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Os direitos políticos do condenado criminalmente

Os direitos políticos do condenado criminalmente

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É perfeitamente factível a instalação de Mesas Receptoras de Votos nos presídios, ainda mais com a implantação do voto eletrônico, dando oportunidade a que os encarcerados possam exercer seus direitos políticos.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I - 1. O PODER SOBERANO. 1.1 LIMITES DO PODER SOBERANO. 1.2 A CIDADANIA. 1.2.1. A DIMENSÃO DA CIDADANIA. 1.3 STATUS ACTIVAE CIVITATIS.. 1.4 O PAPEL DO CIDADÃO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DO DIREITO. CAPÍTULO II - 2. DOS DIREITOS POLÍTICOS. 2.1 NOÇÕES PRELIMINARES. 2.2 O SUFRÁGIO UNIVERSAL 2.2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SUFRÁGIO. 2.2.2 A IMPORTÂNCIA DO SUFRÁGIO. 2.3 ALISTABILIDADE. 2.4 ELEGIBILIDADE. 2.5 DA PERDA E SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. 2.5.1 EM DECORRÊNCIA DA CONDENAÇÃO CRIMINA. CAPÍTULO III - 3. OS DIREITOS DOS CONDENADOS. 3.1 A ORIGEM DO DIREITO DE PUNIR. 3.2 AS PRÁTICAS PUNITIVAS NO TEMPO. 3.3 REALIDADE CARCERÁRIA BRASILEIRA. 3.4 O CIDADÃO CONDENADO. 3.5 O EXERCÍCIO DO VOTO POR PARTE DO CONDENADO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal estabelece que um dos fundamentos do Estado Democrático, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, é a cidadania.

Por sua vez, o art. 14 do mesmo estatuto consagra que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, enquanto o art. 5º exalta a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Partindo desses fundamentos, dir-se-ia que no Brasil de hoje está amplamente assegurado o exercício do voto com igual valor para todos. Entretanto, a realidade é bem diversa. Há ainda um longo caminho a percorrer: primeiro, porque nem todos os brasileiros têm direito ao voto - os conscritos e os condenados criminalmente estão à margem do processo democrático; em segundo lugar, porque muito se há que fazer para que todos tenham acesso aos bens de consumo mínimos, à saúde, à moradia, à educação, à informação, a fim de que possam exercer o direito de sufrágio com independência, sem qualquer influência do poder econômico.

Ao apresentar como tema os direitos políticos dos condenados, pretende-se dar ênfase à necessidade de, num primeiro momento, assegurar a igualdade de todos em relação ao direito de voto, a fim de que as outras igualdades sejam alcançadas e, via de conseqüência, se substitua a simples e pura sujeição dos excluídos aos interesses das classes dominantes pela integração social e, com isso, cada qual conquiste a liberdade, em seu sentido mais amplo.

Apesar de algumas poucas vozes estarem se levantando, muito timidamente, em defesa dos direitos dos condenados, a realidade dos presídios brasileiros demonstra o mais total abandono a que eles estão relegados, assim como também suas famílias.

Por isso, o enfoque deste breve estudo é explicitar que os condenados criminalmente, a par de sua condição de sujeitos de deveres, continuam sujeitos de direitos, e como tal cidadãos, devendo, por isso mesmo, participar ativamente do poder soberano, por meio do exercício do voto.

Assim, fundados no pacto social idealizado por ROUSSEAU, no primeiro capítulo deste trabalho, tentar-se-á demonstrar que no conceito de poder soberano incluem-se todos os brasileiros, independentemente de seus status libertatis, pois que ninguém pode ser súdito sem ser também soberano.

Somente quando puderem atuar no espaço público, a partir do exercício do direito de voto, é que os condenados obterão o reconhecimento de seus direitos básicos, e, conseqüentemente, serão vistos como sujeitos detentores de interesses válidos e de demandas legítimas.

No capítulo segundo, com suporte nos dispositivos constitucionais e nas legislações ordinárias, pretender-se-á concluir que também do ponto de vista normativo os condenados estão legitimados a participar da escolha dos responsáveis diretos pelos destinos da Nação.

A participação no poder, como característica do Estado Democrático de Direito, além de ser uma prerrogativa decorrente da igualdade natural entre os homens, vem garantida constitucionalmente, ao estabelecer-se que todos são iguais perante a lei.

A Constituição Federal de 1988, contrariamente ao que dispunham as Constituições anteriores, não veda o alistamento aos indivíduos que tenham contra si condenação criminal transitada em julgado.

De outra parte, há que se reconhecer que privar o condenado de sua prerrogativa de cidadão tem a potencialidade de criar no imaginário social a sensação de que ele pode ser submetido a humilhações e à degradação, atitudes essas que se refletem impunemente nas relações de poder da própria sociedade.

Como afirmou Pedro Armando Egydio de CARVALHO, é incontestável que a forma como a sociedade percebe e trata o condenado influencia a vivência democrática diária, centrada na dignidade de cada uma das pessoas humanas que compõem o grupo social.

Tratamento adequado, democracia fortalecida; inadequado, esmorecida; aviltante, falida. [...] Analogamente, a realidade (e não mais uma imagem ou idealização) do preso torturado e emudecido tem a potência de justificar os maus tratos infligidos aos corpos dos sem-terra e sem-teto.

Finalmente, no terceiro e último capítulo, tratar-se-á dos direitos do condenado, procedendo a uma reflexão acerca da origem do direito de punir. Tomando por fundamento as observações de BECCARIA, em sua obra Dos Delitos e das Penas, tentar-se-á estabelecer uma correlação entre o significado do suplício do corpo à sua época com o da suspensão dos direitos políticos em nossos dias, enfatizando que tanto uma prática quanto a outra, cada qual à sua maneira, são reveladoras de uma técnica de separar, de marcar e, conseqüentemente, de humilhar o condenado, a fim de reproduzir, tanto no imaginário social quanto no inconsciente do infrator, a idéia de que ele é um ser vil, destituído de qualquer moral.

Com base no pensamento de Michel FOUCAULT, far-se-á, ainda, breve incursão sobre os objetos da pena e as formas de punição nos tempos, evidenciando que há uma correspondência entre as práticas punitivas e os principais bens tutelados pela sociedade em cada época.

Também procurar-se-á dar ênfase à situação de abandono do condenado no Brasil, chamando a atenção para o fato de que o sistema punitivo brasileiro visa única e exclusivamente à população carente e estigmatizada socialmente, já que, em sua grande maioria, os condenados são pessoas provenientes das camadas mais humildes da sociedade, encontrando-se, por isso mesmo, em duplo grau de exclusão: a social e a política.

Por fim, com base na legislação eleitoral, sustentar-se-á a convicção de que é perfeitamente factível a instalação de Mesas Receptoras de Votos nos presídios, ainda mais com a implantação do voto eletrônico, dando oportunidade, assim, a que os encarcerados possam exercer seus direitos políticos.


CAPÍTULO I

O PODER SOBERANO

Deixando para trás a idéia das organizações societárias antigas ou teocráticas - que não admitia qualquer divisão no poder e nas quais não se distinguia o pensamento político da religião, da moral, da filosofia - e o feudalismo - com sua infinita pluralidade de poderes, sem hierarquia definida e incontável multiplicidade de ordens jurídicas -, surgiu o Estado Moderno, despertando a consciência para a busca de uma unidade que concretizasse a afirmação de um poder soberano, reconhecido como o mais amplo dentro de uma precisa delimitação territorial.

Significando o poder de um povo de autodeterminar-se na ordem interna ou externa, o conceito de poder soberano, guindado à condição de poder de mando em última instância, surgiu, assim, intimamente ligado ao conceito de poder político . A soberania, em essência, segundo BODIN, citado por Norberto BOBBIO, identifica o poder de legislar:

[...] poder de fazer e de anular as leis, uma vez que este poder resumiria em si, necessariamente, todos os outros e, enquanto tal, com suas ‘ordens’ se configuraria como a força de coesão capaz de manter unida toda a sociedade.

A identificação da soberania com o poder legislativo tem suas raízes no conceito de vontade geral explicitado por ROUSSEAU. Vem dele a afirmação do povo como soberano, reconhecendo a igualdade como um dos objetivos fundamentais da sociedade.

Partindo da idéia de que a ordem social não provém da natureza do homem, mas de convenções, ROUSSEAU, em sua obra o Contrato Social, albergado na realidade vivenciada na polis grega, transfere a titularidade da soberania da pessoa do governante para o povo, dotando-a das características da inalienabilidade e indivisibilidade.

A soberania é inalienável por ser o exercício da vontade geral, não podendo esta se alienar e nem mesmo ser representada por quem quer que seja. É indivisível porque a vontade só é geral se houver a participação do todo. [...] O pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros, e este poder é aquele que, dirigido pela vontade geral, leva o nome de soberania.

Assim, a soberania se transfere intacta do rei ao povo, de forma a propiciar a transmutação dos direitos naturais em direitos civis. Buscava ROUSSEAU a libertação política do homem, como caminho indispensável para a fundação de uma sociedade igualitária, voltada à consecução dos fins sociais.

Foi, sem dúvida, a convicção na igualdade entre os homens o primeiro elemento que levou à construção de uma nova sociedade, na qual, os homens passaram a nascer livres e iguais em direitos e dignidade.

Dessa forma, de acordo com Norberto BOBBIO, somente quando o reconhecimento dos direitos do homem se amplia para as relações entre príncipe e súditos é que surge o Estado de Direito:

É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.

Com isso, inverteu-se o fundamento do poder ou sua fonte legitimadora. O poder político passou a provir não mais de Deus, nem da tradição familiar, mas da vontade popular, do consenso dos indivíduos, transformados em cidadãos.

"É o surgimento da idéia" - diz Celso LAFER - "de que os homens podem organizar o Estado e a sociedade de acordo com a sua vontade e a sua razão", substituindo-se a pura e simples vontade do rei pelo consenso popular, refletido no sufrágio.

A partir de então, a soberania tem como característica pertencer ao povo em sua universalidade: todos os indivíduos que compõem uma nação detêm parcela desse poder de autodeterminar-se. Assim, de acordo com Fávila RIBEIRO:

Se a soberania for subtraída do povo em sua universalidade, sendo assumida por apenas uma ou algumas classes, somente elas são livres, porque podem traçar seu próprio destino e o destino político alheio, ficando os demais segmentos excluídos da soberania a mercê de ocasionais impulsos dadivosos ou de incontroláveis indisposições das camadas dirigentes.

Há que se concluir, então, que, em que pese algumas coletividades humanas serem ainda governadas por minorias, ou pela força das armas em outras (ditaduras), hodiernamente é incomum encontrar quem sustente o poder como sendo de origem divina, providencial ou hereditária. Pelo contrário, todos estão finalmente de acordo em que a soberania reside no povo. Os homens são responsáveis pela sociedade que fazem, sociedade, aliás, cuja existência só tem sentido se visar ao bem de todos.

Assentando-se que a soberania pertence definitivamente ao povo, cabe investigar, de agora em diante, quem faria parte do povo, detentor da vontade geral, com direito de escolher representantes, para, em seu nome, exercer o poder soberano.

É em ROUSSEAU e em sua concepção da vontade geral como legitimadora do contrato social que se vai buscar respaldo mais uma vez. Esclarece o autor:

Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível, visto que a vontade é geral ou não é; ou é corpo do povo ou unicamente de uma parte dele. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular.

Emerge dessa assertiva a conclusão de que a soberania não pode ser representada pela vontade de um ou de alguns homens, mas sim do corpo político como um todo, pois se alguém deixa de manifestar a sua vontade, é como se do corpo político tivesse sido excluído.

1.1 LIMITES DO PODER SOBERANO

Com base em sua tese contratualista, ROUSSEAU entende que o homem primitivo vivia movido por suas poucas necessidades, senhor de si mesmo, livre e feliz, embora permanecesse estúpido e limitado. Chamado a se desenvolver por sua própria natureza, percebe que somente na convivência com seus semelhantes adquire a palavra, a memória, as idéias, os sentimentos e a consciência moral.

Formou-se então a sociedade, na qual os homens passaram a viver em agregação. Os fracos, entretanto, em troca de segurança, tenderam a obedecer aos fortes: surgiu aí a luta pela dominação. A socialização, se de um lado propiciou ao homem o desenvolvimento de sua consciência, de outro o corrompeu. Instaurou-se a partir daí a desordem, em que a força, a sagacidade e a esperteza de alguns prevaleciam sobre outros. Não havia limites para o agir do homem, a não ser a sua própria força.

Diante desse caos, os homens novamente se uniram na tentativa de formar uma sociedade fundada não na lei do mais forte, mas na vontade racional, em que cada um pudesse agir livremente, estabelecendo com os outros contratos em que mutuamente se obrigassem. Surgiu o corpo político, cujo caráter é de ser total, pois cada qual, empenhando-se inteiramente em ser membro do corpo político, entrega sua pretensa liberdade de fazer o que bem lhe aprouver e recebe, em troca, o compromisso de seus semelhantes de também pautarem seu agir da forma acordada.

Tal submissão ao contrato social é da ordem da adesão, jamais da coerção, pois somente por sua livre e espontânea vontade é que os homens estão capacitados a abrir mão de sua liberdade ilimitada, mas insegura, para ganhar uma liberdade regulada, é verdade, mas segura, da vida na sociedade, em favor não de um chefe, mas do todo, do corpo político: é o chamado pacto social.

Pelo pacto social, ainda segundo idealização de ROUSSEAU, os homens devem dispor de "uma força de associação que defenda e proteja com toda a força comum as pessoas e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes".

Em essência, portanto, o pacto social sintetiza a idéia de que cada membro da sociedade põe sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral. Cada membro torna-se parte indivisível do todo. No lugar da pessoa particular de cada contratante, surge, então, imediatamente, um corpo coletivo, composto por tantos membros quantos sejam os votos na assembléia.

A partir daí, pode-se dizer que os associados são chamados coletivamente de povo e em particular de cidadãos, enquanto são, ao mesmo tempo, participantes da formação da autoridade soberana e a ela submetidos.

Nesse instante, o povo passa a exercitar o poder soberano. Entretanto, como adverte Norberto BOBBIO, com a revolução democrática também a vontade geral encontra um freio, uma barreira: os direitos invioláveis do cidadão. A soberania, por conseguinte, que tem como elemento central a vontade geral, também não pode tudo; sua ação encontra limites nos direitos invioláveis de cada um dos sujeitos que a compõem, quais sejam, os direitos do cidadão, cuja maior expressão são a liberdade e a igualdade.

No mesmo sentido, Darcy AZAMBUJA assevera que:

A soberania popular não é ilimitada nem despótica, em um regime são de organização política. Tem limitações naturais e necessárias no sistema democrático, pois este não é apenas o governo para o povo, mas e principalmente para a pessoa humana, que possui direitos inalienáveis. Se uma assembléia de todo o povo suprimisse um só direito individual fundamental, extinguiria ipso facto a Democracia.

De tal assertiva depreende-se que o homem, particularmente considerado, possui direitos, só podendo alienar de sua liberdade, de seus bens e de seu poder aquilo que interesse ao bem comum. Conseqüentemente, para visar sempre ao bem geral, a soberania deve ter por medida básica os direitos fundamentais de cada um de seus componentes, individualmente considerados, concretizando assim a chamada Democracia Popular, o governo do povo para o povo.

Em suma, pela natureza do pacto social, estabelece-se a igualdade entre os cidadãos, em que todos se comprometem sob as mesmas condições, mas devem gozar dos mesmos direitos.

1.2 A CIDADANIA

A cidadania, de origem na antigüidade clássica, era um estatuto unitário pelo qual todos os cidadãos eram iguais em direitos. Era atributo do morador da cidade, daquele que participava dos seus negócios, significando com isso que pertencia à comunidade. Entretanto, poucos eram os cidadãos, raras as pessoas que tinham acesso a cargos públicos e à participação nos negócios da sociedade.

Foi só na Revolução Francesa que se preparou a concreta construção do novo modelo de cidadania, o qual se traduz na máxima de que todo ‘o poder emana do povo e em seu nome é exercido’, ao se proclamar a liberdade e a igualdade entre todos os homens.

Num estado democrático, cabe ao direito o papel normativo de regular as relações interindividuais, as relações entre o indivíduo e o Estado, entre os direitos civis e os deveres cívicos, entre os direitos e deveres da cidadania, definindo as regras do jogo da vida democrática. A cidadania poderá, dessa forma, cumprir o papel libertador e contribuir para a emancipação humana, abrindo novos espaços de liberdade, por onde ecoarão as vozes de todos aqueles que, em nome da liberdade e da igualdade, sempre foram silenciados.

Assim, é de se concluir que justamente evocando a igualdade de todos perante a lei é que a cidadania confere a cada indivíduo direitos e obrigações formalmente iguais, ensejando-lhe postular justiça, isto é, a defender e afirmar direitos em pé de igualdade com os demais indivíduos, resguardando-se, assim, de possíveis agressões de outros cidadãos e das instituições estatais.

Nesse momento, o sujeito social privado emerge como cidadão: cada indivíduo, contratando consigo mesmo, acha-se comprometido como membro-soberano em face dos particulares e como membro da sociedade em face do corpo político.

Se o exercício da cidadania atua como ponto de mediação entre a sociedade civil e o poder estatal, que implica a obrigação política de obediência à ordem que o Estado organiza e garante, disso decorre que não pode haver cidadão que, a seu turno, não seja também súdito, nem súdito que não disponha de uma parcela de soberania.

Na senda contratualista de somente obedecer a um poder consensualmente formado, impõe-se concluir que para que um indivíduo seja legitimamente submetido ao império da lei, necessário se faz que, de outra parte, seja também co-partícipe na formação da vontade manifesta nessa mesma lei, quer diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos.

É, pois, o exercício da cidadania que legitima os compromissos civis entre os membros de um corpo político, submetendo, cada um, individualmente, à vontade geral, que, todavia, como já se viu, não é ilimitada: encontra sua fronteira nos direitos invioláveis do ser humano.

Historicamente, foi só na democracia que remonta à Grécia antiga, exercida de forma direta, que todo o corpo político, reunido na praça, governava a cidade. Lá, os cidadãos participavam das assembléias do povo, tinham plena liberdade da palavra e votavam suas próprias leis. Naqueles primórdios, entretanto, a cidadania era atributo exclusivo dos homens livres, ficando relegados à margem do interesse público as mulheres, os servos e os escravos.

Depois, passados alguns séculos em que o domínio absolutista se fez presente, em que o monarca era o Estado, retomou-se o ideal republicano da antigüidade, que abriu caminho para a democracia moderna: o regime político baseado nos princípios da soberania popular, que tem como marco histórico universalmente reconhecido a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789.

Entretanto, na República moderna, a cidadania já não pode mais ser exercida da mesma forma que na antigüidade, pois a grande massa populacional impede o exercício do poder diretamente pelo cidadão. Surge, então, a democracia representativa, que consagra a idéia do controle popular do poder pelos direitos políticos. Assim, tem-se que:

Pela doutrina da representação fundada sobre a soberania popular, a origem e o fim de toda a soberania se encontra no povo. O cidadão não pode mais exercer em pessoa o poder, mas escolhe por seu voto seus representantes.

A nova sociedade se organiza, então, em torno da vontade geral, que somente será geral, quando todos os indivíduos que compõem o povo puderem participar de forma direta ou indiretamente, por meio de representantes, do poder de autodeterminar-se, fazendo-se ouvir na elaboração das leis e no estabelecimento do direito.

Dessa forma, esclarece Paulo BONAVIDES que a soberania popular "é tão-somente a soma das distintas frações de soberania, que pertencem como atributo a cada indivíduo, o qual, membro da comunidade estatal e detentor de parcela do poder soberano fragmentado, participa ativamente da escolha dos governantes".

É a cidadania, em resumo, que identifica o indivíduo como fração ou parte de um povo. E fazer parte do povo de determinado Estado significa estar numa situação jurídica de deveres sim, mas também de direitos. Exatamente em função dessa correlação é que os condenados, sujeitos de deveres perante o Estado, não podem deixar de ser considerados cidadãos também, enquanto sujeitos de direito.

Não foi à toa, como lembra Hannah ARENDT, citada por Celso LAFER, que o nazismo iniciou sua perseguição ao povo judeu, justamente começando por privar seus membros do status civitatis, convertendo-os, assim, em inimigos objetivos.

Destituídos da cidadania, o nazismo pode perpetrar todas as barbáries que a humanidade testemunhou contra os judeus, da mesma forma que, privados de sua condição de cidadãos, do direito de votar, os condenados têm sido tratados como "o lixo" da sociedade, que deve ser recolhido e esquecido em celas infectas, para que lá apodreça.

Neste ponto já podemos estabelecer que cidadão é o sujeito de deveres, enquanto subordinado ao poder do Estado, e sujeito de direitos, enquanto fração do povo soberano, em nome de quem o poder é exercido. É, portanto, o sujeito que reivindica e promove a mutação do Direito, a ele se submetendo.

Cidadão é, no dizer de Clèmerson Merlin CLÈVE:

[...] o homem envolto nas relações de força que comandam a historici-

dade e a natureza da política. O cidadão é o agente reivindicante possibilitador, na linguagem de Lefort, da floração contínua de direitos novos.

1.2.1 A DIMENSÃO DA CIDADANIA

Segundo Hannah ARENDT, "a cidadania significa ‘pertencer’ a uma comunidade". Disso decorre que a dimensão da cidadania não se cinge apenas à relação jurídica de direitos e deveres do indivíduo em relação ao Estado. É também a relação política e social de cada cidadão em particular frente aos demais, de forma a elevar ao máximo a solidariedade da vida em comunidade, vendo no "outro" um ser humano igual e com os mesmos direitos e deveres: um semelhante, enfim.

A dimensão da cidadania, segundo se infere, não é aquela mensurável apenas na lei ou na doutrina, mas é sobretudo aquela materializada no plano dos fatos que compõem e afetam a vida dos seres humanos na comunidade em que vivem.

Sendo uma instituição em permanente desenvolvimento, que tem como fundamento o princípio de que todos os homens são livres e capazes de gozar de direitos, a cidadania ganha força na medida que se alarga, tendendo à universalização, e que enriquece o conjunto de direitos que promove.

Nesse sentido, demonstra Marshall que a cidadania não é um status meramente legal, de conteúdo estático e definitivo, algo que, concedido ao indivíduo, o acompanhe de uma vez e para sempre, mas sim um processo social [....].

Na esteira de Jair Eduardo SANTANA, a idéia de cidadania pode englobar ao menos três tipos básicos de direitos: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, inferindo-se disso que a cidadania possui significados múltiplos que não se excluem, mas se complementam.

Como um processo de construção social, a cidadania há de ser ampliada em dois sentidos: horizontalmente, a fim de abarcar aqueles que ainda se encontrem excluídos, até como forma de resguardar o Estado Democrático de Direito, e verticalmente, possibilitando, assim, a aquisição de novos emergentes direitos.

Nesses termos, "a Democracia não é apenas um regime político com partidos e eleições livres. É sobretudo uma forma de existência social. Democrática é uma sociedade aberta, que permite sempre a criação de novos direitos.

Assim, diante da correlação indissociável entre os direitos e os deveres do cidadão e da constatação de que a cidadania é uma permanente edificação social, qualquer argumentação retórica que tente justificar que o condenado não é eticamente ou moralmente capaz para interferir nos negócios da cidade, significando com isso que é apenas um sujeito de deveres, mostra-se totalmente infundada, pois tal situação significaria para ele a inexistência do Estado Democrático de Direito, mas a instituição de um Estado despótico.

"A cidadania, portanto, é um construído da convivência coletiva, que requer acesso público", permitindo, assim, "a construção de um mundo comum através do processo de asserção de direitos humanos".

Feitas essas colocações de forma a assentar que a dimensão da cidadania é um status em permanente construção (envolve solidariedade, civismo, patriotismo, educação, participação política e muito mais), que não pode ser usurpado do condenado, sob pena de ele continuar a ser tratado como supérfluo e descartável, já podemos, de agora em diante, investigar quem, dentre a massa populacional da Nação, é sujeito de direitos e obrigações. Isso porque, embora todo cidadão brasileiro deva ser um nacional, nem todo nacional goza do status civitatis. Há certos requisitos que o próprio Estado estabelece para que o seu componente pessoal adquira a condição de partícipe.

1.3 STATUS ACTIVAE CIVITATIS

O Estado de Direito, substituindo o Estado absolutista, descentralizou o poder monárquico em três poderes - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário - concebendo como um dos atributos da cidadania o direito à representação política, e do cidadão, a titularidade, dentre outros, dos direitos políticos.

A cidadania envolve direitos políticos, civis e sociais, os quais refletem uma série de outros direitos, tais como direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, de ir e vir, à participação política, ao sufrágio universal, etc.

A definição de cidadania de Hannah ARENDT permite uma ampliação ainda maior: o status político dos homens está associado ao direito a ter direitos.

Como visto anteriormente, ser cidadão é ser uma fração do povo, em nome do qual a soberania é exercida.

O status civitatis, ou estado de cidadania, segundo Paulo BONAVIDES, define basicamente a capacidade pública do indivíduo, a soma dos direitos políticos e deveres que ele tem perante o Estado. E ainda de acordo com o autor citado, "da cidadania derivam direitos, dentre os quais o direito de votar e ser votado (status activae civitatis) ou deveres, como dever de fidelidade à Pátria, prestação de serviço militar, observância das leis do Estado".

Entretanto, o próprio Estado estabelece requisitos para a aquisição do status activae civitatis. Nesse sentido, em que pesem as advertências de Hannah ARENDT de que mesmo "os apátridas não perdem direitos como à vida, à liberdade, à busca de felicidade ou mesmo de igualdade diante da lei por não serem nacionais", a condição básica para aquisição do status de cidadão em nosso País, atributo esse que o identifica e o integra em direitos, garantias e obrigações, ainda é ser brasileiro.

A nacionalidade é originária, quando ligada ao nascimento, que pode ser pelo jus sanguinis, em decorrência da nacionalidade dos pais, ou pelo jus soli, baseada no território em que o indivíduo nasceu; ou, numa terceira categoria, mista, quando conjuga essas duas modalidades. Também pode ser adotiva, pela naturalização, casamento, anexação de território, etc.

Além da nacionalidade, há, contudo, outros requisitos. Assim, embora a Constituição faculte o voto ao adolescente com idade entre dezesseis e dezoito anos, a maioria das outras formas de participação ativa na vida política da Nação só pode se efetivar após os dezoito ou vinte e um anos de idade, dependendo da hipótese tratada. É o caso do acesso a cargos públicos, de demandar em juízo, de obter informações, de estabelecer negócios, dentre outros.

Na lição do constitucionalista Alexandre de MORAIS, são os direitos políticos que investem o indivíduo no status activae civitatis, de forma a conferir-lhe os atributos de cidadão.

Assevera o autor que o núcleo dos direitos políticos é o sufrágio, que se expressa pela capacidade de eleger e de ser eleito:

Assim, o direito de sufrágio apresenta-se em seus dois aspectos:

- capacidade eleitoral ativa (direito de votar - alistabilidade)

- capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado - elegibilidade).

De acordo com a Constituição Federal, art. 14, § 1º, o alistamento e o voto são:

I - obrigatório para os maiores de dezoito anos;

II - facultativo para:

a) os analfabetos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

Há, portanto, nesse parágrafo uma delimitação em função da idade para o exercício da cidadania, no âmbito da atuação política, excluindo-se dela os menores de dezesseis anos. Já o § 2º do mesmo dispositivo, taxativamente, estabelece que "não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o serviço militar, os conscritos".

Aqui há uma segunda delimitação. A primeira é geral, ampla e se dá no sentido vertical: menores de dezesseis anos, independentemente de qualquer outra condição, não poderão participar da vida política da Nação, pois ainda carentes de discernimento. O § 2º, por sua vez, destaca, dentre os habitantes da Nação maiores de dezesseis anos, quais estão impedidos de se alistar e, portanto, de votar. Essa delimitação se dá no plano horizontal, porque dentre o conjunto de habitantes da Nação maiores de 16 anos estão excluídos do exercício da cidadania política todos os estrangeiros e os nacionais que estejam prestando serviço militar obrigatório – os conscritos.

Sendo o § 2º uma norma restritiva de direitos, deve ela, como se sabe, ser interpretada in numeros clausus, não comportando, portanto, sejam incluídos na proibição de alistamento, e conseqüentemente do exercício do voto, os condenados.

Evidencia-se do cotejo de tais dispositivos que não prevalece nenhuma restrição constitucional em relação ao alistamento e ao exercício de voto por parte dos condenados, já que todos os nacionais, natos ou naturalizados, maiores de dezesseis anos e não-conscritos, "podem", indistintamente, alistar-se e votar.

Apesar de o art. 15 da Constituição Federal estabelecer vedação à cassação dos direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nas hipóteses previstas, dentre as quais a condenação criminal transitada em julgado, é de se frisar que, em relação ao direito de alistamento e de voto, a única restrição que fez o constituinte - e de forma expressa - foi em relação ao estrangeiro e ao conscrito, durante o serviço militar obrigatório.

Imperativo registrar-se, ainda, que para os maiores de dezoito e menores de setenta anos o "direito" de alistamento e de voto se impõe também como "dever". Bem por isso, o Código Eleitoral disciplina a aplicação de multa a quem devia ter se alistado e votado, mas não o fez.

Diz o dispositivo da Lei 4.737, de 15.7.65:

Art. 8º O brasileiro nato que não se alistar até os dezenove anos ou o naturalizado que não se alistar até um ano depois de adquirida a nacionalidade brasileira incorrerá na multa de três a dez por centro sobre o valor do salário mínimo da região, imposta pelo Juiz e cobrada no ato da inscrição eleitoral através de selo federal inutilizado no próprio requerimento.

Quanto à obrigatoriedade ao voto, prescreve o dispositivo do mesmo diploma legal:

Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o Juiz Eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de três a dez por centro sobre o salário mínimo da região, imposta pelo Juiz Eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367.

Do descumprimento desses dois dispositivos decorre, ainda, uma série de outras sanções, aplicáveis não especificamente pela Justiça Eleitoral, mas por outros setores da sociedade, tais como:

Art. 7º.

[...]

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:

I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;

II - receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou paraestatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao mês subseqüente ao da eleição;

III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias.

IV - obter empréstimo nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;

V - obter passaporte ou carteira de identidade;

VI - renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;

VII - praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda.

Em que pese serem rigorosas todas as conseqüências previstas na legislação, em razão do descumprimento do dever de votar, chama à atenção o inciso V, que prevê a impossibilidade até de obtenção de carteira de identidade, documento básico para inserção do indivíduo no mundo civil. O indivíduo passa simplesmente a não existir como sujeito nem de direitos como de deveres.

A bem da verdade, impõe-se registrar, nesse ponto, que o § 2º do mesmo dispositivo, embora totalmente defasado em relação à Constituição Federal de 1988, excetua dessas penalidades as hipóteses elencadas nos arts. 5º e 6º, I, do Código Eleitoral, quais sejam, os analfabetos, os condenados, e aqueles que não saibam se expressar em língua nacional.

De qualquer sorte, diante de tais disposições normativas, é de se concluir que também no plano do ordenamento jurídico o condenado criminalmente não pode ser privado do seu status activae civitatis, do direito/dever do exercício do voto, sob pena de violação de norma constitucional (art. 14 da Constituição Federal de 1988), que impõe como obrigatório o alistamento e o voto para os maiores de 18 anos.

1.4 O PAPEL DO CIDADÃO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DO DIREITO

As formas de manifestação da cidadania não se resumem, como já visto, na participação, periodicamente, da escolha dos representantes dos Poderes Legislativo e Executivo. Há outras.

Clèmerson Merlin CLÈVE cita algumas formas de manifestação da cidadania garantidas constitucionalmente, como a ação popular, a ação de inconstitucionalidade genérica ou por omissão, a ação civil pública, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular. Além disso, no âmbito administrativo, o cidadão tem direito a obter informações, certidões, etc., garantias essas que visam a uma participação popular consciente.

Não se pode esquecer, entretanto, das outras formas de manifestação da cidadania, que emergem do processo de ajustamento e de sedimentação das divergências decorrentes das relações sociais, como um poder reivindicatório do reconhecimento e do exercício dos direitos humanos, exteriorizáveis na manifestação popular, nos movimentos sociais reivindicantes, na participação em movimento de lutas, na participação em organizações não-governamentais, nos sindicatos, na pressão popular e, acima de tudo, na cobrança perante os candidatos eleitos da implementação das promessas de campanha, na fiscalização dos representantes eleitos, na reivindicação por adoção de políticas administrativas, econômicas e sociais mais justas.

Apesar dessa multiplicidade de formas de manifestação da cidadania, há que se reconhecer, entretanto, que é ainda o exercício do voto que a centraliza e a fortalece, na medida em que todo e qualquer cidadão - independentemente de classe social, cultural ou econômica, de pertencer a grupos sociais ou a qualquer outra forma de organização -, pode influenciar o processo legislativo e por isso intervir nos destinos da Nação, atuando na escolha das pessoas que administrarão o País.

Diante das dificuldades quotidianas, os indivíduos excluídos e privados da satisfação das mínimas necessidades têm no voto um dos poucos instrumentos de coalizão de forças para criar e instituir novos direitos, e o fazem escolhendo quem vai propor, discutir e aprovar ou rejeitar as leis, quem vai executá-las ou quem vai fiscalizar sua implementação. Exemplo disso tem sido a participação de representantes das camadas mais humildes da sociedade na formulação e votação do Orçamento Participativo, prática que vem sendo adotada pelos governos mais populares.

A esse respeito, diz Antônio Carlos WOLKMER, que "não há dúvida de que a situação de privação, carência e exclusão constituem a razão motivadora e a condição de possibilidade do aparecimento de direitos".

A corroborar a assertiva temos que, numa retrospectiva histórica, é possível perceber que a própria formação da cidadania, em determinada época e espaço, está diretamente relacionada com as lutas, conflitos e conquistas. Assim, por séculos, a mulher, que era considerada um ser inferior ao homem, quer do ponto de vista biológico, psicológico, moral e ético, foi tida como incapaz para a vida política. A história do Direito Eleitoral mostra que no Brasil só em 1932 as mulheres adquiriram o direito de voto.

Portanto, como já assentado, os atributos, prerrogativas e deveres do cidadão não são estáticos; a cidadania não é um status "dado" pelo Estado; ao contrário, as prerrogativas e deveres do cidadão são dinâmicos, dependem de lutas, de conquistas, de avanços. Modificam-se no tempo e no espaço.

É por isso que Norberto BOBBIO, em A era dos direitos, enfatiza que o problema grave do nosso tempo, em relação aos direitos do homem, não é tanto fundamentá-los, mas sim protegê-los; que a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor. Nesse passo, acrescentar-se-ia que, para proteger os direitos humanos, forjando a conquista de novos, é preciso, primeiro, garantir os direitos de cidadania a todos, indistintamente.

Ainda, nas palavras de Liszt VIEIRA, "a cidadania, definida pelos princípios da democracia, constitui-se na criação de espaços sociais de luta (movimentos sociais) e na definição de instituições permanentes para a expressão política (partidos, órgãos públicos)".

Por isso, é fundamental ressaltar a importância dos agentes políticos, dos cidadãos engajados nos movimentos sociais, com vistas a operar as mudanças necessárias na estrutura de nossa sociedade, sem descurar, ainda, que o centro da sociedade é o indivíduo, cuja primazia completa-se pela idéia de que todos os membros da sociedade, embora diferentes, são iguais por essência e têm os mesmos direitos.

Ao estabelecer-se, no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal da República, que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente... ", abriu-se as portas do Estado à Democracia Participava, que envolve todos os indivíduos de uma sociedade.

Realçando o atributo da cidadania como propulsor de mudanças sociais, Vera Regina Pereira de ANDRADE, citando Norberto BOBBIO, enfatiza que foi, por exemplo:

O uso pacífico do poder político que permitiu mudanças significativas, entre as quais, em meados do século XIX, a de abrir caminho para o desenvolvimento do sindicalismo ao tornar os trabalhadores capazes de se valer de seus direitos civis coletivamente, obrigando a mudanças na tradição individualista dos direitos civis.

E mais adiante, assevera que:

[...] existe um nexo historicamente verificável entre o processo de democratização - consistente na extensão do direito político de sufrágio - e a emergência do estado assistencial. Na medida em que se ampliou o direito de sufrágio, aumentaram as reivindicações sociais cuja conseqüência foi o intervencionismo estatal na ordem sócio-econômica para atender tais reivindicações: ‘Quando os titulares dos direitos políticos eram apenas os proprietários, era natural que a maior solicitação dirigida ao poder político fosse a de proteger a liberdade de propriedade e dos contratos. A partir do momento em que os direitos políticos foram estendidos aos que nada têm e aos analfabetos, tornou-se igualmente natural que aos governantes, que acima de tudo se proclamavam e num certo sentido eram representantes do povo, passassem a ser pedidos trabalhos, escolas gratuitas e - por que não - casas populares, tratamentos médicos, etc.

De sorte que é um raciocínio absolutamente lógico pensar-se que, quando os direitos políticos forem reconhecidos também aos condenados, tornar-se-á natural aos governantes e aos dirigentes da Nação passarem a refletir melhor acerca do sistema punitivo no Brasil, sopesando seus objetivos, finalidades e eficácia.

Fixado exatamente nesse argumento foi que o Conselho Federal da OAB propôs a extensão aos presidiários do direito de voto. Artigo publicado no Jornal do Conselho Federal da OAB n. 55/1997 faz referência à seguinte argumentação de Nabor BULHÕES:

O exercício do voto manteria o preso vinculado à vida política do seu País, à certeza de que ainda é um cidadão e de que importa à sociedade e de que também é responsável pelas mudanças sociais. [...] Talvez aí esteja uma possibilidade latente de promover mudanças no próprio sistema penitenciário, vinculando-o a uma política pública-criminal e penitenciária mais humana e justa.

No mesmo periódico, o conselheiro Renato NERY, enfatizando que o Brasil precisa de uma política penitenciária sólida, séria, coerente e prática, repete denúncia de todos os dias:

Os segregados não têm voz e nem representação, encontrando na rebelião o único meio de serem ouvidos. Os presos são um zero à esquerda, ninguém se importa com eles. Constituem um estorvo que foi abandonado nas prisões, como os escravos eram jogados nas masmorras, num passado remoto, para morrerem de maus-tratos, de doenças, de fome e de abandono.

Em que pese a sociedade brasileira repudiar a pena de morte, de tortura e de castigos cruéis, acrescenta o autor que não há como negar que no Brasil há milhares de pessoas, dentre elas os presos, que são relegadas a uma pena de morte lenta, dolorosa e contínua.

Ademais, sendo fundamento do Estado Democrático de Direito a concretização da vontade popular, de nada serve a garantia formal da participação política e do exercício dos direitos ligados à cidadania a todos, se a própria sociedade cerceia a alguns a capacidade de expressarem suas aspirações, impedindo-os, conseqüentemente, de preservarem direitos e de almejarem novos.

Como bem ensinou J. J. ROUSSEAU, pelo pacto social cada um aliena de seu poder, de seus bens e de sua liberdade tudo aquilo cujo uso interesse à comunidade. Por isso, o soberano (o corpo político - os indivíduos enquanto sujeitos de direito) não pode onerar os súditos (os indivíduos, enquanto sujeitos de deveres) com nenhuma pena inútil.

E não se vislumbra utilidade alguma em impedir que os condenados exerçam seu direito de voto, a não ser mantê-los cada vez mais à margem de conquistas sociais.

Em certa passagem de sua obra O Contrato Social o nobre Cidadão de Genebra justifica a pena de morte daquele que malferiu o direito social, dizendo que a morte do culpado "é menos como cidadão que como inimigo". Na esperança de nossa civilização ter superado a pena como mera vingança, a imposição da pena a quem violou normas de conduta social deve ser, também, menos em relação ao cidadão, e sim mais em relação ao ser humano que necessita de ressocialização.

A cidadania é o ponto de partida, é o germe capaz de fazer brotar novos direitos, novos comportamentos, aptos a transformar a sociedade, tornando-a mais solidária e humana.

Nesse sentido, a cidadania pode ser vista como suporte de direitos e de obrigações formalmente iguais para todos, e, via de conseqüência, o sufrágio universal tem a capacidade de trazer em si a semente libertária e emancipadora para as classes dominadas, ante a variedade de reivindicações que possibilita e que transforma em conquista.

De outra parte, Dalmo DALLARI, ao comentar em sua obra qual a finalidade de o homem viver em sociedade, enfatiza que o objetivo principal da sociedade é alcançar o "bem comum", que consiste em propiciar a todos condições que favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana. E continua o autor:

Ao se afirmar, portanto, que a sociedade humana tem por finalidade o bem comum, isso quer dizer que ela busca a criação de condições que permitam a cada homem e a cada grupo social a consecução de seus respectivos fins particulares. Quando uma sociedade está organizada de tal modo que só promove o bem de uma parte de seus integrantes, é sinal de que ela está mal organizada e afastada dos objetivos que justificam a sua existência.

Por via transversa, pois, é possível inferir-se que, quando a sociedade organiza-se de tal forma que promove a exclusão de segmentos dela, perde seu objetivo e sua finalidade. Por isso é preciso resgatar a finalidade natural da sociedade humana, que é alcançar o bem comum total, afastando os cidadãos da pura e simples submissão a leis injustas e desprovidas de objetivo social, dando oportunidade a que todos os seus membros, sem exceção, possam participar da escolha dos destinos da Nação, já que, como apregoou ROUSSEAU:

Súdito e soberano são correlações idênticas cuja idéia se reúne numa única palavra: cidadão. [...] No momento em que o povo se encontra legitimamente reunido em corpo soberano [...], a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado.

O conceito de cidadania, em síntese, não se esgota na compreensão de ser cidadão aquele que participa dos negócios da cidade. Vai além. Trata-se do direito subjetivo de ter direitos; do direito que tem o indivíduo de lutar pelos seus ideais, por seus valores, o direito de empreender todo o esforço possível na busca da felicidade, prerrogativas essas que não podem ser negadas ao condenado, sob pena de ele tornar-se apenas um súdito à mercê do Estado.


CAPÍTULO II

DOS DIREITOS POLÍTICOS

Tidos como a segunda geração de direitos, os direitos políticos surgiram no decorrer do século XIX e podem ser denominados de liberdades políticas.

Esta segunda geração de direitos, de acordo com esclarecimento de Vera Regina Pereira de ANDRADE, se processou na esteira das potencialidades democráticas da cidadania civil, ou seja, na esteira dos direitos civis, como um desdobramento natural da primeira geração de direitos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra os direitos políticos, ao afirmar que todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos. E, ainda, que a vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

2.1 NOÇÕES PRELIMINARES

Segundo o Dicionário de Política de Norberto BOBBIO, os direitos políticos - que compreendem a liberdade de associação aos partidos e os direitos eleitorais - estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado.

Enquanto os direitos civis se caracterizam por serem considerados direitos negativos, e como tal direitos estabelecidos "contra" o Estado, impondo-lhe limitações, essa segunda geração de direitos pode ser vista como direitos positivos, atribuindo prerrogativas ao cidadão de participar do Estado.

Esse desdobramento do direito de impor limites ao Estado para o direito de dele participar indica uma nova perspectiva da liberdade, podendo ser interpretada como autonomia. O homem passa a ter autonomia para construir seu próprio futuro e o futuro da sociedade em que vive.

Abordando o tema, Edilson Pereira NOBRE JÚNIOR indica que há duas vertentes sobre a entidade jurídica dos direitos políticos. Diz o autor:

A primeira delas, voltada a descortinar o seu sentido lato. Entende a expressão como a utilização, pelo cidadão, dos direitos fundamentais que a democracia lhe assegura. [...] Por sua vez, procedendo-se à análise em busca do seu sentido restrito, ou menos extenso, aporta-se na juridicização do direito de voto pelos cidadãos, na qualidade de titulares da soberania.

O Direito, a ética e a moral, bem como o rumo das políticas administrativa, econômica e social de uma coletividade, em cada época, derivam da sedimentação decorrente da luta de classes, do entrechoque de idéias, de filosofias, de conceitos de justiça e de bem comum dos diversos segmentos que compõem esse povo.

Por isso, com a consolidação da Democracia, aliada à ampliação do espectro de direitos de que podem gozar os indivíduos no Estado de Direito, do mundo contemporâneo, cresce em importância a prerrogativa de poder participar da formação da vontade do Estado, de estabelecer as diretrizes ideológicas, sociológicas, filosóficas, administrativas e econômicas do nosso País, principalmente através do gozo dos direitos políticos.

Os direitos políticos compreendem, portanto, dentre outros, os seguintes direitos:

a) sufrágio, que se divide, basicamente, em alistabilidade e elegibilidade;

b) constituir partidos políticos;

c) plebiscito;

d) referendo;

e) iniciativa popular.

Nesse estágio, interessa a este estudo o direito ao sufrágio, que se terá oportunidade de melhor explicitar a seguir.

2.2 O SUFRÁGIO UNIVERSAL

Como princípio basilar da democracia política, pensar-se-ia que o direito de sufrágio, ao proclamar-se "universal", seria atributo de todos os nacionais. Infelizmente, esse direito sofre algumas condicionantes que acarretam a impossibilidade de sua extensão a algumas categorias de nacionais - sem que com isso se quebre o princípio da universalidade -, como é o caso das crianças e dos alienados, incapazes para atos conscientes.

O direito de sufrágio é a essência do direito político, expressando-se pela capacidade que o indivíduo tem de eleger e de ser eleito.

Do ponto de vista normativo, englobando os aspectos objetivo e subjetivo, compreendem-se como direitos políticos o conjunto de direitos e deveres peculiares ao cidadão, regulado nas normas e condições de participação daquele na administração pública, pelos processos de eleição, representação ou nomeação, conforme o caso; assim como as hipóteses de inelegibilidade, obrigatoriedade do domicílio eleitoral em certa circunscrição, desincompatibilização com o cargo em exercício para que possa concorrer à futura eleição, servir no júri, prestar serviço militar, e outros.

É um direito que decorre diretamente do princípio de que todo poder emana do povo, instaurando a democracia política, ao incorporar sujeitos historicamente impedidos de votar. E efetivamente, para que mantenha seu caráter universal, o sufrágio não pode ser usurpado de ninguém por critérios puramente discriminatórios e antidemocráticos, como qualificações raciais, econômicas, culturais e éticas.

2.2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SUFRÁGIO

O primeiro e mais essencial de todos os direitos políticos é, sem dúvida, o direito de sufrágio. Pode ser definido como direito público subjetivo de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da organização e das atividades do poder estatal.

De acordo com ensinamento de Hilda Soares BRAGA, o direito de sufrágio surgiu no decorrer do século XIX e se consolidou no início do século XX; todavia, como a história demonstra, esse direito não surgiu de forma universal do dia para a noite - aliás, diga-se de passagem, muito falta para que esse ideal seja alcançado.

Assim, ainda conforme a citada autora, na trajetória histórica do reconhecimento do direito de sufrágio pode-se perceber três etapas. A primeira, a do sufrágio restrito para o homem; a segunda, a do sufrágio universal para o homem; e a terceira, a do sufrágio universal para homens e mulheres.

Sobre a evolução do direito de sufrágio, preleciona:

A democracia exige dois pressupostos: participação e representação políticas. Uma forma de participação é o direito de voto. No Império, este direito era muito restrito. Para ser votante e eleito, a Constituição exigia ter 25 anos de idade, e o voto era censitário, sendo necessário possuir de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego para ser votante, e duzentos mil réis de renda líquida anual por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego para ser eleito, restringindo o direito de voto a uns poucos cidadãos.

Já na República Velha - segundo a autora -, a Constituição de 1891 aboliu o voto censitário - que reconhecia o direito de sufrágio apenas a quem preenchesse determinada qualificação econômica -, reduzindo a idade para 21 anos. Retrocedeu democraticamente, contudo, ao retirar dos analfabetos e dos praças de pré o direito de voto. Também estavam impedidos de se alistarem os mendigos.

Após a Revolução de 1930, o Código Eleitoral de 1932 introduziu o voto feminino, e a Constituição de 1934 reduziu a idade necessária ao alistamento e ao direito de voto para 18 anos.

A Constituição Federal de 1946, a seu turno, deu um pequeno passo em direção à democratização do voto, não fazendo mais qualquer referência à proibição do alistamento por parte dos mendigos.

Mas foi só com a Emenda Constitucional nº 25, de 1985, que se aboliu o voto capacitário - dependente de aptidão intelectual -, conquistando os analfabetos o direito de voto, enquanto que a Constituição de 1988 o estendeu aos maiores de 16 anos, bem como aos cabos e soldados, com exceção dos conscritos durante o serviço militar obrigatório.

Essa ampliação da universalidade do sufrágio, entretanto, como bem demonstra a história, "não foi fruto altruístico e amistoso da munificência liberal. Foi uma das mais penosas conquistas revolucionárias processadas no âmago do conflito entre o trabalho e o capital".

Dessa forma, a ampliação da base dos sujeitos detentores do direito ao sufrágio vem ao encontro do ideal de democracia política, "incorporando sujeitos historicamente excluídos do direito de sufrágio, forjando a concretização da liberdade e igualdade políticas firmadas discursivamente pelo princípio democrático".

A história demonstra que já se viveu épocas no Brasil em que critérios tão diversos como propriedade, residência, renda, mendicidade, sexo, domínio da língua nacional e instrução chegaram a limitar o acesso ao sufrágio.

Na Carta Constitucional de 1988, apesar de o sufrágio ecoar como um direito universal, há ainda hoje duas categorias de nacionais que, mesmo gozando de plena capacidade civil e penal, estão excluídas do direito de sufrágio: os conscritos, durante o serviço militar obrigatório, de acordo com disposição constitucional expressa (art. 14, § 2º), e as pessoas que tenham contra si condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, segundo entendimento predominante dado pela doutrina ao art. 15, III, do mesmo Texto Constitucional. Hoje excluem-se do direito de voto os condenados, sob o argumento de que não estariam eles moralmente ou eticamente capacitados para participar da escolha dos destinos da Nação.

2.2.2 A IMPORTÂNCIA DO SUFRÁGIO

Consagra a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que todo nacional tem direito a votar em qualquer eleição, referendo ou plebiscito nacional realizado em seu país, e em qualquer consulta pública realizada na unidade política ou administrativa na qual resida. A par disso, consagra a igualdade de sufrágio, em que cada voto deve ter o mesmo peso.

A importância do sufrágio universal se revela na medida que a Pátria é de todos; por isso todo nacional tem o direito de influir no sentido de ser bem governado. E a forma mais elementar que o cidadão comum tem de exercer algum tipo de participação no Estado e de controle sobre seus governantes ainda é o voto. Na hora em que comparece às urnas, elegendo ou não os candidatos, de acordo com as propostas defendidas durante o período de campanha, o eleitor exercita sua autonomia na escolha dos destinos da Nação.

É por isso que Norberto BOBBIO, em sua obra A era dos direitos, enfatiza:

As decisões coletivas não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos que o compõem. Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e apenas indivíduos singulares, no momento em que depositam seu voto na urna.

O direito ao sufrágio de tempos em tempos, é verdade, não significa grandes avanços democráticos, especialmente num País que apenas há pouco mais de uma década saiu de uma ditadura militar. Mas não há como negar que esse é um ponto de partida para a edificação de um espaço público onde os conflitos e as diferenças possam, democraticamente, se expressar e se realizar.

Há de ser em torno do direito ao sufrágio - universal, secreto e com igual peso para todos - exercido naqueles poucos instantes em que o eleitor se encontra só, consigo mesmo e sua consciência, dentro da cabine eleitoral, sufragando os nomes dos candidatos de sua preferência, que a Nação como um todo haverá de reivindicar e buscar todos seus demais direitos: à vida, à alimentação, à escola, à saúde, ao saneamento básico, à moradia, ao lazer, ao trabalho, enfim à felicidade.

Em essência, ainda é o voto o único instrumento que detém a categoria dos excluídos para fazer avançar suas possibilidades emancipatórias, realizando, assim, a cidadania num nível mais elevado de participação social. Assim, também o condenado, especialmente o que se encontra encarcerado, na qualidade de cidadão, haverá de perseguir junto às autoridades públicas todos os demais direitos que não os limitados pela sentença transitada em julgado.

Num processo de expansão da dimensão da cidadania, o sufrágio universal deve funcionar como mola propulsora para que os atores políticos ocupem seus espaços públicos, erigindo, assim, um Estado Democrático de Direito, em que os seres humanos todos se reconheçam como semelhantes.

Feitas essas considerações, analisar-se-á, a seguir, mais detalhadamente, as questões da alistabilidade e da elegibilidade, por estarem mais ligadas ao objeto desta pesquisa.

2.3 ALISTABILIDADE

Como já explicitado anteriormente, quando se tratou do Status Activae Civitatis, o art. 14 da Constituição Federal, § 1º, disciplina que o alistamento e o voto são:

I - obrigatório para os maiores de dezoito anos;

II - facultativo para:

a) os analfabetos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

Não podem se alistar eleitores, ou seja, não podem obter a capacidade eleitoral ativa, de acordo com o § 2º do mesmo dispositivo constitucional, tão-somente os estrangeiros e, durante o serviço militar, os conscritos.

Há que se concluir, pois, que o art. 5º da Lei 4.737, de 5 de julho de 1965 - o Código Eleitoral -, que expressamente veda o alistamento aos analfabetos, aos que não saibam se exprimir na língua nacional e aos que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, embora grande parte da doutrina assim não entenda.

Quanto ao alistamento dos analfabetos, a Emenda Constitucional nº 25, de 1985, já tornara sem efeito tal disposição legal, situação que veio a ser confirmada na Constituição de 1988.

A vedação ao alistamento dos que não saibam se exprimir em língua nacional (art. 5º, II, da Lei 4.7 37/65) deve ser entendida também como não recepcionada pela atual Constituição Federal, bastando que o cidadão seja brasileiro - fale ou não o idioma português - para ter o direito de se alistar. Segundo Pontes de MIRANDA, tal dispositivo se devia "ao fato de existirem naturalizados e raros brasileiros natos que não aprenderam a língua nacional, o Português". E acrescenta o autor:

Se não podem exprimir-se em língua portuguesa, dificilmente estarão interessados na vida política do país; e fez bem o legislador constituinte (leia-se constituinte de 1967) em afastá-los da capacidade eleitoral ativa e, pois, da passiva.

O Constituinte de 1988, contudo, no dizer de Tupinambá Miguel Castro do NASCIMENTO:

[...] não recepcionou a situação, afastando a matéria de inalistabilidade da lei ordinária. A atual Lei Magna torna obrigatório o alistamento ao maior de dezoito anos e indica, não exemplificativamente, mas taxativamente, as hipóteses de inalistamento. A inconstitucionalidade superveniente gerou, como conseqüência, a revogação da norma infraconstitucional.

Da mesma forma, a vedação ao alistamento por parte de quem esteja, temporária ou definitivamente, privado dos direitos políticos (art. 5º, III, da Lei 4.737/65), é de ser tida como não recepcionada pelo Texto Constitucional pátrio, pois como já visto não é requisito essencial ao alistamento esteja o indivíduo no pleno gozo de seus direitos políticos.

Isso porque, contrariamente ao que dispunham as Constituições de 1946 e 1967, bem como a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que expressamente impediam o alistamento aos que estivessem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos , a atual Carta Constitucional, no § 2º de seu art. 15, veda o alistamento, frise-se mais uma vez, apenas e tão-somente aos estrangeiros e, durante o período do serviço militar, aos conscritos.

Nos idos de 1965, portanto, quando da edição do Código Eleitoral, a Constituição Federal e a legislação especial estavam em perfeita harmonia, ambas prevendo, de forma positivada, que, suspensos os direitos políticos, não haveria possibilidade de o cidadão se alistar; ou, advinda a suspensão dos direitos políticos após o alistamento, seria este cancelado ou suspenso.

Poder-se-ia argumentar que o alistamento e o direito de votar sejam etapas distintas de exercício dos direitos políticos, como o é a elegibilidade (para a qual é necessário um plus em relação a capacidade eleitoral ativa), e que, portanto, não necessitando comprovar o pleno gozo dos direitos políticos no instante do alistamento, o eleitor deveria fazê-lo para votar. Mas assim não é. E Pontes de MIRANDA, nesse sentido, preleciona:

O alistamento eleitoral é para eficácia imediata, de modo que a entrega do título permite o exercício da atividade eletiva desde o momento da sua tradição. O título é declarativo da legitimação ativa, mesmo se o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa determinou para o mesmo dia, ou para o dia imediato, a eleição ou o plebiscito.

Fávila RIBEIRO, a seu turno, manifesta-se sobre o tema, afirmando ser requisito já para o alistamento, dentre outros, a não-privação temporária ou definitiva dos direitos políticos, pois considera as pessoas em tal situação inalistáveis. Para o autor, assim como outros que advogam do mesmo entendimento, o condenado não pode nem requerer inscrição eleitoral, já que considerado inalistável.

Todavia, o Título I - Da Qualificação e Inscrição - do Código Eleitoral, que trata do alistamento eleitoral, disciplina a matéria de forma diversa. Nos termos dos arts. 42 e seguintes, o alistando comparecerá em Cartório, ou local previamente designado (para o caso de postos volantes de alistamento de eleitores), apresentando apenas um dos seguintes documentos:

I - carteira de identidade expedida pelo órgão competente do Distrito Federal ou dos Estados;

II - certificado de quitação com o serviço militar;

III - certidão de idade extraída do registro civil;

IV - instrumento público do qual se infira, por direito, ter o requerente idade superior a dezoito anos (atualmente dezesseis) e do qual constem, também, os demais elementos necessários à sua qualificação;

V - documento do qual se infira a nacionalidade brasileira, originária ou adquirida, do requerente.

A Resolução nº 20.132, de 19.03.98, do Tribunal Superior Eleitoral, disciplinando o alistamento eleitoral, dispõe em seu art. 11 que o alistando deve apresentar documento de identidade - que pode ser carteira de identidade, certidão de nascimento, de casamento ou outro documento público - do qual se infira, por direito, a idade mínima de dezesseis anos e os demais elementos necessários à qualificação, bem como a nacionalidade originária ou adquirida.

Os eleitores do sexo masculino, por sua vez, além de um dos documentos acima mencionados, devem apresentar também o certificado de quitação com o serviço militar. Tal exigência, evidentemente, só se aplica aos jovens que, ao comparecerem para se alistar eleitores, já tenham ultrapassado a idade limite para o serviço militar obrigatório.

A qualificação, assim, se dá com o preenchimento do Requerimento de Alistamento Eleitoral - RAE - no qual o servidor da Justiça Eleitoral, de posse do documento de identidade apresentado e na presença do interessado, deve anotar o nome completo do eleitor, a data de nascimento, a filiação, a profissão, o endereço completo, o telefone, além do código do local de votação escolhido pelo alistando.

Depois de datá-lo e rubricá-lo, o servidor entregará o Requerimento ao eleitor, que conferirá os dados nele constantes e o assinará. Caso o eleitor não seja alfabetizado, o servidor lerá os dados constantes do Requerimento e solicitará ao alistando que aponha sua impressão digital no local destinado à assinatura, entregando-lhe, em seguida, protocolo da Justiça Eleitoral, que substituirá o documento oficial pelo prazo de noventa dias, até que o Tribunal Superior Eleitoral emita o título eleitoral.

Mister observar-se, pois, que também no âmbito da legislação infraconstitucional, em oportunidade alguma de sua qualificação e inscrição o eleitor é chamado a declarar ou mesmo a comprovar sua situação em relação aos direitos políticos, certificando não ter contra si condenação criminal transitada em julgado.

Infere-se, assim, estar acima de qualquer discussão o direito de o condenado se alistar, embora a maioria dos doutrinadores e a jurisprudência em geral não adote tal posição. O entendimento que se tem dado ao contido no art. 15, III, da Constituição é que, uma vez alistado, se vier a ser condenado com sentença criminal transitada em julgado, o eleitor terá suspensos seus direitos políticos, o que significa, na prática, que sua inscrição eleitoral restará suspensa, não constando mais seu nome dos Cadernos de Folha de Votação.

Isso se deve em razão do art. 71, § 2º, do Código Eleitoral, que dispõe que a autoridade que impuser pena condenatória deverá providenciar para que o fato seja comunicado à Justiça Eleitoral, com vistas à suspensão dos direitos políticos, mediante a suspensão da inscrição eleitoral do condenado, que só poderá ser restabelecida com a apresentação de certidão que ateste o cumprimento da pena.

Se, contudo, a condenação não for restritiva de liberdade, o condenado, comparecendo algum tempo depois ao Cartório, poderá alistar-se, ante a desnecessidade de prestar informações quanto ao seu status libertatis, e, em conseqüência, felizmente, exercerá seu direito de voto. Isso não se deve ao fato de a Justiça Eleitoral entender ser direito do condenado não recolhido à prisão o alistamento, mas decorre simplesmente da falta de maior controle por parte desse órgão especializado de situações tais.

Assim, se a condenação for anterior ao alistamento, a comunicação do Juiz sentenciante não surtirá efeito algum com vistas à suspensão da inscrição eleitoral do condenado, pois que ainda inexistente no Cadastro Nacional de Eleitores. E não é possível suspender uma inscrição eleitoral que ainda não existe. A Justiça Eleitoral não dispõe de um banco de dados apartado do Cadastro Eleitoral, em que fiquem registradas as informações das pessoas que tiveram contra si condenação criminal transitada em julgado, mas ainda não estão alistados, para que sejam impedidas de se inscreverem eleitores diante da condenação.

Se, entretanto, por ocasião do cumprimento do disposto no art. 71, § 2º, do Código Eleitoral, o condenado já estiver alistado, a prática cartorária eleitoral é a suspensão imediata de sua inscrição eleitoral; caso contrário, como visto, tal informação é extraviada.

Há condenados com sentença criminal transitada em julgado que, por não se encontrarem encarcerados devido à natureza da pena que cumprem, exercem seu direito de voto, pois escaparam ao controle da Justiça Eleitoral, e também porque nem todos os Juízes Criminais efetuam a comunicação prevista no art. 71, § 2º, do Código Eleitoral.

De maneira oposta, lamentavelmente, todos os encarcerados, quer em presídios, casas de detenção, penitenciárias ou delegacias, mesmo aqueles contra os quais não há condenação criminal transitada em julgado, encontram-se impedidos do exercício do voto e da cidadania.

Feitas tais considerações, o enfoque volta-se, a partir de agora, para a análise da questão da elegibilidade.

2.4 ELEGIBILIDADE

A elegibilidade, também denominada ‘capacidade eleitoral passiva’, consiste na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos.

De acordo com lição de Alexandre de MORAIS, "não basta possuir capacidade eleitoral ativa (ser eleitor) para adquirir a capacidade eleitoral passiva (poder ser eleito). A elegibilidade se adquire por etapas, segundo faixas etárias", além de requerer outras formalidades, que se verá a seguir.

Nesse sentido, o art. 14 da Constituição Federal, § 3º, estabelece:

[...] § 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

V - a filiação partidária;

VI - a idade mínima de:

a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;

c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;

d) dezoito anos para Vereador.

Oportuno registrar que, além da idade, são requisitos à elegibilidade: a nacionalidade brasileira (indispensável também para o alistamento ou capacidade eleitoral ativa), o próprio alistamento eleitoral, o pleno exercício dos direitos políticos (requisito, como visto anteriormente, não exigido no alistamento eleitoral), o domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária.

Analise-se, agora, como a legislação infraconstitucional disciplina o registro dos candidatos. Nesse sentido, o § 1º do art. 94 do Código Eleitoral estabelece que o registro do candidato deverá ser instruído:

[...]

I - com a cópia autêntica da ata da Convenção que houver feito a escolha do candidato, a qual deverá ser conferida com o original na Secretaria do Tribunal ou no Cartório Eleitoral;

II - com autorização do candidato, em documento com a assinatura reconhecida por tabelião;

III - com certidão fornecida pelo Cartório Eleitoral da Zona de inscrição, em que conste que o registrando é eleitor;

IV - com prova de filiação partidária;

V - com folha corrida fornecida pelos Cartórios competentes

(leia-se Cartórios Criminais), para que se verifique se o candidato está no gozo dos direitos políticos;

VI - com declaração de bens, de que constem a origem e as mutações patrimoniais.

Da simples leitura desses dispositivos chega-se à conclusão de que se para o alistamento eleitoral e o exercício do direito de voto fosse condição sine qua non que o eleitor não tivesse contra si condenação criminal transitada em julgado, ou seja, que estivesse no pleno gozo dos direitos políticos, bastaria que o legislador constitucional tivesse relacionado como requisito à elegibilidade fosse o candidato eleitor, pois que aí já estaria implícito o pleno gozo dos direitos políticos.

De tal maneira, provavelmente o norte exegético da inserção do inciso III do art. 15 na Constituição Federal de 1988 tenha sido apenas e tão-somente impedir, por questões éticas sim, como defende Teori Albino ZAVASCKI, que o condenado, com sentença transitada em julgado, possa se candidatar e, uma vez eleito, participe diretamente das decisões da Nação. Ou, o que é ainda pior, possa eleger-se para fugir ao cumprimento da pena que lhe foi imposta, sob o manto da imunidade parlamentar, como sói acontecer no Brasil.

2.5 DA PERDA E SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS

Cinco são as hipóteses de perda ou suspensão dos direitos políticos disciplinadas no art. 15 da Constituição Federal:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II - incapacidade civil absoluta;

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

Em que pese a Constituição Federal não discriminar em que casos há perda dos direitos políticos e em quais há apenas sua suspensão, Ari Ferreira de QUEIROZ é de opinião de que acarretam a perda dos direitos políticos:

a) a incapacidade civil absoluta;

b) o cancelamento da naturalização por sentença; e

c) a recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa.

Como causas de suspensão dos direitos políticos cita:

a) a condenação criminal; e

b) a improbidade administrativa.

2.5.1 EM DECORRÊNCIA DE CONDENAÇÃO CRIMINAL

Interessa a este estudo, obviamente, apenas a hipótese de suspensão dos direitos políticos elencada no inciso III do art. 15 da Carta Constitucional de 1988, qual seja, a decorrente de condenação criminal transitada em julgado.

Desde a Constituição Política do Império que os direitos políticos dos condenados vêm sendo regulamentados. Assim, previa o Código Criminal do Império, de 1830, que os condenados às galés, à prisão com trabalho, à prisão simples, ao degredo ou ao desterro, ficariam privados do exercício dos direitos políticos de cidadão brasileiro, enquanto durassem os efeitos da condenação. Mesma orientação adotou o Código Penal de 1890, ao estabelecer, em seu art. 55, que a condenação à pena de prisão celular ensejaria, dentre outras conseqüências, a suspensão de todos os direitos políticos.

O Código Penal de 1940, seguindo orientação constitucional, era expresso acerca da inexorável suspensão dos direitos políticos como pena acessória, resultante da simples imposição da pena principal.

Sobrevindo a Lei n. 7.209, de 11.7.1984, que deu nova redação à Parte Geral do Código Penal, excluiu-se do texto legal a suspensão dos direitos políticos, "naturalmente como repulsa à odiosa repressão política, com numerosas cassações de direitos políticos, a que a nação esteve submetida, em conseqüência do regime militar", remanescendo apenas a interdição temporária de direitos regulada pelos arts. 43 a 48 do Código Penal.

Tal interdição, entretanto, não era automática, dependia de ser expressamente declarada na sentença.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, novamente o assunto veio à baila, porque em seu art. 15, ao vedar expressamente a cassação dos direitos políticos, dispôs o Texto Constitucional, no inciso III do mesmo artigo, sobre a perda ou suspensão dos direitos políticos, pela circunstância, dentre outras, da condenação criminal transitada em julgado.

A extensão de tal preceito, entretanto, tem causado celeuma entre os doutrinadores pátrios. A jurisprudência eleitoral, acompanhando entendimento da maioria dos doutrinadores, é uníssona no sentido de que a suspensão dos direitos políticos é mera conseqüência do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória. Sobrevindo a primeira, necessariamente ocorre a segunda, mesmo que a sentença nada declare quanto aos direitos políticos do réu.

Orlando SOARES, de posição menos ortodoxa, entende que, em consonância com o disposto no art. 5º, XLVI, letra "e", da Constituição Federal - que preceitua que lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, a suspensão ou interdição de direitos -, enquanto não for editada norma regulamentadora, não poderá haver a suspensão dos direitos políticos.

Nesse sentido, acrescenta o constitucionalista, in litteris:

Ademais, é princípio geral de Direito, aceito pela consciência democrática, que os impedimentos e restrições de qualquer espécie devem derivar de expressa disposição legal, ao passo que as interpretações, que favorecem o direito de alguém hão de ser entendidas extensivamente.

Por conseguinte, é forçoso concluir que, em virtude dos preceitos constitucionais e legais acima invocados, nada obsta o exercício do direito de voto por aqueles que se encontram custodiados pelo Estado, em estabelecimentos prisionais, quer em caráter provisório, quer cumprindo pena [...].

Em linha diversa ainda é o posicionamento de Dyrceu Aguiar Dias CINTRA JÚNIOR, ao defender que somente no caso de encarceramento do condenado haveria a suspensão dos direitos políticos. Na defesa desse entendimento, manifesta-se o autor:

Se o condenado estiver no gozo de seus status libertatis, por ter sido beneficiado com o sursis ou por estar em liberdade condicional, por exemplo, sem limitações que impliquem horários de recolhimento a cárcere - ao contrário do que ocorre com a prisão aberta em que há apenas autorização de saída para o trabalho -, não poderá ter seus direitos suspensos.

Outros estudiosos no assunto têm compreensão diversa: entendem que a medida extrema da suspensão dos direitos políticos deveria adstringir-se unicamente às hipóteses de cometimento de crimes dolosos, pois que só aí emergiria comportamento reprochável apto a justificar fosse o cidadão afastado dos ‘negócios da cidade’.

Em relação a esse aspecto, traz-se à colação manifestação de Edilson Pereira NOBRE JÚNIOR:

"Alvitro, portanto, que, demais da natureza de aplicabilidade plena de que é portador, o art. 15, III, da Lei Fundamental deve ter o seu alcance reduzido, excluindo-se de seu âmbito os crimes praticados com culpa stricto sensu, uma vez que a postura do seu autor não se reveste de ultraje inconciliável com a condução da boa gerência da coisa pública, por ausente o expressivo escopo de delinqüir".

A par de todas discussões acerca do alcance da norma restritiva do direito à cidadania, forçoso é concluir-se, em razão de toda argumentação expendida, que, a exemplo dos analfabetos e dos maiores de dezesseis anos e menores de dezoito, os direitos políticos dos condenados criminalmente com sentença transitada em julgado, sofrem, sim, algumas restrições. Não podem eles, por exemplo, concorrer a cargo eletivo (ius honorum) ou filiar-se a partido político. Todavia, tendo em vista o norte exegético indicado pelo princípio da universalidade do sufrágio, alicerçado nos princípios e regras constitucionais da igualdade e da liberdade e de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, é de inferir-se que os direitos políticos do condenado permanecem intocáveis no que se refere ao direito de votar (ius sufragii), não só em relação à escolha de candidatos a cargos eletivos, mas também a referendos e plebiscitos.

Nesse aspecto, instigada por qual teria sido a razão, o motivo de a Assembléia Constituinte de 1988, ao contrário do que dispunham as Constituições anteriores, ter reduzido a restrição ao direito de alistamento, expressamente, apenas aos estrangeiros e, durante o serviço militar obrigatório, aos conscritos, foram compulsados os Anais daquela Casa Legislativa por ocasião da votação do Capítulo IV - Dos Direitos Políticos.

Constatou-se, então, lamentavelmente, não ter havido nenhum debate em Plenário, não se encontrando nos Anais da Assembléia Constituinte nenhuma manifestação específica em relação aos pressupostos para o alistamento ou mesmo sobre o direito de voto dos condenados, por parte dos Srs. Deputados.

Contudo, investigando mais detalhadamente os trabalhos das subcomissões, especificamente a Subcomissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, deparou-se com o seguinte parecer acerca da Emenda nº 294 ao anteprojeto do relator da Comissão, apresentada em 1º de junho de 1987, de autoria do Deputado José GENOÍNO do Partido dos Trabalhadores de São Paulo, que pode estar apto a relevar o pensamento da Assembléia Constituinte acerca da matéria:

Emenda ao anteprojeto da Subcom. dos Dir. Polít., dos Dir. Coletivos e Garant. Ind.

Ao Anteprojeto da subcomissão dos Direitos Políticos

Dá a seguinte redação ao § 1º do art. 11 e acrescenta um novo parágrafo a este artigo, que passa a ser o 2º, renumerando-se os demais.

§ 1º - É obrigatório o alistamento de todo brasileiro com dezesseis anos completos, não podendo ser excluído do alistamento eleitoral por razões de sexo, raça, grau de instrução, fortuna, convicção política, fé religiosa, profissão e condenação criminal.

§ 2º - O exercício do voto é sempre facultativo.

PARECER

O ilustre Constituinte José Genoíno sugere nova redação ao § 1º do art. 11 da Subcomissão 1-b, estabelecendo o princípio do voto facultativo, instituto que considera imprescindível numa sociedade democrática.

É indubitável, que se pretende uma verdadeira democracia participativa, no entanto, o atual nível de politização não nos permite, ainda, esse princípio geral (sic).

Quanto às condições estabelecidas para o alistamento eleitoral, não vemos conveniência, nem necessidade do acréscimo sugerido, pois, quando se estabelece que ‘todos os brasileiros têm direitos’, o termo é abrangente, independentemente de sexo, raça, instrução ou qualquer outra qualificação.

Ao que parece, nem mesmo os Constituintes de 1988 pretenderam impor aos condenados a suspensão de seu direito de votar. Primeiro porque, ao contrário das Cartas Constitucionais anteriores, a atual fez-se silente quanto à impossibilidade de os indivíduos nessa situação se alistarem, e, segundo, a proposta de emenda proibindo tal discriminação em relação ao condenado pareceu desnecessária ao relator da Subcomissão de Direitos Políticos, ante o princípio constitucional de que todos os brasileiros têm direitos iguais.

Também em outro parecer da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher à proposta de Emenda nº 00139, de autoria da Deputada Anna Maria RATTES, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Rio de Janeiro, apresentada em 20 de maio de 1987, garantindo o direito de voto aos condenados, chega-se à mesma conclusão.

A Deputada defendeu sua Emenda ao argumento de que, a partir da edição da Lei 7.209, de 11.07.1984, que deu nova redação ao art. 38 do Código Penal, os presos conservam todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.

Efetivamente, diz o relator da referida Subcomissão, na parte final de seu parecer:

Reconhecemos total procedência à argumentação expendida, e dela somos defensores vigorosos. Tanto que no anteprojeto, em seu artigo 26, estabelecemos requisitos mínimos de respeito à dignidade e integridade física e mental do detento, bem como de seu direito à assistência espiritual e jurídica, à sociabilidade, à comunicabilidade e ao trabalho produtivo e remunerado. Não poderíamos, portanto, negar-lhes o direito de alistamento e voto, que eqüivaleria a recusar-lhe o exercício de direitos políticos, como pena acessória já recusada pela legislação.

Com efeito, o Constituinte de 1988 erigiu o dever de respeito à dignidade física e moral do preso à categoria dos preceitos fundamentais, ao consagrá-lo no art. 5º, inc. XLIX, sob o Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Por isso, com amparo no ensinamento da Prof.ª Graça BELOV, urge que se busquem medidas efetivas de combate às práticas de exclusão, tanto em nível legal quanto institucional.

Ademais, como assevera com propriedade a citada professora, o art. 3º da Lei de Execuções Penais - Lei 7.210, de 1984 - preconiza que "ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei", e, mais adiante, em seu parágrafo único, que "não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política".

Esses dispositivos, averbera a mestra baiana, "outorga-nos questionar por que os condenados não podem, a exemplo dos analfabetos, ser guindados à categoria de inelegíveis apenas, permitindo-se, assim, que possam exercer o direito de eleger seus representantes, mantendo-os vinculados à vida política do País, à certeza de que ainda são pessoas com algum valor, de que a sociedade se importa com o que sentem e pensam".

Quando o mundo marcha para uma globalização sem fronteiras, em que os interesses de grandes grupos econômicos sobrepujam os sociais, em que cada vez mais os seres humanos se tornam descartáveis, aos excluídos restam apenas três opções: a) sujeitar-se como vassalos aos desejos das elites dominantes, esperando poder contar com algum rompante de benevolência e humanidade por parte deles; b) rebelar-se contra toda essa situação de miséria, pela força da revolução; ou c) exercitar cada vez mais a cidadania, buscando eleger governantes mais comprometidos com o País e com os anseios do povo.

Efetivamente, como assevera Graça BELOV:

A utopia da transformação, da construção de sociedades mais democráticas, melhores e por isso, mais solidárias, mais iguais, livres, impõe o rompimento com a lógica excludente e perversa do capitalismo pós-moderno, somando-se o rompimento com qualquer forma de autoritarismo e opressão e a indispensável garantia da liberdade individual e do direito à cidadania.

É só com base na cidadania, na sua qualidade de cidadão, que o indivíduo terá acesso ao espaço público, fazendo-se ouvir. Por isso, o ideal da democracia é que todos os indivíduos, naturalmente capazes, participem da escolha não só dos governantes, mas que elejam também as políticas, as diretrizes a serem seguidas por esses governantes, enquanto instituições a serviço do povo.

Acresça-se a todos esses argumentos a manifestação do Deputado Carlos Alberto CAMPISTA, autor de Proposta de Emenda Constitucional n.º 486/97 - lamentavelmente arquivada pela Câmara dos Deputados, que justamente estendia ao preso o direito de voto - em entrevista dada ao Jornal do Conselho Federal da OAB:

Entrevistado: - O sr. acha que uma pessoa, ao ser condenada judicialmente, não deve perder o direito à cidadania?

Deputado: - É, a pessoa perde a liberdade, mas não perde a cidadania: não deixa de ser pai, não deixa de ser mãe, não perde todas as obrigações de cidadão. Ela apenas tem sua liberdade momentaneamente restringida. Então, a liberdade dele, de ser votado" (elegibilidade) ", choca-se com a pena de prisão, porque ele não tem o direito de ir e vir, mas não é o caso no seu direito de votar.

Assentando-se firmemente, pois, que tanto a legislação constitucional como a infraconstitucional não impedem o exercício do voto pelo condenado, tratar-se-á no próximo capítulo dos direitos do condenado, buscando estabelecer, num primeiro plano, a origem do direito de punir.

Num segundo tópico, procurar-se-á demonstrar que o impedimento do exercício do direito de voto por parte do condenado fere o princípio da proporcionalidade entre o bem tutelado pela norma jurídica e a pena, pois que penaliza indistintamente qualquer agente de ato ilícito, sem levar em conta sua maior ou menor gravidade e repercussão social.

Posteriormente, discorrer-se-á acerca da situação de abandono e de descaso em que se encontram os condenados no Brasil, principalmente os encarcerados, não com o propósito de esgotar o assunto, mas simplesmente delinear alguns dos aspectos em que a possibilidade de exercitarem sua cidadania poderia contribuir para minimizar tal situação, visando a reinseri-los no contexto social.


CAPÍTULO III

OS DIREITOS DOS CONDENADOS

O Estado Democrático tem como escopo o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais. Elenca como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, de acordo com o que preconizam Sérgio Salomão SHECAIRA e Alceu CORRÊA JÚNIOR:

[...] o homem deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal, onde o condenado será encarado como sujeito de direitos e deverá manter todos os seus direitos fundamentais que não forem lesados pela perda da liberdade, em caso de pena privativa de liberdade.

E, com propriedade, assinalam os autores que a pena é privativa de liberdade, e não privativa da dignidade, do respeito e de outros direitos inerentes à pessoa humana, acrescentando:

Ademais, é através da forma de punir que se verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo, pois, em pleno limiar do séc. XX, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do homem, sujeito de direitos fundamentais invioláveis.

3.1 A ORIGEM DO DIREITO DE PUNIR

Como visto nos capítulos anteriores, os homens, vivendo primitivamente em estado de natureza, ao chegarem ao limite da força de que cada qual podia empregar para manter-se, formaram uma agregação. Contudo, como cada ser humano possui interesses particulares e paixões diferentes, a fim de manter unida e coesa essa agregação na busca da felicidade para todos, editaram-se leis, que nada mais são que "condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la".

Cada um dos membros da sociedade, portanto, contratando com os demais, abriu mão de uma parcela de sua vontade particular, a fim de que pudesse se formar uma vontade geral, que representasse os interesses de todos.

Entretanto, como assevera BECCARIA, não bastava formar esse repositório da vontade geral. "Era mister defendê-lo das usurpações privadas de cada homem, em particular [...]. Faziam-se necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espírito de cada homem de submergir as leis da sociedade ao antigo caos". Em outras palavras, tornaram-se "necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres e conduzir a justiça ao seu fim". Instituíram-se, portanto, as leis, e nasceu aí o direito de punir quem as violasse.

Mas o que são leis? Leis podem ser conceituadas como tudo o que o povo estatui sobre si mesmo, de forma geral e abstrata. Assim, "as leis não são, em verdade, senão as condições da associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor delas; somente aos que se associam compete regulamentar as condições da sociedade".

Se as leis são regras, normas que o povo dá a si mesmo para refrear seus instintos egoísticos e suas paixões particulares, tem-se que toda e qualquer lei deve ter por fundamento o interesse de todos, pois que a norma decorre da expressão da própria vontade geral. Deve ainda trazer em seu bojo a expressão da justiça, "porquanto ninguém é injusto para consigo mesmo".

Disso se infere que o conteúdo de toda e qualquer lei deve ter como limite a exata medida do que é imprescindível para a manutenção do vínculo social, da convivência harmônica; ultrapassado esse limite, a lei torna-se injusta e desnecessária.

Assim como a lei, também a pena para quem violou a norma de conduta social deve externar uma necessidade, uma razão de ser, e encontrar sua fronteira no próprio objeto que a lei violada pretendia preservar. Exemplificativamente, a punição imposta a quem tenha agredido um ser humano é, sem dúvida, necessária, porque, pelo pacto social, a todos deve ser garantida a integridade física. E se assim não fosse, a associação dos homens, o pacto social se esfacelaria, pois ressurgiria o direito de todos se agredirem mutuamente.

Todavia, a punição não pode nunca impor ao infrator um sofrimento maior do que aquele que causou à vítima, do contrário, quebrar-se-ia o pacto social, pelo qual cada indivíduo só coloca à disposição do todo-soberano o que for essencialmente necessário para a convivência harmônica. Restaria violado, assim, o princípio da proporcionalidade entre o delito e a pena.

Nesse sentido, BECCARIA enfatiza que "toda pena que não derive da absoluta necessidade é tirânica, proposição esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico". Da mesma forma, o castigo que causar maior sofrimento que o necessário para manter unidos os interesses particulares não é manifestação de justiça, mas de tirania, pois "a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação".

A pena tem como finalidade moderar as paixões particulares, impedindo que o infrator cause novos danos aos seus concidadãos, e demover outros a agirem ilicitamente. Para tanto, "é, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proposições, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu".

Entretanto, como bem evidenciou BECCARIA, quando fez advertências sobre a proporcionalidade entre a pena e o delito cometido, a história da humanidade é pródiga em exemplos de aviltantes castigos impingidos aos infratores ou em punições que ultrapassam em muito o valor do objeto a ser protegido pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, assinala o autor que os homens,

[... ] só após haver passado entre si mil erros, nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo, dispõem-se eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades, as quais, por sua própria simplicidade, escapam à mentes mais vulgares, não habituadas a analisar os objetos, mas a receber-lhes todas as impressões, de uma só vez, mais por tradição que por exame.

O direito de punir advém, portanto, do consenso dos indivíduos que formam uma sociedade. Ao elaborarem as leis que eles próprios devem obedecer, os indivíduos conferem uns aos outros o direito de punir quem viole as normas assim estabelecidas. Mas, obviamente, ninguém vai prescrever a si mesmo uma lei que lhe imponha, ao mesmo tempo, um castigo pelo descumprimento de uma norma de convivência e a expulsão da própria sociedade.

Além de ser ilegítima, portanto, a pena de privação dos direitos políticos, aplicada indistintamente a toda e qualquer condenação, sem dúvida extrapola os limites dos danos causados pelo ato ilícito praticado. Na realidade, ocorre um bis in idem: o infrator é apenado duplamente pelo mesmo fato.

E esse excesso mostra-se injusto e descabido, tendo como finalidade, única e exclusivamente, manter uma prática de exclusão que vem se repetindo ao longo da história da humanidade.

3.2 AS PRÁTICAS PUNITIVAS NO TEMPO

Observando o desenvolvimento histórico dos sistemas punitivos em todos os tempos, verifica-se que o interesse do Estado em punir sempre variou de acordo com os interesses predominantes em cada época.

Assim, quando o corpo era o único bem que possuía o indivíduo, durante muito tempo, a humanidade assistiu e até se regozijou com a imposição da pena de tortura, do corpo supliciado, esquartejado, exposto vivo ou morto, como tão vivamente Michel FOUCAULT descreveu a punição de Damiens, condenado em 2 de março de 1757.

A punição era, portanto, um espetáculo público que glorificava a força e o poder do soberano, pois além de sua vítima, o criminoso atacara a lei, expressão da vontade do príncipe. E o príncipe jamais poderia admitir ter sua soberania atacada. Punia, então, exemplarmente quem ousasse fazê-lo, a fim de conservar seu próprio poder. Sua autoridade diante dos súditos, assim, tinha que ser constantemente revigorada.

Transportando-nos para a realidade da época, escreve Michel FOUCAULT que:

O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus inimigos [...]. O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstruir a soberania lesada por um instante. [...] Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser justa, a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso: deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca.

Entretanto, como ainda observa o autor, o público que assistia a essas atrocidades, pouco a pouco, foi tendo a sensação de que o espetáculo público da punição igualava-se ou ultrapassava em selvageria o crime que se estava a punir, "fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos".

"Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o cruel prazer de punir. Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que bendiga o céu e seus juízes por quem parece abandonada", o suplício começa a ser rejeitado. Por isso, o uso da roda e do chicote, a marca de ferro, o sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. A pena física, dessa forma, é substituída pelos trabalhos forçados, pela prisão, pela reclusão e pela interdição de direitos, cujo objetivo é privar o condenado de sua liberdade. Assim, "o castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais ‘elevado’".

Ainda de acordo com BECCARIA, mais adiante, com o desenvolvimento da economia, quando "os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar", adotou-se então a pena dos trabalhos forçados, que não deixa de ser uma pena física, só que o corpo, nesse caso, encontra-se em posição intermediária: "qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade, considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem".

Passada essa fase, revela o autor que com a Revolução Industrial, que exigia um mercado consumidor e, portanto mão de obra assalariada, abandonou-se a aplicação de trabalhos forçados como mecanismo de punição. Assim, quando, na esteira do movimento ideológico liberalista, o bem maior do indivíduo, aquela ‘prerrogativa’ indispensável para manter o domínio político passou a ser a liberdade, "o sistema punitivo adotou como pena a detenção e a reclusão com o fim corretivo."

Estava presente aí o disciplinamento do corpo, seu adestramento, objetivando "transformar as massas camponesas que, expulsas do campo, deviam ser educadas para a dura disciplina da fábrica".

Porém, como assinala FOUCAULT, a pura e simples privação de liberdade nunca foi suficientemente punitiva: sempre houve certos complementos punitivos referentes ao corpo, tais como "redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra".

Atualmente, com o surgimento de novas políticas criminais, poder-se-ia pensar que a punição não mais atinge o corpo do condenado. Ledo engano. Eliminou-se o suplício do corpo, a masmorra e a expiação física, mas fez-se surgir as celas infectas, úmidas, a superpopulação em que os presos são obrigados a fazer revezamento para dormir, ou até mesmo a se amarrarem nas grades com trapos, para conseguirem descansar, como freqüentemente noticiam os meios de comunicação. Isso sem falar nos abusos sexuais, nas doenças contagiosas, nas celas solitárias. A pura e simples privação da liberdade, ainda hoje, faz-se acompanhar de punições e sofrimentos corporais:

Da obra de FOUCAULT é possível depreender-se, então, que o objeto da pena sempre foi se amoldando às formas de sociedade: no início do século XVII, quando o único bem das pessoas era o seu corpo, esse era marcado, torturado e supliciado; quando as pessoas adquiriram a liberdade e a mão de obra era necessária, o sistema punitivo adotou os trabalhos forçados e o adestramento para o trabalho nas fábricas; quando o sistema industrial tornou supérflua a mão de obra dos condenados, passaram eles a ser enclausurados, vigiados, visando à sua docelização.

Dessa forma, é de se ver que é sintomática a punição do condenado com a suspensão de seus direitos políticos, justamente quando há o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Precisamente no momento em que cresce em importância a prerrogativa de os indivíduos poderem participar dos negócios públicos, da tomada de decisões, da escolha das diretrizes econômicas, sociais e políticas; quando o bem maior do indivíduo, sua força motriz emancipatória, numa sociedade organizada com base em um sistema capitalista excludente, é o exercício da cidadania, o sistema punitivo, além de impor-lhe a pena da sentença, priva o infrator da lei também do direito de reivindicar, de ser ouvido, de ser tratado por seus concidadãos como um semelhante.

A exemplo do suplício à sua época, a suspensão dos direitos políticos revela sua função jurídico-política: afastar da esfera pública e consequentemente de qualquer instrumento reivindicatório aquele que ‘ousou violar a lei’. Potencializa-se, dessa maneira, a separação do delinqüente do corpo social: de uma forma, com o aprisionamento do ser humano, do sujeito privado, que permanece enclausurado entre muros, onde ninguém o vê nem o ouve e, portanto, nem se importa com ele; de outra, com o emudecimento do homem político, com a imobilização do cidadão, sujeito capaz de fazer valer seus direitos e de conquistar novos.

Pode-se concluir, decorrentemente, que à maneira como a roda estraçalhava o corpo e os ossos do criminoso, humilhando-o no espaço público dos espetáculos de tortura, a suspensão dos direitos políticos aniquila o cidadão, emudece-lhe a voz, cassa-lhe a palavra, imobiliza sua ação, transformando-o num ser sem valor, que só conta para fins de estatísticas criminais. Assim, deve-se concluir que o espetáculo público do suplício, que tinha por objetivo restaurar perante a comunidade a autoridade do príncipe lesada por um instante, fez-se substituir, modernamente, pela suspensão dos direitos políticos, exatamente com o propósito de revigorar, a cada instante, a ‘autoridade do poder soberano’, representado pelas classes dominantes, que se auto-intitula a única eticamente em condições de determinar os destinos da Nação.

Diante dessas considerações, entende-se que a suspensão dos direitos políticos tem justamente a função de marcar o condenado, de humilhá-lo e estigmatizá-lo, perante si próprio - fazendo-o assimilar sua condição de mero súdito - e também frente o restante da comunidade, que geralmente vê nele um indivíduo indigno e sem qualquer direito.

Contudo, fica a advertência de que, da mesma forma que os suplícios e as mutilações dos corpos nunca serviram para tornar melhores os homens, como bem assinalou BECCARIA em sua obra, também a privação dos condenados de seus direitos políticos não pode se prestar para transformá-los em melhores cidadãos. Somente ao exercitarem efetivamente a cidadania, considerando a si mesmos como sujeitos de direitos, é que os indivíduos tidos como delinqüentes poderão transformar-se em cidadãos e, assim, compreenderão o valor de respeitar os direitos de seus semelhantes.

Ademais, como bem firmou o Marquês de BECCARIA, quando rebateu a utilidade e a justiça da imposição da pena de morte, afirmando que a soma das liberdades particulares de cada um representado na vontade geral jamais outorgara ao homem o direito de matar outro homem, e que, do sacrifício da menor parcela da liberdade de cada um, também nunca poderá resultar o sacrifício do bem maior de todos - que é a vida -, também a renúncia da menor parcela de soberania de cada indivíduo em prol do pacto social não autoriza a revogação do bem maior daquele que subscreveu o contrato social, que é sua participação na vontade geral.

Se um determinado número de indivíduos livres e independentes pactua entre si certas regras de conduta, abrindo mão de alguns poucos interesses particulares, a fim de manter unido e coeso o grupo, visando sempre ao benefício de todos, disso resulta que a violação de qualquer dessas regras jamais poderá ter como conseqüência a expulsão do infrator do grupo, porque tal punição atingiria o propósito primeiro do pacto, o seu fundamento, que é a formação de uma unidade. Se tal ocorresse, quebrar-se-ia o vínculo entre aquele que assim foi punido e a unidade, e o grupo, conseqüentemente, não mais teria legitimidade para impor-lhe qualquer sanção.

3.3. REALIDADE CARCERÁRIA BRASILEIRA

Segundo levantamento divulgado pela Ordem dos Advogados do Brasil, existiam em 1997 quase 150 mil presos no Brasil. Além desses, há considerável número de pessoas condenadas que não cumprem pena restritiva de liberdade, pois ou foram beneficiadas pelo sursis ou cumprem pena alternativa.

Mas quem são essas pessoas que têm contra si todo o aparato penal?

A realidade brasileira mostra que, na sua quase totalidade, são jovens oriundos das camadas mais pobres da sociedade, já marginalizados socialmente, estereotipados, filhos de famílias desestruturadas e que não tiveram e não têm acesso à educação nem à formação profissional.

Essa estatística evidencia duas realidades: a primeira é a luta de classes, as desigualdades sociais, a má distribuição de renda, que faz com que cresça o número de pessoas sem acesso aos bens de consumo mínimos e que, portanto, se vêem obrigadas a atacar o patrimônio alheio para sobreviverem ou mesmo para demonstrarem sua indignação, sua revolta ante a miséria. De outro, mostra a concentração da atuação do aparelho repressor do Estado justamente nas áreas sociais já marginalizadas.

Assim, não é sem propósito que as ‘batidas policiais’ ocorrem sempre nos morros, nas favelas, nos bairros das periferias, onde residem as pessoas mais pobres. Será que nas áreas das mansões, nos bairros de classe média e alta, a delinqüência passa ao largo? Certamente que não, mas é que a sociedade, por conta da ideologia dominante, construiu estereótipos de que quem delinqüi são sempre os pobres, os mendigos, os miseráveis.

Nesse aspecto, adverte Alessandro BARATTA que o sistema penal, desde a tipificação dos delitos, até as técnicas de individualização da pena - que se vale de mecanismos tais como as circunstâncias atenuantes e/ou agravantes para aplicar ao réu menor ou maior pena - reflete "predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando maior ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados".

Assim, o direito tende a criminalizar com mais freqüência as condutas típicas da população pobre e miserável. E a construção do sistema penal, portanto, responderia à exigência de reproduzir as relações sociais de desigualdades, conservando o status quo existente, ao selecionar como condutas repreensíveis justamente aquelas mais comuns das camadas menos favorecidas da população, como os saques ao patrimônio alheio - os furtos, roubos, assaltos -, deixando à margem do alcance da lei, de outro lado, condutas próprias das camadas mais esclarecidas, tais como as falcatruas financeiras, a sonegação fiscal, os crimes de "colarinho branco", sempre de difícil apuração e, portanto, de punição.

Sem dúvida é muito mais fácil e corriqueiro ao sistema repressivo comprovar e punir o fato de um "favelado" ter furtado uma bicicleta, do que ‘apanhar’ um banqueiro que, valendo-se dos meandros do poder e do tráfico de influências, desviou do patrimônio público milhões de dólares, que repousam sãos e salvos em paraísos fiscais, por este mundo afora.

A solução do problema da criminalidade, deve passar, necessariamente, também por reformulação dos valores da sociedade. Por isso, como enfatiza a Profª Graça BELOV:

Estamos muito longe de poder resolver os conflitos sociais nos grandes centros urbanos, que apresentam hoje níveis de criminalidade violenta consideráveis. Acreditamos que conviveremos ainda, por muito tempo, com sistemas penais cujo último patamar é a prisão, o que vale dizer, a pena privativa de liberdade, embora saibamos que criminalidade não se resolve com justiça criminal ou com prisões.

O estado de miséria do povo tem sido alimentado e realimentado justamente para preservar o status quo das classes dominantes, tanto que, segundo BARATTA, já não se fala em reinserção ou reeducação do condenado para a vida social, pois com a ampliação do ‘exército de reserva’, com o crescimento da massa marginalizada e excluída socialmente, a condição em que vive o condenado dentro das prisões se transforma no status habitual das pessoas não garantidas, daquelas que não são sujeitos, mas apenas objetos do ‘novo pacto social’. .

Também quanto à função da pena, leciona o mestre italiano que há mais de dois séculos dividem-se as teorias. A premissa fundamental da pena é de que se constitui numa resposta à criminalidade, numa forma de impedi-la. Assim, há quem sustente que a pena deve ter função retributiva pelo dano causado; outros valorizam-lhe o caráter intimidativo, consubstanciando-se em uma prevenção geral contra a criminalidade. Mais recentemente, sobreleva-se da pena o seu caráter reeducativo.

No Brasil, entretanto, em que pese hodiernamente ninguém mais sustentar a função retributiva da pena, do simples castigo pelo delito cometido, da vingança pública, mas apregoar-se sua função ressocializadora, a condenação ainda deve marcar o delinqüente com um sinal negativo, não em seu corpo físico, mas em sua alma, sua psique, seu intelecto. Assim:

À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade [...].

O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.

Nunca é demais repetir que o sistema punitivo no Brasil em nada tem contribuído para a ressocialização do delinqüente. Ao contrário, nosso sistema prisional tem servido de escola da marginalidade, não apenas pelo convívio de presos dos mais diversos graus de periculosidade, mas também e principalmente pelo abandono em que vivem os condenados, relegados à própria sorte.

A prisão, assim, promove no condenado dois tipos de processos que, segundo BARATTA, são complementares: a desculturização do indivíduo para conviver em sociedade, pois dentro do cárcere tem ele reduzida sua vontade, sua auto-estima, seu senso de responsabilidade. Promove-se-lhe um distanciamento dos valores da sociedade. E, de outra parte, uma aculturação, onde o preso é obrigado a apreender as regras de convivência dentro da instituição, adotando comportamentos próprios dela, para assumir o papel de "bom preso", com atitudes de bom comportamento e conformismo, ou a se agregar a lideranças que dominam o ambiente carcerário pela violência, assumindo assim definitivamente o papel do criminoso.

A realidade do sistema punitivo brasileiro demonstra que a situação dos condenados, especialmente aqueles que se encontram encarcerados, é efetivamente desoladora. A par de liderarem a massa dos excluídos sociais, na qual são muito de perto seguidos pelos sem-terra, sem-teto, desempregados, pobres, pelas pessoas que não têm acesso à alimentação mínima, à escola, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, os condenados vivenciam ainda uma dupla exclusão: fisicamente, estão afastados da sociedade, quando encarcerados, e politicamente, afastados da cidadania, do poder soberano.

"Vivendo como animais. Eles vivem enjaulados e amontoados em pequenos espaços úmidos e sujos. Esta é a realidade dos quase 150 mil presos brasileiros". Este é o título de matéria publicada no Jornal do Conselho Federal da OAB, que descortina a realidade dos nossos presídios:

O ambiente é úmido e escuro. Lá 64 pessoas amontoam-se em um espaço projetado para abrigar apenas 20. O endereço é a 26ª Delegacia Policial de Samambaia, cidade-satélite de Brasília [...], mas poderia ser qualquer uma das delegacias brasileiras. A superlotação da 26ª DP levou os presos a uma atitude drástica: ameaçaram matar um companheiro de cela por semana até que o governo local tomasse providência. [...] Essa é a realidade do Brasil, onde 148.760 presidiários - equivalente a um Maracanã lotado - vivem em condições subumanas, amontoados como animais em espaços exíguos e sujos, sujeitos a doenças e mortes. [...] São Paulo apresenta o quadro mais crítico do País, abrigando em média até quatro pessoas em um espaço físico reservado para uma. [...] O quadro mais dramático brasileiro é o da Prisão Feminina de Monte Mor, município da região de Campinas. Lá, cada detenta ocupa 45 centímetros de espaço físico. Por sua vez, o Pavilhão 8 da Casa de Detenção, também em São Paulo, abriga 110 presos amontoados em uma única cela de triagem. Lá, convivem lado a lado assassinos, seqüestradores, traficantes, com presos que cometeram pequenos delitos contra o patrimônio.

O encarceramento, nessas condições, não tem qualquer caráter educativo, pois ao invés de promover o auto-respeito do condenado, de propiciar-lhe uma convivência com os outros detentos num ambiente de cordialidade e de mútuo respeito, humilha-o, degrada-o, obrigando-o a permanecer num espaço intimidatório, onde a força do mais forte é que faz a lei.

E essa prática de humilhação não se circunscreve apenas à pessoa do detento, mas se dá também em relação a seus familiares. Quem já teve a infelicidade de ver um familiar ou algum conhecido encarcerado sabe muito bem como são feitas as revistas das esposas, das namoradas e até das irmãs e mães dos presos. São despidas e revistadas inclusive nas partes internas de seu corpo - órgãos genitais -, para ver se não estão transportando para dentro da penitenciária alguma espécie de droga.

A fim de que possam reivindicar mudanças nas políticas públicas que alterem essa dura realidade, faz-se necessário então que os condenados disponham de um poder de ação no espaço público, por meio do exercício da cidadania.

3.4 O CIDADÃO CONDENADO

Embora com as limitações que lhe sejam impostas pela sentença, tais como encarceramento, prestação de serviços à comunidade, pagamento de multa, dentre outras, por certo ninguém haverá de sustentar que o condenado não subsiste como sujeito de direitos. Ele está inserido no processo social de construção de direitos, afetando e sendo afetado pelas opções que o mundo livre faz.

Exatamente por isso, há quem sustente que a relação jurídica de subordinação do condenado ao Estado é ainda mais forte que a do cidadão livre, tanto que se submete ao império da lei e do Direito, curvando-se ao julgamento pelos seus pares, seja por intermédio do Estado-Juiz ou do Júri Popular, e sujeitando-se à sentença que lhe é imposta. É partícipe, portanto, de um Estado Democrático de Direito, revelando sua sujeição à punição do Estado precisamente uma das conseqüências de sua condição de cidadão: a de subordinação à lei, sob pena de sanções.

É precisamente fundado nesse aspecto que Pedro Armando Egydio de CARVALHO, em artigo publicado na Revista de Direito Militar, revela que o ser humano preso, em verdade, reflete o "modelo de cidadania plena".

Escreve o autor:

À primeira vista, o título do artigo configura um absurdo. Quem cometeu um crime e, por isso, está metido a ferros, aparece ao nosso olhar como o avesso do cidadão, do homem livre e honesto; ainda que muitos direitos sejam reconhecidos ao preso, por força de leis [...], a perda da liberdade ambulatória e o lançamento de seu nome no livro dos culpados, convenhamos, tornam-no, mercê de uma interpretação benigna, o último dos cidadãos, jamais o modelo ideal deles.

E prossegue o autor, mais adiante:

O homem preso não é um delinqüente. Por causa de um delito, é certo, veio a ser encarcerado. Mas, agora, sob a dura mão da execução penal, é um sujeito de direitos e deveres, todos vigentes no espaço físico da pena e no tempo de sua duração. Portanto, no instante mesmo em que o criminoso é detido e algemado, perde sua condição de facínora: o homem ressurge.

O condenado, encarcerado ou não, tem um papel social, e como tal se relaciona com os demais segmentos da sociedade. Tem, portanto, o direito e o dever de reivindicar seu espaço civil e político, até como forma de obter das políticas públicas a devida atenção para os cruciais problemas do sistema punitivo nacional. A cidadania, como já se disse, não apenas é um meio para o respeito aos demais direitos do ser humano, mas fixa-se também como o princípio ensejador da conquista de novos direitos. A suspensão dos direitos políticos do condenado, assim, além de vulnerar o princípio constitucional da soberania popular, caracteriza-se como a violação de um direito fundamental da pessoa humana.

Nesse aspecto, oportuna é a reflexão de Celso LAFER sobre o pensamento de Hannah ARENDT:

[...] os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais - o seu estatuto político - vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante".

[....]

De fato, o processo de asserção dos direitos humanos, enquanto invenção para a convivência coletiva, exige espaço público, a que só se tem acesso por meio da cidadania. Por isso, como apontou a Suprema Corte dos EUA, no mundo contemporâneo destituir alguém de sua cidadania é tendencialmente expulsá-lo do mundo, tornando-o supérfluo e descartável [....].

Esse, aliás, tem sido o comportamento de nossa sociedade, que vê no condenado apenas a figura do marginal, do delinqüente que violou normas, no mais das vezes injustas, já que nosso ordenamento jurídico privilegia o patrimônio em detrimento do ser humano. Os condenados, especialmente aqueles que se encontram encarcerados, amontoados e esquecidos em nossos presídios, têm tido acesso a um único instrumento de reivindicação, quando as condições de convivência os fazem extrapolar qualquer senso de racionalidade: é a rebelião, cujas conseqüências desastrosas é de todos sabida.

Os massacres, as torturas, a desconsideração total do ser humano aprisionado tem sido a rotina dos presídios, cadeias públicas ou casas de detenção em nosso País. A sociedade livre, anestesiada, nem mais se choca com esses acontecimentos; passa ao largo deles, incólume, como quem assiste a um filme na telinha da tevê.

Desviando-se o enfoque agora para a questão da justiça da pena, é de se enfatizar que, como fixou definitivamente Cesare BECCARIA, a pena só é justa quando necessária. Assim, de acordo com o que já se assentou, todas as penas que ultrapassem a necessidade de conservar o vínculo social são injustas pela própria natureza.

Ademais, a Constituição da República de 1988, ao inaugurar uma nova ordem no Direito pátrio, fez emergir discussões sobre o que se deve punir, a quem se deve punir e como se deve aplicar essa punição.

Por isso, estão expressamente previstos no texto constitucional os princípios da legalidade, da pessoalidade, da individualização e da humanização das penas. Além desses, é possível inferir-se outros princípios implícitos, tais como o da necessidade, da proporcionalidade e da função ressocializadora da sanção penal.

Nesse ponto, dois desses princípios interessam mais de perto: o da individualização da pena e o da necessidade. A individualização da pena consiste em mensurar a pena de acordo com o caso concreto. Circunstâncias distintas entre os transgressores podem determinar punições diferentes.

O inciso LXVI do art. 5º do Texto Constitucional está assim redigido:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

[....]

e) suspensão ou interdição de direitos.

É certo, pois, que a aplicação da sanção restritiva do direito de voto a todo e qualquer condenado, sem a devida individualização e motivação no plano judicial, vulnera postulado básico de justiça.

Também quanto à finalidade ou necessidade da sanção penal, faz-se mister transcrever lição de Graça BELOV acerca das novas conquistas no campo da cidadania e da ética:

Também São Tomás de Aquino, em sua obra intitulada ‘Suma Teológica’ afirma, claramente, que o legislador da lei humana não pode castigar tudo que moralmente está proibido [...] Modernamente, com a influência da Sociologia do Direito, a maneira de conceber o fim e a função do direito Penal se tem generalizado na expressão ‘função social da lei’.

Perguntar-se-ia, então, que função social exerceria a lei que impede o condenado de ser cidadão? Nenhuma. E arremata a autora, afirmando que toda essa situação "justifica a luta para tornar o referido sistema" (punitivo) "menos perverso".

E a luta para tornar o sistema punitivo no Brasil menos perverso, fazendo com que os já excluídos socialmente não sejam mais uma vez segregados, passa, necessariamente, pela efetiva valorização da pessoa humana, a qual, num sistema democrático, decorre do efetivo exercício da cidadania, ensejando o respeito à igualdade entre os agentes sociais.

A Constituição Federal de 1988 propugna pelo Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/88).

Demais disso, o art. 3º da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, (Lei de Execução Penal), estabelece:

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.

Reafirma-se, assim, que a limitação ou a privação de outros direitos do condenado, que não os impostos expressamente na sentença, viola tanto o princípio da individualização da pena, quanto o sentido da proporcionalidade.

No mesmo enfoque, preconiza Dyrceu Aguiar Dias CINTRA JÚNIOR que:

Sendo o direito de votar e ser votado uma das mais caras expressões da cidadania, não se pode entender que o cidadão o tenha suspenso, sempre que condenado criminalmente - ainda que beneficiado com a suspensão condicional da pena ou punido com multa - experimentando, por força do artigo 15, III, da Constituição da República, outra pena. Isto significaria impor a todos, igualmente, uma sanção que pode, dependendo do caso, ter efeitos mais severos que a cominada na legislação penal, que é a própria do delito.

E acrescenta o autor:

A já referida sensação de injustiça em aplicar a suspensão de direitos políticos tanto a um grave violador da lei penal condenado a cumprir efetivamente a pena em regime fechado quanto a alguém que cometa, por exemplo, uma lesão corporal, e receba pena branda, com sursis, tem uma razão de ordem constitucional.

É que tal posicionamento implica, sob a ótica do direito punitivo do Estado, considerar a suspensão de direitos políticos uma outra pena, por mais que se queira dar-lhe a feição de mera decorrência da condenação.

E a interpretação mais severa e abrangente do preceito em exame [...] produz um grave descompasso pela quebra do princípio da individualização da pena (art. 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal), que orienta não apenas o legislador, mas, também, o aplicador da lei penal.

[...]

Abre-se, por outrossim, caminho para o rompimento com o princípio da proporcionalidade, pelo qual a parte especial do Código Penal e as leis extravagantes que definem tipos penais devem ser encaradas como um sistema de tipos e penas que se relacionam uns com os outros.

Na mesma senda vai o ensinamento de Júlio Fabbrini MIRABETE, que, ao lembrar que algumas legislações modernas regulam o exercício do direito político aos presos e internados, entre elas as da França, Itália, Suécia, Alemanha e Espanha, afirma, textualmente:

O condenado conserva todos os direitos reconhecidos aos cidadãos pelas normas jurídicas vigentes, com exceção, naturalmente, daqueles cuja privação ou limitação constituem precisamente o conteúdo da pena imposta.

Heleno FRAGOSO, a seu turno, também vê na suspensão dos direitos políticos do condenado punição infundada, servindo para estigmatizá-lo e para marcar ainda mais sua separação do mundo livre.

Os argumentos que se tem usado para fundamentar a suspensão dos direitos do condenado são de ordem ética, pois que o criminoso seria indigno de participar dos negócios públicos.

Fávila RIBEIRO, nesse sentido, assevera que:

A linguagem constitucional é fiadora de uma atitude ética, escoimando temporariamente da vida pública todo aquele que se não tenha revelado ajustado a uma vida lícita, descambando para o campo da criminalidade, enquanto não quitar-se com a sociedade pelo malefício que lhe infringiu.

Também Pedro Henrique Távora NIESS, em sua obra Direitos Políticos - Condições de Elegibilidade e Inelegibilidade, afirma ser tal sanção uma "conseqüência ética, inafastável da condenação".

Por isso, como se vê, os condenados no Brasil têm sofrido duplo julgamento: um jurídico, com base no delito que cometeram, do tipo penal que infringiram, merecendo a imposição da pena prevista na norma penal; e outro, moral, ético, pois o que se alega para impedi-los de votar é que não teriam dignidade suficiente para participar dos negócios da cidade.

Tal discriminação moral e ética, entretanto, como já visto neste estudo, não tem embasamento aceitável, pois toda pessoa tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesma, na expressão kantiana:

O homem [...] existe como fim em si mesmo, não só como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade; em todas as suas ações deve, não só nas dirigidas a si mesmo, como também nas dirigidas aos demais seres racionais, ser considerado sempre ao mesmo tempo como fim.

A norma que, com base em argumentos puramente discriminatórios - sejam eles de ordem econômica (quando a prática era voto censitário); cultural (quando se adotou o voto capacitário); ou moral (quando se argumenta que o condenado é indigno de participar dos negócios públicos) - impede o exercício da cidadania deixa de atender aos princípios da Razão e da Democracia.

Como evidenciado pelo Juiz WARREN, da Suprema Corte Americana, no caso Trop versus Dulles, "a cidadania não é uma licença que expira com a má conduta [...]. A cidadania não se perde a cada vez que um dever de cidadania é esquivado. E a privação da cidadania não é uma arma que o governo pode usar para expressar seu descontentamento com a conduta do cidadão, por mais repreensível que esta conduta possa ser".

De mais a mais, como bem salientado por Alessandro BARATTA, já CARRARA fizera distinção entre a consideração jurídica do delito e a consideração ética do indivíduo. Isso significa que os delitos devem ser punidos levando-se em consideração o dano causado, não a moral, a ética do agente.

3.5 O EXERCÍCIO DO VOTO POR PARTE DO CONDENADO

A garantia do exercício de voto aos condenados, passa, necessariamente, por uma tomada de postura da sociedade civil, especialmente por parte dos Conselhos Penitenciários. Senão vejamos.

À Justiça Eleitoral cabe instalar seções eleitores onde existam, pelo menos, 50 (cinqüenta) eleitores aptos a votar, à medida que forem sendo deferidos os pedidos de inscrição ou de transferência (art. 117 do Código Eleitoral).

Também prevê o Código Eleitoral, em seu art. 136, que deverão ser instaladas Seções nas vilas e povoados, assim como nos estabelecimentos de internação coletiva, inclusive para cegos, e nos leprosários onde haja, pelos menos 50 (cinqüenta) eleitores.

Há, pois, determinação expressa no sentido de que a Justiça Eleitoral instale Mesas Receptoras de Votos nos presídios. Apesar disso, a prática tem mostrado exatamente o oposto. É preciso, pois, que a sociedade civil e os Conselhos Penitenciários passem a atuar mais decisivamente, reivindicando à Justiça Eleitoral o comparecimento de preparadores eleitorais nos presídios ou casas de detenção - antes da data prevista para o fechamento do Cadastro Nacional de Eleitores, que ocorre sempre 150 (cento e cinqüenta) dias antes de cada eleição -, a fim de procederem ao alistamento ou à transferência da inscrição eleitoral daqueles que se encontrem reclusos.

Esse tipo de providência, aliás, de há muito deveria estar sendo tomada, a fim de serem colhidos os votos dos detentos que ainda não têm contra si qualquer condenação criminal transitada em julgado, pois o exercício do voto desses cidadãos constitui direito líquido e certo, que deve ser assegurado inclusive via mandado de segurança.

Aliás, nesse sentido, Fávila RIBEIRO, ao tratar do alistamento eleitoral, comenta que os presos que aguardam julgamento ou trânsito em julgado da sentença, à luz da Constituição Federal, têm pleno direito ao exercício do voto:

O impedimento deles é circunstancial, de fato. Eles não estão impedidos, na acepção jurídica do termo, mas impossibilitados, na acepção fática, tanto quanto um cidadão comum, fora de seu domicílio eleitoral [...]. Deve-se ter em mente que tal restrição fática pode ser contornada assegurando-se aos presos, nessa condição, o exercício do voto, particularmente nas eleições gerais e presidenciais, com a providência da instalação de seção especial nos estabelecimentos correicionais.

Em relação a esse aspecto, portanto, tem havido expressa violação de norma constitucional por parte da Justiça Eleitoral, ao não propiciar as condições materiais para o exercício do direito de votar aos presos provisórios ou temporários - enfim daqueles que ainda não têm contra si condenação criminal transitada em julgado. E também, pelo menos com base nos estudos até agora empreendidos nesta monografia, em relação aos condenados com sentença já transitada em julgado.

Os demais condenados - aqueles cujo cumprimento da pena não lhes tolhe completamente a liberdade de ir e vir, quais sejam, os beneficiados com sursis, os que cumprem pena restritiva de liberdade em regime aberto ou semi-aberto, os que foram condenados à pena de multa, de prestação de serviços à comunidade ou de trabalhos alternativos - devem participar das eleições, comparecendo nas Seções Eleitorais em que se inscreverem, votando junto com o restante da população.

Desse modo, Orlando SOARES, advogando a idéia de que, ante a ausência de qualquer norma legal pertinente à suspensão de direitos políticos, qualquer medida restritiva ao exercício dos direitos de cidadania que implique o cerceamento do direito de votar e ser votado constituiu uma abusiva violação do princípio da reserva legal, assim se manifesta:

Em outras palavras, a perda do status libertatis, no caso, não implica a suspensão do direito-dever de voto, bastando que a autoridade competente providencie a colocação de urna nos estabelecimentos penais, para efeito da coleta de cédulas eleitorais, até porque o voto é obrigatório (art. 14, § 1º, I, da Lei Magna), constituindo manifestação de civismo.

De resto, o exercício desse direito-dever de votar se insere, em princípio, nas medidas reeducativas e nas políticas de tratamento do delinqüente, preconizadas pela Criminologia e pela Política Criminal [...].

De se concluir, então, que existem mecanismos para que a Justiça Eleitoral promova o efetivo exercício do direito de voto por parte do condenado. Ainda mais atualmente, com a implementação da votação eletrônica, não se observa inconveniente algum em instalar-se uma Mesa Receptora de Votos nos presídios, desde que tomadas as devidas cautelas com relação à segurança dos mesários, que muito bem poderiam ser nomeados dentre os familiares dos presos e/ou funcionários da instituição.

Aliás, nesse aspecto, compulsando a jurisprudência eleitoral acerca do assunto, constatou-se a existência de apenas dois julgados, um do Mato Grosso e outro do Distrito Federal, em que houve solicitação à Corte Superior Eleitoral no sentido da instalação de Mesas Receptoras de Voto em presídios, penitenciárias e delegacias de polícia, a fim de que os detentos provisórios pudessem votar. Tais solicitações, entretanto, foram indeferidas pela extemporaneidade do pedido. Importantíssima, assim, é a chamada de atenção das autoridades penitenciárias e mesmo dos membros dos Conselhos Penitenciários, a fim de que observem os prazos do calendário eleitoral, buscando com isso resguardar os direitos dos presos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações expostas neste trabalho, pretendeu-se evidenciar que a cidadania e o exercício do voto são um direito, não um privilégio concedido apenas a certos indivíduos de elevadas condições econômicas, culturais ou mesmo morais; seu reconhecimento deriva do fato objetivo de o indivíduo pertencer à comunidade e de possuir condições mínimas de discernimento.

Compreende-se, em razão disso, que todas as formas de restrição do direito ao exercício do voto nada mais revelam do que técnicas antidemocráticas, destinadas a propiciar a manutenção do status quo de exclusão, impelindo o condenado a afastar-se cada vez mais do senso de realidade do mundo externo, para assumir de vez sua condição de vassalo, de mero espectador da vida pública, em vez de partícipe dela.

Outro enfoque que sobreleva apontar é que, se o condenado é considerado, do ponto de vista do Direito Penal e do Direito Civil, agente plenamente capaz, tanto que de sua conduta anti-social lhe decorre a imposição de sanções penais, além da obrigação de indenizar os danos porventura causados à vítima, como se justifica seja ele tachado de "incapaz, inidôneo e de desprovido de qualquer dignidade" do ponto de vista político?

A tão embaraçosa questão, certamente, só se pode encontrar explicação no efetivo descaso da sociedade para com aqueles que, na quase totalidade, já são marginalizados socialmente.

Em função disso, procurou-se enfatizar neste trabalho que a todo ser humano capaz de atos conscientes deve ser garantida a capacidade eleitoral, pelo menos para o exercício do direito de votar, não só como forma de diminuir injustas diferenciações sociais, dado o caráter ensejador da conquista de novos direitos de que se reveste a cidadania participativa, mas também para preservar e garantir a Democracia.

Ademais, como se apontou, se a Revolução Francesa teve como ideal acabar com o governo de um ou de alguns, não há como justificar que no Governo do Povo pelo Povo, semelhantes nossos permaneçam à margem do poder soberano e, conseqüentemente, se vejam amordaçados e impotentes no sentido de garantirem seus mínimos direitos e marcharem para a conquista de novos.

Sob o prisma filosófico, portanto, procurou-se demonstrar que qualquer argumento contrário ao direito de voto do condenado não encontra justificativa, além de violar direitos individuais que têm todos os membros de uma sociedade de participar da vontade geral.

Da mesma forma, do ponto de vista normativo, enfatizou-se não existir qualquer impedimento ao voto do condenado, pois o art. 1º da Constituição Federal, sob o título "Dos Princípios Fundamentais", estabelece que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos, dentre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, figurando na categoria povo também os condenados.

Tal entendimento foi embasado, ainda, no princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, insculpido na Magna Carta, bem assim como a garantia da soberania popular, exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos.

Acresça-se a isso o fato de a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, não impedir o alistamento eleitoral das pessoas que não estejam no pleno gozo de seus direitos políticos. Assim, é de se entender que o inciso III do art. 15 da Constituição Federal, que suspende os direitos políticos de quem tenham contra si condenação criminal transitada em julgado, tem reflexos apenas nos direitos políticos passivos, ou seja, na elegibilidade.

De resto, quando a Revolução Francesa de 1789 suplantou o absolutismo, definiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que cabe a cada indivíduo todos os direitos e todas as liberdades nela enunciadas, sem distinção por razões quaisquer, nem mesmo quanto ao seu status libertatis.

O direito à liberdade não consiste apenas no direito de ir e vir, à capacidade ambulatória do indivíduo. É muito mais, é o direito que tem todo indivíduo, no gozo de suas faculdades mentais, de autodeterminar-se. É a liberdade de pensamento, de expressão, de manifestação política, prerrogativas essas que não podem ser revogadas pela condenação criminal.

Sob o prisma sociológico, por sua vez, fez-se incursão sobre qual seria a função social da norma restritiva do direito de voto do condenado, não se vislumbrando qualquer uma, a não ser excluir ainda mais os já excluídos.

Como se procurou enfatizar, a grande massa dos condenados no Brasil é composta por infratores provenientes das camadas sociais mais estigmatizadas e que, em decorrência da exclusão social, preponderantemente atentaram contra o patrimônio alheio. Enquanto isso, os grandes infratores da economia pública e da ordem tributária, que avançam sobre o patrimônio de milhares de pessoas, permanecem inatingíveis pelo aparato punitivo estatal e, o que é pior, patrocinando campanhas políticas de candidatos que representem, única e exclusivamente, interesses das classes dominantes.

Nesse sentido, assinale-se que ninguém há de ser tão ingênuo de pensar que no Brasil vigora o princípio do voto igualitário: um homem, um voto. O voto daquele que contribuiu com verbas para a campanha do candidato certamente tem valor infinitamente maior do que o daquele que apenas sufragou seu nome por considerá-lo melhor.

Por óbvio, para o candidato o voto do primeiro é qualitativo, enquanto o do segundo é meramente quantitativo. Entretanto, impõe-se reconhecer que, ao menos do ponto de vista formal, a possibilidade de que o seu voto valha equivalentemente ao voto de um empresário pode funcionar para o condenado como um referencial de poder e de auto-respeito, ao incutir-lhe o sentimento de que ‘a sua pessoa, o seu ser vale alguma coisa’. Esse fato, por si só, já seria suficiente para promover-lhe o exercício de outras vertentes da cidadania, de forma a patrocinar uma mudança no sistema prisional.

Modernamente, tem-se apregoado o sentido ressocializador da condenação, como mecanismo de (re)integração do malfeitor ao meio social. Entretanto, para que essa diretriz do Direito Penal se concretize, mostra-se fundamental, como se viu, uma praxis que resgate valores do condenado, tanto como pessoa humana quanto como membro da sociedade em que vive.

Destarte, é de se concluir que se se pretende repensar o sistema punitivo no Brasil, acabando com a roda-vida das reincidências, deve-se assegurar aos condenados os seus direitos políticos, inserindo-os no espaço público, pois não se pode pretender acabar com a exclusão social excluindo-se. Nesse aspecto, como muito bem explicitado por Alessandro BARATTA, "toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir".

Ademais, como asseverou Hannah ARENDT, os homens não nascem exatamente iguais, tornam-se iguais em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade resulta, então, da organização humana. Por isso, segundo suas palavras, "perder o acesso à esfera do público é perder o acesso à igualdade. Aquele que se vê destituído da cidadania, ao ver-se limitado à esfera do privado, fica privado de direitos", restando à mercê da benevolência dos outros.

Vivendo o homem em sociedade, "o primeiro direito humano que a polis, como um artefato humano, pode conceder, e do qual derivam todos os demais, é o direito à vida pública, que permite o comando da palavra e da ação", em busca de outros e novos direitos.

Aponta-se, finalmente, para o fato de que, sem os direitos de cidadania e, portanto, expulsos do cenário público, os condenados, limitados ao minúsculo espaço privado de suas celas, tornaram-se supérfluos para a sociedade, encontrando na rebelião a única forma de se fazerem ouvir e ver.


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MASCHIO, Jane Justina. Os direitos políticos do condenado criminalmente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 346, 18 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5368. Acesso em: 19 abr. 2024.