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A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro

(disregard of legal entity)

A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro. (disregard of legal entity)

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O trabalho analisa os textos legais que expressam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, a positivação da "disregard doctrine" no ordenamento jurídico nacional, mas sem deixar de examinar a teoria juntamente com as pessoas jurídicas e sociedades empresárias.

Sempre tive certeza, que o destino da humanidade em sua grandiosa viagem determina-se para o bem ou para mal - na sua maioria para o bem - por grandes homens em grandes momentos.

WINSTON CHURCHILL


RESUMO

O objetivo desta pesquisa, na linha do Direito das Relações Sociais e da Atividade Empresarial, é demonstrar de forma clara e objetiva quais os dispositivos legais fazem expressa menção à teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine em nosso ordenamento jurídico e investigar quais são as impropriedades e acertos encontrados nestes artigos de lei. A metodologia utilizada segue as normas de apresentação de trabalhos da Universidade Federal do Paraná e como fonte subsidiária as normas da ABNT. Deste estudo conclui-se que é notável a evolução ocorrida no direito brasileiro após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que trouxe expressamente para nosso ordenamento jurídico a disregard doctrine. Outros diplomas legais que comportam a teoria surgiram depois, mas o legislador brasileiro, como também o fez no CDC, acabou por não adotar teoria da desconsideração em sua formulação original, o que acarreta alguns desacertos, demonstrados no decorrer do trabalho.


INTRODUÇÃO

A presente monografia, ofertada à discussão do controverso tema pertinente à desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine, utilizada para superar a personalidade jurídica das sociedades empresárias, tem por escopo não exaurir as controvérsias sobre o assunto, muito menos explanar demasiadamente sobre o tema, mas sim demonstrar de uma forma prática e objetiva as referências expressas à teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro. O tema somente é pertinente ao estudo da desconsideração no direito positivado brasileiro, ou seja, examinaremos nos seus pormenores a disregard doctrine inserta pelo legislador expressamente nas leis nacionais que a comportam. Não será objeto de estudo neste trabalho a desconsideração não expressamente prevista em lei, pois isto seria abandonar o objetivo proposto inicialmente.

Esta pesquisa traz seus estudos fundamentados em doutrinas e legislações nacionais e estrangeiras presentes no meio jurídico desde o início do século XIX nos Estados Unidos da América até os dias de hoje, iniciando o estudo pela matéria referente às pessoas jurídicas, após destaca as sociedades empresárias, a desconsideração da personalidade jurídica e por fim a desconsideração no direito positivo brasileiro.

O trabalho objetiva analisar os textos legais que expressam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, estudar-se-á a positivação da disregard doctrine no ordenamento jurídico nacional, mas sem deixar de examinar a teoria juntamente com as pessoas jurídicas e sociedades empresárias. No que à teoria se referem, serão examinados e colocados em evidência os acertos, as imperfeições, benefícios, impropriedades e outras informações julgadas necessárias das seguintes leis: 8.078/1990, 8.884/1994, 9.605/1998 e Lei n.º 10.406/2002, respectivamente mais conhecidas como Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil brasileiro.

O tema proposto no título do trabalho tem a finalidade de investigar a desconsideração da personalidade jurídica, conforme já frisado, somente no que a ela dizem respeito às leis no parágrafo acima mencionadas. Desdobra-se este estudo em uma análise pormenorizada de cada artigo de lei que comporta a disregard doctrine onde são colocadas em evidência as imperfeições e os acertos destes dispositivos legais.

Trata o primeiro capítulo do instituto da pessoa jurídica, seu estudo é realizado desde a origem nos direitos romano, germânico e canônico, após passa-se à natureza jurídica, análise, divisão e requisitos legais para a existência destes entes criados pelo direito. Posteriormente analisa-se a capacidade das pessoas jurídicas, finalizando esta matéria com investigações sobre o princípio da autonomia patrimonial, extinção e responsabilidade civil destas pessoas.

O segundo capítulo aborda as sociedades empresárias, destinadas à atividade econômica em geral. Inicia-se seu estudo pela personalização, efeitos e dissolução de forma objetiva e prática. Em seguida cuida-se da classificação das mesmas segundo o direito vigente, terminando com uma análise sobre as sociedades irregulares e de fato.

A terceira parte cuida do tema referente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, usada com o objetivo de coibir fraudes e abuso de direito através da personalidade jurídica, onde será visto que o princípio da autonomia patrimonial não é mais absoluto nestes tempos modernos. Primeiramente há um estudo histórico sobre a desconsideração com enfoque na doutrina original da disregard doctrine, sendo que após há uma investigação sobre a contribuição doutrinária e sua origem no direito brasileiro. Uma exposição da teoria é feita considerando-se a teoria maior e menor da desconsideração, terminando com um enfoque nos pressupostos necessários para se efetivar a aplicação deste instituto criado pelo direito.

O derradeiro capítulo, foco central desta monografia, aborda amplamente a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias no direito positivo brasileiro. Presente expressamente nas leis pátrias desde o início da década de 90, esta teoria revolucionou a maneira como os magistrados enfrentam os problemas relativos à fraude e ao abuso de direito nas questões societárias. Este capítulo final destina-se a analisar a disregard doctrine nos dispositivos legais elencados no Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil, onde investiga as impropriedades e acertos destes diplomas legais. Começa o estudo com o exame do artigo 28 do CDC, avançando ao artigo 18 da Lei Antitruste, artigo 4º. da Lei de Crimes Ambientais e finalmente faz uma abordagem do artigo 50 do Código Civil brasileiro.

O método escolhido para a elaboração desta pesquisa é o indutivo e a técnica a pesquisa bibliográfica. Esta técnica foi escolhida em virtude da sua confiabilidade e qualidade que oferece ao pesquisador, o que dificultou um pouco o estudo em vista de que não há conhecimento de obras com enfoque a este tema específico.


1 AS PESSOAS JURÍDICAS

1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO E O CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA

Importantíssimo é o estudo das pessoas jurídicas quando temos em mente o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo do presente trabalho. Não há neste capítulo o propósito de discorrer profundamente sobre a personalidade jurídica, e sim fazer uma abordagem geral e ampla, mas não menos importante sobre esta matéria. Pois conhecendo corretamente de algumas considerações sobre as pessoas jurídicas, há de se ter uma melhor compreensão do trabalho em tela.

Rachel Sztasn, nos traz importante lição de Werner Flume, sobre a importância do estudo das pessoas jurídicas para se ter uma completa noção da teoria da desconsideração:

Diz Werner Flume na Encyclopädie der Rechtes-und Staatswissenchaft, quando trata das pessoas jurídicas, que o estudo da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades para alcançar seus membros é parte do estudo das pessoas jurídicas, o ‘imenso fenômeno da pessoa jurídica, esta estupenda criação humana’, segundo Salvatore Satta (SZTASN, 1999, p. 81, grifo do autor).

O homem, talvez almejando a felicidade, seu bem estar, a própria realização pessoal ou simplesmente com o intuito de amealhar riqueza, por muitas vezes se lança a fazer projetos que lhe garantam um futuro promissor, uma garantia de bem estar para si e para sua família.

Muitas vezes esses projetos ou negócios, frutos do seu trabalho, tomam grandes dimensões, difíceis de serem controlados de uma forma que não se apresente complexa, isto os tornam difíceis de serem administrados por uma única pessoa. Em razão destes motivos, o homem, através do direito, criou as pessoas jurídicas.

Estes entes intitulados pessoas jurídicas, são criados pela lei e constituídos pela união de pessoas que se esforçam para atingir algum objetivo em comum, mas a personalidade destas últimas não se confunde com a das primeiras, ou seja, são pessoas distintas cada uma com autonomia própria.

Quem melhor transmite a lição sobre este tema é Silvio Rodrigues:

A esses seres, que se distinguem das pessoas que os compõem, que atuam na vida jurídica ao lado dos indivíduos humanos e aos quais a lei atribui personalidade, ou seja, a prerrogativa de serem titulares do direito, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou pessoas morais (RODRIGUES, 2003, p.86, grifo do autor).

Pode-se concluir então, que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações independentes de seus sócios, há uma distinção de personalidades, onde seus patrimônios não se confundem, há de se considerar que as

Pessoas jurídicas, portanto, são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil (RODRIGUES, 2003, p. 86).

Marcus Cláudio Acquaviva traz outro bom exemplo, para ele

Chama-se pessoa jurídica, coletiva ou moral o ente ideal, abstrato, racional, que, sem constituir uma realidade do mundo sensível, pertence ao mundo das instituições ou ideais destinados a perdurar no tempo. A pessoa jurídica pode ser formada por pessoas naturais [...] ou bens, no caso da fundação [...]. A pessoa tem existência que independe de cada um dos indivíduos que a integram, e seu objetivo é próprio, destacado da simples soma dos objetivos daqueles que dela participam (ACQUAVIVA, 1999, p. 531-532, grifo do autor).

1.2.A ORIGEM E A NATUREZA DA PESSOA JURÍDICA

Tudo o que a inteligência do ser humano concebe, todos os frutos e obras da sua intelectualidade tendem a evoluir, e não foi diferente com uma de suas maiores criações no ramo do direito, a pessoa jurídica.

O processo de evolução do que hoje se conhece por personalidade jurídica, passou do princípio da universalidade para o princípio da unidade. No primeiro, era considerado isoladamente o indivíduo que fazia parte de uma entidade, esta não possuía autonomia, ao passo que no segundo, a entidade já desfrutava de autonomia patrimonial.

Foram os direitos romano, germânico e canônico, os principais influentes da concepção que se tem hoje da personalidade jurídica, embora se desconhecesse inicialmente no direito romano, o conceito de pessoa jurídica.

1.2.1As pessoas jurídicas para os romanos

Os romanos somente tinham um conceito de pessoa jurídica no direito pós-clássico, mas esta já existia antes disso, sua existência, para eles não era desconhecida. Demorou a ocorrer, a desvinculação das pessoas naturais das pessoas jurídicas, pois os romanos idealizavam que o conjunto de bens ou o patrimônio pertencente a várias pessoas, não chegava a formar uma corporação, ou entidade idealizada, abstrata, mas sim, este patrimônio pertencia aos membros que constituíam este conjunto de bens, onde cada um era titular de uma parcela destes.

Os romanos somente conseguem ter uma idéia de corporação a partir do momento em que "[...] se admite uma entidade abstrata, com direitos e obrigações ao lado da pessoa física. Já no Direito clássico, os romanos passam a encarar o Estado, em sua existência, como um ente abstrato, denominando os textos de populus romanus." (VENOSA, 2001, p. 201, grifo do autor)

Operou-se, então, um desenvolvimento teórico no sentido de distinguir-se a universitas dos singuli. O patrimônio passou a constituir propriedade da entidade, sem nenhuma relação de condomínio com os seus membros componentes. Definiram-se duas modalidades de pessoas jurídicas: as universitates personarum, representadas por agrupamentos de indivíduos, e as universitates bonorum,formadas pelos estabelecimentos, fundações, hospitais etc. Excluía-se a societas, negando-se-lhe personalidade, por ser ela encarada como um fenômeno puramente contratual, vínculo obrigacional entre os respectivos sócios, considerados os verdadeiros titulares dos direitos (SERPA LOPES, 1996, p. 358, grifo do autor).

Para os antigos romanos, havia duas categorias de pessoas jurídicas, embora estas denominações não fossem originariamente deles. Podemos citar as universitates personarum e rerum. As primeiras, denominadas também de corpus, ou universitas, possuiam uma personalidade e patrimônio próprios, distintos de seus integrantes. As universitates rerum eram fundações, formadas por bens, com fins determinados, embora os romanos de início desconhecessem o conceito de fundação, pois estas são "[...] os templos no direito clássico; no direito pós-clássico, são as igrejas, os conventos, os hospitais e os hospícios, além dos estabelecimentos de beneficência." (VENOSA, 2001, p. 202)

Merece destaque o posicionamento de Marçal Justen Filho, para ele

Duvida-se se o conceito de pessoa jurídica foi encontrado no direito romano.13 Retomado na Idade Média, a partir do trabalho de Sinibaldo de Fleshi (depois papa Inocêncio IV),14 a construção dogmática atingiu contornos mais ou menos definidos, com a concepção de que a pessoa jurídica era persona ficta. Tal significativa, segundo a grande maioria da doutrina atual, entendimento totalmente diverso daquele posteriomente consagrado por Savigni. A ficção desse não é a ficção dos canonistas e glosadores. Para estes, a fictio significava criação da mente humana (ou a existência no mundo das idéias); já para os ficcionistas do século XIX, a fictio da pessoa jurídica estava na sua ‘falsidade’ (JUSTEN FILHO, 1987, p.18, grifo do autor).

1.2.2A contribuição do direito germânico e canônico

Posteriormente, de uma forma mais lenta, ocorreu entre os germânicos o desenvolvimento da teoria da personalidade jurídica, passando-se novamente da universalidade para a unidade.

O Direito canônico também houve por contribuir para a formação da personalidade jurídica, como explica Lopes:

Todos os institutos da Igreja foram reputados entes ideais, fundados por uma vontade superior. Assim, qualquer ofício eclesiástico, dotado de um patrimônio, é tratado como uma entidade autônoma, e a cada novos ofícios criados correspondem outras tantas entidades independentes. Desse conceito surge o de fundação também autônoma, como o pium corpus, o hospitalis e a sancta domus. A universitas passa a representar um corpus mysticum, um nomem iuris (SERPA LOPES, 1996, p. 359, grifo do autor).

1.2.3.Pessoas jurídicas, principais teorias acerca de sua natureza jurídica

Os doutrinadores, no que alude à pessoa jurídica, formularam diversas teorias a fim de determinarem sua natureza jurídica, neste trabalho são citadas as mais importantes, são elas: a teoria da ficção legal, teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva, teoria da pessoa jurídica como realidade técnica e a teoria da instituição.

A teoria da ficção legal, afirma que é a lei, através de uma ficção, a criadora da personalidade jurídica, e que esta não tem existência real. A pessoa jurídica é uma ficção legal que visa atender os interesses das pessoas. Sustentada por Savigny, esta teoria teve maior relevância na segunda metade do século XIX.

No que se reporta à segunda teoria, esta sustenta que as pessoas jurídicas são entes reais, criados pela sociedade, com autonomia própria. A teoria provém do direito germânico e é sustentada por Gierke e Zitelmann.

A teoria da pessoa jurídica como realidade técnica, existe para suprir os interesses humanos de uma forma indireta.

O Estado, as associações, as sociedades existem; uma vez que existem não se pode concebê-los a não ser como titulares de direitos. A circunstância de serem titulares de direito demonstra que sua existência não é fictícia, mas real. Apenas, tal realidade é meramente técnica, pois, no substrato, visa à satisfação dos interesses humanos (RODRIGUES, 2003, p. 88).

Formulada por Hauriou, a teoria da instituição sustenta que "uma instituição preexiste ao momento em que uma pessoa jurídica nasce." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

As pessoas jurídicas, para esta teoria, se dedicam a um determinado fim, o qual às vezes não pode ser conseguido pelo homem individualmente, há necessidade destes se unirem ordenadamente para obterem êxito no que pretendem.

1.2.4.A personalidade jurídica no Brasil

Até o início do século XX o direito brasileiro não reconhecia as pessoas jurídicas em seu ordenamento, nem mesmo o Código Comercial de 1850 às contemplava.

Foi somente o Decreto 1.102 de 21 de novembro de 1903, o qual instituí regras para o estabelecimento de empresas de armazéns gerais, determinando os direitos e obrigações dessas empresas, que introduziu no direito pátrio a expressão pessoa jurídica, concedendo esta personalidade às empresas de armazéns de que tratava.

Posteriormente, surgiu no ano de 1907, o Decreto 1.637, que reconhecia a personalidade jurídica dos sindicatos. O antigo Código Civil de 1916 tratava do assunto nos artigos 16 e 20. O atual Código de 2002 contempla a personalidade jurídica amplamente.

Quanto aos doutrinadores, foi Teixeira de Freitas, através do seu esboço de Código Civil, quem introduziu a teoria da personalidade jurídica, no direito brasileiro. Freitas "[...] apresentou a regulamentação das pessoas jurídicas, incluindo as sociedades na categoria de pessoas [...] (REQUIÃO, 1998, p. 347).

O artigo 17 do referido esboço prescrevia que as pessoas ou eram de existência visível, ou de existência ideal, que poderiam adquirir os direitos que eram regulados pelo então código, nos casos e pelo modo e forma que no mesmo se determinar.

Outros doutrinadores da época também se lançaram a estudar o tema, temos como exemplo J. X. Carvalho de Mendonça, o professor Porchat e Clóvis Beviláqua.

1.3 A DIVISÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS, DIREITO PÚBLICO E PRIVADO

De acordo com o critério utilizado pelo Código Civil brasileiro as pessoas jurídicas são divididas em duas grandes classes: pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado. As de direito público ainda subdividem-se em pessoas jurídicas de direito público interno e pessoas jurídicas de direito público externo.

O artigo 40 do Código Civil nos traz as pessoas jurídicas de direito público interno, são estas: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, Municípios, autarquias e outras entidades de caráter público criadas pela lei. No que se reporta às autarquias, temos como exemplo a OAB e o INMETRO, e quanto às entidades de caráter público criadas por lei, os partidos políticos são um exemplo clássico.

As pessoas jurídicas de direito público externo são de acordo com o artigo 42 do mesmo código: os Estados estrangeiros e as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público, exemplo destas últimas são organizações como a ONU e a Santa Sé. "A personalidade jurídica do estado, em direito das gentes, diz-se originária, enquanto derivada a das organizações." (REZECK, 1998, p. 155)

Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, estas vem elencadas no artigo 44 do Código Civil. São as associações, fundações e sociedades, pertencem à autonomia privada, objetivam fins e interesses comuns de particulares.

1.4 REQUISITOS LEGAIS PARA A EXISTÊNCIA DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

São as normas ou atos jurídicos que tornam as pessoas jurídicas existentes do ponto de vista legal, e permitem, que elas possam realizar todos os atos que não lhes sejam vedados pela lei. Assim, as pessoas jurídicas, em seu próprio nome, poderão abrir contas correntes, contrair empréstimos etc.

Parafraseando Serpa Lopes (1996, p. 373), Existem três sistemas que vigoram acerca das condições para a existência das pessoas jurídicas:

1.º) sistema da concessão, onde há necessidade de autorização estatal para a aquisição da personalidade jurídica;

2.º) sistema misto, onde haverá necessidade de concessão estatal somente para determinada classe de pessoas jurídicas, este é o sistema adotado pelo direito brasileiro;

3.º) sistema da plena liberdade de formação de associações.

De acordo com o artigo 45 do Código civil, as pessoas jurídicas somente existem legalmente quando da inscrição do seu ato constitutivo no respectivo registro. Ainda determina o mesmo artigo que, poderá, antes ainda, ser necessária a autorização ou do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Desta feita, cabe ao estado a fiscalização das pessoas jurídicas de direito privado. As sociedades e associações, ao serem criadas, devem obedecer ao requisito do prévio registro formal, para o início da personalidade jurídica, para a publicidade de sua existência.

O ato de vontade das pessoas naturais na criação não é o bastante, no sistema, pois fica condicionado ao ato registral, que confere reconhecimento à nova pessoa jurídica (LOTUFO, 2003, p. 131).

O artigo 985 do nosso Código Civil, no que diz respeito à sociedade, normatiza que esta adquire personalidade jurídica com a inscrição dos seus atos constitutivos no registro próprio e na forma da lei, devendo-se ainda respeitar o que prescreve o artigo 1.150 do mesmo diploma legal.

É importante também ressaltar que o registro civil das pessoas jurídicas é disciplinado atualmente pelo Título III da lei de Registros Públicos, Lei n.º 6.015 de 31 dezembro de 1973.

Desta forma, são requisitos para se constituir uma pessoa jurídica, elementos jurídicos formais e materiais, além da licitude de seu objetivo ou fim.

Quanto aos requisitos formais, há necessidade da aquisição da capacidade jurídica na forma da lei, a qual será adiante estudada.

Quanto aos requisitos materiais, estes se fundam na vontade humana, onde se organizam bens ou pessoas com objetivo de criar uma entidade com personalidade distinta de seus sócios.

Por último temos o requisito da licitude, que se não for cumprido poderá ser causa da extinção ou dissolução da pessoa jurídica, conforme anuncia o Decreto-lei 9.085 de 1946.

1.5. CAPACIDADE E REPRESENTAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

A capacidade apresentada pelas pessoas jurídicas advém da personalidade jurídica que a lei lhes confere. É portanto o ordenamento jurídico, que lhes outorga essa capacidade quando essas pessoas preenchem determinados requisitos.

A pessoa jurídica quando adquire capacidade

"[...] pode exercer todos os direitos subjetivos, com exceção dos próprios ao ente humano, como ser biológico, ou, por outras palavras, a pessoa jurídica tem capacidade para o exercício de todos os direitos compatíveis com a natureza especial de sua personalidade. [...] E quanto à capacidade, dentro dos limites próprios à sua natureza, ela é a mais ampla possível, não comportando quaisquer restrições (SERPA LOPES, 1996, p. 374).

O instante em que a pessoa jurídica registra o contrato constitutivo que lhe deu origem, na repartição competente, é o instante em que adquire a capacidade jurídica, adquire sua personalidade, o que a torna capaz de exercer os direitos que lhe são compatíveis.

O artigo 52 do Código Civil garante as pessoas jurídicas a proteção dos direitos relativos à personalidade, visto que não são admitidos a elas os direitos personalíssimos. Para exercê-los, entretanto, elas necessitam das pessoas físicas que as representam. Regra esta que vinha inserta no artigo 17 do Código Civil de 1916, e suprimida no atual.

Quanto à representação em juízo, esta é regulada pelo artigo 12 do Código de Processo Civil, o qual preceitua no seu caput que serão representadas em juízo, ativa e passivamente:

I.a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II.o Município, por seu prefeito ou procurador;

III.a massa falida, pelo síndico;

IV.as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores;

V.as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens;

VI.a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);

§ 2.º - As sociedades sem personalidade jurídica, quando demandadas, não poderão opor a irregularidade de sua constituição.

§ 3.º - O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.

Como sabemos, a pessoa jurídica tem existência distinta de seus integrantes ou membros, e os atos do representante, quando atuar dentro dos limites da lei e do ato constitutivo, ficam vinculados à pessoa jurídica onde o representante atua. "Ultrapassados tais poderes, exime-se a sociedade da responsabilidade, cabendo ao representante que exorbitou responder pelo excesso." (RODRIGUES, 2003, p. 94)

1.6. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL

Adquirindo personalidade jurídica, adquire-se a autonomia patrimonial, que nada mais é do que a separação dos patrimônios dos sócios do das sociedades.

É uma proteção tanto para os sócios como para as sociedades, pois aqueles não respondem com seu patrimônio por dívidas destas, e estas resguardam seu patrimônio no caso de dívidas de um ou alguns dos sócios. O que não ocorre com as sociedades irregulares, as quais sem a devida personalidade jurídica, acabam por confundir seu patrimônio com o dos sócios, e estes, então respondem ilimitadamente pelas obrigações contraídas por aquelas.

Diferente também é a responsabilidade dos sócios das sociedades ilimitadas ou mistas. Nas primeiras, as sociedades em nome coletivo, todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto nas últimas, sociedades em comandita simples ou por ações, somente alguns respondem de forma ilimitada.

As pessoas jurídicas, validamente constituídas, respondem somente com seu patrimônio pelos atos praticados por seus administradores, desde que estes atos sejam válidos aos olhos da lei.

É esta autonomia, a patrimonial, um dos impulsores da economia moderna, pois se não existisse esta separação de patrimônios, pessoas, empresários, industriais, comerciantes etc., não se lançariam aos riscos que a conjuntura econômica atual oferece nos dias de hoje, é um fenômeno praticamente no mundo todo, onde pouquíssimas pessoas arriscariam seu patrimônio pessoal em algum negócio que não oferecesse cem por cento de certeza de retorno.

O artigo 596 do Código de Processo Civil, também preceitua que os bens do sócio não respondem pelas dívidas da sociedade, exceto nos casos previstos em lei, ainda afirma que quando demandado, o sócio tem o direito que exigir que primeiro sejam exauridos os bens da sociedade.

Mas o princípio da autonomia patrimonial tem suas limitações, e nos dias atuais está perdendo um pouco de seu prestígio, como nos adverte Fábio Ulhoa Coelho:

Em suma, observa-se certa tendência do direito no sentido de restringir ao campo das relações especificamente comercias os efeitos plenos das personalizações das sociedades empresárias. [...] O princípio da autonomia patrimonial tem sua aplicação limitada, atualmente, às obrigações da sociedade perante outros empresários. Se o credor é empregado, consumidor ou o estado, o princípio não tem sido prestigiado pela lei ou pelo juiz (COELHO, 2002, p.19-20).

Deste modo, quando os credores da sociedade não são outros comerciantes, empresários, bancos etc., o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica poderá restar abalado, dando ensejo à desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo deste trabalho, que será analisada adiante nos seus pormenores.

1.7. EXTINÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

De diferentes formas se extinguem as pessoas jurídicas de direito público e privado. As primeiras terminam da mesma maneira como foram criadas, "Logo, extinguem-se pela ocorrência de fatos históricos, por norma constitucional, lei especial ou tratados internacionais." (DINIZ, 1997, p.162)

Quantos às pessoas jurídicas de direito privado, com finalidade lucrativa, quando da sua dissolução, seus bens são repartidos entre os sócios na proporção de suas participações.

Silvio Rodrigues aponta que:

O Decreto-lei n. 9.085/46 trata da proibição de se registrarem pessoas jurídicas e de sua dissolução, se já registradas, quando têm por objeto fins ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral ou aos bons costumes (RODRIGUES, 2003, p. 98).

No que se reporta ao destino dos bens da pessoa jurídica, quando esta não tiver finalidade lucrativa, deve seguir o que rege seu estatuto, mas no caso de haver omissão "[...] deve-se examinar se os sócios adotaram alguma deliberação eficaz sobre a matéria. Se eles nada resolveram, ou se a deliberação for ineficaz, devolver-se-á o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fins semelhantes." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

Entretanto, deve-se seguir a regra do artigo 61, parágrafo 2º., do Código Civil, quando não for possível encontrar estabelecimentos nas condições de que trata o mesmo artigo, neste caso, os bens os bens da pessoa jurídica passarão a integrar o patrimônio da Fazenda pública.

1.8. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS

Diferentes são os tratamentos das responsabilidades civis extracontratuais que envolvem as pessoas jurídicas de direito público e privado. Não trataremos da responsabilidade civil das primeiras neste trabalho, pois somente nos interessa, para o melhor estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado.

Na esfera civil a pessoa jurídica de direito privado é responsável, contratual e extracontratualmente. O artigo 389 do Código Civil nos traz a hipótese da responsabilidade contratual, no caso de a pessoa jurídica se tornar inadimplente.

A questão da responsabilidade extracontratual é mais complexa e merece maior análise.

A responsabilidade decorrente de atos ilícitos praticados pelos representantes das pessoas jurídicas, quando esses causassem danos a outrem, antes de entrar em vigor o Código Civil de 2002, era vista pela jurisprudência de maneira diversa do que expressavam os artigos 1.521, 1.522 e 1.523 do antigo código.

Da combinação da leitura dos referidos artigos pode-se concluir que o ônus da prova, no caso de uma lide que tinha por objeto a reparação de um dano causado pelo ato do representante da pessoa jurídica, recaía sobre quem alegava o dano. Este deveria provar que a pessoa jurídica concorreu com culpa ou negligência para a ocorrência do evento danoso.

Porém, a jurisprudência da época dava interpretação diferente ao artigo 1.523 e se orientou por transferir o ônus da prova à pessoa jurídica, deveria esta então demonstrar que não concorrera com culpa ou negligência.

"Com efeito, essa jurisprudência, em vez de reconhecer a obrigação da vítima de demonstrar a culpa do patrão, do amo, do comitente etc., criava uma presunção de culpa, de onde decorre que seriam aquelas pessoas que deveriam provar sua não-culpa." (RODRIGUES, 2003, p. 95, grifo do autor)

Hoje, não mais prospera a presunção de culpa dos representantes da pessoa jurídica, pois o Código Civil em vigor não contém regra semelhante à do artigo 1.522 do Código de 1916. "[...] a responsabilidade das pessoas jurídicas por ato de seus administradores, quer se trate de sociedades, quer de associações, só emerge se o autor da ação demonstrar a culpa da pessoa jurídica, quer in vigilando, quer in eligendo." (RODRIGUES, 2003, p. 96, grifo do autor)

A responsabilidade da pessoa jurídica decorrente de dano ambiental não é objeto de estudo neste trabalho, no que diz respeito à pessoa jurídica, será estudada desconsideração de sua personalidade na Lei de Crimes Ambientais no item 4.4 do capítulo 4.


2.AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

Tratou-se o capítulo anterior, de matéria referente às pessoas jurídicas em geral, agora neste, em breves palavras tratar-se-á de questões referentes à personalização, responsabilidade dos sócios, dissolução e classificação das sociedades empresárias. Também serão abordadas as sociedades irregulares e de fato.

As pessoas jurídicas, no âmbito do direito privado, podem se constituir de três maneiras diferentes: sociedades, fundações e associações, para este estudo, interessa somente a primeira classe, visto que serão principalmente sobre essas pessoas, que excepcionalmente se estenderão os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica.

Quanto às espécies de sociedades existentes no ordenamento jurídico brasileiro, existem duas: as sociedades empresárias e as sociedades simples.

A sociedade simples, "[...] explora atividades econômicas específicas (prestação de serviços de advocacia, por exemplo) e a sua disciplina jurídica se aplica subsidiariamente à das sociedades empresárias e às cooperativas." (COELHO, 2002, p.13)

Quanto às sociedades empresárias, estas se destinam a atividades econômicas em geral, ou seja, quando diversas pessoas se unem para realizar atividades que envolvam o aspecto econômico, visando lucro, a busca da riqueza, ter-se-á uma breve noção do conceito de sociedade empresária.

A sociedade empresária nasce da união de dois fatores: o primeiro é a condição desta ser uma pessoa jurídica, o segundo está ligado à atividade empresarial, ou seja, deve exercer uma atividade ligada ao empreendimento empresarial.

Alerta Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 109) que somente algumas espécies de pessoas jurídicas exploradoras de atividades definidas pelo direito como de natureza empresarial podem ser conceituadas como sociedades empresárias. Existem ainda pessoas jurídicas que são sempre empresárias, qualquer que seja o seu objeto, como as sociedades anônimas e em comanditas por ações.

"[...] a sociedade empresária pode ser considerada como a pessoa jurídica de direito privado não-estatal, que explora empresarialmente seu objeto social ou a forma de sociedade por ações." (COELHO, 2003, p.111)

Empresário não é o sócio ou integrante da empresa, mas sim esta última, pois é ela quem desenvolve a atividade econômica, os primeiros são melhor denominados de empreendedores, ou investidores.

2.1 A PERSONALIZAÇÃO DAS SOCIEDADES E SEUS EFEITOS

2.1.1 O início da personalização das sociedades empresárias

Os requisitos para a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado, já foram abordados no item 1.4 do primeiro capítulo deste trabalho. Cabe agora aqui tratar do início da personalização da sociedade empresária.

Suzy Koury, tratando da personalização da empresa explica que

[...] apesar de a personalidade jurídica não lhe dar vida, pois já a possui, tem personalidade moral, é através dela que ficará assegurada a continuidade e a coesão dessa célula social fundamental, além do que, ao reconhecê-la, o direito adequar-se-á a uma ordem de idéias mais racional, mais verdadeira, indo ao encontro da realidade social (KOURY, 2002, p.56).

O registro na Junta Comercial de seus atos constitutivos é o marco inicial da aquisição da personalidade jurídica pela sociedade empresária, pois este ato torna pública a sociedade e permite a qualquer interessado retirar informações sobre determinada pessoa jurídica.

Fábio Ulhoa Coelho explica que:

Mas, deve-se registrar uma certa impropriedade conceitual e lógica nessa sistemática. A rigor, desde o momento em que os sócios passam a atuar em conjunto, na exploração da atividade econômica, isto é, desde o contrato, ainda que verbal, de formação de sociedade, já se pode considerar existente a pessoa jurídica.

Em outros termos, a melhor sistemática de disciplina da matéria não é a legal, que identifica no registro o ato responsável pela personalização da sociedade empresária, mas a compreensão de que o encontro de vontade dos sócios já é suficiente para dar origem a uma nova pessoa, no sentido técnico de sujeito de direito personalizado (COELHO, 2002, p. 16, grifo do autor).

Disto conclui-se que quando duas ou mais pessoas se unem com ânimo de atuarem juntas, e praticam atos caracterizem os praticados por uma empresa, este simples encontro de esforços já é suficiente para caracterizar a existência da pessoa jurídica.

Embora não tendo os integrantes dessa sociedade formalizado o contrato social ou estatuto, e por conseqüência serem impedidos de registrar a sociedade empresária no órgão competente para tal, ela pode ser considerada existente. Mas, enquanto não regularizada a situação, o regime jurídicos destas sociedades irregulares, será o da sociedade em comum, onde os sócios são titulares em comum dos bens e das dívidas da sociedade, isto é, todos respondem solidaria e ilimitadamente por obrigações contraídas pela mesma, e esta ainda responde com seus bens por atos praticados por seus sócios, excluindo-se o que dispõe o artigo 990 do Código Civil.

2.1.2 O fim da personalização das sociedades empresárias

É um procedimento dissolutório que acaba com a personalização das sociedades empresárias, matéria tratada no item 2.1.5 deste capítulo, mas desde já deve ficar claro que a simples paralisação da empresa não caracteriza o fim de sua personalização, ou sua dissolução.

2.1.3 A responsabilidade dos sócios

Será feito aqui um breve comentário a respeito da responsabilidade dos sócios, visto que esta matéria também é tratada no item 2.2.3 deste trabalho.

A responsabilidade dos sócios poderá ser ilimitada e direta, ou ilimitada e subsidiária dependendo do caso.

No primeiro, poder-se-á fazer com que a execução recaia diretamente sobre o patrimônio do sócio, independentemente de ter ou não bens a sociedade, no segundo caso, deverão ser primeiro executados os bens da sociedade, e somente após, os do sócio.

Na prática temos que "[...] se a sociedade empresária irregular é pessoa jurídica, a responsabilidade dos sócios será ilimitada e subsidiária; se despersonalizada, ao contrário, será ilimitada e direta. " (COELHO, 2002, p. 17, grifo do autor)

Fábio Coelho, em seu Curso de direito comercial (2002, p. 17), sustenta a idéia de que em razão do direito vigente, a personalização ocorre no momento em que é feito o registro do ato constitutivo na Junta Comercial. E para haver coerência, o sistema legal deveria dar sustentação à responsabilidade ilimitada e direta. Ocorre que a lei trata de forma diferente os sócios da sociedade empresária enquanto não for regularizado o registro, quando atribui responsabilidade subsidiária à generalidade dos sócios, e direta somente ao que se apresentar como seu representante. E na sociedade regularmente registrada, a responsabilidade do sócio será sempre subsidiária, mesmo que esta seja ilimitada. Isto é, excluindo a do sócio representante de sociedade irregular, em todas as demais, a regra é a da subsidiariedade.

2.1.4 Os efeitos da personalização

Da personalização das sociedades empresárias decorre a separação do seu patrimônio do patrimônio do sócio integrante, aquelas adquirem obrigações e direitos próprios, e seus sócios limitam sua responsabilidade pelas obrigações sociais contraídas pela sociedade.

Coelho, ainda em seu Curso de Direito Comercial (2002, p. 7), ensina que há direitos, como o do Reino Unido, que associam a personalização da sociedade à limitação da responsabilidade dos sócios. Para tais sistemas, as sociedades onde os sócios respondem integralmente pelas obrigações sociais são despersonalizadas.

Diferente ocorre no Brasil, onde podem existir sociedades personalizadas que seus sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações sociais, ou uns respondem ilimitadamente e outros limitadamente.

Após adquirida a personalidade jurídica, com as separação das pessoas dos sócios da pessoa da sociedade, adquire esta última a autonomia patrimonial, princípio consagrado do direito societário e já estudado no item 1.6 do primeiro capítulo.

É este princípio, o norte teoria da personalização das sociedades empresárias, graças a ele as pessoas se lançam a fazer empreendimentos, por muitas vezes arriscados, os quais sem a segurança da autonomia patrimonial, diante do insucesso da atividade empresarial, poderiam levar o sócio-empreendedor, à ruína, diante da possibilidade de perda dos bens particulares arrecadados durante anos, ou mesmo uma vida inteira de trabalho.

Personalizada então a sociedade, separados o patrimônio dos sócios do patrimônio da sociedade, por conseqüência temos a autonomia patrimonial. E desta personalização ocorrerão alguns efeitos, os quais segundo Fábio Ulhoa Coelho (2002, p.14) são: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial.

Quanto à titularidade obrigacional, decorrente da personalização da sociedade, esta última assume por completo direitos e obrigações decorrentes da exploração da atividade que exerce, afastando as pessoas dos sócios das relações com terceiros, quer sejam estas judiciais ou extrajudiciais.

Em outros termos, é a pessoa jurídica que celebra contratos comerciais, como por exemplo a compra e venda de máquinas para realizar sua atividade econômica, a contratação de funcionários, aluga imóveis para sede, etc. Os sócios encontram-se fora deste pólo de obrigações e direitos contraídos pela sociedade, mas administram-na através de atos praticados por pessoas naturais que são, como os do sócio-gerente.

Somente em "situações excepcionais, tratadas em normas específicas [...] estendem-se os efeitos da mesma relação à esfera subjetiva de quem agiu pela sociedade empresária." (COELHO, 2002, p. 15) Clássico exemplo disto é a responsabilização do gerente de sociedade limitada, por obrigações tributárias da sociedade, a qual sob seu comando deveria ter corretamente cumprido com suas obrigações fiscais.

Quanto ao segundo efeito, o da titularidade processual, "a personalização da sociedade empresária importa a definição da sua legitimidade para demandar e ser demandada em juízo." (COELHO, 2002, p.14) Será então a pessoa jurídica, a própria sociedade, a detentora de legitimidade ativa e passiva, para eventualmente propor ou responder às ações de diversas naturezas perante o judiciário.

Os sócios, no caso de ser proposta ação qualquer em face da sociedade, não terão legitimidade passiva ad causam para contestar a ação, como também não terão legitimidade ativa para demandar pela sociedade.

O derradeiro efeito, decorrente da personalização, é a responsabilidade patrimonial. Assim, somente os bens sociais respondem por obrigações contraídas pela sociedade, isto é, os bens que constituem e integram o patrimônio social, estes bens são a garantia dos credores por eventuais dívidas contraídas pela sociedade, pois como já vimos, o patrimônio do sócio não se confunde com o patrimônio desta última.

A questão da responsabilidade patrimonial, é bem explicada por Fábio Ulhoa Coelho:

Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não dos seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem como uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade (COELHO, 2002, p. 15).

2.1.5 A dissolução das sociedades empresárias

Serão brevemente aqui tratadas as formas de dissolução das sociedades empresárias, não entrando na seara da causas determinantes dessas dissoluções, nem da liquidação e apuração de haveres, pois estes são assuntos complexos e extensos, e um breve relato sobre o tema constante neste subtítulo será suficiente para a compreensão exata deste trabalho.

A dissolução das sociedades poderá ocorrer de duas formas: judicial ou extrajudicial, o modo dependerá de como ocorrer o ato dissolutório.

Ocorre a dissolução judicial, quando o judiciário, em sentença proferida por juiz competente, em ação específica, determina que sejam dissolvidos os vínculos contratuais. Mas, "Se a dissolução operou-se por deliberação dos sócios registrada em ata, distrato (na extensão total) ou alteração contratual (na extensão parcial, será a hipótese de dissolução extrajudicial [...]" (COELHO, 2003, p. 167).

Ainda a dissolução poderá ser total ou parcial, a primeira implica na extinção por completo da sociedade, com a extinção de todos os vínculos contratuais, e a segunda ocorre com a dissolução de somente parte destes vínculos, permitindo que a sociedade continue a existir.

"Portanto, de acordo com a abrangência, tem-se dissolução total ou parcial. No Código Civil de 2002 a dissolução parcial é chamada de resolução da sociedade em relação a um sócio (arts. 1.028 a 1.032, 1.085 e 1.086)." (COELHO, 2003, p. 167, grifo do autor)

Temos ainda, após a dissolução, total ou parcial, a liquidação e a apuração de haveres. "À dissolução total seguem-se a liquidação e a partilha, enquanto à dissolução segue-se a apuração de haveres e o reembolso. Entre uma e outra forma de dissolução não há, nem pode haver, qualquer diferença de conteúdo econômico." (COELHO, 2003, p.173)

2.2 CLASSIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

O Direito brasileiro contempla cinco espécies de sociedades empresárias. Merecem maior destaque as duas primeiras, pois a importância que estas exercem se deve a sua influência na economia brasileira, diretamente proporcional ao número de cada uma existente. As três restantes, não constituem um número expressivo, nem tem um impacto relevante sobre a economia.

As sociedades empresárias admitidas pelo ordenamento jurídico nacional são as seguintes:

1.Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada;

2.Sociedade Anônima;

3.Sociedade em nome Coletivo;

4.Sociedade em Comandita Ações;

5.Sociedade em Comandita Simples.

Não se admite outras formas de constituição de sociedades empresárias, senão estas, mas, existe ainda a Sociedade em conta de Participação, que não é considerada propriamente uma sociedade em função de suas peculiaridades.

"Com efeito, [a Sociedade em Conta de Participação] trata-se de uma conjugação de esforços despersonalizada, e, portanto, sujeita a regras muito específicas, que impossibilitam considerá-la no tratamento geral do tema." (COELHO, 2002, p. 23)

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, também foi abolida do direito pátrio a Sociedade de Capital e Indústria.

Neste trabalho, não será tratada de cada uma das sociedades em seus pormenores, visto que não são elas em si o objeto de estudo, e sim a desconsideração de suas personalidades jurídicas.

Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de Direito Comercial (2002), propõe três critérios de classificação das sociedades empresárias: 1) Sociedades de Pessoa ou de Capital; 2) Sociedades Contratuais e Institucionais e quanto à 3) Responsabilidade dos Sócios.

2.2.1 O primeiro critério: sociedades de pessoas ou de capital

Coelho (2002, p. 23), afirma que o primeiro critério de classificação (Sociedades de Pessoa ou de Capital), é o que leva em conta o grau de dependência da sociedade em relação às qualidades subjetivas dos sócios (classificação que repercute nas condições para a alienação da participação societária, penhorabilidade desta e conseqüências da morte de sócio), e que segundo este critério pode-se ter uma sociedade de pessoas ou de capitais.

Podem ser, de acordo com o que dispuser o contrato social, sociedades de pessoas ou de capital, as seguintes: A sociedade limitada, sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples.

Serão sempre constituídas na forma de sociedades de capital, as sociedades em comandita por ações e as sociedades anônimas.

Disto pode-se concluir que em determinadas sociedades empresárias é muito relevante a característica individual do sócio, suas qualidades subjetivas influem de maneira determinante no modo de atuação da sociedade, enquanto noutras, as características individuais do sócio não são relevantes, como por exemplo, em uma sociedade anônima.

Então, esse critério é determinante no que diz respeito à cessão da participação societária, pois,

[...] nas sociedades em que prepondera o fator subjetivo, a cessão a cessão da participação societária depende da anuência dos demais sócios. Como os atributos individuais do adquirente dessa participação podem interferir na realização do objeto social, é justo e racional que o seu ingresso na sociedade fique condicionado à aceitação dos outros sócios, cujos interesses podem ser afetados. Já em relação às sociedades de capital, a regra é a inversa, ou seja, o sócio pode alienar sua participação societária a quem quer que seja, independentemente da anuência dos demais, porque as características pessoais do adquirente não atrapalham, não têm como atrapalhar o desenvolvimento do negócio social (COELHO, 2002, p. 24, grifo nosso).

Existe ainda a questão da penhorabilidade das quotas de participação, questão de extrema importância, pois é diferente a situação nas sociedades de pessoas e nas de capital.

As quotas são impenhoráveis por dívida particular do sócio nas sociedades de pessoas, o que não ocorre no caso das sociedades de capital. Quanto ao primeiro caso a medida se justifica, pois caso fossem penhoradas as quotas de determinado sócio, após arrematadas, ocorreria uma mudança de titularidade onde o arrematante tomaria o lugar do sócio devedor, o que poderia ser prejudicial à sociedade.

Relevante também é a situação onde ocorre a morte do sócio. Nas sociedades de pessoas, quando morre um sócio, os remanescentes, se não concordarem, podem impedir o ingresso na sociedade, do sucessor ou sucessores do de cujus, através da dissolução parcial da sociedade.

Já não acontece o mesmo nas sociedades de capital, pois os sócios remanescentes não podem se opor ao ingresso do sucessor ou sucessores proprietários das quotas sociais, através da causa mortis.

Coelho define bem as sociedades de pessoas e as de capital, para ele

As sociedades de pessoas são aquelas em que a realização do objeto social depende mais dos atributos individuais dos sócios que da contribuição material que eles dão. As de capital são as sociedades em que essa contribuição material é mais importante que as características subjetivas dos sócios. A natureza da sociedade importa diferenças no tocante à alienação da participação societária (quotas ou ações), à sua penhorabilidade por dívida particular do sócio e à questão da sucessão por morte (COELHO, 2002, p. 24, grifo do autor).

2.2.2 O segundo critério: sociedades institucionais e contratuais

Podem ainda ser, de acordo com o segundo critério de classificação, serem as sociedades classificadas em Institucionais ou Contratuais.

As primeiras, as institucionais, podem se revestir na forma de sociedade anônima ou em comandita por ações. Nestas sociedades, o vínculo estabelecido entre os sócios não tem natureza contratual, elas se constituem através da emissão de um ato de manifestação de vontade por parte dos seus integrantes, o estatuto, que disciplinará suas relações sociais.

As sociedades contratuais podem tomar a forma de sociedade limitada, sociedade em nome coletivo ou sociedade em comandita simples. Estas sociedades são constituídas através de um contrato, denominado contrato social, elaborado entre os integrantes, os quais entre si, a partir daí, passam a ter tem um vínculo contratual.

A sociedade empresária é contratual se constituída por um contrato entre os sócios; e é institucional se constituída por um ato de vontade não contratual. A diferença diz respeito à aplicação, ou não, do regime do direito contratual às relações entre os sócios (COELHO, 2002, p. 27).

2.2.3 O terceiro critério: a responsabilidade dos sócios

As sociedades empresárias, sempre respondem ilimitadamente pelas obrigações que assumirem. Não se deve confundir, então, a responsabilidade das sociedades, com a responsabilidade dos sócios, como freqüentemente ocorre.

A responsabilidade dos sócios será limitada, ilimitada ou mista, em relação às sociedades, dependendo do caso, como será a seguir estudado.

O princípio da autonomia patrimonial impede, em regra, que se responsabilize o sócio por eventuais dívidas da sociedade, somente em casos excepcionais, e mesmo após ser totalmente exaurido o patrimônio da sociedade, poderá se cogitar em atingir o patrimônio do sócio para satisfazer as obrigações contraídas pela sociedade.

Portanto, deve-se ter em mente, que esta responsabilidade dos sócios em relação às sociedades "[...] é uma responsabilidade subsidiária, isto é, uma responsabilidade perante terceiros, pelos compromissos sociais, caso o patrimônio da sociedade seja insuficiente para satisfazer os compromissos assumidos por esta." (MARTINS, 1998, p. 220, grifo do autor)

O artigo 1.024 do Código Civil preceitua que os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade antes de serem executados os bens sociais, e o artigo 596 do Código de Processo Civil também nos traz regra clara neste sentido, quando também preceitua que tais bens do sócio, somente respondem por dívidas da sociedade nos casos previstos em lei.

Coelho (2003, p. 116) afirma que quando a lei classifica de solidária a responsabilidade dos membros da sociedade em nome coletivo, dos comanditados na comandita simples, dos diretores da comandita por ações e dos sócios da limitada em relação à integralização do capital social, a lei se refere às relações entre eles, o que quer dizer que se um sócio descumpre sua obrigação, esta pode ser exigida dos demais, se forem solidários.

Ainda continua o mesmo autor, explanando que

O direito brasileiro da atualidade não conhece nenhuma hipótese de limitação de responsabilidade pessoal. Assim, quando a sociedade estiver respondendo por obrigação sua, terá responsabilidade ilimitada; também o sócio, quando responder por ato seu, ainda que relacionado com a vida social, terá responsabilidade ilimitada. Somente se concebe, no presente estágio evolutivo do direito nacional, a limitação da responsabilidade subsidiária. Os sócios respondem, assim, pelas obrigações sociais, sempre de modo subsidiário, mas limitada ou ilimitadamente (COELHO, 2003, p. 117, grifo nosso).

Portanto, no que tange a responsabilidade dos sócios, como foi supramencionado, as sociedades classificam-se em ilimitada, limitada e mista.

Existe sociedade, onde após esgotado seu patrimônio, os credores poderão buscar, para satisfazer o restante de seu crédito, os bens particulares dos sócios de forma ilimitada. Esta é classificada como sociedade ilimitada, ou seja, os patrimônios de todos os sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações contraídas pela sociedade, o único exemplo desta sociedade no direito brasileiro é a sociedade em nome coletivo.

Quantos às sociedades classificadas como limitadas, nestas os sócios respondem pelas obrigações contraídas pela mesma de uma forma limitada ao total da quantia restante à integralização do capital social, observa-se que se totalmente integralizado pela parte do sócio seu capital social, sua responsabilidade é nenhuma, mas eventualmente poderá ele responder pela parte não integralizada pelo outro sócio, este é o caso das sociedades limitadas ou Ltda.

O mesmo não vale para as sociedades anônimas ou S/A, onde os acionistas somente respondem pelo que subscreveram e ainda não integralizaram, não tendo estes nenhuma responsabilidade pelo que o outro acionista susbcreveu e não integralizou. Estas são portanto as duas sociedades classificadas como limitadas: a Ltda e a S/A.

As sociedades classificadas como mistas são duas: a sociedade em comandita simples e a sociedade em comandita por ações, nelas a responsabilidade é limitada para uns sócios, e ilimitada para outros.

2.3 A SOCIEDADE IRREGULAR E A SOCIEDADE DE FATO

Rubens Requião (2003, p. 380) explica que a sociedade adquire personalidade jurídica por concessão da lei. E que isto se dá nos termos dos artigos 44 e 45 do Código Civil, este último dispõe sobre o começo da existência legal das pessoas jurídicas.

Muitas vezes ocorre confusão sobre o que seriam as sociedades de fato e as sociedades irregulares. Resumidamente podem ser consideradas sociedades irregulares ou de fato, aquelas que não tem seu registro arquivado no órgão competente, ou seja, o estatuto ou contrato social, este órgão seria a Junta Comercial. Mas convém aqui fazer uma distinção entre as sociedades irregulares e as de fato.

Fran Martins ensina que

No entanto, assinalam os autores que sociedades de fato são aquelas que existem eivadas de nulidades, apresentando-se ao público como se fossem sociedades sem, entretanto, possuírem as formalidades dessas. Irregulares são as sociedades que se constituem dentro das prescrições legais mas que deixam de cumprir as obrigações impostas por lei, embora conservem a personalidade. As sociedades de fato não possuem personalidade jurídica, apesar de autores as confundirem com irregulares [...] (MARTINS, 2001, p. 144, grifo do autor).

Importante é ressaltar que as sociedades empresárias que atuam sem o seu devido registro na Junta Comercial não estão sujeitas às regalias concedidas pela falência ou concordata, isto é, elas não podem fazer jus a este dois benefícios concedidos pela lei.

Ainda, a questão de maior relevância é o fato dessas sociedades ensejarem aos seus sócios responsabilidade ilimitada pelas obrigações por elas contraídas, a teor do artigo 990 do Código Civil.

Para os sócios representantes esta responsabilidade será direta, para os demais, subsidiária. Os livros comerciais dessas sociedades também não possuem eficácia probatória.


3.DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO

Inicialmente há de se ter, para melhor compreensão do trabalho em tela, uma breve noção do significado da expressão "desconsideração da personalidade jurídica" à luz do direito pátrio e da nossa língua portuguesa.

A palavra desconsideração, quando inserida no contexto da expressão título deste capítulo, significa tornar sem efeito, ignorar, anular, ou seja, não reconhecer a personalidade jurídica de determinada sociedade.

A personalidade jurídica, já estudada no presente trabalho, pode-se dizer que é uma ficção criada pela lei, para distinguir, separar ou ocultar os sócios da sociedade de que fazem parte. Esta última adquire uma autonomia em relação aos seus sócios, passando ela própria a ser sujeito de direitos e obrigações, distinguindo-se de seus sócios, estes então denominados de pessoas físicas.

Desconsideração da personalidade jurídica significa, então, não mais separar as pessoas do sócio e sociedade, tornando os primeiros também suscetíveis de responder pelas obrigações contraídas pela sociedade da qual fazem parte.

Nos Estados Unidos e Inglaterra esta teoria é denominada Disregard of Legal Entity, Piercing the Corporate Veil, Lifting the Coporate Veil ou simplesmente Disregard Doctrine, na Itália Superamento della Personalità Giuridica, Abus de la Noction de Personnalité Sociale para os franceses, Durchgriff der Juristischen Personen na Alemanha e Teoria de la Penetración de la personalidad ou Desestimación de la Personalidad Societaria para os argentinos.

3.2 O SURGIMENTO E A HISTÓRIA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.2.1 A Disregard Doctrine

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard doctrine, utilizada como um instrumento para coibir fraudes ou abuso de direito, obteve seu inicial desenvolvimento através da jurisprudência nos Estados Unidos da América, no começo do século XIX.

Assim, "[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não foi produzida pela ciência do direito, mas a partir da jurisprudência (ou seja, da atividade judiciária de aplicação do direito ao caso concreto)." (JUSTEN FILHO, 1987, p. 54, grifo nosso)

O marco jurisprudencial inicial foi mais precisamente o ano de 1809, quando uma decisão do juiz norte-americano Marshall, no caso Bank of United States x Deveaux, acabou por estender aos sócios os efeitos da personalidade da entidade da qual faziam parte.

Antonio Bottan, Carlos Roslindo e Gislaine Mohr em excelente artigo publicado no periódico de jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, citando Suzy Elisabeth Cavalcante Koury, prelecionam o seguinte:

Conforme os estudos de Koury², em 1809, nos EUA, já se discutia a Disregard Doctrine, No caso Bank of united States v. Deveaux, o Juiz Marshall conheceu da causa, com a intenção de preservar a jurisdição das Cortes Federais sobre as Corporations, já que a Constituição Federal Americana, no seu artigo 3º, seção 2ª, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados. A decisão, em si, não foi relevante, visto que foi repudiada pela doutrina da época, mas, já em 1809, as Cortes levantaram o véu personal e consideraram as características dos sócios individuais (BOTTAN; ROSLINDO; MOHR, 2000, n. 89, p. 26).

Este foi portanto o leading case, ou seja, o primórdio do que se conhece hoje por disregard doctrine.

Alguns autores sequer mencionam em suas obras o caso supramencionado, talvez pela pouca relevância que o mesmo obteve, ou por este ter sido de certo modo encoberto ou esquecido em virtude de casos mais famosos que surgiriam posteriormente, notadamente na Inglaterra, o que será demonstrado a seguir.

Mas a verdade é, ao que tudo indica, este é o caso de desconsideração da personalidade jurídica mais antigo já registrado pela doutrina, e também, que o início de toda sua formulação aconteceu em decisões proferidas por juízes norte-emericanos.

Também adotam este posicionamento alguns doutrinadores brasileiros e vários outros estrangeiros, interessante é o posicionamento do argentino Guillermo Cabanello de Las Cuevas, onde confirma a origem jurisprudêncial da teoria no direito norte-americano:

A doutrina da desestimação da personalidade societária [esta é uma das formas como é chamada a teoria da desconsideração no direito argentino] tem uma origem fundamentalmente jurisprudencial, praticamente em todos os países onde esta doutrina tem uma aplicação efetiva. Esta formação jurisprudencial necessariamente implica o ditado de regras aplicáveis em casos determinados, dos quais é preciso extrair um conjunto orgânico de normas de origem jurisprudencial aplicáveis nesta matéria. [...] Também desde o ponto de vista histórico, e em virtude da deficiente sistematização da doutrina da desestimação da personalidade societária, é certo que esta doutrina teve sua origem e desenvolvimento nos Estados Unidos, de onde foi tomada por outros sistemas jurídicos (LAS CUEVAS, 1994, p. 70-71, trad. nossa).

De acordo com o demonstrado até agora, conclui-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica evoluiu, num primeiro momento, a partir de decisões jurisprudênciais norte-americanas que de certa forma "contaminaram" outros países, e a partir daí, aconteceu o desenvolvimento doutrinário da teoria, na Alemanha, Itália e Inglaterra.

Outra disputa judicial, famoso exemplo da Disregard Doctrine nos Estados Unidos, ocorreu no ano de 1892, envolvendo a Standard Oil Co., fundada por John Davison Rockefeller em 1870. A Standard Oil, pouco tempo depois de fundada, tornava-se monopolista e controlava 90% a 95% da produção refinada de petróleo nos estados Unidos.

Waldirio Bulgarelli, traz este caso em sua obra Concentração de empresas e direito antitruste, ele afirma que o truste

[...] foi utilizado no fim do século XIX, a serviço da concentração de empresas, por John D. Rockefeller (embora se atribua sua autoria ao advogado S. E. Dodd, em 1881), que reuniu todas as participações da ‘ Standard Oil Co. Of Ohio’, cerca de 600, transferindo-as a trustees, empregados da empresa. Não se tendo obtido ainda assim uma suficiente descentralização administrativa, em 1882, foi substituída por um trust agreement que instituiu o primeiro trust, no sentido monopolístico. Transferiu-se a carteira e os ativos da ‘ Standard’ para um conselho de 9 trustes composto pelos principais controladores do grupo, atribuindo-se 20 ‘certificados’ por ação (BULGARELLI, 1997, p.53).

A Suprema Corte de Ohio, em 1892, criou então outro precedente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao decidir, desconsiderando a personalidade e declarando ilegal o este monopólio exercido pela Standard Oil.

Talvez a disputa judicial mais famosa envolvendo a Disregard Doctrine seja o caso Salomon v. Salomon & Co., ocorrido no ano de 1897 na Inglaterra, onde o sistema jurídico é o Common Law, em que o costume é importantíssima fonte do direito. Este é, "Segundo a doutrina clássica, o precedente jurisprudencial que permitiu o desenvolvimento da teoria [...]" (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2002, p. 233).

Neste caso julgado pela House of Lords (Câmara dos Lordes), um comerciante do ramo de calçados chamado Aaron Salomon, constituiu no ano de 1892, uma Company (sociedade por ações), distribuindo uma ação para cada um dos seis membros de sua família, estes incluíam sua mulher e filhos, para si reservou o montante de 20.000 ações.

Aaron constitui para si um crédito privilegiado no valor de dez mil libras esterlinas, tornando posteriormente insolvente a companhia, como ele era credor privilegiado, nada restou aos outros credores.

A justiça inglesa em sua decisão de primeiro grau, optou por desconsiderar a pessoa jurídica da sociedade fundada por Aaron, entendendo que houve fraude no negócio, o que atingiria seu patrimônio, mas esta decisão foi posteriormente reformada pela Câmara dos Lordes sob o fundamento de que a sociedade havia sido constituída de forma válida, ou seja, sem nenhum vício para as leis da época.

Posteriormente reformada em instância superior, esta decisão desencorajou maiores desenvolvimentos doutrinários na época sobre a teoria em tela no direito inglês, mas é certo que posteriormente também serviu como precedente à formulação da disregard doctrine.

Koury utiliza este caso, para corrigir duas informações incorretas passadas pela doutrina, e ao que tudo indica, acertadamente.

A primeira delas diz respeito à sua qualificação como o verdadeiro e próprio leading case da Disregard Doctrine por vários autores. Na realidade, o caso em questão foi julgado em 1897, portanto, oitenta e oito anos após a primeira manifestação da jurispruD6encia americana, só sendo possível, assim, considerá-lo como leading case no Direito inglês.

Além disso [referindo-se à segunda informação incorreta], apesar do juiz de 1º. grau e da Corte de Apelação terem desconsiderado a personalidade jurídica da companhia criada por Salomon, juntamente com 6 (seis) pessoas da sua família, reputando-a como uma extensão da atividade pessoal dele, uma verdadeira agent ou trustee de Salomon, que contibuava sendo o verdadeiro proprietário do estabelecimento que falsamente transferira à sociedade, a decisão foi reformada pela House of Lords, sob a alegação de que a companhia havia sido validamente constituída e que Salomon era seu credor privilegiado por ter-lhe vendido o estabelecimento recebido, por isso, obrigações contraídas por hipoteca (KOURY, 2002, p. 64, grifo do autor)

Foi então, de uma maneira um pouco reservada e discreta, o despertar do surgimento da disregard doctrine.

Através de decisões ousadas para a época, inicialmente nos Estados Unidos e posteriormente na Inglaterra, que se começou a desconhecer da personalidade jurídica para atingir os sócios, visando transferir a estes as responsabilidades pelo mau uso da sociedade, como ensina Fran Martins:

Constatado o fato de que a personalidade jurídica das sociedades servia a pessoas inescrupulosas que praticassem em benefício próprio abuso de direito ou atos fraudulentos por intermédio das pessoas jurídicas, que revestiam as sociedades, os tribunais começaram então a desconhecer a pessoa jurídica para responsabilizar os praticantes de tais atos (MARTINS, 1998, p. 226, grifo do autor).

3.2.2 A contribuição dos doutrinadores para a formulação da disregard doctrine

Podemos destacar a contribuição de três grandes doutrinadores que se dedicaram ao estudo e inicial desenvolvimento da disregard doctrine, são eles: o alemão Rolf Serick, o italiano Piero Verrucoli e o norte americano Maurice Wormser.

No que se reporta a Wormser, este jurista americano começou seus estudos no início do século XX, época em que formulou premissas e tentou conceituar a teoria. Seus estudos foram o ponto de partida de outros doutrinadores que se seguiram.

Wormser em seu trabalho descreve uma série de fatores que podem levar à superação da personalidade jurídica no sistema americano, entre eles estão a fraude aos credores através do uso da proteção concedida pelo véu da pessoa jurídica, quando os sócios tentam se eximir de uma obrigação existente, se reporta ainda ao intuito de desviar a aplicação da lei, proteger devedores, etc.

No começo da década de 50 a surgiram os primeiros trabalhos doutrinários de maior envergadura que convergiam para a formulação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

O principal idealizador desta teoria pode ser considerado o alemão Rolf Serick, que fornece as regras básicas a serem seguidas. Este era na época, professor da faculdade de Direito de Heidelberg.

Serick defendeu sua tese de doutorado, com o título Rechtsform und Realität juristischer Personem,. no ano de 1953 na Universidade de Tübigen, onde firmou os pilares da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a qual denominou Durchgriff der Juristichen Personen.

Ensina Fábio Ulhoa Coelho que

É o próprio Rolf Serick quem sintetiza, no terceiro livro de sua obra Forma e Realidade da Pessoa Jurídica, os princípios da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, após análise de diversos casos, dos Direito alemão e norte-americano. Pelo panorama apresentado por esta análise, divisam-se dois grupos de casos em que a personalidade jurídica pode ser desconhecida. Primeiro, quando se abusa da personalidade jurídica com vistas à realização de fraude, e, segundo, quando o desconhecimento é condição de aplicação de normas jurídicas. Em ambos afasta-se a personalização da pessoa jurídica, para alcançar o que Serick denominou de ‘susbstrato’, sendo que, no primeiro grupo, com vistas a coibir o abuso, e, no segundo, por força da ratio legis específica (COELHO, 1989, p. 17, grifo do autor).

Rolf Serick formula quatro princípios básicos da teoria da desconsideração, estes servem de pilares para a teoria maior da desconsideração, que será adiante estudada. Os quatro princípios, condensados na obra de Fábio Coelho, são:

O primeiro afirma que ‘o juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica’. [...] [o segundo princípio nos diz que] ‘não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos’. [...] [quanto ao terceiro, este afirma que] ‘aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos desta e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica’. [...] [o último princípio preceitua que] ‘se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes’ (COELHO, 2002, p. 36).

Outro importante contribuinte da teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi o professor italiano Piero Verrucoli da Universidade de Pisa, este se aprofundou no estudo do assunto através de sua monografia "Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali nella Common Law e nella Civil Law."

Verrucoli "[...] nos oferece a origem dessa doutrina, que teria surgido na jurisprudência inglesa, nos fins do século passado." (REQUIÃO, 1998, p. 350)

Data venia, há que se discordar do posicionamento do mestre italiano, pois conforme já demonstrado neste trabalho, é cristalina a origem jurisprudencial da teoria nos Estados Unidos da América, onde há registros de decisões judiciais, que acabaram por superar a personalidade jurídica das sociedades desde 1809, quase um século antes do famoso caso Salomon.

Voltando ao estudo de Verrucoli em sua monografia, é de suma importância sua contribuição para a formação doutrinária da teoria da desconsideração, nela enfoca a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nas sociedades de capital, pois na Itália, "[...] entende-se que as sociedades de pessoas, ou personalísticas, não possuem personalidade jurídica, não se colocando, por isso, o problema em relação a elas." (COELHO, 1989, p. 23, grifo do autor)

Verrucoli defende a idéia de que com a criação das pessoas jurídicas através de meios legais, seja normal que em contrapartida, também criem-se meios para impedir o uso indevido destas pessoas por parte de seus integrantes, ou através de atos destes, e um destes meios seria a desconsideração da personalidade jurídica, uma forma de evitar abusos, onde se superaria um certo privilégio que os sócios teriam ao se valerem dos privilégios decorrentes da personalização da sociedade.

Citado por Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, Piero Verrucoli afirma que,

’[...] a superação, que realiza esta atividade da pessoa jurídica, mostra-se em toda evidência como um dos possíveis instrumentos através dos quais o poder central contém e corrige a força dos grupos, restaurando um equilíbrio comprometido, combatendo os abusos do privilégio concedido, realizando completamente os fins perseguidos que se tenham tornado, de qualquer maneira, comprometidos por um rígido respeito formal ao privilégio da personalidade jurídica.’ 23 (KOURY, 2002, p. 7)

3.2.3 Origem e evolução no direito brasileiro

No Brasil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi lentamente ganhando força e se desenvolvendo através de esporádicas decisões judiciais e posteriormente através dos estudos dos doutrinadores, entre estes merecem destaque Rubens Requião e Fábio Konder Comparato.

Rubens Requião foi o primeiro doutrinador brasileiro a tratar do superamento da personalidade jurídica, segundo COELHO (1989, p. 33) ele trouxe duas grandes contribuições para desenvolvimento da teoria da desconsideração no Brasil. "A primeira delas foi a de ter sido o primeiro jurista nacional a cuidar do tema de forma sistematizada, em conferência [...] intitulada ‘Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica.’ [...]"

A outra grande contribuição de Requião, também de enorme envergadura, "foi a de ter demonstrado a compatibilização existente entre a teoria da desconsideração e o Direito nacional, propugnando pela sua aplicação a despeito da ausência de dispositivo legal sobre o assunto." (COELHO, 1989, p.33)

Requião, comentando a respeito do seu pioneirismo ao tratar da questão do abuso de direito e da fraude através da personalidade jurídica, traz em sua conferência realizada na Universidade Federal do Paraná uma interessante mensagem:

Não temos lembrança, em nossas constantes peregrinações pelas páginas do direito comercial pátrio, de haver encontrado doutrina nacional ou estudos sôbre o uso abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica, o que nos daria, se correta a nossa impressão, o júbilo de apresentá-la pela primeira vez, em sua formulação sistemática, aos colegas e aos juristas nacionais [...] (REQUIÃO, 2002, p. 752, grifo do autor).

O paranaense Rubens Requião procura conciliar uma forma de adequar a disregard doctrine ao ordenamento jurídico nacional, porém sem quebrar os princípios já consagrados que regem as pessoas jurídicas.

A expressão "desconsideração da personalidade jurídica", incorporada por Requião à doutrina brasileira, foi por ele mesmo traduzida do original disregard of legal entity, e a fraude ou o abuso de direito seriam elementos essenciais que autorizariam o poder judiciário a quebrar o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, e o efeito disto seria a possibilidade de se atingir o patrimônio dos sócios, quando do uso indevido da sociedade.

Preocupa-se este jurista com o livre convencimento do magistrado, que diante da hipótese de fraude ou abuso de direito, deve ou fazer justiça e alcançar os responsáveis através da desconsideração, ou então deixar impune os responsáveis pelo mau uso da sociedade, consagrando plenamente a autonomia patrimonial, e por conseguinte, consagrando também a impunidade, esta escondida atrás da máscara de proteção que envolve a pessoa jurídica, o que sem dúvida alguma não seria fazer justiça.

No tocante aos efeitos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, afirma Requião: ‘o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda sua a extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).[...] Com isto, no fundo não se nega a existência da pessoa, senão que se a preserva na forma com que o ordenamento jurídico a há concebido’ (COELHO, 1989, p. 36, grifo do autor).

Outro expoente, no que diz respeito à introdução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, foi Fábio Konder Comparato.

No Brasil, foi ele o idealizador da teoria da desconsideração da personalidade jurídica com pressupostos objetivos. Critica a teoria subjetiva da desconsideração e identifica outros fundamentos para ela.

Para esta formulação objetiva da teoria, bastaria tão somente a confusão patrimonial dos bens do sócio com os da sociedade, para que o judiciário aplicasse a teoria da desconsideração.

Fábio Ulhoa Coelho, em estudo aprofundado da matéria, salienta que para

Fábio Konder Comparato, o efeito fundamental da personalização é a separação de patrimônios, e este efeito não se opera em algumas situações, a saber: na ausência do pressuposto formal estabelecido em lei, no desaparecimento do objeto social específico (exploração de uma empresa determinada) ou do objetivo social (produção e distribuição de lucro) e na confusão do objeto social ou objetivo social e da atividade ou interesse individuais de um sócio.63 (COELHO, 1989, p.39-40, grifo nosso)

Fábio Konder Comparato dá essas diretrizes em sua obra O poder de Controle na Sociedade Anônima, onde também cita a jurisprudência norte-americana, que há tempos aplica a teoria da desconsideração, causando um certo abalo na doutrina mais tradicional.

Comparato afirma que o verdadeiro critério para aplicar-se a desconsideração da personalidade jurídica está "nos pressupostos da separação patrimonial, e não no uso que dela se faça [...]" (COELHO, 1989, p. 41).

3.3 O QUE É REALMENTE A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.3.1 Considerações iniciais sobre a teoria

Após breves retrospectos históricos, úteis para melhor compreender o trabalho em tela, será analisada neste item a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em si, seus pressupostos, a teoria maior da desconsideração, a teoria menor, sua aplicação, seus aspectos no campo do direito processual e a desconsideração inversa, ou seja, o estudo será o do instituto da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.

É importante ressaltar que a partir deste item, e também no restante do trabalho, quando não for expressamente mencionado, sempre se tratará, quando se referir à teoria da desconsideração, da sua formulação subjetiva, ou seja, da teoria maior da desconsideração, visto que é esta a teoria de maior aceitação.

Somente quando expressamente mencionado, tratar-se-á da teoria menor, ou de formulação objetiva e de menor aceitação.

No que diz respeito a um instituto jurídico, sua função, "[...] é satisfazer determinadas necessidades compatíveis com o ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto de uma forma também compatível com o mesmo." (KOURY, 2002, p. 66)

Este é o objetivo da desconsideração, ser ao mesmo tempo compatível com o instituto da pessoa jurídica, não visando anulá-la, mas sim em determinados casos ordenar que não seja considerada a personalidade jurídica de uma sociedade quando presentes a fraude e o abuso de direito.

Assim, importante é o estudo relacionado dos institutos da pessoa jurídica e da desconsideração da personalidade jurídica, pois o segundo visa de certa forma tornar sem efeito o primeiro no que tange a determinadas situações, como será a seguir demonstrado.

3.3.2 Entendendo a desconsideração

Este item trata do instituto da desconsideração da personalidade da sociedade empresária, instituto profundamente relacionado com o das pessoas jurídicas, e impossível discorrer somente sobre um, sem mencionar o outro, por este motivo será repetido aqui, algumas vezes, assunto já mencionado anteriormente.

As sociedades empresárias muitas vezes são utilizadas através das pessoas físicas que as comandam, para efetivar atividades que visam lesar, fraudar seus credores, ou para abuso de direito através de sua personalidade. O que "superficialmente" garante a impunidade a estas pessoas é exatamente o princípio da autonomia patrimonial, consagrado em nosso ordenamento jurídico.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine surgiu justamente para combater tais injustiças que freqüentemente ocorrem.

Então, quando a atividade ilícita praticada pelo sócio encontra respaldo atrás do véu que recobre a pessoa jurídica e a distingue de seu sócio, tornando-o praticamente inatingível, cabe ao poder judiciário, em casos excepcionais, aplicar a teoria desconsideração, levantando o véu da pessoa jurídica, com o objetivo de atingir e responsabilizar este último, se presentes os requisitos que a autorizem.

Maurice Wormser, citado por Requião, em seus estudos preceitua o seguinte:

‘quando o conceito de pessoa jurídica (‘corporate entity’) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais’ (REQUIÃO, 2002, p. 753).

O interessante da teoria de Wormser, é que mesmo datados dos idos de 1912, seus estudos sobre a desconsideração das corporates entities, continuam atuais, sendo nos dias de hoje plenamente válidos. A idéia de justiça, parece nortear sua doutrina sobre o superamento da personalidade jurídica, o que parece também estar ocorrendo atualmente em nosso ordenamento jurídico, com a positivação da disregard doctrine em várias leis.

O que se pretende com a desconsideração não é anular a personalidade jurídica de uma sociedade, mas sim obter uma declaração, através do judiciário, de que esta personalidade não tem efeito em determinadas situações, como bem aponta Rubens Requião (2003, p. 378, grifo do autor): "Não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas torná-la ineficaz para determinados atos."

O mesmo posicionamento, em favor da não anulação permanente da personalidade jurídica da sociedade, é adotado pela maioria dos doutrinadores:

Não há invalidação ou dissolução da sociedade, associação ou fundação. O que ocorre é apenas a ineficácia episódica do ato constitutivo da pessoa jurídica. Vale dizer, ela continua existente, e seus atos plenamente válidos e eficazes em relação a todos os demais negócios de que participa, estranhos à fraude perpretada. Assim, preserva-se a empresa e, conseqüentemente, não se atinge os interesses dos empregados, consumidores, demais integrantes da pessoa jurídica e os da própria comunidade, em razão de um ilícito praticado através da pessoa jurídica, mas pelo qual ela não é responsável (COELHO, 1995, p. 45).

Não são todas as espécies de sociedades passíveis de sofrer a desconsideração de sua personalidade, em algumas, como a sociedade em nome coletivo, conforme já visto anteriormente, todos os sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações desta, não sendo necessário invocar a teoria da desconsideração para atingi-los.

Em outras, como as sociedades em comandita simples e a em conta de participação, somente alguns dos sócios respondem de forma não limitada, sobre eles a desconsideração não há necessidade de ser aplicada, visto que estes já têm uma responsabilidade ilimitada, mas sim somente nos demais que respondem de forma limitada, quando presentes os requisitos que a autorizem.

"Assim, a desconsideração corresponde à ignorância ou não aplicação, para casos concretos, do regime jurídico estabelecido como regra para situações de que participe uma sociedade personificada (pessoa jurídica)." (JUSTEN FILHO, 1987, p. 67)

"Pretende a doutrina penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio." (REQUIÃO, 2003, p. 378)

Interessante é o posicionamento do Advogado e professor Alexandre Couto Silva, para ele

A teoria da desconsideração assegura que a estrutura da sociedade com responsabilidade limitada pode ser desconsiderada apenas no caso concreto, atingindo-se a personalidade jurídica do sócio, tanto pessoa natural quanto pessoa jurídica, responsabilizando-o pela fraude e pelo abuso de direito, bem como nos casos em que ele se esconde atrás da personalidade jurídica da sociedade para evitar obrigação existente, tirar vantagem da lei, alcançar ou perpetrar o monopólio, ou proteger desonestidade ou crime. A idéia da busca de justiça é fator preponderante para aplicação da teoria (SILVA, 2000, p. 48, grifo nosso).

Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 34) considera que a manipulação da autonomia das pessoas jurídicas, em exemplos citados na sua obra, são instrumentos para a realização de fraude contra credores, ou pelo menos abuso de direito. A solução para evitar tais manipulações não é a abolição da autonomia da pessoa jurídica, como regra, e que o problema não está no perfil básico destas pessoas, mas no seu mau uso. O objetivo da teoria da desconsideração é possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica.

Concluindo, a desconsideração da personalidade jurídica, quando aplicada em face de uma sociedade empresária, enseja ela a quebra do princípio da autonomia patrimonial, onde o pretendente à reparação, que se sentiu lesado em virtude do mau uso da personalidade jurídica da sociedade por seus sócios, pode buscar no patrimônio pessoal dos mesmos, quando não possível no da própria sociedade, a restituição dos prejuízos que efetivamente sofreu.

3.4 A TEORIA MAIOR E A TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO

No Brasil, existem duas elaborações doutrinárias sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, este trabalho trata dessas formulações de uma forma breve, destacando como de maior importância a primeira, pois é a de maior aceitação e que está de acordo com a elaboração doutrinária original da desconsideração.

3.4.1 A teoria maior da desconsideração

A teoria maior da desconsideração, também denominada de teoria subjetiva, é a de maior aceitação no Brasil, condiciona-se à ocorrência de fraude ou abuso de direito, critérios subjetivos para ensejar a desconsideração.

Esta formulação doutrinária é muito melhor desenvolvida e elaborada do que na teoria menor. Seu maior expoente na doutrina estrangeira é o alemão Rolf Serick. No Brasil a teoria maior foi inserida na doutrina por Rubens Requião, aqui seu maior elaborador, o qual tratou de sistematizá-la.

Segundo Alexandre Couto Silva

A concepção subjetivista apresentada por Requião, baseia-se, para a aplicação da teoria da desconsideração, na fraude e no abuso, requisitos que são de caráter subjetivo e não contemplam, no entendimento de Comparato, todo o terreno da ocorrência da teoria da desconsideração (SILVA, 2000, p. 53).

Para a teoria maior, a fraude e o abuso de direito, quando presentes no caso concreto, outorgariam ao magistrado a oportunidade de aplicar a teoria da desconsideração ao seu alvedrio, isto é, estaria o juiz autorizado a utilizar o seu livre convencimento para aplicá-la, devido ao caráter subjetivo que a teoria comporta. Isto a difere profundamente da teoria menor, onde este critério de subjetividade praticamente inexiste.

Esta subjetividade está bem demonstrada no ensinamento de Rubens Requião:

Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos (REQUIÃO, 2002, p. 752, grifo nosso).

Explica Fábio Coelho (2002, p. 35), que nesta teoria distingue-se com clareza a desconsideração da personalidade jurídica de outros institutos jurídicos que também importam a afetação do patrimônio do sócio por obrigação contraída pela sociedade.

3.4.2 A teoria menor da desconsideração

A teoria menor da desconsideração é uma proposta doutrinária formulada por Fábio Konder Comparato, esta doutrina combate o subjetivismo da proposta original oferecida no Brasil por Rubens Requião.

A formulação menor não se preocupa em determinar se há ou não fraude ou abuso de direito na condução da sociedade através de seus sócios.

Há uma tentativa, da parte de Fábio Konder Comparato, no sentido de desvincular o superamento da pessoa jurídica desse elemento subjetivo. Elenca, então, um conjunto de fatores objetivos que, no seu modo de ver, fundamentam a desconsideração. São os seguintes: ausência do pressuposto formal estabelecido em lei, desaparecimento do objetivo social específico ou do objetivo social e confusão entre estes e uma atividade ou interesse individual de um sócio (197:273/275). Mas, de qualquer forma, ainda que se adote uma concepção objetiva nesses moldes, dúvida não pode haver quanto à natureza excepcional da desconsideração (COELHO, 1995, p. 45-46).

É uma teoria muito menos elaborada, de enfoque superficial, para esta formulação doutrinária a simples insolvência, ou a falência da sociedade, enseja a quebra da autonomia patrimonial visando atingir o patrimônio particular do sócio, pois para esta visão da doutrina, o credor não pode sair prejudicado, quando o sócio não for insolvente.

Aplicar esta teoria em nosso ordenamento jurídico seria tornar ineficaz o instituto da pessoa jurídica, um dos maiores responsáveis pelo impulso e desenvolvimento da economia.

Coelho (2002, p. 46) entende que esta teoria reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial referente às sociedades empresárias. Onde se tem como pressuposto, o simples desatendimento do crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta.

3.5 PRESSUPOSTOS INAFASTÁVEIS PARA EFETIVAR A DESCONSIDERAÇÃO NA TEORIA MAIOR (A FRAUDE E O ABUSO DE DIREITO)

3.5.1 Consideração sobre os pressupostos

Marçal Justen Fillho (1987, p. 94) afirma que "reputa-se ser impossível definir pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica societária enquanto se adote um conceito absoluto de pessoa jurídica."

A lição deste grande doutrinador era totalmente procedente na época em que foi formulada, porém hoje, em virtude de várias mudanças e inovações ocorridas ao longo das últimas duas décadas no cenário jurídico brasileiro, se pode afirmar que o conceito absoluto de pessoa jurídica já não é mais o mesmo.

Até o final da década de 80 havia no Brasil uma espécie de tabu, pois se considerava a personalidade jurídica de uma sociedade praticamente insuperável para atingir o sócio, isto ocorria em vista de não haver norma expressa que autorizasse desconsiderá-la. Essa intransponibilidade da barreira da personalidade jurídica foi transposta com uma importante inovação e evolução legislativa ocorrida no Brasil no início dos anos 90.

O Código de Defesa do Consumidor, em 1990 pela primeira vez declarou expressamente em nossa legislação, ao enunciar que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica, a possibilidade de aplicação da disregard doctrine.

A partir desta inovação em nosso ordenamento jurídico, a pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial não eram mais absolutos.

A personalidade jurídica a partir de então se torna relativa pelo fato de haver uma norma expressamente autorizando a quebra deste princípio. Isto não quer dizer que antes a teoria nunca havia sido utilizada, pelo contrário, o CDC somente positivou o que antes somente existia na doutrina e na jurisprudência.

Após 1990, surgiram outros dispositivos legais, confirmando a possibilidade, de quando presentes os requisitos, superar-se a personalidade jurídica, o que culminou com o artigo 50 do Código Civil de 2002, que consagrou a teoria no Brasil. Estes dispositivos são tratados no capítulo 4 deste trabalho separadamente.

Após ocorrer esta "relatividade" da personalidade jurídica, dois pressupostos tornam-se ainda inafastáveis para aplicar-se a teoria da disregard, mesmo após a sua positivação no ordenamento jurídico nacional. São eles a fraude e o abuso de direito.

Segue-se aqui a linha de raciocínio original formulada pela doutrina, onde estes dois pressupostos são inafastáveis, e também pelo fato de não se considerar todas as hipóteses presentes no direito nacional como verdadeiros exemplos de disregard doctrine.

Deve-se também ter em mente, que para a aplicação da disregard há necessidade de que não se possa responsabilizar o sócio diretamente, como nas sociedades de responsabilidade ilimitada, as quais já foram aqui estudadas.

Alexandre Couto Silva traz a lição explicando que

Diante disso, extrai-se que o instituto somente será aplicado às sociedades anônimas e as de responsabilidade limitada. As outras sociedades que apesar de apresentarem responsabilidade limitada para alguns sócios, aqueles que exercem a gerência, terão sempre a responsabilidade ilimitada (SILVA, 2000, p. 48).

Deve-se atentar para o fato de que mesmos os sócios com responsabilidade limitada nestas espécies de sociedade (mistas), são passíveis de sofrer a desconsideração quando por parte deles de algum modo houver sido praticada a fraude ou abuso de direito.

3.5.2 A fraude

A fraude pode ser caracterizada com um procedimento utilizado para iludir, ludibriar, enganar. "Na definição de Clóvis, fraude é o artifício malicioso utilizado para prejudicar terceiro, de persona ad personam." (SERPA LOPES, 1996, p. 466)

Quanto à ocorrência de fraude ligada às pessoas jurídicas Coelho esclarece que:

[...] a autonomia da pessoa jurídica, a despeito de sua fundamental importância no regime capitalista, pode dar ensejo à realização de fraudes contra a lei, o contrato ou credores. Ocultando-se atrás da personalidade jurídica de uma sociedade, associação ou fundação, pode por vezes o devedor frustrar a efetivação de sua responsabilidade ou, de qualquer forma, lesar os interesses legítimos do credor. A fraude perpetrada com o uso da autonomia patrimonial de pessoa jurídica, em geral, resulta em imputar-lhe responsabilidade de um ato ou de atos praticados em seu nome apenas com o objetivo de ocultar uma ilicitude (COELHO, 1995, p. 44).

O uso indevido da personalidade jurídica, não pode então ser acobertado pelo poder judiciário em virtude do princípio da autonomia patrimonial, portanto presente a fraude, e se esta for esta demonstrada plenamente, deve o magistrado aplicar a desconsideração sob pena de estar acobertando a injustiça.

3.5.3 O abuso de direito

Rubens Requião (2002, p. 755) preceitua que a relatividade do direito da personalização leva, num rápido desvio do assunto, à teoria do abuso do direito, de criação dos tribunais franceses, e sistematizada por Josserand. Este último afirma que para se compreender a teoria há necessidade de partir da observação de que a sociedade garante a determinadas pessoas as suas prerrogativas, não para ser-lhes agradável, mas para assegurar-lhes a própria conservação.

O abuso dessas prerrogativas, ou seja, o excessivo e injustificado uso de determinado instituto, amparado pela lei, pode ser considerado como abuso de direito.

"O direito deve ser exercido em conformidade com o seu destino social e na proporção do interesse do seu titular." (SERPA LOPES, 1996, p. 525) Portanto o instituto da pessoa jurídica, um direito dos sócios, deve ser usados por seus titulares na mesma proporção de seus interesses e finalidades para não correr o risco de transformar-se em abuso de direito.

Elida Séguin (1999, p. 107) ensina que o abuso de direito ocorre quando uma atividade lícita e legalmente permitida descontrola-se e foge dos padrões da normalidade.

A teoria do abuso de direito foi agasalhada pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 187, o qual prescreve: também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Aqui o legislador não buscou definir as hipóteses de incidência, mas traçou as linhas gerais que visam combater o abuso de direito. E também como já mencionado nos casos de fraude, não deve o magistrado acobertar a injustiça quando demonstrado o uso abusivo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

3.6 A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

A desconsideração inversa enseja que se aplique os mesmos princípios da desconsideração da personalidade jurídica já estudada, nada muda quanto aos pressupostos e demais aspectos, razão pelo qual não se processará neste item um estudo mais apurado.

Na desconsideração inversa, como o próprio nome diz, a ordem de responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, neste caso o que se busca é a responsabilidade perante os bens da sociedade, por ato praticado pelo sócio.

Pela desconsideração tradicional busca-se responsabilizar o sócio por obrigações contraídas pela sociedade, na inversa, é esta última que responde por dívidas ou atos praticados pelo sócio, através da quebra de sua autonomia patrimonial.

Para Coelho (2002, p. 45), a fraude que a desconsideração invertida coíbe é basicamente o desvio de bens, onde o devedor os transfere para a pessoa jurídica sobre a qual detém o absoluto controle. Deste modo continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica que está sob seu controle. A desconsideração inversa, então pode ser conceituada como o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.

3.7 A QUESTÃO PROCESSUAL

Quando o credor pretender que seja desconsiderada a personalidade jurídica de uma sociedade empresária, deve fazer isso através de uma ação com procedimento adequado que possibilite a ampla produção de provas, este procedimento é o processo de conhecimento.

Afirma Coelho (2002, p. 55) que o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios senão através de ação própria, de caráter cognitivo. Nesta ação o credor deverá demonstrar a presença do pressuposto fraudulento. Quem pretende imputar aos sócios de uma sociedade empresária responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve propor demanda contra esta última, e sim contra os primeiros.

Se a personalização da sociedade empresária será abstraída, desconsiderada, ignorada pelo juiz, então a sua participação na relação processual como demandada é uma impropriedade. Se a sociedade não é sujeito passivo do processo legitimado a outro título, se o autor não pretende a sua responsabilização, mas a de sócios ou administradores, então ela é parte ilegítima, devendo o processo ser extinto, sem julgamento de mérito, em relação à sua pessoa, caso indicada como ré (COELHO, 2002, p. 55)

Pela teoria maior da desconsideração, não pode o magistrado declarar a quebra do princípio da autonomia patrimonial, em despacho no processo de execução.

Coelho (2002, p. 55) entende que se o credor obtém em juízo a condenação da sociedade, e ao promover a execução constata o uso fraudulento da sua personalidade jurídica, obstando seu direito reconhecido em juízo, ele ainda não possuí título executivo contra o responsável pela fraude.

Desta forma deve o credor, ajuizar nova ação, desta vez de procedimento cognitivo, para ver responsabilizado o sócio responsável pela conduta fraudulenta.

"Não é correto o juiz, na execução, simplesmente determinar a penhora de bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiros a discussão sobre a fraude, porque isto significaria uma inversão do ônus probatório." (COELHO, 2002, p.55)

Outro aspecto tratado por Coelho (2002, p. 56) diz respeito ao fato de que os juízes que adotam a teoria menor da desconsideração, baseados no pressupostos da insolvabilidade e insatisfação do crédito simplesmente, tornam a discussão mais simplificada. No processo de execução esses juízes determinam a penhora de bens de sócios e administradores e consideram os eventuais embargos de terceiro como o local apropriado para apreciar a defesa destes. Como não participaram da lide durante o processo de conhecimento e não podem rediscutir a matéria alcançada pela coisa julgada, acabam os embargantes sendo responsabilizados sem o devido processo legal.

Pode-se afirmar, que neste caso está sendo subtraído do demandado o direito a ampla defesa e ao devido processo legal, ambos garantidos pela Constituição Federal de 88.


4 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

4.1 CRONOGRAMA DA EVOLUÇÃO DA TEORIA NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

Como já afirmado anteriormente neste trabalho, não é propósito o estudo da disregard doctrine, ou teoria da desconsideração, no Direito do Trabalho, Direito Tributário, Direito de Família, etc, e demais leis que porventura parte da doutrina entenda como casos de desconsideração, pois nestes e outros casos, esta teoria não está explicitamente positivada. O presente trabalho apenas tratará da desconsideração no direito positivo brasileiro, onde serão matérias de estudo, especificamente, as quatro leis a seguir elencadas.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica está presente tanto na jurisprudência como na doutrina desde o início da década de 70 no Brasil, mas no direito positivo brasileiro, ou seja, nos textos de lei, ela chegou de forma expressa somente no ano de 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o qual proporcionou uma notável conquista, já há muito desejada pelo consumidor brasileiro.

A aparição da desconsideração na legislação brasileira aconteceu quase dois séculos após as primeiras decisões norte-americanas, mas também é certo que esta teoria chegou para ficar, pois o legislador brasileiro já a adotou expressamente em quatro Leis e consagrou-a no Código Civil de 2002.

Indiscutível é o avanço que se deu somente em pouco mais de uma década no Brasil, pois se compararmos a omissão do legislador desde as primeiras decisões jurisprudenciais norte-americanas, passando pela formação doutrinária de Rolf Serick e posteriormente Rubens Requião no Brasil, muito se fez em apenas uma década.

A partir do advento da teoria da desconsideração no Código de Defesa do Consumidor em 1990, seguiu-se no ano de 1994, mais uma incorporação desta teoria na legislação pátria com a Lei Antitruste, que tem por objetivo prevenir e reprimir infrações contra a ordem econômica.

Quatro anos depois, no âmbito do Direito Penal e Ambiental, houve mais uma introdução da desconsideração da personalidade jurídica no nosso sistema legal, mais precisamente em 1998, a lei de Crimes Ambientais, adotou a teoria em seu texto.

Contudo, o grande avanço se deu com a entrada em vigor do Novo Código Civil brasileiro de 2002, que acatando o que já nos trazia a doutrina e a jurisprudência, traz regra inserta no seu artigo 50, onde está claramente positivada a teoria da desconsideração.

Indiscutível então, foi avanço proporcionado pela positivação da teoria da desconsideração em nosso ordenamento jurídico, mas se deve atentar para alguns equívocos praticados pelo legislador nos dispositivos legais que a contemplam, o que será estudado a seguir.

Resumindo, pode-se fazer o seguinte retrospecto cronológico: 2002, 1998, 1994, 1990. Podemos então confirmar um dado curioso, onde a cada quatro anos, o legislador brasileiro avançou um pouco para cristalizar a desconsideração da personalidade jurídica no nosso sistema legal.

4.2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

4.2.1 O Surgimento do CDC

Pode-se concluir que com o surgimento das grandes corporações, empresas, companhias etc, ao longo dos últimos 100 anos ou um pouco mais, e recentemente com o fenômeno da globalização, houve um enorme desequilíbrio nas relações de consumo.

Isto ocorreu face o tremendo poder disponível a serviço das grandes empresas, mas não somente estas, pois mesmo diante de empresas, ou sociedades empresárias de menor porte, o consumidor tornou-se a parte fraca da relação.

É valido fazer uma comparação, embora ocorrida em momentos e num contexto diferente, da chegada em nosso ordenamento jurídico do Código de Defesa do Consumidor, à chegada das Leis Trabalhistas, a CLT. Ambos, o consumidor e o trabalhador podem ser considerados hipossuficientes, diante do outro pólo da relação de que fazem parte.

A constituição Federal de 1988 no seu artigo 5.º inciso XXXII, determina que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. No artigo 170 inciso V, preceitua que um dos princípios da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, é a defesa do consumidor. E finalmente, no artigo 48 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determina que seja elaborado o Código de Defesa do Consumidor.

Assim surgiu a Lei n.º 8.078 de 11 de setembro de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, que objetiva equilibrar as relações de consumo, visto que, na época o cidadão, o consumidor não dispunha de um instrumento eficaz, que lhe desse segurança quando se sentisse lesado por parte de uma grande empresa ou corporação.

Salienta Antonio do Rêgo Monteiro Rocha:

Como o direito regulado no art. 20, do Código Civil [referindo-se ao antigo Código Civil de 1916], veio sendo usado irregular e imoderadamente, causando prejuízos a terceiros e aos consumidores, o legislador brasileiro do CDC, fundamentado em doutrinas estrangeira e nacional, como também em crescente jurisprudência do Brasil, trouxe, em seu art. 28, a desconsideração da personalidade jurídica (ROCHA, 1999, p. 120).

4.2.2 A desconsideração da personalidade jurídica, hipóteses do artigo 28

Após breve histórico sobre surgimento do CDC, atenta-se agora para o conceito de consumidor, sobre o qual não se fará análise aprofundada, visto que o objeto de estudo deste capítulo é somente a "desconsideração" no CDC, então não serão tratados dos seus pormenores e nem sobre o que diz respeito às relações de consumo.

O conceito de consumidor está no próprio artigo 2º do CDC e seu parágrafo único, do qual pode-se extrair que consumidor é toda pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza algum produto ou serviço como destinatário final, equiparam-se ao consumidor também, a coletividade de pessoas, ainda que não determináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

A desconsideração da personalidade jurídica encontra respaldo no artigo 28 do CDC, o qual preceitua o seguinte: o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

O parágrafo 5.º do mesmo dispositivo traz ainda: também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

O caput do artigo 28 do CDC é claro quando expressa que o magistrado "poderá" desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando ocorrer alguma das hipóteses (parte da doutrina entende não serem todas as hipóteses elencadas no artigo, casos de desconsideração da personalidade jurídica, como demonstrado a seguir, mas para fins didáticos as utilizaremos aqui) ensejadoras da desconsideração indicadas no mesmo caput ou no parágrafo 5.º do citado artigo.

Ao que tudo indica, a expressão "poderá" foi empregada de forma infeliz pelo legislador, pois comporta duas dúvidas a seguir explicitadas.

A primeira, diz respeito se constitui uma mera faculdade do magistrado aplicar a desconsideração da personalidade jurídica à sociedade ou se esta expressão "poderá" deve ser convertida obrigatoriamente em "deverá" quando presentes os requisitos elencados no artigo.

A segunda dúvida se constitui no seguinte: o caput do artigo traz uma vez a expressão "poderá" e logo após a expressão "A desconsideração também será efetivada", e elenca as hipóteses em que ocorrerá cada um dos casos. Então surge a dúvida quanto ao fato de ser ou não obrigatória a desconsideração por parte do magistrado quando presentes os requisitos elencados logo após a segunda expressão.

Seguindo a transcrição literal do artigo 28, onde temos que o magistrado terá a "faculdade", ou seja, "poderá" utilizar o instituto da desconsideração nos seguintes casos: quando em detrimento do consumidor houver abuso de direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, e ainda quando sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

No que alude à expressão "a desconsideração também será efetivada", esta, pelo fato de estar inserida a palavra "também" em seu contexto, deverá ser entendida da mesma forma, como uma faculdade do magistrado, então ele poderá utilizar o instituto da desconsideração quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade de pessoa jurídica provocados por má administração.

Contudo resta saber o seguinte: se quando o legislador aplicou no texto a expressão "poderá", quis conferir ao magistrado um "poder-dever", se esta foi a sua intenção, pode-se interpretar o artigo de uma forma não literal, então, em todas as hipóteses elencadas no artigo 28, o magistrado, presente os requisitos, teria o dever de aplicar a teoria.

Há, no entanto, que se discordar desta hipótese, em vista de que não se deve simplesmente presumir o que efetivamente quis o legislador, também não devemos duvidar de sua capacidade de expressão e redação, salvo raríssimas exceções, pois se o mesmo realmente estivesse com a intenção de conferir um "poder-dever" ao magistrado, tudo indica que teria ele feito isto por completo no artigo supramencionado, embora haja entendimento contrário.

No sentido de ser um dever do magistrado aplicar a teoria da desconsideração, temos o ensinamento de Domingos Afonso Kriger Filho, para ele a expressão "poderá" não seria uma "faculdade" do magistrado:

[...] a expressão ‘poderá desconsiderar'' não encerra em si uma simples faculdade outorgada ao magistrado a ser usada a seu alvedrio mas, ao contrário, conforme o caso, torna obrigatório ao magistrado chamar à responsabilidade aos sócios que estavam na direção da empresa na ocasião da ofensa ao consumidor, sob pena de quebra da escala de valores instituída por ordem legal (KRIGER FILHO, 1994, p. 22).

Outras imperfeições no tocante a formulação original da disregard doctrine ocorrem com o dispositivo em estudo, mas tudo indica que, apesar das impropriedades técnicas, foram propositadamente inseridas pelo legislador, como a seguir será demonstrado.

Entende parte da doutrina, que nem todos os casos elencados pelo artigo 28 correspondem à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e se proposital ou não este descompasso criado pelo legislador, não cabe a este trabalho discutir, mas sim demonstrar efetivamente a existência desta divergência.

Salienta Fábio Coelho (2002, p. 49), que entre os fundamentos legais que ensejam a teoria da desconsideração no CDC encontram-se hipóteses que não caracterizam a teoria da desconsideração e sim a responsabilização de administrador, o que não pressupõe nenhum superamento da personalidade jurídica. E também se omite a fraude, principal fundamento para a desconsideração, esta dissonância entre o texto legal e a doutrina não traz nenhum benefício para a tutela dos consumidores, sendo, portanto, uma fonte de incertezas e equívocos.

Coelho (2002, p. 50) entende de forma diferente no que alude às hipóteses de (1) infração de lei, (2) fato ou ato ilícito, (3) violação dos estatutos ou contrato social, e quando houver (4) falência, (5) estado de insolvência, (6) encerramento ou inatividade de pessoa jurídica provocados por má administração. Para ele, estes elementos presentes em parte do caput do artigo 28 não seriam caso de desconsideração da personalidade jurídica e sim pertinentes a tema societário diverso, e quanto aos primeiros três elementos, são eles referentes à responsabilidade do sócio ou representante legal da sociedade empresária por ato ilícito próprio, já quanto aos últimos (4), (5) e (6), seriam eles casos de responsabilidade por má administração, quando a personalização da sociedade não impede que o administrador tenha que ressarcir os danos causados.

A teoria da desconsideração, como visto, tem pertinência apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Se a imputação pode ser direta, se a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há porque cogitar do superamento de sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a terceiros, inclusive consumidores, em virtude de comportamento ilícito, responde pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal, decorrente do ilícito em que incorreu. Não há nenhuma dificuldade em estabelecer essa responsabilização, e a existência da pessoa jurídica não a obsta, de maneira alguma. A circunstância de o ilícito ter sido efetivado no exercício da representação legal de pessoa jurídica, ou em função da qualidade de sócio ou controlador, em nada altera a responsabilidade daquele que, ilicitamente, causa danos a terceiros. Não há, portanto desconsideração da pessoa jurídica na definição da responsabilidade de quem age com excesso de poder, infração da lei, violação dos estatutos ou contrato social ou por qualquer outra modalidade de ilícito (COELHO, 2002, p.50-51, grifo nosso).

Parece, entretanto, que a omissão da fraude, a inserção de hipótese de má administração e hipóteses que dizem respeito a tema societário diverso, foram feitas pelo legislador com intuito de introduzir pressupostos novos à teoria da desconsideração, como salientam os próprios autores do anteprojeto:

O texto introduz uma novidade, pois é a primeira vez que o direito legislado acolhe a teoria da desconsideração sem levar em conta a configuração da fraude ou do abuso de direito. De fato, o dispositivo pode ser aplicado pelo juiz se o fornecedor (em razão da má administração, pura e simplesmente) encerrar suas atividades como pessoa jurídica (GRINOVER et al., 1998, p. 195).

Coelho (2002, p.51-52) reportando-se ao parágrafo 5º do artigo 28, preceitua que uma rápida leitura deste dispositivo pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial arcado pelo consumidor já ensejaria a aplicação da teoria aqui em destaque. Salienta que esta interpretação não deve prevalecer em vista de três motivos. Primeiro: porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração. A pessoa jurídica só poderia ter sua personalidade desconsiderada em caso de fraude ou abuso de direito e a simples insatisfação do credor não autoriza, por sí só a desconsideração, conforme a teoria maior da desconsideração. Segundo: porque seria letra morta o caput do artigo 28, no caso de exegese literal, visto que o mesmo traz hipóteses autorizadoras do superamento da personalidade da jurídica da sociedade. Terceiro: porque essa interpretação seria o equivalente a eliminar o instituto da pessoa jurídica no âmbito do direito do consumidor, ainda, se esta tivesse sido a intenção da lei, a norma para operacionalizá-la poderia ser direta, sem o apelo à teoria da desconsideração.

Para uma melhor interpretação do parágrafo 5.º do artigo 28 do CDC, melhor seria que esta não fosse a literal, pois se assim fosse, teríamos que um simples prejuízo, ou dano que afetasse seu patrimônio do consumidor, já ensejaria a aplicação da teoria da desconsideração. Neste sentido é valiosa a lição de Fábio Coelho:

Dessa maneira, deve-se entender o dispositivo em questão [...] como pertinente apenas às sanções impostas ao empresário, por descumprimento de norma protetiva dos consumidores, de caráter não pecuniário. Por exemplo, a proibição de fabricação de produto e a suspensão temporária de atividade ou fornecimento [...]. Se determinado empresário é apenado com essas sanções, e, para furtar-se ao seu cumprimento, constitui sociedade empresária para agir por meio dela, a autonomia da pessoa jurídica pode ser desconsiderada justamente como forma de evitar que a burla aos preceitos da legislação consumerista se realize. Note-se que a referência, no texto legal, a ‘ressarcimento de prejuízos’ importa que o dano sofrido pelos consumidores tenha conteúdo econômico, mas não assim a sanção administrativa inflingida ao fornecedor em razão desse dano. (COELHO, 2002, p.52, grifo nosso).

4.3 APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO NA LEI ANTITRUSTE

4.3.1 Breve consideração sobre o truste e a lei que tutela o livre mercado

O artigo 176 parágrafo 4.º da Constituição Federal de 1988, traz regra em seu texto preceituando que a lei deverá tutelar o livre mercado, ou seja, reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.

Surgiu assim, no ano de 1994, com o objetivo de transformar o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em autarquia, prevenir, e reprimir as infrações conta a ordem econômica, a Lei n.º 8.884/94.

Inicialmente, para um melhor aproveitamento do estudo da desconsideração na Lei n.º 8.884 de 11 de junho de 1994, mais conhecida como Lei Antitruste brasileira, é necessário ter uma noção básica sobre o significado da palavra truste, tem-se então a uma breve definição:

TRUSTE (do ing. ‘trust’) – Reunião ou fusão de várias companhias em uma só, com o fim de monopolizar de fato determinada indústria, dominar o mercado, suprimir a livre concorrência, e, assim, obter proventos maiores com a elevação do preço dos produtos. Esse sindicato de fabricantes se organiza pela transferência da totalidade ou maioria das ações a um comitê central, que dirige os negócios comuns, ficando os acionistas privados do exercício do voto, embora conservem o direito de participar dos lucros que se verificarem (NUNES, 1976, p. 849).

Simplificando o ensinamento acima, pode-se concluir que o truste, resumidamente, seria uma espécie de aglomeração de várias empresas visando dominar determinado nicho do mercado e com isto obter lucros de maior monta.

Isso começou a ocorrer, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, como bem explana Requião:

Os grupos societários (trustes, cartéis, Konzerns etc.), cada vez mais dimensionados, passaram a constituir a inexorável técnica do capitalismo ascendente e vitorioso nos países de economia desenvolvida, transcendendo aos lindes territoriais das nações. O fenômeno mais se acentuou e terminou por ser universalmente reconhecido, após a Segunda Grande Guerra de 1939 (REQUIÃO, 1988, p. 286)

Após estas considerações iniciais, segue então o estudo da Lei Antitruste, no que diz respeito à teoria da desconsideração da personalidade jurídica. E foi justamente na seara das leis antitruste, que ocorreu uma das primeiras decisões judiciais acerca da disregard doctrine nos Estados Unidos (caso Standard Oil), conforme estudado no item 3.2.1 deste trabalho.

4.3.2 A lei antitruste e a desconsideração: uma cópia do artigo 28 do CDC

Preceitua o artigo 18 da mencionada lei: a personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Está demasiadamente claro, que o artigo 18 da Lei Antitruste foi criado com base no do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, se não foi uma cópia explícita. O legislador neste caso somente suprimiu os parágrafos constantes do artigo 28 do CDC, e parece que acertadamente, visto que o artigo comporta basicamente os mesmos problemas encontrados no caput do seu correspondente na lei do consumidor.

Fábio Coelho, tratando do tema, assim posiciona-se em relação a esta matéria:

[...] a redação infeliz do dispositivo equivalente do Código de Defesa do Consumidor, acabou incorrendo nos mesmos desacertos. Desse modo, a segunda referência legal à desconsideração no direito brasileiro também não aproveitou as contribuições da formulação doutrinária, perdendo consistência técnica (COELHO, 2002, p. 53).

As críticas apontadas no item 4.2, que trata da desconsideração no CDC, são praticamente as mesmas aqui apontadas, a doutrina dominante assim também se posiciona.

Como bem aponta Coelho (2002, p. 52), são duas as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica visando proteger o livre mercado: 1) quando houver infração contra a ordem econômica e 2) na aplicação da sanção. Referindo-se à primeira hipótese, de conduta infracional, a autonomia das pessoas jurídicas não pode servir de obstáculo. Na aplicação da sanção, exemplifique-se a proibição de licitar. A penalidade imposta deve ser estendida, através da desconsideração, às outras sociedades que tenham objeto idêntico ou semelhante porventura existentes entre os mesmos sócios.

Nelson Nones, em excelente obra sobre as sociedades unipessoais, ensina que a lei antitruste

[...] traz, praticamente, as mesmas hipóteses de incidência previstas no Código de Defesa do Consumidor, ao preceituar que, ‘A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou do contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.’ (NONES, 2002, p. 123)

Alexandre Couto Silva, nos dá importante contribuição sobre a teoria da desconsideração no que alude à Lei Antitruste:

A lei antitruste (lei 8.884), em seu artigo 18, revelou-se uma adaptação do artigo 28 do Código Proteção [sic] e Defesa do Consumidor, reafirmando erroneamente, como hipóteses de aplicação da teoria, o excesso de poder, a falência ou estado de insolvência e o encerramento ou inatividade por má administração, permanecendo o abuso de direito como única hipótese justificadora da desconsideração da personalidade jurídica. Deve-se ressaltar que quando a sociedade é utilizada para obtenção de monopólio, a desconsideração pode muito bem ser aplicada para verificar a existência de abuso de poder econômico, com vista à proteção do interesse público (SILVA, 2000, p. 55).

Existem neste dispositivo legal, hipóteses que ensejam a responsabilização do administrador, o que não é caso de desconsideração da personalidade jurídica, como será demonstrado a seguir.

Ocorre ainda a omissão da fraude por parte do legislador, e esta é o "principal fundamento para a desconsideração. A dissonância entre o texto legal e a doutrina nenhum proveito trará à aplicação da legislação antitruste; ao contrário, poderá ser fonte de incertezas e equívocos." (COELHO, 1995, p. 46)

Coelho (1995, p.46-47), ainda tratando do assunto explica que os fundamentos legais para a aplicação da teoria da desconsideração na tutela das estruturas do livre mercado são: a) o abuso de direito; b) o excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social; c) falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade provocados por má administração.

Este autor, no que se refere à lei antitruste, também entende ser realmente correspondente à teoria da desconsideração, somente o elencado na letra a, o abuso de direito. Quanto às outras hipóteses, ele as considera como não sendo casos de desconsideração, conforme já tratado no item 4.2.2 correspondente à desconsideração no CDC.

Dá análise do conteúdo deste item, sem discutir a eficácia e aplicabilidade da lei antitruste, pode-se concluir que a desconsideração da personalidade jurídica neste dispositivo legal comporta os mesmos desacertos encontrados no Código de Defesa do Consumidor, em virtude de algumas impropriedades técnicas utilizadas pelo legislador no artigo 18 da mencionada lei, que visa proteger o livre mercado.

O legislador simplesmente efetuou uma cópia do artigo 28 do CDC sem preocupar-se com algum eventual desacerto que isto poderia trazer, pois conforme já tratado, não são todos os casos elencados pelo artigo, hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.

Ao que tudo indica somente o abuso de direito é o que corresponde à aplicação da teoria da desconsideração, os outros correspondem à responsabilidade do sócio ou representante legal da sociedade por ato ilícito por ele praticado ou responsabilidade por má administração.

4.4 APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO NA LEI DE CRIMES AMBIENTAIS

4.4.1 A unificação parcial da legislação ambiental com o advento da lei 9.605

Antes de entrar em vigor a Lei de Crimes Ambientais, havia uma legislação específica sobre diversos setores do ambiente, ou meio ambiente, como preferem muitos. Eram tuteladas em diferentes leis as águas, fauna, flora, pesca, caça, etc.

Havia a necessidade de uma legislação que tutelasse de uma forma geral, mais eficiente, o ambiente em que vivemos, surgiu então no ano de 1998, a Lei de Crimes Ambientais, como uma resposta às constantes agressões que o ambiente vinha sofrendo, mas esta lei não revogou as legislações anteriores, visto que somente modificou a parte penal.

Elida Séguin e Francisco Carrera (1999, p. 33) explicam que era o grande sonho dos ambientalistas brasileiros a edição de um Código Ambiental, onde ficasse consubstanciada de uma forma sistemática e holística a regulamentação do Direito Ambiental. E a Lei 9.605, de uma forma mais ampla, disciplinou as infrações penais e administrativas, onde as primeiras espécies de infrações ganharam tanta relevância, que este diploma legal ficou conhecido como Lei de Crimes Ambientais.

Quando esta lei entrou em vigor, o Ministério Público e demais órgãos ambientais receberam um instrumento mais forte para combater as infrações contra o ambiente, deste modo a maior beneficiária desta lei, foi a sociedade brasileira.

4.4.2 A desconsideração da personalidade jurídica no artigo 4.º da Lei 9.605

Tullo Cavallazzi filho explica que "[...] na busca da responsabilização civil do dano ambiental, a Lei de Crimes Ambientais também contempla a aplicação da chamada desconsideração da personalidade jurídica" (CAVALLAZZI FILHO, 2001).

Assim, a Lei n.º 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, contém regra expressa inserta no seu artigo 4.º no tocante à desconsideração da personalidade jurídica.

Preceitua o artigo 4.º: poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Não comporta nenhuma dúvida este artigo na questão referente a sua interpretação, pois havendo dano ao meio ambiente, com conseqüente prejuízo, poderá o juiz desconsiderar a pessoa jurídica para atingir os culpados, fazendo-os ressarcir o prejuízo, quando a personalidade jurídica da sociedade for obstáculo para a recomposição do dano ou prejuízos.

Desta feita, não cabe criticar o legislador por confundir a desconsideração com outras figuras do direito societário, impropriedade em que incorreu ao editar o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Antitruste (COELHO, 2002, p. 53).

Mas o obstáculo a que se refere o artigo 4.º, para caracterizar a aplicação da teoria da desconsideração, deve ser criado de forma fraudulenta, isto é, quando houver uma manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial visando escapar da responsabilidade de recompor os prejuízos causados, poderá o magistrado aplicar a teoria.

Isto se deve ao fato de que se assim não fosse interpretado o artigo, este estaria em desacordo com a teoria da desconsideração, assim também se posiciona Fábio Ulhoa Coelho em interessante exemplo:

[...] não se pode, também, interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria maior. Quer dizer, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes. Se determinada sociedade empresária provocar sério dano ambiental, mas, para tentar escapar à responsabilidade, os seus controladores constituírem nova sociedade, com sede, recursos e pessoal diversos, na qual passem a concentrar seus esforços e investimentos, deixando a primeira minguar paulatinamente [...], será possível, por meio da desconsideração das autonomias patrimoniais, a execução do crédito ressarcitório no patrimônio das duas sociedades (COELHO, 2002, p. 53).

Neste sentido também temos a lição de Elida Séguin:

O art. 4.º da LCA expressamente admite a desconsideração da personalidade jurídica sempre que ela for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do Meio Ambiente, conforme valor fixado na execução civil da sentença (art. 20 parágrafo único da LCA). Deve ser comprovada a fraude contra o credor e que a personalidade jurídica esteja sendo usada para salvaguardar os bens dos sócios. Provada a simulação, a disregard theory pode ser aplicada no caso de insuficiência do patrimônio da empresa, pois a responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a da pessoa física, que da atividade da primeira tira proveito (SÉGUIN, 2002, p. 399, grifo do autor).

Deve-se dar atenção para o fato de que o artigo 4.º indica apenas um "norte" ao magistrado, ele traz uma regra geral, pois esta lei não descreve as hipóteses que ensejariam a desconsideração.

Cabe então ao judiciário avaliar o caso concreto, onde a prudência e o discernimento, em conjunto com a com os pressupostos da teoria maior da desconsideração, serão decisivos para a correta aplicação da lei, e, por conseguinte, da teoria da desconsideração.

4.5 A DESCONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

4.5.1 A desconsideração no projeto do Código Civil

É notável o avanço trazido pelo Código Civil de 2002 em vários aspectos, visto que o antigo Código de 1916, totalmente desatualizado em face da nova realidade social brasileira não mais comportava dispositivos que atendessem aos anseios da nova sociedade urbana brasileira.

O antigo código, criado na primeira década do século XX, trazia no seu texto um padrão moral que não mais se adaptava à realidade de hoje, por todos conhecida.

A sociedade, em constante processo de modernização, clamava por leis mais atuais, correspondentes à nova realidade. Então em 18 de junho de 1974 foi publicado o anteprojeto do Código Civil, nos anos de 1995 e 1997 este anteprojeto foi aprovado sucessivamente pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal após muitas emendas, e, finalmente entrou em vigor na forma de lei no ano de 2003.

Surgiu então a Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002, mais conhecida como Código Civil brasileiro, ou Código Civil de 2002.

Dentre muitas das inovações trazidas pelo novo Código Civil podemos destacar o artigo 50, correspondente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A inserção da teoria da desconsideração no projeto do Código Civil pela Comissão Revisora, se deu através de proposta oferecida por Rubens Requião, mas artigo sofreu alterações nesta fase, que após resultou no Código Civil de 2002. Explica, ainda no ano de 1998, Marcelo Gazzi Taddei:

O projeto do novo Código Civil trata da desconsideração em seu art. 50, que recentemente sofreu alteração por meio da emenda do relator do projeto, o Senador Josaphat Marinho, atendento à sugestões de juristas, entre as quais, a enviada por nós, como pesquisador do programa PIBIC/UNESP/CNPq, sob a orientação do Professor Doutor Luiz Antonio Soares Hentz, encaminhada como proposta de emenda modificativa ao art. 50, pois o antigo texto do dispositivo não traduzia devidamente a teoria da norma, desrespeitando o princípio básico da desconsideração, ou seja, a preservação da pessoa jurídica naquilo que não se relaciona com o ilícito praticado (TADDEI, 1998, p. 30-31).

Em seguida Taddei transcreve o antigo artigo 50 do projeto:

‘A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou Ministério Público, decretar-lhe a dissolução. Parágrafo único – Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração’ (TADDEI, 1998, p. 31).

Este artigo original do projeto, não corresponde em parte à formulação da teoria da desconsideração.

A desconsideração não comporta a dissolução da pessoa jurídica, e sim a ineficácia da autonomia patrimonial somente em relação ao ilícito praticado, ou seja, a autonomia patrimonial é afastada no caso concreto momentaneamente.

Outra impropriedade encontrada no dispositivo em questão é o fato de o sócio não ser mencionado como passível de responder com seus bens pela má conduta da pessoa jurídica, somente os administradores ou representantes são citados pelo dispositivo, o que foi corrigido pelo legislador no Código Civil de 2002.

4.5.2 A desconsideração no Código Civil de 2002

O artigo 50 do Código Civil brasileiro de 2002 preceitua o seguinte: em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Conforme ensina Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 53-54), o Código Civil de 2002 não contempla nenhum dispositivo com referência específica à desconsideração da personalidade jurídica, mas contempla uma norma destinada a atender as mesmas preocupações que nortearam a elaboração da disregard doctrine.

Por este motivo, embora não exista a palavra desconsiderar ou desconsiderada, expressa no dispositivo em destaque, como nos outros já estudados, este será tratado como autêntico caso de desconsideração, pois o mesmo embora possua algumas impropriedades, tem o claro objetivo de aplicar a teoria quando presentes os requisitos por ele elencados.

Se assim não fosse este trabalho estaria se furtando ao seu objetivo, que é o estudo da desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro. Por este motivo, é considerada a inserção em nossa Lei Civil, do artigo 50, como a consagração da teoria no direito brasileiro.

Este dispositivo, aliás, foi inspirado na formulação objetivista da teoria da desconsideração proposta por Fábio Konder Comparato, matéria já tratada no item 3.4.2 deste trabalho.

O grande acerto do legislador foi retirar do texto original do artigo 50 do projeto, a possibilidade de ser decretada a dissolução da pessoa jurídica, pois conforme já apontado, não é este o objetivo da desconsideração. Assim também é o posicionamento de Suzy Koury:

[...] como já ressaltamos, a Disregard Doctrine não leva à dissolução da pessoa jurídica (despersonalização), e sim à desconsideração da personalidade jurídica, em casos concretos, para responsabilizar as pessoas físicas ou jurídicas que a tenham desviado da função que o ordenamento jurídico busca alcançar por seu intermédio (KOURY, 2002, p. 144, grifo do autor).

Optou então o legislador, por fazer prevalecer o princípio da preservação da empresa, muito considerado nos dias atuais em virtude da função social que a mesma exerce, o que está em plena consonância com a disregard doctrine.

O que os julgadores devem ter em mente, quando se depararem com requerimento ou pedido de desconsideração efetuado pela parte ou pelo Ministério Público, é o fato de devem aplicar a teoria da desconsideração de acordo com a teoria maior ou subjetiva, onde devem estar presentes os requisitos fraude ou abuso de direito, em vista de que esta formulação doutrinária corresponde a uma aplicação mais justa da teoria, pois se assim não fosse, estaria sendo comprometido o próprio instituto da pessoa jurídica, que traz enorme impulso ao desenvolvimento da economia.

Esta também é a postura doutrinária emitida por Fábio Coelho:

Por outro lado, nas situações abrangidas pelo art. 50 do CC/2002 e pelos dispositivos que fazem referência à desconsideração, não pode o juiz afastar-se da formulação maior da teoria, isto é, não pode desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores sociais. A melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre a desconsideração [...], é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da pessoa jurídica (COELHO, 2002, p. 54).

Não poderia ser mais acertada a posição de Fábio Coelho, pois se os magistrados brasileiros, na ânsia de fazer justiça (e diga-se, a justiça para um pode ser a ruína de vários outros que nada contribuíram para o prejuízo suportado pelo requerente à desconsideração), aplicarem ao seu alvedrio a teoria sem se preocupar com os pressupostos da teoria maior, ocorrerá, conforme já supracitado, um desvirtuamento do instituto da pessoa jurídica, com conseqüente fuga de investimentos no setor econômico.

Este fenômeno ocorrerá basicamente pelo fato de que o empreendedor, não mais estará disposto a arriscar seu capital em um empreendimento que não seja demasiadamente seguro, o que é raríssimo no Brasil atualmente em virtude da intensa instabilidade econômica.

Outra questão importante a ser tratada no que alude à desconsideração prevista no artigo 50 é a hipótese de terceiros efetuarem o pedido de desconsideração quando se sentirem prejudicados pelo uso fraudulento ou abusivo da sociedade.

Quanto a esta hipótese, o artigo 50 é claro quando expressa: pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, então, os terceiros, pelo menos expressamente, não estão legitimados a fazer pedido de desconsideração visando estender a responsabilidade aos sócios ou administradores.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta monografia resulta de um trabalho elaborado através de pesquisa bibliográfica, optou-se por não utilizar nenhum outro método que não este, porque os livros ainda são a melhor forma de perpetuar o conhecimento.

É indiscutível a facilidade que os outros meios ou fontes de conhecimento proporcionam ao o estudo de determinada matéria, mas são muito inconstantes e as vezes de procedência duvidosa. Exemplo disso é a avalanche de artigos jurídicos publicados na www, muitos de uma qualidade questionável. Este método de pesquisa tornou mais alto sem dúvida o grau de dificuldade para elaborar esta monografia, mas em compensação tornou mais confiável e de melhor qualidade o conteúdo aqui apresentado.

Com a realização deste estudo, chega-se à conclusão que a legislação brasileira adotou expressamente a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em quatro diplomas legais, e os dispositivos a ela referentes nestes diplomas comportam algumas impropriedades, que demonstradas ao longo do trabalho, não se vinculam à formulação original da disregard doctrine.

A inserção da desconsideração da personalidade jurídica em nosso direito positivo, visando uma melhor proteção aos direitos da sociedade em geral, merece aplausos, mas deve-se ressaltar que se poderia ter colocado a desconsideração dentro dos moldes originais da teoria, o que certamente não geraria tantas dúvidas ao judiciário e aos operadores do direito em geral.

Deve o magistrado tomar muito cuidado na aplicação da lei ao caso concreto, pois a interpretação dos artigos, referentes à desconsideração, neste trabalho mencionados, pode causar dúvidas conforme o que já foi aqui analisado.

Portanto recomenda-se prudência e cautela na aplicação da teoria, pois seu objetivo não é desvirtuar o instituto da pessoa jurídica, pelo contrário, a desconsideração é totalmente com ela compatível, o magistrado então somente em casos excepcionais, estando presentes a fraude e o abuso de direito deverá utilizar deste instituto para satisfazer a pretensão de quem restou frustrado no recebimento de seu crédito.

Se assim não for, e restarem abalados os princípios da autonomia patrimonial e do instituto da pessoa jurídica, ocorrerá uma crise de insegurança jurídica que nada trará de benefícios à sociedade, pelo contrário, o que poderá haver é uma fuga de investimentos em vários setores da economia, visto que é justamente a possibilidade de separação patrimonial entre sócio e sociedade, limitando os riscos inerentes a qualquer atividade ou empreendimento que vise lucro, o maior atrativo que leva o homem a investir em determinado setor do mercado.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REALI, Ronaldo Roberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro. (disregard of legal entity). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 266, 30 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5008. Acesso em: 19 abr. 2024.