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A função social da propriedade na obra de John Locke

A função social da propriedade na obra de John Locke

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A obra de Locke desempenhou um papel fundamental para que o direito de propriedade fosse reconhecido como fundamental. Também coube ao autor o pioneirismo em estabelecer limites a esse direito, de modo que o exercício individual não prejudicasse terceiros.

RESUMO: John Locke, ideólogo do liberalismo e teórico do contrato social, é considerado como precursor da transformação da propriedade em direito fundamental, passível de proteção pelo Estado. Coube a Locke também o papel de pioneiro no estabelecimento de limites ao uso da propriedade. Este artigo apresentou alguns elementos do pensamento e obra de John Locke, relacionando-os com os fundamentos filosóficos do moderno conceito de função social da propriedade. Este artigo também discutiu o conceito de função social da propriedade, destacando os dispositivos presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de Propriedade, Direito Natural, Limites, Função Social, John Locke.


1.    INTRODUÇÃO

Mesmo um importante teórico do liberalismo e defensore do Estado Liberal como John Locke, médico e filósofo inglês, ainda no século XVII, já vislumbrava limites ao direito de propriedade, considerado absoluto pela tônica do liberalismo.

Para entender a fundação social da propriedade, bem como a limitação constitucional do direito à propriedade, como se este fosse um direito absoluto, faz-se necessária uma viagem no tempo. Urge buscar nas fontes do liberalismo clássico e, mais especificamente, na teoria política de John Locke, os fundamentos filosóficos da propriedade (BOZZI, 2015).

Segundo Bobbio (1992, p. 5), “os direitos do homem são direitos históricos que nascem e se modificam conforme as condições históricas e o contexto social, político e jurídico em que se inserem”. Assim, o direito de propriedade também se modificou bastante no decorrer dos anos (BULOS, 2015), sendo um conceito dinâmico que acompanhou a evolução da sociedade (LIMA; COVOLAN, 2014).

Ao longo da história caminhou-se da ideia de propriedade predominantemente coletiva, bem comum de todos, para um conceito majoritário de direito individual e absoluto, chegando-se à concepção atual em que, embora assegurada individualmente, deve atender a sua função social (TAVARES, 2006, p. 150 apud LIMA; COVOLAN, 2014, p. 391).

Considera-se a função social da propriedade como parte indissociável do direito de propriedade e importante limite ao seu exercício que, no Estado Contemporâneo não é mais absoluto (SOARES, 2006). Encontra-se positivada na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), influindo na utilização da propriedade de maneira geral, seja ela urbana ou rural, bem como na sua utilização econômica.

Locke (1994) foi um dos pioneiros na definição da propriedade como direito fundamental do indivíduo, além de ser um dos primeiros também a propor limites à sua utilização. Dessa forma, parte da literatura especializada identifica alguns pontos da obra e pensamento de Locke como fundamentos filosóficos do moderno conceito da função social da propriedade. Já que ambos, de certa forma, procuram descaracterizar o direito de propriedade como absoluto.

O objetivo do presente trabalho é buscar, a partir da análise da doutrina, do ordenamento jurídico e de parte da literatura especializada, construir esse vínculo entre a obra de John Locke e a função social da propriedade. Para isso, far-se-á uma breve apresentação de sua obra, com foco no livro “Dois Tratados sobre o Governo Civil”, além de um esboço sobre a função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro e parte da doutrina. A metodologia utilizada será a pesquisa da literatura especializada, doutrina e legislação, para ratificar ou não essa ligação entre a obra de Locke e a função social da propriedade.

Este trabalho está organizado da seguinte forma: na primeira seção, logo após esta breve introdução, serão apresentados os principais conceitos e elementos do pensamento e obra de Locke (1994). Em seguida, far-se-á breve estudo dos institutos do direito de propriedade e da função social da propriedade, além da construção do vínculo entre esses elementos com a obra de Locke (1994). Por fim, serão apresentadas as principais conclusões obtidas.             


2.    PENSAMENTO E OBRA DE JOHN LOCKE

John Locke[1] (1632-1704) foi médico e filósofo inglês considerado o ideólogo do liberalismo e um dos principais teóricos do contrato social. Entre 1689-1690, Locke publica suas principais obras, destacando-se, para os fins do presente artigo, o livro “Dois tratados sobre o governo civil” (BOZZI, 2015), “a primeira e mais completa formulação do Estado Liberal” (BOBBIO, 2000, p. 59).

No “Primeiro Tratado sobre o Governo Civil”, Locke refuta a teoria do direito divino dos reis. Mas foi o Segundo Tratado, ensaio sobre a origem, extensão e objetivo do governo civil, que o tornou célebre (BOZZI, 2015). Nessa obra, Locke defende que o Estado é criado a partir de um contrato social firmado entre os homens, por meio do qual, eles abrem mão da liberdade absoluta que caracteriza o estado natural, passando a viver no Estado Social (SOARES, 2006).

2.1. O ESTADO DE NATUREZA

Locke afirma que a existência do indivíduo é anterior ao surgimento da sociedade e do Estado (BOZZI, 2015). Para compreender o poder político e sua primeira instituição, ou seja, o Estado, é preciso entender a condição em que os homens viviam antes dele (LOCKE, 1994). Essa condição é chamada de Estado de Natureza, sendo caracterizada por liberdade e igualdade absolutas. 

Liberdade absoluta porque, no estado de natureza, os homens são absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas, independente da autorização de qualquer outra pessoa (LOCKE, 1994). A Igualdade absoluta é caracterizada pela ausência de subordinação a qualquer outro homem, exceto se Deus, criador e senhor de todos, tivesse assim se manifestado (LOCKE, 1994). Trata-se de um estado de paz, harmonia e concórdia (BOZZI, 2015). Essa é uma visão diferente da proposta por Hobbes, que descreve o estado de natureza como um ambiente de guerra e egoísmo (BOZZI, 2015).

Entretanto, Locke (1994) adverte que o Estada de Natureza, apesar de ser caracterizado por uma liberdade absoluta, não e um estado de permissividade. Há certos limites estabelecidos pelo Direito Natural (ou Lei da Natureza ou Lei Natural), responsável por criar e garantir os direitos fundamentais dos homens, tais como: liberdade, igualdade e propriedade (OLIVEIRA; FARIAS, 2006). Para Bobbio (1998, p. 164 apud OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 345), a lei natural “refere-se ao conjunto de regras de conduta que a razão encontra e propõe”. 

Para Locke (1994), o Direito Natural é caracterizado por ser: (1) Imposto a todos e revelado pela razão, (2) Inteligível e claro para toda criatura racional e (3) mais claro até que as leis positivas da comunidade civil, pois, a razão é mais fácil de ser compreendida. “As leis da natureza (...) não perdem a sua validade, devendo ser respeitadas mesmo após a instituição do governo civil, uma vez que funcionam como espécie de limite ao poder político” (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 346).

Pela Lei da Natureza, não é permitido que o homem destrua a sua própria pessoa ou qualquer criatura, exceto se assim exigir um objetivo mais nobre que é a sua própria conservação (LOCKE, 1994). Como não há hierarquia entre os homens, não é possível conceber que uma pessoa possa destruir a outra, ou servir de instrumento às suas necessidades, papel reservado às ordens inferiores da criação (LOCKE, 1994). “Sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens” (LOCKE, 1994, p. 36).

Para Locke (1994), de nada valeria a lei da natureza, assim como todas as outras leis, se não houvesse ninguém com poder de executar a lei para proteger os inocentes e refrear os transgressores. No Estado de Natureza, o direito de punir aqueles que violarem a lei da natureza, a título de prevenção, pertence a todos. Isso porque, nesse estado, de perfeita igualdade, não há superioridade ou jurisdição de um homem sobre o outro, de modo que, o que um pode fazer para garantir a lei da natureza, todos devem ter o direito de fazê-lo.

Entretanto, Locke (1994) adverte que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, pois, acabarão sendo parciais. As punições irão longe demais, influenciadas por sentimentos de paixão e vingança. Com “a ausência de um ‘juiz’ imparcial para julgar as controvérsias, corria-se o risco da instalação de um verdadeiro caos, momento em que se sentiu a necessidade da criação de um estado civil” (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 348). Para corrigir as imperfeições do Estado de Natureza, os indivíduos, por meio do contrato social, uniram-se para constituir a sociedade civil (LOCKE, 1994 e BOZZI, 2015).             

2.2. PROPRIEDADE

Para Bobbio (2000, p. 103), há duas correntes de justificativa a propriedade privada: a propriedade é um direito natural, que nasce ainda no Estado de Natureza antes do surgimento do Estado; a propriedade é consequência do contrato social e da formação da sociedade civil. Entre os defensores da propriedade como fruto da sociedade civil, estavam Hobbes e Rousseau (SOARES, 2006). Já Locke defendia que a propriedade era um direito natural (SOARES, 2006, p. 2).

Dessa forma, para Locke (1994), a propriedade é um direito natural, fundamentado na lei da natureza, sendo sinônimo de vida, liberdade e bens. Por isso, ele defendia que no Estado de Natureza, os homens, por serem dotados de razão e conhecedores da Lei da Natureza, já usufruíam da propriedade, independente da existência de contrato social e da sociedade civil. Por ser natural, a propriedade é um direito que deve ser respeitado por todos, inclusive pelo Estado, uma vez que é um direito advindo da lei da natureza e, portanto, anterior a ele. 

Assim, o Estado, por meio do poder soberano, não pode intervir na propriedade do indivíduo sem o seu consentimento (LOCKE, 1994). Trata-se de um direito inerente à própria condição humana e independente do poder soberano do Estado (SOARES, 2006). Negar o direito natural a propriedade é atentar contra a dignidade humana (LIMA; COVOLAN, 2014).

Para Locke, os indivíduos abandonaram o estado de natureza e consentiram na criação da sociedade civil para preservar a propriedade, possibilitando seu gozo com segurança e tranquilidade (BOZZI, 2015; SOARES, 2006). E esse deve ser o principal objetivo do governo.

O grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos. (...) A preservação da propriedade é o objetivo do governo, e a razão por que o homem entrou em sociedade (LOCKE, 1994, p. 71 e 73).

Inicialmente, Locke (1994) afirma que todas as coisas foram criadas por Deus e disponibilizadas à humanidade para garantir sua subsistência e conforto, sendo, portanto, propriedade de todos.

Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente produz, assim como os animais (..) que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são produção espontânea da natureza (...), bens se apresentam em seu estado natural (LOCKE, 1994, p. 42).

Entretanto, Locke defende a propriedade privada e para ele, o fundamento da propriedade é o trabalho (BOZZI, 2015 e LOPES, 2006). Essa é a parte mais original do seu ensaio (OLIVEIRA; FARIAS, 2006). Como defensor do liberalismo político, Locke defende a propriedade como instrumento para a subsistência do indivíduo, adquirida por meio do trabalho (OLIVEIRA; FARIAS, 2006).

Para Locke (1994), todos são proprietários. Mesmo aqueles que não possuem bens materiais são proprietários de suas vidas, seus corpos, seu trabalho, sua capacidade e, portanto, dos frutos do seu trabalho (BOZZI, 2015). Como o trabalho do corpo pertence ao próprio indivíduo, pertence-lhe também tudo aquilo que for resultado do trabalho. Dessa forma, o trabalho dá início ao direito de propriedade em sentido estrito (bens, patrimônio), individual e privado (BOZZI, 2015).

Portanto, se o indivíduo retira um objeto do Estado de Natureza e lhe acrescenta o seu trabalho, este objeto passa a ser sua propriedade (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). “Ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural, o homem tornava-a sua propriedade ‘privada’, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens” (BOZZI, 2015). “Assim, esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou; admite-se que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho, mesmo que antes ela fosse direito comum de todos” (LOCKE, 1994, p. 43).

Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que exclui o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou (LOCKE, 1994, p. 42).

Assim, a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles (LOCKE, 1994, p. 43).             

2.3. LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE

Para Locke (1994), o homem é livre para se apropriar dos frutos da terra mediante o trabalho, desde que deixe o suficiente para garantir a subsistência dos demais indivíduos. Toda a sua argumentação se baseia na conservação da subsistência. Outra vedação diz respeito à proibição do desperdício, que seria contrário à lei natural. O que excede ao necessário para garantir a própria sobrevivência pertence aos outros (LOPES, 2006).

A mesma lei da natureza que nos concede (...) a propriedade, também lhe impõe limites. ‘Deus nos deu tudo em abundância’ (1Tm 6,17), e a inspiração confirma a voz da razão. Mas até que ponto ele nos fez a doação? Para usufruirmos dela. Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem (..) para sua existência sem desperdício, eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade. Tudo o que excede a este limite (...) pertence aos outros. Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem (LOCKE, 1994, p. 43).

Há, portanto, duas limitações ao direito de propriedade: abarca somente aquilo obtido mediante o trabalho e somente o que for necessário e suficiente para garantir ao homem sua sobrevivência e conforto (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).

"A extensão de terra que um homem pode arar, plantar, melhorar e cultivar e os produtos dela que é capaz de usar constituem sua propriedade. Mediante seu trabalho, ele, por assim dizer, delimita parte do bem comum” (LOCKE, 1994, p. 43). Como o direito de propriedade abrange apenas aquilo que for conquistado por meio do trabalho, naturalmente, estabelece-se um limite à extensão da propriedade, já que é fixada pela capacidade limitada de trabalho do ser humano (BOZZI, 2015). Assim, não é possível ao ser humano se apropriar de uma extensão de terra maior do que sua capacidade de trabalho lhe permite cuidar (SOARES, 2006).

A medida da propriedade natural foi bem estabelecida pela extensão do trabalho do homem e pela conveniência da vida. Nenhum trabalho humano podia subjugar ou se apropriar de tudo; seu prazer só podia consumir uma pequena parte; dessa maneira, era impossível para qualquer homem usurpar o direito de outro, ou adquirir para uso próprio uma propriedade em prejuízo de seus vizinhos (LOCKE, 1994, p. 44).


3.    DIREITO DE PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

“O direito de propriedade é a expressão jurídica da propriedade. Revela o poder atribuído pela Constituição para o indivíduo usar, gozar e dispor da coisa” (BULOS, 2015, p. 615). Está consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXII[2], no rol dos direitos fundamentais (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Seu objetivo é impedir “intervenções desprovidas de fundamentação constitucional em seu âmbito de proteção” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42).

Da mesma maneira que o define, a Constituição também o limita por meio de restrições diretas e indiretas que, dessa forma, não pode ser considerado um direito absoluto (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Uma dessas restrições diz respeito ao princípio da função social da propriedade, consagrado no artigo 5º, XXIII[3], também no rol dos direitos fundamentais. Assim, a Constituição garante a propriedade, desde que atendida sua função social (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).

Inicialmente, a carta magna brasileira (BRASIL, 1988) estabeleceu, em seu artigo 5º, XXIII, que, de forma genérica, a propriedade precisa atender sua função social. Em outro ponto do texto constitucional, determina sua incidência sobre a propriedade inserida em um contexto econômico (art. 170, III), a propriedade urbana (art. 182, §2º) e a propriedade rural (art. 184) (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399). 

O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada (STF, ADIn 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23-4-2004).

3.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O direito de propriedade, sobretudo após o advento do Estado Democrático de Direito, não pode ser considerado isolado do princípio da função social da propriedade (OLIVEIRA; FREITAS, 2013 e LIMA; COVOLAN, 2014). Isso quer dizer que a função social é elemento integrante do direito de propriedade (SOARES, 2006) e que o direito de propriedade não é absoluto (LIMA; COVOLAN, 2014). Assim, a responsabilidade pela construção de uma sociedade livre, justa, solidária e formada por membros autônomos e iguais, passa ser compartilhada entre todos os cidadãos (LIMA; COVOLAN, 2014 e LOPES. 2006).

Bulos (2015, p. 617) indica que “a função social da propriedade é a destinação economicamente útil da propriedade, em nome do interesse público”. Para o autor, esse instituto, ao limitar o exercício do direito de propriedade, visa otimizar sua utilização. Isso porque impedirá que a propriedade seja “utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade”.

Segundo Bozzi (2015), a Constituição de 1988 trouxe a função social da propriedade para o centro da teoria política constitucional. Dessa forma, a constituição só protege a propriedade que cumprir sua função social, de modo que o exercício do direito à propriedade seja compatível com sua utilidade social (SOARES, 2006). Trata-se do uso racional da propriedade, que pode ser entendido como uma utilização não nociva ao bem-estar geral da sociedade (ZIMMERMANN, 2004, p. 691 apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3).

A propriedade é vista como meio de realização humana (BOZZI, 2015). O princípio da função social da propriedade contribui para humanizar o capitalismo, efetivar os direitos humanos, a cidadania, a solidariedade, a igualdade material e a dignidade da pessoa humana, segundo os ditames da justiça social (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 385). 

Mesmo sendo “instituto do direito privado por excelência, adquire conotação social” (SOARES, 2006, p. 14) e passa a ser “marcada por dupla função“ (CAVEDON, 2003, p. 50 apud SOARES, 2006, p.10): atender às necessidades particulares do proprietário e promover o bem comum (SOARES, 2006, p. 12). Isso significa a conciliação entre os interesses individual do proprietário e social da coletividade, sem que se pretenda um retorno às formas coletivistas características da antiguidade ou a implementação de um ideal socialista (SOARES, 2006). Os interesses individual e coletivo podem e devem ser harmonizados.

A função social da propriedade diz respeito ao estabelecimento de uma “finalidade superior” para a propriedade, que vai além do “interesse exclusivo do proprietário” e da sua mera “utilização individual” (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3). Soares (2006) caracteriza a condição do proprietário como um “poder-dever”. Isso significa que ao mesmo tempo em que terá o poder de fazer uso de seus bens para atender seus interesses e necessidades individuais, o proprietário também terá o dever de adequar tal uso aos interesses e necessidades da sociedade. Para Comparato (1986, p. 75 apud LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399), esse dever é inclusive “sancionável pela ordem jurídica”.

“O principio da função social da propriedade autoriza a imposição, dentro de certos limites, de medidas restritivas à garantia” do direito de propriedade (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75). “Pela função social, a lei pode impor encargos suportáveis, mas não excessivos ao direito de propriedade, preservando a sua essência” (FALCÃO et al., 1990, p. 236 apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3).

Já Lopes (2006), propõe que a função social impõe limitações negativas e positivas ao direito de propriedade. As limitações negativas agem sobre o exercício do direito, limitando as prerrogativas do proprietário de usar, gozar e dispor do bem e coibindo condutas antissociais (LOPES, 2006). Já as limitações positivas dizem respeito a um comportamento exigido do proprietário, uma conduta que busque a realização do interesse social (LOPES, 2006).

A Constituição de 1988 estabeleceu “uma economia de livre mercado de natureza capitalista”, a partir da propriedade privada dos meios de produção e da livre iniciativa econômica privada (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). Entretanto, também elencou no artigo 170 “numerosos princípios limitando e condicionando o processo econômico, no intuito de direcioná-lo a proporcionar o bem-estar social ou melhoria da qualidade de vida” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). Um desses princípios é a função social da propriedade, assegurado no inciso III do artigo 1704 da Constituição.

De fato, o constituinte repetiu nos incisos II e III do artigo 170, a mesma lógica adotada nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição (BRASIL, 1988) (LIMA; COVOLAN, 2014). No inciso XXII institui-se o direito de propriedade, para limitá-lo pela função social no inciso seguinte. Da mesma maneira, no inciso II do artigo 170, a Constituição (BRASIL, 1988) estabelece o direito de propriedade, para limitá-lo, novamente, com a função social, no inciso seguinte. 

A Constituição disciplina sobre a função social da propriedade urbana no artigo 1865 e da propriedade rural no artigo 182, § 26. Propriedades que não cumprem sua função social estão sujeita a desapropriação, mediante o pagamento das respectivas indenizações, conforme estabelecido no artigo 182, § 4º, IlI7 e artigo 1848 (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75). 

A luz desses dispositivos constitucionais convém destacar que o constituinte deu tratamento ligeiramente diferente para a função social das propriedades urbanas e rurais (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). Enquanto que para a propriedade rural, o legislador constituinte definiu o exercício da função social, no caso da propriedade urbana, isso ficou a cargo do legislador infraconstitucional (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). Nesse cenário, destaca-se o artigo 399 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), que estabelece o exercício da função social da propriedade urbana. “É impossível dissociar a função social (...) da propriedade urbana, dos direitos fundamentais e garantias relativas à dignidade da pessoa humana, à vida, à saúde, a um ambiente sadio e sustentável” (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 4).

3.2. JOHN LOCKE E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Locke é considerado como precursor da transformação da propriedade em direito fundamental, passível de proteção pelo Estado, assim como a vida e a liberdade. Essa ideia se concretizou de fato com a Revolução Francesa e a elaboração do Código Napoleônico, que se tornou um marco histórico na mudança da concepção da propriedade, considerada, a partir de então, um direito inviolável e sagrado, apesar de marcadamente individualista (OLIVEIRA; FARIAS, 2006).   

Inúmeras codificações foram elaboradas posteriormente ao redor do mundo tendo como fundamento o Código Napoleônico. Dessa forma, a propriedade passou a constar entre os direitos constitucionalmente protegidos, garantindo aos indivíduos sua proteção contra os demais particulares e também contra o abuso do poder público (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 359).

Locke, Adam Smith, Immanuel Kant, além de outros entusiastas do Estado Liberal, embora defendessem a propriedade individual, também não desconsideravam seus aspectos éticos e morais e a harmonia social (LOPES, 2006). Pode-se afirmar que Locke é um dos que lança os fundamentos filosóficos da função social da propriedade, ao estabelecer limites para a propriedade individual. 

Locke (1994) foi pioneiro ao estabelecer limites ao direito de propriedade. Para o autor, a propriedade era limitada pela capacidade de trabalho do homem e pela possibilidade de retirar apenas o suficiente para garantir-lhe o conforto e a sobrevivência, deixando o necessário para a subsistência dos demais indivíduos.

Uma vez que a propriedade é um direito natural extensível, portanto, a toda a humanidade, um indivíduo, no exercício desse direito não pode prejudicar aos demais. Isso mostra a preocupação de Locke para com o interesse coletivo, ideia bastante alinhada com o moderno conceito de função social da propriedade.

Para Bozzi (2015), ao afirmar que o trabalho é o elemento que fundamenta a propriedade, Locke lança as bases da função social da propriedade, propondo limites à utilização de maneira absoluta à propriedade privada.

Convém lembrar também que, para Locke (1994), os limites ao direito de propriedade citados acima advém do direito natural. Dessa forma, é anterior ao Estado, universal e imutável, estando vigente ainda hoje, de modo que o próprio Estado deve respeitá-lo. Justifica-se, assim, a inclusão dos limites ao direito de propriedade por meio da função social, nos textos constitucionais. “A mesma regra de propriedade, ou seja, que cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar, ainda permaneceria válida no mundo sem prejudicar ninguém” (LOCKE, 1994, p. 45).

Por fim, vale destacar que a lei natural proíbe o desperdício:

Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de serem colhidos e consumidos, esta parte da terra, não importa se estivesse ou não cercada, podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro (LOCKE, 1994, p. 45).


4.    CONCLUSÃO

O presente artigo analisou o princípio da função social da propriedade, buscando fundamentos para esse instituto na obra de John Locke. A função social da propriedade desempenha um importante papel na humanização da propriedade privada, buscando harmonizar os interesses individuais do proprietário com benefícios coletivos extensíveis a toda sociedade. A proposta é compartilhar entre todos a responsabilidade pela construção de uma sociedade justa, livre e solidária (LIMA; COVOLAN, 2014), atribuindo aos proprietários um poder-dever (SOARES, 2006) que além de restrições que visam coibir o abuso no exercício do direito de propriedade, impõem também uma conduta obrigatória (LOPES, 2006).

A obra de Locke (1994) desempenhou um papel fundamental para que o direito de propriedade fosse reconhecido como direito fundamental. Também coube ao autor o pioneirismo em estabelecer limites a esse direito, de modo que o exercício individual não prejudicasse os demais indivíduos. A partir daí, foi possível estabelecer uma relação entre sua obra e a função social da propriedade.

Observou-se que, parte da literatura especializada relaciona partes da obra e pensamento de Locke como fundamento filosófico do moderno conceito da função social da propriedade. Já que, ambos, descaracterizam o direito de propriedade como absoluto. A partir do estudo de parte da literatura, da doutrina, do ordenamento jurídico e da obra de Locke (1994), pode-se concluir que Locke (1994) lançou os fundamentos filosóficos do instituo da função social da propriedade. 

O presente estudo apresentou como limitação o fato de ter analisado apenas pequena parte da obra de Locke, notadamente o livro “Dois Tratados sobre o Governo Civil”, e da literatura especializada. Seria oportunamente recomendável um estudo mais extensivo de mais artigos e doutrinas. O presente artigo focou na análise de artigos que faziam relação explícita à relação entre a obra de Locke e o instituto da função social da propriedade. 

Como sugestão de trabalhos futuros, seria interessante comparar a posição de Locke sobre propriedade e a sua função social, com a obra de outros contratualistas como Hobbes e Rousseau. Outra opção seria analisar o instituto da função social da propriedade no direito comparado por meio de um estudo horizontal. Também seria oportuna uma pesquisa que buscasse referências implícitas entre o pensamento de Locke e a função social da propriedade.


5.    REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992.

BOBBIO. Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Editora Mandarim, 2000.

BOZZI, Claudemir Lopes. John Locke e o Conceito de Propriedade. Revista Eletrônica da Faculdade de Direto de Alta Floresta, Alta Floresta, v. 7, n. 1, 2015.Disponível em:<http://ienomat.com.br/revista/index.php/judicare/article/view/138/276>. Acesso em:10 maio 2016

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de julho de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 11 maio 2016.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.

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Acesso em: 06 maio 2016.


Notas

[1] JOHN LOCKE. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke > Acesso em: 03 jun. 2016.

[2] “Art. 5º (...) XXII – é garantido o direito de propriedade” (BRASIL, 1988).

[3] “Art. 5º (...) XXIII – a propriedade atenderá sua função social” (BRASIL, 1988). 

4. “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – Soberania Nacional;

II Propriedade Privada;

III Função Social da Propriedade; 

IV: Livre Concorrência;

V Defesa do Consumidor;

VI Defesa do Meio Ambiente;

VII Redução das desigualdades Regionais e Sociais; 

VIII Busca do Pleno Emprego;

IX Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país” (BRASIL, 1988).

5. “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I aproveitamento racional e adequado;

II utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (BRASIL, 1988).

6.  “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (BRASIL, 1988).

7.  “Art. 182 (...) § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: (...)III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais” (BRASIL, 1988).

8.  “Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei” (BRASIL, 1988).

9.  Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.


Autor

  • Giordano Alan Barbosa Sereno

    Pesquisador-Tecnologista em Informações e Avaliações Educacionais no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Bacharel em Ciência da Computação no Centro Universitário de Brasília (UNICEUB). Especialista em Engenharia de Software pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Mestre em Gestão do Conhecimento e Tecnologia da Informação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Acadêmico de Direito pela Universidade de Brasília (UnB)

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERENO, Giordano Alan Barbosa. A função social da propriedade na obra de John Locke. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4762, 15 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50562. Acesso em: 19 abr. 2024.