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Os direitos patrimoniais disponíveis e as regras de julgamento na arbitragem

Os direitos patrimoniais disponíveis e as regras de julgamento na arbitragem

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Constituindo tema dos mais relevantes na solução de conflitos, sem a intervenção jurisdicional, o procedimento de arbitragem, de longa tradição em paises mais desenvolvidos, ganha certa estatura no Brasil e, em geral, no ambiente sul americano, mormente nas nações vinculadas ao Mercosul, tanto pelas experiências frutuosas que já são consignadas, quanto pelo debate doutrinário que se empreende.

Em nosso sistema jurídico positivo, a arbitragem entrou em foco, em 1996, com a edição da Lei 9.307, e no Mercosul com a assinatura do Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional de 1998 [1], diplomas que significaram o acolhimento desses procedimentos para dirimir controvérsias, muito embora ainda não difundido com a extensão que se poderia esperar.

A proposta deste estudo é o exame de dois temas em relação à arbitragem, um, versando os direitos suscetíveis de solução arbitral, e o segundo, concernente às normas que podem reger o procedimento.


A questão dos direitos patrimoniais disponíveis que podem constituir matéria de arbitragem

A Lei 9.307/96 indica a teor de seu art. 1º, duas condicionantes para que as partes, envolvidas em relação jurídica, possam pactuar a submissão de eventuais conflitos à arbitragem, a saber, que sejam capazes de contratar e que o litígio seja pertinente a direitos patrimoniais disponíveis.

A capacidade para contratar não nos leva a indagações de maior relevo, pois que, nesse caso, a remissão necessária será às normas do Código Civil [2], caracterizando a figura do "agente capaz" a que alude o art. 104 da codificação vigente, tratando de um dos requisitos de validade do negócio jurídico.

Todavia, maior interesse colhe, no sentido de analise, o indicativo da segunda condição de habilitação à arbitragem, focada quanto ao seu objeto, isto é, litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. De forma sintética, parece possível afirmar, de logo, que o direito é disponível, quando é possível de ser transacionado, vale dizer, seu titular pode dispor sobre o direito que detém. Nessa simplificação, admite-se, portanto, uma categorização entre direitos disponíveis e indisponíveis, esses últimos dispostos em uma esfera tal, geralmente de natureza pública, que obsta – em principio – a renúncia, a cessão, a transferência, ou, genericamente, qualquer espécie de transação.

Contudo, a lei de regência da arbitragem, como se nota, não se limita ao quesito de disponibilidade do direito para admiti-lo ao procedimento arbitral, mas, acresce o conceito de patrimonialidade, portanto, nessa linha, seria admissível considerar-se que, de plano, exclui-se do campo da mediação os direitos não disponíveis que não apresentam, em geral, conteúdo patrimonial, como, por exemplo, os direitos individuais e coletivos, ditos fundamentais [3].

De sua vez, o sobredito conteúdo patrimonial se expressa como conectado a uma percepção valorativa, em sentido econômico-financeiro, do direito invocado, usualmente vinculado às relações jurídicas de ordem contratual. [4] Todavia, tanto os direitos disponíveis, quanto os indisponíveis, em geral, podem apresentar-se ou não com expressão patrimonial, pensando-se, aqui, para exemplificar, em determinados direitos trabalhistas que não admitem transação, mas, explicitam – por evidente – substrato valorativo patrimonial.

Nesse sentido, sempre que cessada a indisponibilidade do direito, isto é, admitida a transação de seu valor econômico, passa-se ao cabimento pleno da arbitragem. [5]

Interessante questão, neste passo, pertine aos direitos de que são titulares as entidades estatais, logo de Direito Público, no tocante à possibilidade de transação e, de conseqüência, de submissão ao juízo arbitral.

É de relevância notar, neste passo, que a categorização do direito, sujeito à arbitragem, em termos de sua disponibilidade, suporta em tese a constitucionalidade da Lei 9.307/96, pois que, no dizer de Demócrito Reinaldo Filho [6], admitida a transação no direito positivo, como expressa o Código Civil [7], já se tem forma similar ao do procedimento arbitral, desde que podem as partes, por convenção, ajustarem solução para eventual aspecto controvertido do negócio jurídico que entabularam, e – máxime – porque a transação, também, só pode versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, vale dizer, disponíveis. [8]


As regras da arbitragem As normas de direito

Compreendida a questão alusiva aos direitos que podem se sujeitar à arbitragem, passamos – doravante – ao exame das normas de regência do próprio procedimento arbitral.

Desde logo, denote-se que, diversamente da prestação jurisdicional típica, esta subordinada, compulsoriamente, ao texto jurídico positivo, e, subsidiariamente, aos princípios gerais de direito, à analogia e aos costumes, nas hipóteses de lacunas ou obscuridade da lei [9], a arbitragem poderá optar, a critério das partes, que a adotem nos negócios jurídicos pactuados, ou pelas "regras de direito" ou pelos parâmetros da eqüidade.

Logo, nessa perspectiva, o juízo arbitral, em termos de sua atuação, poderá ou se pautar pelas disposições do ordenamento positivo, ou, consoante a vontade expressa pelas partes, mediante critérios eqüitativos.

Assim do disposto no art. 2º e em seus parágrafos da lei de arbitragem, colhe-se:

Art. 2° - A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.

1° - Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.

2° - Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

Logo, o principio central da liberdade de estipulação das partes, núcleo da arbitragem, leva à admissibilidade da convenção do juízo arbitral regido pelo direito ou pelo exame e decisão dos árbitros em termos de eqüidade.

Se optarem os convenentes pelas aludidas "regras de direito", os parágrafos do art. 2º da Lei 9.307/96 demarcam, nitidamente, os lindes de tal alternativa, estatuindo, a rigor, duas balizas principais: uma, que a escolha da lei aplicável é livre, condicionada – apenas – pelos "bons costumes" e pela "ordem pública"; a segunda, que admite o recurso aos "princípios gerais de direito", aos "usos e costumes", e às "regras internacionais de comércio". [10]

É interessante, obviados os termos da lei de regência da arbitragem, examinar – em se adotando na cláusula arbitral a solução pelas "regras de direito" – o enunciado sobre os limites referentes aos bons costumes e à ordem pública, os quais não podem ser afrontados pelas normas escolhidas dentro do direito positivo.

Primeiramente, ressalte-se, que parece haver uma espécie de contradição em termos quanto ao preceptivo do diploma legal, em foco, pois que, se os critérios eleitos são de "direito", militaria – desde logo – presunção de que não podem ser, essencialmente, contrários aos sobreditos bons costumes e à ordem pública. Porém, o texto do § 1º do art. 2º, ao nosso ver, salva-se de qualquer contradição, desde que seja percebido, no sentido de obstar que as normas legais, determinadas pelas partes convenentes, como parâmetros da arbitragem, não sirvam a propósitos que colidam, direta ou indiretamente, com o "status quo" vigente, seja no plano costumeiro, seja no plano das estipulações de ordem pública. Nesse último caso, só para exemplificar, a utilização de comandos normativos alienígenas, eventualmente desconformes com o sistema jurídico positivo nacional, ou, a aplicação de normas legais locais, porém, violando princípios ou disposições constitucionais. [11]

Em segundo lugar, a arbitragem, conforme as "regras de direito", se assim convencionado, pode – ainda – valer-se dos chamados princípios gerais de direito, ou seja, do repertório de conceitos jurídicos, extraídos do sistema positivo, dos usos e costumes, e das regras internacionais de comércio. Quanto aos usos e costumes, é de se notar, o novo Código Civil, "ex vi" do art. 113, traz remissão à interpretação dos contratos "conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", positivando, dessarte, que os costumes locais podem se constituir em fonte autentica do direito relativamente à configuração negocial. [12]

Em terceiro lugar, com referencia as "regras de direito", convém frisar, reiterando as questões sobre matérias de ordem pública, relevante advertência sobre procedimentos de arbitragem, versando temas ou matérias vinculadas à atividades, objeto de regulação estatal, sendo certo que, nesses casos, recomendável parece a observância dos chamados "marcos regulatórios" vigentes, de modo a não estipular parâmetros que possam, de algum modo, estabelecer colidência com tais regulamentos. [13]

Ademais, como vimos do art. 2º da Lei de Arbitragem, o critério, eleito pelas partes, para reger o juízo arbitral pode ser a eqüidade. Neste passo, inicialmente, saliente-se que a alternativa deve, necessariamente, compreender – diversamente do que ocorre com a convenção pelas "regras de direito" – a maior latitude que se oferecerá ao fator subjetivo em relação às posturas e aos entendimentos expressos pelos árbitros.

Notadamente, sem embargo da fluidez inerente ao termo eqüidade, tem-se que esse critério de arbitragem proporciona mitigar-se o rigor das estipulações legais incidentes sobre a relação jurídica, posta em conflito, admitindo-se que os árbitros decidam, essencialmente, sobre as variantes e circunstancias do caso concreto que lhes é apresentado, buscando oferecer, ao cabo, a melhor justiça aplicável, mormente sob a perspectiva de tratamento isonômico das partes. [14] Logo, o critério da eqüidade para a solução arbitral parece muito menos genérico do que o parâmetro das "regras de direito", vale dizer, só de se recomendar diante de características muito especificas do negócio jurídico entabulado entre as partes, as quais, naturalmente, se adaptem melhor às considerações de ordem subjetiva do que à rigidez das premissas de direito.


Notas

1 O Acordo foi ratificado pelo Decreto 4.719 de maio de 2003, embora vigorasse para o Brasil desde 09/10/02.

2 Ver, por exemplo, o art. 5º para a capacidade plena em relação a pratica de todos os atos da vida civil.

3 Assim, o elenco dos direitos da nacionalidade (arts. 12 e 13), os direitos políticos (arts. 14 a 16) e o rol do art. 5º.

4 Ver sobre o conceito de patrimônio, o nosso "A afetação do patrimônio como exceção ao principio de sua universalidade – Conteúdo jurídico e efeitos" – Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem – ano 5, nº 16, pág. 102.

5 É o caso dos direitos trabalhistas que são considerados indisponíveis no curso do contrato de trabalho, transmudando essa condição para sua disponibilidade quando encerrado o vinculo laboral, donde se justifica sua transação, inclusive por meio de arbitragem.

6 "Aspectos do Instituto da Arbitragem" - Revista Iberoamericana de Arbitraje – 15/01/02.

7 Do novo Código Civil, art. 840, repetindo o art. 1.025 da codificação anterior: "É licito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas".

8 Nesse sentido, a disposição do art. 841 da nova Lei Civil, mantendo, sem alterações, a previsão do art. 1.035 do "codex" de 1916.

9 Diz o art. 126 da Lei de Processo que o juiz não se eximirá de despachar ou sentenciar a causa, sob alegação de lacuna ou obscuridade da lei, valendo-se – nesses casos – da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito. Interessante acórdão, entretanto, observa que descabe, em nosso sistema positivo, a figura do "judge made law", isto é, do juiz arvorar-se em legislador à falta de preceito normativo especifico, sob pena de se atentar contra o principio constitucional da separação dos poderes (RT 604/43). De outra parte, na forma disposta no art. 127 é vedado ao juiz decidir por equidade, salvo se autorizado a tanto nos casos previstos em lei. Esse óbice pretende impedir que nas decisões jurisdicionais possam prevalecer critérios pessoais frente ao direito objetivo (RSTJ 83/168).

10 Antonio Carlos Rodrigues do Amaral nota que há maior amplitude nos critérios de arbitragem do que em relação à prestação jurisdicional, esta limitada – no fundo – ao império da lei, quando se admite, no juízo arbitral, a utilização dos princípios gerais de direito e regras de comércio. (cf. "A Arbitragem no Brasil e no Âmbito do Comércio Internacional").

11 Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (ob. cit.) observa quanto à arbitragem nos Estados Unidos, restrições às normas que contraditem a ordem pública ("public policy"), mas, nota dos precedentes, a orientação sobre prestigiar-se na maior extensão possível as decisões arbitrais, ainda que em colisão com os ditames de caráter público. Assim, da Suprema Corte em Paperworkers v. Misco, Inc.: "A recusa de uma corte [judiciária] em dar eficácia a uma interpretação arbitral quanto a um contrato é limitada a situações onde o contrato, da forma como interpretado [pelo árbitro], poderia violar "alguma política pública explícita", que seja "bem definida e dominante", o que deve ser comprovado pela referência a leis e a precedentes jurisprudenciais e não por considerações genéricas de supostos interesses públicos."

12 No Código Civil de 1916 havia duas referencias aos usos e costumes, uma, encartada a teor do art. 1.210 que se remetia ao tempo de locação de prédios urbanos o qual, à falta de estipulação especifica ou contraria, se regeria "pelos usos locais"; e duas, a do art. 1.807 que, expressamente, revogava os "usos e costumes" relativos "às matérias de direito civil" reguladas pelo Código.

13 Nesse sentido, José Emilio Pinto Nunes ("As vantagens de cláusula compromissória clara e precisa para a condução da arbitragem") comenta sobre a atividade regulada: "Um bom exemplo de escolha de lei pode ser o marco contratual de desenvolvimento de grandes projetos em áreas de atividade regulada. Levando-se em conta a importância do fator regulação e do respectivo marco regulatório aplicável a par do legal, parece fora de cogitação a utilização de qualquer legislação que não seja a brasileira. Em assim procedendo, assegura-se uma solução compatível com as regras aplicáveis àquela indústria, evitando-se correr riscos quanto à inadequação da solução ao caso concreto e preservando-se a validade de todo o procedimento arbitral".

14 Nas palavras de José Emilio Pinto Nunes (ob. cit.) a eqüidade resta caracterizada como um "abrandamento do rigorismo da norma legal, moldando a justiça aos contornos do caso concreto em oposição ao princípio da reserva legal, isto é a aplicação estrita da norma legal ao caso concreto".


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PENTEADO JUNIOR, Cassio Penteado. Os direitos patrimoniais disponíveis e as regras de julgamento na arbitragem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 363, 5 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5360. Acesso em: 16 abr. 2024.