o consumidor.

É que pode acontecer de nenhuma das hipóteses estar presente: nem verossímeis as alegações nem hipossuficiente o consumidor.

Como já retratamos acima, verossimilhança é conceito jurídico indeterminado. Depende de avaliação objetiva do caso concreto e da aplicação de regras e máximas da experiência para o pronunciamento.

Logo, o raciocínio é de lógica básica: é preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se o elemento da verossimilhança está presente.

Da mesma maneira a hipossuficiência depende de reconhecimento expresso do magistrado no caso concreto. É que o desconhecimento técnico e de informação capaz de gerar inversão tem de estar colocado no feito sub judice. São as circunstâncias do problema aventado e em torno do qual o objeto da ação gira que determinarão se há ou não hipossuficiência (que, em regra geral, atinge a maior parte dos consumidores). Pode muito bem ser caso de consumidor engenheiro que tinha claras condições de conhecer o funcionamento, de modo a ilidir sua presumida hipossuficiência. Como pode também ser engenheiro e ainda assim, para o caso, constatar-se sua hipossuficiência.

Então, novamente o raciocínio é de singela lógica: é preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se a hipossuficiência foi reconhecida.

E, já que diante da norma do CDC, que não gera inversão automática, é assim, o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova, a prolação da sentença.

Há, também, a importante questão do destinatário da norma estatuída no inciso VIII do art. 6º do CDC.

Entende-se que, muito embora essa norma trate da distribuição do ônus processual de provar dirigido às partes, ela é mista no sentido de determinar que o juiz expressamente decida e declare de qual das partes é o ônus.

Como a lei não estipula a priori quem está obrigado a se desonerar e a fixação do ônus depende da constatação da verossimilhança ou hipossuficiência, o magistrado deve se manifestar quanto a desincumbência, porquanto é ele que dirá se é o consumidor ou o fornecedor quem pagará a perícia, caso ela seja necessária.

3.5 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA PELO JUIZ

Caso o juiz, antes da sentença, profira decisão invertendo o ônus da prova (v.g., CDC 6°. VIII), não estará só por isso, prejulgando a causa. A inversão, por obra do juiz, ao despachar petição inicial ou na audiência preliminar (CPC 331), por ocasião do saneamento do processo, não configura por si só motivo de suspeição do juiz. Contudo, à parte que teve contra si invertido o ônus da prova, quer nas circunstâncias aqui mencionadas, quer na sentença, momento adequado para assim proceder, não poderá alegar cerceamento de defesa porque, desde o início da demanda de consumo, já sabia quais eram as regras do jogo e que, non liquet quanto à prova, poderia ter contra ela invertido o ônus da prova. Em suma, o fornecedor (CDC 3°.) já sabe de antemão, que tem de provar tudo o que estiver a seu alcance e for de seu interesse nas lides de consumo. Não é pego de surpresa com a inversão na sentença.

3.6 APLICAÇÃO DAS REGRAS DO ÔNUS DA PROVA

O juiz, na sentença, somente vai socorrer-se das regras relativas ao ônus da prova se houver non liquet quanto à prova, isto é, se o fato não se encontrar provado. Estando provado o fato, pelo princípio da aquisição processual, essa prova se incorpora ao processo, sendo irrelevante indagar-se sobre quem a produziu. Somente quando não houver a prova é que o juiz deve perquirir quem tinha o ônus de provar e dele não se desincumbiu.

3.7 MOMENTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

A regra de distribuição do ônus da prova é regra de juízo e a oportunidade de sua aplicação é o momento da sentença, após o magistrado analisar a qualidade da prova colhida, constatando se há falhas na atividade probatória das partes que conduzem à incerteza.

Por ser norma de julgamento, qualquer conclusão sobre o ônus da prova não pode ser emitida antes de encerrada a fase instrutória, sob o risco de ser um pré-julgamento, parcial e prematuro.

A fixação da sentença como limite para análise da pertinência do emprego das regras do ônus da prova não conduz à ofensa do princípio da ampla defesa do fornecedor, que, hipoteticamente, seria surpreendido com a inversão.

De acordo com o art. 6. º, inc. VIII do CDC, o fornecedor tem ciência de que, em tese, serão invertidas às regras do ônus da prova se o juiz considerar como verossímeis as alegações do consumidor ou se ele for hipossuficiente. Além disto, o fornecedor sabe que dispõe do material técnico sobre o produto e o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo e litigante eventual.

O fornecedor pode realizar todo e qualquer tipo de prova, dentre aquelas permitidas em lei, durante a instrução para afastar a pretensão do consumidor.

O juiz, na sentença, somente vai socorrer-se das regras relativas ao ônus da prova se houver o non liquet quanto à prova, isto é, se o fato não se encontrar provado. Estando provado o fato, pelo princípio da aquisição processual, essa prova se incorpora ao processo, sendo irrelevante indagar-se sobre quem a produziu. Somente quando não houver a prova é que o juiz deve perquirir quem tinha o ônus de provar e dele não se desincumbiu.

Se o demandado, fiando-se na suposição de que o juiz não inverterá as regras do ônus da prova em favor do demandante, é surpreendido com uma sentença desfavorável, deve creditar seu insucesso mais a um excesso de otimismo do que à hipotética desobediência ao princípio da ampla defesa.


CONCLUSÃO

É certo que cada parte deve se desincumbir do ônus da prova de acordo com seu interesse em vencer a demanda ou demonstrar uma situação jurídica favorável.

Se o fornecedor tem interesse em que o consumidor perca a demanda, deve trazer as provas que detém e os elementos técnicos de que dispõe para prosperar a improcedência do pedido.

Não se nega a possibilidade da inversão do ônus da prova ser utilizada irregularmente. É possível que uma pretensão, apesar de verossímil, traga em si o objeto de desmoralizar o produto do fornecedor-demandado, traduzindo um conluio reprovável de seus concorrentes, obrigando-o a desenvolver toda atividade probatória para não correr o risco de sofrer uma sentença desfavorável. Porém, acreditamos que a posição aqui adotada garante maior efetividade processual, sem falar na agilidade processual que pode trazer.

Crê-se que, em alguns anos, será possível avaliar os resultados da inversão do ônus da prova e a posição aqui defendida representa a expectativa de que o virtual cerceamento de defesa do fornecedor não supere os reais benefícios advindos da efetiva proteção dos direitos do consumidor.


EXEMPLOS QUE CONFIRMAM A TESE

Para a demonstração do quanto exposto, interessante é o exame das possíveis situações, a partir de casos bases, de acordo com o ônus da afirmação e o ônus da prova.

Exemplo: O consumidor A promove demanda em face de B alegando ter adquirido eletrodoméstico por ele fornecido e que, em certo dia, por defeito, incendiou-se, ferindo sua mão.

Constituem as alegações de A: a) o produto x apresentou defeito; b) ocorreu um incêndio no aparelho; c) este defeito gerou um incêndio, tendo sofrido dano físico.

Poderá ao fornecedor B, em sua contestação, oferecer defesa de mérito direta (negando o fato que constitui o direito do autor ou, mesmo que admita a existência do fato constitutivo, nega as conseqüências que o autor pretende ver produzidas) ou indireta (apesar de concordar com o fato constitutivo do autor, apresenta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor).

São as seguintes possibilidades:

Caso 1: Alegação de B: não é fornecedor do produto x (é apenas o distribuidor).

Hipótese A: A faz prova de que B é fornecedor e B nada prova. Não há dúvida. Julgamento procedente.

Hipótese B: A comprova que B é fornecedor e B comprova que não é. Situação de dúvida. Poderes instrutórios. Análise da hipossuficiência e da verossimilhança. Se continuar em dúvida: valoração das provas apresentadas pelas partes, onde o juiz poderá julgar pela procedência ou improcedência de acordo com seu convencimento.

Hipótese C: A não prova que B é fornecedor do produto x; B comprova que não é fornecedor do produto x. Não há dúvida. Julgamento improcedente, sem que se utilize regra de experiência ou de distribuição do ônus da prova.

Hipótese D: A não prova que B é fornecedor do produto x; B não comprova satisfatoriamente que não era fornecedor do produto x. Situação de dúvida. Análise da verossimilhança e da hipossuficiência. Se o juiz aceitar como verdadeira a hipossuficiência ou a verossimilhança e sendo falha a prova do fornecedor: julgamento procedente. Caso contrário: julgamento improcedente, diante da aplicação das regras do ônus da prova.

Caso 2: Alegação de B: confirma que é fornecedor do produto x, (mas não o colocou no mercado o produto está em circulação por ter sido furtado).

Hipótese A: A faz prova de que B colocou o produto no mercado, e este não prova que não colocou o produto no mercado. Não há dúvida. Julgamento procedente.

Hipótese B: A faz prova de que B colocou o produto no mercado, e este faz prova contrária, dizendo que não colocou (prova que o produto foi furtado). Situação de dúvida, utilizando o juiz seus poderes instrutórios, analisando a hipossuficiência e verossimilhança das alegações. Julgamento procedente ou improcedente de acordo com o resultado da valoração das provas no espírito do julgador.

Hipótese C: A não faz prova de sua alegação e B também não o faz. Situação de dúvida; verificação da verossimilhança da alegação e hipossuficiência. Se dispensar o autor da prova: Julgamento procedente. Se não dispensar: julgamento improcedente, com base nas regras de distribuição do ônus da prova.

Hipótese D: A não faz prova de sua alegação e B comprova que não colocou o produto no mercado. Não há situação de dúvida sendo desnecessária a utilização de máximas de experiência ou regras de distribuição do ônus da prova. Julgamento improcedente.

Caso 3: Alegação de B: confirma que é fornecedor do produto x, mas o mesmo não apresenta qualquer defeito (exemplo: o aparelho não apresenta nenhuma peça defeituosa).

Hipótese A: A comprova que tem defeito e B deixa de comprovar que não tem defeito. Não há dúvida. Julgamento procedente.

Hipótese B: A comprova que tem defeito e B comprova que não tem. Situação de dúvida. Poderes instrutórios do juiz. Dúvida persistente. Análise de verossimilhança e hipossuficiência. O julgamento será procedente ou improcedente dependendo da repercussão da valoração da prova no convencimento do julgador.

Hipótese C: A não comprova que tem defeito e B não comprova que não te defeito. Situação de dúvida. Poderes instrutórios do juiz. Dúvida persistente. Análise da verossimilhança e hipossuficiência. Se aplicar regras de experiência: julgamento procedente.

Hipótese D: A não comprova que tem defeito e B comprova que não tem. Não há dúvida. Julgamento improcedente, sem utilização das regras de distribuição do ônus da prova.

Caso 4: Alegação de B: confirma que é fornecedor do produto x, mas a culpa pelo incêndio é exclusiva do consumidor (o incêndio ocorreu em razão de um curto circuito no sistema elétrico ao qual estava ligado o eletrodoméstico).

Hipótese A: A comprova a culpa de B e este não prova a culpa exclusiva da vítima. Não há dúvida. Responsabilidade objetiva. Julgamento procedente.

Hipótese B: A comprova que o incêndio ocorreu por culpa de B e este, admite sua parcela de culpa e comprova também que A é culpado. Não há dúvida. A responsabilidade é objetiva, não se livrando b da culpa concorrente. Julgamento procedente.

Hipótese C: A não comprova que o incêndio ocorreu por culpa de B e este não comprova que o incêndio ocorreu por culpa exclusiva de A. Análise da verossimilhança e hipossuficiência. Não há dúvida. Responsabilidade objetiva. Julgamento procedente.

Hipótese D: A não comprova que o incêndio ocorreu por culpa de B e este comprova a culpa exclusiva de A ou de terceiro. Não há situação de dúvida. Julgamento improcedente.

Conclui-se, portanto, que poderá o réu eximir de sua responsabilidade desde que: a) comprove a ocorrência das excludentes do art. 13, §3° e art. 14, § 4° do CDC; b) deixe o demandante de apresentar prova que fundamente seu direito, não sendo determinada a inversão do ônus em seu favor.

Em raciocínio contrário, o demandante terá agasalhado seu pedido se: a) apresentar prova que fundamente seu direito; b) o demandado não oferecer contraprova e houver dispensa a seu favor do encargo da prova, em razão de sua hipossuficiência ou da verossimilhança de suas alegações.


EXEMPLO PRÁTICO

Para explicar de forma sucinta, suponha-se que um automóvel, com grave defeito de fabricação das rodas de liga leve, cuja fabricação tem que obedecer a rígidos requisitos ditados pelo CONTRAN (Resolução nº545/78) venha a capotar e causar sérios danos pessoais ao usuário, além de outros, materiais, exatamente em decorrência da fratura de uma delas.

O primeiro aspecto a analisar é a questão individual daquele adquirente/consumidor/usuário do veículo e, no caso, ainda vige em sua plenitude, até a passar a vigorar o Código sob exame, o teor do art. 159 do Código Civil, segundo o qual a responsabilidade decorre do fato, aliado ao elemento subjetivo consistente em dolo em determinada ação ou omissão, ou então culpa (negligência, imprudência ou imperícia).

Desta forma, a vítima tem que provar, além do dano, do nexo causal entre esse e a atitude do fabricante/montador do carro, sua culpa, no caso por presunção de não ter tido o cuidado suficiente de escolher (in eligendo) adequadamente a roda que ia colocar no veículo, ou então por não tê-la submetido a rigoroso controle de qualidade, já que se trata de item de segurança, tudo para eventualmente fazer jus o consumidor a uma indenização.

Já com a inversão do ônus da prova, aliada à chamada "culpa objetiva", não há necessidade de provar-se dolo ou culpa, valendo dizer-se que o simples fato de se colocar no mercado um veículo naquelas condições que acarrete, ou possa acarretar danos, já enseja uma indenização, ou procedimento cautelar para evitar referidos danos, tudo independentemente de se indagar de quem foi à negligência ou imperícia, por exemplo.

É evidente, entretanto, que não será em qualquer caso que tal se dará, advertindo o mencionado dispositivo, como se verifica de seu teor, que isso dependerá, a critério do juiz, da verossimilhança da alegação da vítima e segundo as regras ordinárias de experiência.

Ou melhor, explicando e socorrendo-nos mais uma vez de exemplos: se o acidente se verificou não por imprudência do motorista ou por um buraco na pista, fatores tais que eventualmente também poderiam ter causado a quebra da roda, é evidente que se pressupõe desde logo que aquilo se deu pela má qualidade de sua fundição, cabendo ao fabricante da própria roda, ou então montador do veículo, aí sim, provar que não colocou o veículo no mercado, ou então que a culpa foi de terceiro, e assim por diante.

O que normalmente, ainda na conclusão do exemplo dado, se espera, é que o veículo, em condições normais, não apresente tal anomalia. Todavia, se as condições de trânsito são normais, se o motorista não agiu com uma das formas de culpa já elencadas, etc., a quebra da roda somente poderia ser em decorrência da péssima forma de fundição, donde a responsabilidade do fabricante/montador.


JURISPRUDÊNCIA

CONSUMIDOR – ÔNUS DA PROVA – INVERSÃO – FACULDADE CONCEDIDA AO JUIZ, QUE IRÁ UTILIZÁ-LA NO MOMENTO EM QUE ENTENDER OPORTUNO, SE E QUANDO ESTIVER EM DÚVIDA, GERALMENTE POR OCASIÃO DA SENTENÇA – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 6°, VIII, DA LEI N° 8.078/90.

A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6°, VIII, do CDC, é uma faculdade concedida ao Juiz, que irá utiliza-la a favor do consumidor no momento que entender oportuno, se e quando estiver em dúvida, geralmente por ocasião da sentença. (1° TAC 3ª Câm.; AI n° 912.726-8- SP; Rel. Juiz Roque Mesquita; j. 04/04/2000; v.u.) RT 780/278 BAASP, 2204/186 –m, de 26/03/01.

  • CDC – art. 6º VIII
  • CPC – art. 333, I; 526

NOTAS

1. Comportam as garantias do cidadão quatro fases de evolução. Em uma primeira etapa, referia-se às liberdades públicas, limitadas aos direitos individuais, de origem natural, reconhecida através da Revolução Francesa de 1789. Já em sua segunda fase, após a Constituição Alemã de 1919, afirmam-se os direitos econômicos e sociais, deixando ao Estado sua feição passiva – característica da primeira fase para, então, assegurar, através de uma atuação positiva, os direitos básicos da primeira geração. Após a Segunda Guerra Mundial e por iniciativa da ONU e da UNESCO, a preocupação volta-se para os direitos meta-individuais. Vivencia-se, atualmente, a quarta geração dos direitos, onde a solidariedade se projetará mundialmente, como ocorre com a Unificação Européia. Assim CAPPELLETTI, Mauro, "O acesso dos consumidores à Justiça" in RePro 16 (62); 205-220, abr. /jun. 1991 (Revista Forense 86 (310) 53-63, abr. /jun. 1990).

2. De um modo equivalente, acompanhou a ciência processual a evolução dos direitos e garantias. Da ideologia liberal burguesa dos séculos XVIII e XIX – ligada ao processo como via formal de demandar em juízo, para satisfação de interesses individuais – chegamos ao sistema da efetividade do processo, proclamado seu caráter instrumental a serviço da Justiça. Por outro lado, também o perfil da Constituição se renova. De início, a fase da dimensão constitucional resguardara os direitos fundamentais para, a seguir, a dimensão transnacional criar um núcleo de leis aceitas universalmente pela maioria das nações, a exemplo da Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Na etapa atual, chamada de dimensão social, as constituições buscam assegurar e promover a igualdade social e os direitos individuais e meta-individuais, de acordo com os princípios já erigidos nas fases anteriores. Constata-se, deste modo, o entrelaçamento entre a evolução dos direitos, do processo e do modelo constitucional.

3. CAPPELETTI, Mauro e GARTH, Bryant, Acesso à Justiça, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998. No mesmo sentido está MORELLO, Augusto Mário, "Las nuevas exigencias de tutela" in RePro 8 (31); 210-220, jul. /set. 1983.

4. É preciso afastar a visão formal do processo, utilizando-o como meio de eliminação dos conflitos do cidadão comum, servindo como instrumento de ruptura do pouco eficaz sistema moderno, assumindo a feição de canal político de realizações e transformações.

5. Com relação ao direito do consumidor, relacionou Mauro Cappelletti as principais soluções para a renovação: a) Ministério Público independente, ativo e especializado; b) instituição de órgãos públicos de defesa do consumidor; c) ampliação do conceito de legitimidade para agir; d) reformulação do sistema de reparação de danos; e) instituição do modelo da ação popular ("O acesso dos consumidores" cit). in RePro 16 (62): 208-211).

6. Sobre estes temas veja MOREIRA, José Carlos Barbosa, "Notas sobre o problema da efetividade do processo", in Estudos de Direito Processual em homenagem a José Frederico Marques, S. Paulo, Saraiva, 1982, pp. 77-94 e Cândido Rangel Dinamarco. A instrumentalidade do processo, S. Paulo, Ed. RT 1987.

7. Sobre os direitos individuais e meta-individuais, FERRAZ, Rodolfo de Camargo, Interesses difusos, S. Paulo, Ed. RT, 1988; FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo, "Interesse público, interesse difuso e defesa do consumidor" in Justiça 49 (137): 49-53 jan. /mar. 1987; NERY, Nelson Junior, "O processo civil no Código de Defesa do Consumidor" in Re Pro 16 (61): 24-35 jan. /mar. 1991; MAZZILLI, Hugo Nigro, A defesa dos interesses difusos em juízo, S. Paulo, Ed. RT, 1992; MATOS, Cecília, "O Ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor", dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo, 1993, pp. 139-165.

8. A Expressão de WATANABE, Kazuo, "Filosofia e características básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas" in Juizado Especial de Pequenas Causas, S. Paulo, Ed. RT, 1985, 1985, p. 2.

9. O aspecto multidisciplinar do CDC evidencia-se nos princípios e institutos de diversos ramos do Direito, entre os quais, do Direito Civil, Processual Civil, Comercial, Tributário, Administrativo, como já salientou PÓLO, Eduardo in La protección Del consumidor em el Derecho privado, Madri, Editorial Civitas, pp. 21-24.

10. Comentando a fragilidade do consumidor, ALMEIDA, Carlos Ferreira, Os direitos dos consumidores, Coimbra, Libraria Almedina, 1982, p. 156, nota 4: "no caso do consumidor contra a empresa, é como se, contra uma espada, o consumidor lutasse com as mãos", onde a desigualdade entre as partes, de acordo com o sistema tradicional, faria com que o consumidor não alcançasse seu direito, restando-lhe apenas, o pagamento das despesas processuais.

11. Sobre os conceitos de faculdades, direitos, poderes, deveres, ônus, sujeições e obrigações, Carnelutti, Sistema di diritto processuale civile, Padova, Cedam, 1936, pp. 44 e ss. E Liebman, Manual de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 23 e ss.

12. Segundo a lição de MOREIRA, José Carlos Barbosa, "Julgamento e ônus da prova" in Temas de Direito Processual, S. Paulo, Saraiva, 2. ª série, 1988, p. 74, "parte-se da premissa, explicita ou implícita, de que o maior interessado em que o juiz se convença da veracidade de um fato é o litigante a quem aproveita o reconhecimento dele como verdadeiro, por decorrer daí a afirmação de um efeito jurídico favorável a esse litigante, ou a negação de um efeito jurídico a ele desfavorável".

13. Sobre ônus da prova, importantes são as obras ROSEMBERG, Leo, La carga de la prueba, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1956, tradução de Ernesto Krotoschin, Gian Antonio Micheli, L’onere della prova, Padova, Cedam, 1966 e Giovanni Verde, L’onere della prova nel processo civile, Napoli, Jovene Editore, 1974.

14. Sobre os conceitos jurídicos em branco, ver MOREIRA, José Carlos Barbosa, "Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados" in Revista Forense 74 (261): 13-19, jan. /mar. 1978 e "As presunções e a prova" in Temas de Direito Processual, 2. ª série, S. Paulo, Saraiva, 1977, pp. 55-71, e CRESCI, Elicio Sobrinho, "O juiz e as máximas de experiência" in Revista Forense 82 (296): 430-436 out. /dez. 1986.

15. Calamandrei, "Verità e verosimiglianza nel processo civile" in Rivista di Diritto Processuale (10): 170-171, estabelece os graus de conhecimento de um fato: "possibileè ciò che può esser vero. Probabile sarebbe, etimologicamente, ciò Che si può provare come vero... queste ter qualificazioni (possible, verosimile, probabile) constituicono, in quest’ordine, uma graduale approssimazione, uma progressiva accentuazione verso il riconoscimento di ciò Che è vero". (grifo original)

16. A interpretação de que a hipossuficiência liga-se apenas a critérios econômicos encontra sua origem na elaboração legislativa do CDC. Com efeito, em seu anteprojeto, a hipossuficiência do consumidor não estava prevista, rezando o art. 6. º, inc. VIII que "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com inversão, a seu favor, do ônus da prova no processo civil, quando verossímil a alegação do consumidor, segundo as regras ordinárias de experiência". O acréscimo posterior, incluindo a hipossuficiência, não teria se revestido de melhor técnica, mas ainda assim permite o entendimento de que dois são os critérios para a facilitação dos direitos do consumidor. O primeiro, subjetivo, baseado na verossimilhança das alegações, segundo as regras ordinárias de experiência, conduz a inversão da prova. O segundo, objetivo, fundado na hipossuficiência, que poderá ser verificada, inicialmente, segundo os critérios da Lei 1.060/50 e sobre o qual não incide a experiência do julgador e acarreta uma dispensa do encargo de provar. De acordo com a vontade da lei extraída de sua elaboração, entende-se que interpretar o conceito de hipossuficiência para além do critério econômico é propiciar uma melhor e mais ampla tutela ao consumidor, sem impor restrições.

17. Echandia, teoria Geral de La Prueba Judicial, v. I. , n. 126, p. 441.

18. Temas de Direito Processual, Segunda Série, ob. Cit., p. 76.

19. Código de Processo Civil e Legislação Processual Extravagante, RT, 1994, p. 1.209.

20. Motivação da decisão.


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Informações sobre o texto

Trabalho apresentado como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob a Orientação do Prof. Dr. Manuel Carlos Cardoso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAN, Maria Carolina Genaro. O ônus da prova e sua inversão no Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 251, 15 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4986. Acesso em: 18 abr. 2024.