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Jogo da baleia azul: tipificação penal e competência para processo e julgamento

Jogo da baleia azul: tipificação penal e competência para processo e julgamento

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Conheça as consequências, tipificações penais e a competência para processo e julgamento dos crimes cometidos durante a prática do jogo virtual da baleia azul.

Infelizmente surgiu nas redes sociais um jogo virtual denominado de “Baleia Azul” (originalmente em inglês “Blue Whale”), tendo como uma das primeiras vítimas que ensejou a investigação sobre o caso, uma garota de 17 anos do extremo oriente russo. Segundo narra Rogério Sanches Cunha, em vídeo bastante esclarecedor sobre o tema, as origens desse jogo macabro advém de outro cujo nome era “Wake me up at 4:20 h.”. O título se refere à informação estatística de que a maioria dos casos de suicídio ocorre nas proximidades desse horário. A ligação do jogo com o suicídio e a adoção do nome “Baleia Azul” não é aleatória. Ocorre que esses cetáceos costumam atolar nas praias num comportamento que se assemelha ao suicídio, ao menos numa abordagem antropomórfica. Fato é que o famigerado jogo tem sempre uma finalidade, um objetivo final, que é levar o participante à prática do suicídio. Isso é obtido de forma sorrateira, atraindo pessoas influenciáveis, mormente crianças e adolescentes, para a prática, dando-lhes um sentido de relevância e de desafio com a proposta de “missões” que vão de pequenos atos até condutas repugnantes ou perigosas, culminando com a retirada da própria vida. Os participantes têm de provar com fotos, filmagens, gravações etc. que realmente cumpriram as “missões” que lhe foram passadas por um “curador” do jogo. Segundo investigações, é fato que os grupos dedicados a esse jogo infame escolhem a dedo os participantes e lhes conferem as missões como uma espécie de ritual de aceitação ou iniciação para que sejam aprovados como membros. A escolha tem como parâmetro, na verdade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade de menores ou mesmo maiores, os quais apresentem já problemas psicológicos que os tornem alvo mais fácil para o induzimento ou instigação ao suicídio. A pesquisa se dá por meio das redes sociais, que acabam contendo muitas informações sobre o perfil psíquico, a vida social, as agruras e personalidade das pessoas que ali se expõem demais. Chegou a haver suspeita de que o jogo tivesse por origem um livro intitulado “50 dias antes do meu suicídio” no bojo do qual há a referência ao suicídio de uma jovem e às mais variadas técnicas para tanto. Contudo, não foi possível fazer qualquer ligação entre o livro e o surgimento do jogo virtual. No que diz respeito ao campo penal, ainda que o livro tivesse inspirado de alguma forma o jogo e os suicídios que daí advieram, seu autor, Stace Kramer, não poderia, segundo a legislação brasileira, ser responsabilizado pelo crime de induzimento ao suicídio ou à automutilação, previsto no artigo 122, CP. O suicídio, segundo ensinamento de Euclides Custódio da Silveira, “é a deliberada destruição da própria vida”. Ocorre que a prática do suicídio é impunível em termos de legislação temporal pelo simples fato de que o autor é falecido e se operaria automaticamente a extinção de punibilidade pela morte do agente, nos termos do artigo 107, I, CP. Ou seja, mesmo que o legislador quisesse, seria impossível punir temporalmente a prática do suicídio. Isso fica para alguma sanção de natureza religiosa, se for o caso. No entanto, seria possível punir a “tentativa de suicídio”, pois nesses casos a pessoa sobrevive. Mesmo assim nossa legislação, acertadamente, por motivos de Política Criminal, se absteve de prever qualquer tipo penal. Ora, esse tipo de punição somente traria mais conflitos e males sociais e jamais seria alguma solução para o problema. O mesmo se pode dizer sobre a autolesão ou automutilação. De acordo com a lição de Mirabete e Fabbrini, citando Adriano Marrey: “Por razões que se prendem à impossibilidade de punição do suicídio e à política criminal não se incrimina a prática do suicídio. Como a pena não pode passar da pessoa do delinquente (art. 5º., XLV, da CF), seria impossível sua aplicação ao suicida. Ademais, a cominação da pena não serviria de prevenção, porque quem quer morrer não se importa com a ameaça de sanção, seja ela qual for. Mesmo quanto à tentativa, ‘o Estado renuncia à punição, por motivos políticos e de ordem ética, de piedade, de caridade humana, que o impedem de agravar com a pena a amargura de quem já se lançou em busca da morte’”. Mas, isso explica por que o suicida ou aquele que tenta se suicidar não sofre punição penal. Não esclarece por que Stace Kramer não poderia ser punido se seu livro influenciasse o jogo e, consequentemente, os suicídios de terceiros, já que existe o artigo 122, CP que pune a participação em suicídio alheio e atualmente, após o advento da Lei 13.968/19, também na automutilação perpetrada por outrem. Essa questão está ligada ao fato de que para a configuração do crime do artigo 122, CP, há necessidade de que a vítima ou as vítimas sejam determinadas. A produção de um livro, que não tem um destinatário certo, mas leitores aleatórios, não serve para configurar o tipo penal de induzimento ao suicídio ou à automutilação. Conforme Damásio: “É necessário que seja determinada a pessoa induzida ou instigada. Assim, é imprescindível que o sujeito induza Pedro, Domingos ou Antônio. Não há crime, por exemplo, na hipótese de o sujeito escrever um conto que leve seus leitores ao suicídio”. Também não há falar-se em “Apologia ao Crime ou Criminoso” (artigo 287, CP), tendo em vista justamente o fato de que o ato de suicídio ou autolesão não configura infração penal. Para a caracterização desse tipo penal e a responsabilização de alguém, mister se faz, imperiosamente, que seja descrito na denúncia o crime ou o criminoso que se enaltece, o que seria impossível no caso do suicídio ou do suicida ou mesmo da autolesão ou da pessoa que se autolesiona. De qualquer forma, o livro enfocado, na verdade, não deu origem ao jogo. Portanto, importa saber por que crime responderá o “curador” ou os “curadores”, eis que o concurso de agentes é plenamente possível (inteligência do artigo 29, CP). Isso irá variar de acordo com as circunstâncias e a vítima: a)Sendo a vítima uma pessoa plenamente capaz, não há dúvida de que se trata de um crime de induzimento ou instigação ao suicídio ou à automutilação. Segundo Rogério Sanches Cunha, este seria um crime simples, previsto no artigo 122, “caput”, CP, quadro este que não se altera com o advento da Lei 13.968/19. O induzimento ocorrerá quando a vítima cooptada não tinha ainda em si a ideia de matar-se, enquanto que a instigação acontecerá quando a vítima já tinha essa tendência e foi incentivada. Com o devido respeito, discorda-se de Cunha num ponto. Entende-se que realmente seria um caso de induzimento ao suicídio, mas majorado pela presença do “motivo egoístico” (hoje aumento previsto no artigo 122, § 3º., I, CP, devido a alteração promovida pela Lei 13.968/19). Acontece que em todos os casos do Jogo Baleia Azul, o autor é motivado por um sentimento claro e evidente de pleno menosprezo pela vida alheia em prol de uma vontade de satisfação de uma sensação ou prazer de domínio quase total sobre a pessoa influenciada. Conforme Teles, o motivo egoístico “diz respeito à obtenção de uma vantagem pessoal pelo agente, qualquer que seja sua natureza”, ensejando, com isso, maior reprovabilidade “por sua torpeza”. Ainda mais certeiro é Costa Júnior ao afirmar que “o egoísmo importa numa total desconsideração para com a sorte alheia”, o que é exatamente o retrato do aliciador e “curador” do jogo em questão. Esse retrato do psiquismo torpe do “curador” é muito bem descrito por Pedroso, que se vale das lições de Edgard Magalhães Noronha e de Paul Logoz: “O egocentrismo é a ratio essendi da qualificadora. Esta toma corpo sempre que o sujeito ativo der maior relevância ou valor a qualquer interesse pessoal em detrimento da sorte e dos interesses da vítima. Egoísmo, define Magalhães Noronha, é o excessivo amor ao interesse próprio, sem consideração pelos outros. Como ainda destaca Paul Logoz, o motivo egoísta não é necessariamente a cupidez ou o desejo de lucro, mas também o ódio, o desejo de vingar-se, a maldade etc.” (grifo nosso na “maldade”). b)Sendo a vítima pessoa incapaz de ofertar resistência psíquica ao induzimento ou instigação (v.g. um alienado mental, uma criança de 2 anos etc.), o crime será o de induzimento ao suicídio qualificado com as penas do crime de homicídio, certamente também qualificado pelo meio insidioso e pelo motivo torpe, nos termos do artigo 122, § 7º., CP, nos termos do artigo 121, § 2º.,I e III, CP. Não se aplicará o aumento de pena do artigo 122, § 3º., I, CP porque este somente se aplica à forma simples do “caput” e às formas qualificadas dos §§ 1º. e 2º. do mesmo dispositivo, devido à topografia da citada majorante, a qual somente pode ser usada para as figuras que estão acima de si na distribuição do artigo. Isso porque o sujeito passivo do crime de induzimento ao suicídio ou à automutilação pode ser qualquer pessoa, mas esta deve ter “capacidade de discernimento, de autodeterminação, pois, caso contrário, estaremos diante das formas qualificadas do artigo 122, §§ 6º. e 7º., CP. Acontece que se a vítima não tem capacidade de resistência ao assédio que a leva a matar-se, não passa de um instrumento nas mãos do autor. Embora retire sua própria vida ou se autolesione, não o faz de forma “deliberada”, e isso é requisito essencial para que se trate de um suicídio ou automutilação genuína, tal qual já foi visto alhures na definição bem posta de Euclides Custódio da Silveira. Tendo em vista uma interpretação sistemática do Código Penal Brasileiro, qualquer pessoa menor de 14 anos também não teria capacidade de discernimento e seria vítima de homicídio e não de induzimento ao suicídio. Isso porque, é considerada incapaz até mesmo de deliberar sobre a prática ou não de atos sexuais, quanto mais com relação a decidir sobre manter ou não a própria vida. Este entendimento se consolida com a nova redação dada pela Lei 13.968/19 ao artigo 122, §§ 6º. e 7º., CP, que menciona expressamente os menores de 14 anos e outros vulneráveis. Quanto às qualificadoras, o “motivo torpe” consiste, tal qual no caso de induzimento ao suicídio se imputa o “motivo egoístico”, na atuação do “curador”, visando a obtenção de um prazer ou sentimento de domínio sobre a vítima, levando-a à morte. Ora, a satisfação desse prazer macabro e abjeto constitui claramente a qualificadora do “motivo torpe” no crime de homicídio. Perceba-se como a conduta do “curador” do Jogo Baleia Azul se adequa perfeitamente ao conceito doutrinário do “motivo torpe”: “Motivo torpe: é o motivo abjeto, indigno e desprezível, que repugna o mais elementar sentimento ético. O motivo torpe provoca acentuada repulsão, sobretudo pela ausência de sensibilidade moral do executor”. Também não é possível passar despercebida a conduta “insidiosa”, ou seja, traiçoeira, dissimulada, do autor dessa espécie de crime. Como visto, ele atua de modo premeditado, selecionando cuidadosamente nas redes sociais pessoas mais vulneráveis aos seus apelos. Feito o contato, procura o tempo todo aliciar o indivíduo, dando-lhe uma espécie de “sentido” para agir, propondo “desafios” a fim de burilar a vaidade, a virilidade, a coragem, o orgulho etc. Claramente atua de forma vil e sempre fingindo, com o único intuito final de obter a prática do suicídio pelo vitimizado (a). Acontece que no caso das pessoas sem o necessário discernimento, não ocorre propriamente um suicídio, ou seja, uma deliberada destruição da própria vida e sim um homicídio em que a vítima é apenas um instrumento nas mãos de seu cruel algoz, entendimento este já consolidado na doutrina e na jurisprudência há muito tempo e que agora vem positivado pela Lei 13.968/19, com a redação dada ao artigo 122, § 7º., CP. Novamente a conduta do autor se encaixa perfeitamente no ensinamento doutrinário acerca do “meio insidioso”: “Refere-se a lei, ainda, genericamente, a outros meios insidiosos, aqueles constituídos de fraude, clandestinos, desconhecidos da vítima, que não sabe estar sendo atacada. O que qualifica o homicídio não é propriamente o meio escolhido ou usado para a prática do crime, e sim o modo insidioso com que o agente o executa, empregando, para isso, recurso que dificulte ou torne impossível a defesa”. c)Vítima capaz, embora menor de 18 anos e vítima que, por qualquer outra causa (afora a etária), tenha a capacidade de resistência psíquica diminuída. Quanto ao menor de 18 anos (entre 14 anos completos e 18 anos incompletos, como já visto acima, com os honrosos dissensos de Pedroso e Marques), é tranquila a aplicação do artigo 122, § 3º., II, CP. Trata-se da vítima “menor”. A lei apresenta o entendimento de que o menor de 18 anos tem maior suscetibilidade, menor capacidade de resistência ao assédio de terceiros que pretendam levá-lo ao suicídio. Em geral é essa a orientação encontrada, ou seja, apenas verificar por prova documental (certidão de nascimento ou equivalente) a idade do menor para a caracterização da majorante em estudo. Entretanto, entende diversamente Teles. Segundo o autor: “A norma não pode ser interpretada com rigor absoluto, mormente nos dias de hoje em que há adolescentes, entre 14 e 18 anos, com plena capacidade de decidir, dirigindo sua própria vida, com maturidade e plena consciência dos fatos e de suas consequências. Nesses casos, a pena não deverá ser aumentada”. Sobre o tema, tende-se a adotar a aplicação do aumento de pena com base tão somente na idade da vítima. Com maior razão, entende-se que nos casos do Jogo Baleia Azul resta praticamente notório que o menor ali envolvido não é uma pessoa que tenha tanta maturidade assim, mesmo porque, como já dito, é escolhido a dedo, exatamente por sua vulnerabilidade e não por sua suposta maturidade e capacidade de tomar decisões. Pode ocorrer ainda que a vítima não seja menor, mas que, por qualquer outra razão, tenha diminuída sua capacidade de resistência. Digamos que o “escolhido” como alvo do jogo seja uma pessoa afetada por distúrbios maníaco – depressivos, alcoólatra, dependente de drogas, com déficit do desenvolvimento mental que não lhe chegue a retirar totalmente o discernimento etc. Note-se que em todos esses casos é preciso ter muito cuidado, porque se a capacidade de resistência é nula e não somente diminuída, o caso será, como já visto, de aplicação do artigo 122, §§ 6º. ou 7º., CP, conforme o caso. Novamente é de se observar que no caso do Jogo Baleia Azul, procurando o autor pelas pessoas vulneráveis ao seu assédio, seja pela menoridade, seja por presença de fraquezas psíquicas, dificilmente se afigurará uma situação em que o artigo 122, CP se apresente na forma simples, sem a presença de uma majorante. Mesmo porque, invariavelmente, ainda que se tratando de vítima plenamente capaz e não vulnerável, o que será raro, haverá ainda a majorante do “motivo egoístico”, conforme já destacado linhas volvidas. O mais comum será encontrar nos casos concretos incidência não somente de uma causa de aumento, mas de duas (inteligência do artigo 122, §3º., incisos I e II, CP). E ainda mais: com o advento da Lei 13.968/19, haverá, no caso do Jogo Baleia Azul, invariavelmente também a majorante do artigo 122, § 4º., CP, pois que o crime é perpetrado por meio de rede de computadores. Além disso, ainda, se o líder ou coordenador do grupo for identificado, este terá mais uma majorante, que será a prevista no artigo 122, § 5º., CP. Observe-se que essas causas de aumento de pena são aplicáveis tanto ao artigo 122, “caput”, CP, quanto às suas formas qualificadas previstas em seus §§ 1º. e 2º., devendo ainda ter sua aplicação em cascata, ou seja, um aumento sobre o outro, já que não há “bis in idem”. d) Outra situação interessante ocorre quando uma pessoa que inicialmente aceitou participar do jogo, pretende, em algum momento, dele desistir. O que acontece nessas situações é que a pessoa passa a sofrer ameaças pessoais e a terceiros, tais como familiares e outros entes queridos, com o intento de forçá-la a seguir o jogo até o trágico fim. São ameaças sérias, inclusive de morte. Com acerto, Rogério Sanches Cunha, vislumbra nessa conduta do autor, procurando obrigar a pessoa a continuar no jogo, crime de “Constrangimento Ilegal” (artigo 146, CP). Efetivamente, o delito em questão tutela “a liberdade individual de querer, ou seja, a autodeterminação da vontade e da ação, incluindo-se, assim, a liberdade física e psíquica da vítima. É o dispositivo corolário do art. 5º., II, da Constituição Federal: ‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’”. Poder-se-ia cogitar sobre o crime de “Ameaça”, previsto no artigo 147, CP. No entanto, ocorre que na ameaça há apenas a promessa da prática de um mal injusto e grave contra a vítima, não condicionando isso à sua conduta ativa ou omissiva. No “Constrangimento Ilegal”, a situação é semelhante, mas a ameaça de mal injusto e grave se dá de forma condicionada, ou seja, tal mal será infligido “se” o sujeito passivo não agir ou deixar de agir de acordo com a vontade imposta ou pretensamente imposta pelo criminoso. Conforme Bitencourt: “A distinção desses dois crimes consiste em que, no constrangimento ilegal, o sujeito ativo pretende uma conduta positiva ou negativa da vítima, enquanto, na ameaça, deseja somente amedrontá-la, aterrorizá-la, apavorá-la”. Assim sendo, resta evidente que se trata realmente de “Constrangimento Ilegal” e não de “Ameaça”, porque o mal prometido está ligado à prática de uma conduta pela vítima por ela não desejada. Doutra banda, Rogério Sanches Cunha também informa que há quem cogite, nestes casos, do crime de “Tortura”. O autor em destaque afasta a possibilidade dessa tipificação, considerando que a conduta enfocada não se adequa a qualquer das previsões da Lei 9.455/97. Realmente, no que tange à circunstância em que o autor pretende constranger o indivíduo a continuar no jogo, é inviável a tipificação em qualquer previsão da Lei 9.455/97, mesmo porque há exigência na maioria dos tipos penais ali previstos de um especial fim de agir (dolo específico), que não se encontra presente na situação em estudo (v.g. atuação por preconceito; objetivo de obter informação, confissão ou declaração da vítima ou de terceiro; aplicação de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo com “animus corrigendi vel disciplinandi”). Mesmo no último exemplo, o intento de “corrigir” ou “disciplinar” não está ligado a obrigar a pessoa a uma conduta, tal como a participação em um jogo, e sim em inculcar-lhe valores de conduta na vida social ou familiar, valores morais etc., similarmente ao que ocorre com o crime de “Maus – Tratos” (artigo 136, CP), do qual se distingue apenas em grau de gravidade. Ademais tal crime de tortura é considerado como “crime próprio”, exigindo a prévia existência entre autor e vítima de um vínculo de “subordinação ou dependência” legítimo (v.g. paternidade, maternidade, guarda, autoridade etc.), o que jamais é o caso entre o “curador” do jogo e o sujeito passivo. O único crime que não exige dolo específico é a tortura de pessoa presa ou submetida a medida de segurança, mas, obviamente não há ligação entre essa espécie de tortura e o Jogo Baleia Azul, pois que a vítima não é um encarcerado e nem, muito menos, o autor seu carcereiro. Parece que realmente a conduta de pretender, mediante grave ameaça, obrigar a pessoa a continuar no jogo, configura apenas Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP) e jamais crime de tortura, por absoluta falta de subsunção. Aliás, é importante a observação de Gonçalves neste aspecto: “Veja-se que a lei não descreveu no crime de tortura as hipóteses de a motivação do agente ser a vingança ou o simples sadismo (prazer de ver a vítima sofrer). Por isso, em face da ausência de previsão legal, as condutas não poderão ser enquadradas nessa lei, restando apenas eventual responsabilização por crime de lesões corporais ou constrangimento ilegal”. Ora, se não há um dos dolos específicos previstos na Lei de Tortura, o que prevalece é o sadismo do agente, seu desejo de prazer na dominação psíquica e até física da vítima qual uma marionete. E isso não encontra previsão na Lei 9.455/97. No entanto, como se está, no momento, tratando dos casos em que a vítima quer sair do jogo ou se negar à prática de alguma “missão” imposta pelo “curador”, pode-se cogitar de uma modalidade de crime de tortura que entra em conflito aparente de normas com o artigo 146, CP, prevalecendo pela especialidade. Trata-se da “Tortura para a prática de Crime” (artigo 1º., “b”, da Lei 9.455/97). Neste caso, o constrangimento, mediante atos de tortura, se dá “para provocar ação ou omissão de natureza criminosa”. Note-se que os crimes de tortura são considerados formais. Assim sendo, em nada importa se o sujeito passivo se submete e cumpre os fins especiais do sujeito ativo. De qualquer forma, imposta a violência ou grave ameaça torturante, está consumado o crime. A eventual prática da conduta pretendida pelo agente ou a submissão da vítima aos seus desejos, será mero “exaurimento do crime, a se considerar apenas na fixação da pena”. Reafirma-se que se o constrangimento é voltado apenas e tão somente para a continuidade de participação no jogo, há apenas Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP). Mas, e se ocorre o fato de que a desistência do jogador se dá por uma negativa do cumprimento de uma “missão” que consistiria em praticar um crime? Tendo em vista que a tortura pode ser física ou moral, há que reconhecer que nestes casos poderá sim configurar-se o crime de tortura previsto especificamente no artigo 1º., “b”, da Lei 9.455/97. E isso independentemente de o sujeito passivo ceder ou não ao constrangimento, pois que, como visto, trata-se de crime formal. Há somente que analisar cada caso concreto em termos de grau com relação ao sofrimento imposto à vítima para seu constrangimento ou tentativa de constrangimento. Nos casos mais graves, poderá ser aplicado o crime de Tortura, nos de menor intensidade, continuará sendo configurado o crime de Constrangimento Ilegal. Observe-se o pensamento de Bitencourt, que representa a posição da doutrina em geral a respeito do conflito entre Tortura e Constrangimento ilegal nestes casos específicos: “Se a violência ou a grave ameaça visar a prática de crime, configurará o crime de tortura, previsto no art. 1º., I, b, da Lei n. 9.455/97, que estabelece: ‘constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa”. Antes da vigência dessa lei, a doutrina sustentava que, nesses casos, ou seja quando o constrangimento fosse para a prática de alguma conduta criminosa, o agente responderia pelo crime de constrangimento ilegal e o crime que a vítima fora obrigada a praticar (nessa hipótese, como autor mediato) em concurso material”. Ainda tratando da situação em que a vítima pretenda sair do jogo e então o suicídio não venha a ocorrer ou mesmo sequer a tentativa desse ato tresloucado, há que avaliar a eventualidade de responsabilização do agente por tentativa de induzimento ao suicídio. Desde logo se deve esclarecer que, segundo os ensinamentos doutrinários e orientações jurisprudenciais pacíficos, não havia se falar em tentativa do crime de induzimento ao suicídio, previsto no artigo 122, CP, antes das alterações promovidas pela Lei 13.968/19. Tratava-se de um crime material, o qual somente se consumava com um de dois resultados previstos e para os quais havia reprimenda legal, a saber: a) a vítima sofria lesões corporais graves ou gravíssimas durante a tentativa de suicídio; b) a vítima morria na prática do suicídio (antigo preceito secundário do artigo 122, CP). Não havia pena quando ocorria o induzimento, instigação ou auxílio, mas sequer acontecia tentativa do suicídio ou esta ocorria, mas resultavam apenas lesões leves ou não resultavam lesões. Por isso era impossível haver a figura da tentativa, até mesmo por uma questão prática. A pena por tentativa só é aplicável com um redutor sobre a pena original. Ora, se não havia pena para os casos de induzimento, instigação ou auxílio quando não ocorriam os resultados lesões graves ou gravíssimas ou morte, então sobre que pena iria incidir o redutor do artigo 14, II e seu Parágrafo Único, CP? Porém, como a advento das alterações promovidas pela Lei 13.968/19 não há mais a exigência dos resultados morte ou lesões graves ou gravíssimas, os quais são transformados apenas em qualificadoras. Assim sendo, a tentativa, em tese, seria possível, mas como normalmente as condutas do Jogo Baleia Azul se dão por induzimento ou instigação ao suicídio ou mesmo à automutilação, mais correto parece ser que o crime se consuma com o mero induzimento ou instigação, independentemente da atuação da vítima. O ilícito, que era eminentemente material, se tornou formal, de modo que a figura da tentativa somente seria possível por escrito, acaso a comunicação sequer chegasse à vítima ou na figura do auxílio material que fosse impedido por motivos alheios à vontade do agente, o que dificilmente se caracterizará no caso do Baleia Azul. Aqui se põe uma questão: quando, no decorrer do jogo, a vítima é levada a se autolesionar ou colocar sua vida e integridade física em risco, não poderia o “curador” ser responsabilizado por crimes de lesões corporais leves (artigo 129, CP) ou de periclitação da vida ou da saúde de outrem (artigo 132, CP)? Entende-se que não, porque nestes casos, considerando o objetivo final do jogo, que é o induzimento ao suicídio (artigo 122, CP), ocorre a consunção ou absorção desses delitos como crimes – meio. Acontece que tais crimes são um caminho necessário, de acordo com a dinâmica criminosa, com o chamado “modus operandi” típico do Jogo Baleia Azul para chegar ao induzimento final ao suicídio. Contudo, no que tange à autolesão influenciada, poderá configurar o tipo penal do artigo 122, CP ou seus parágrafos, na modalidade de automutilação, que passou a ser prevista com a nova redação dada ao tipo penal pela Lei 13.968/19. Há ainda a possibilidade de que no decorrer do Jogo Baleia Azul o agente induza ou instigue as pessoas à pratica de outros crimes que não são necessariamente meios para as futuras práticas de induzimento ao suicídio ou homicídio. Por exemplo, pode, no decorrer do jogo, induzir a pessoa a praticar um roubo, um crime contra a honra de terceiros, uma extorsão, uma violação de domicílio, um furto, uma lesão corporal em terceiros, outro homicídio, direção sob efeito de álcool, competição automobilística não autorizada etc. Nessas situações, entende-se que, sendo o induzido pessoa maior e capaz, incidirá o indutor no crime induzido. Por exemplo, se apresentou um “desafio” ou “missão” consistente na prática de um roubo pelo induzido, responderá, juntamente com ele, nos termos do artigo 29, CP (Teoria Monista do Concurso de Agentes) pelo crime de roubo, e assim por diante. Será o indutor um partícipe do crime induzido, de acordo com as teorias mais correntes. Numa conformação relativa à chamada “Teoria do Domínio do Fato”, será mesmo um coautor. Se, por acaso, a vítima do induzimento à prática desse tipo de crime for um incapaz por enfermidade mental (inimputável), haverá a chamada “autoria mediata” do crime induzido, respondendo por ele o indutor e recebendo o autor direto a denominada “absolvição imprópria”, com aplicação de “medida de segurança”. Em se tratando de menor (neste caso qualquer menor de 18 anos), o indutor responderá pelo crime por autoria mediata e ainda em concurso formal com o crime de “Corrupção de Menores”, previsto no artigo 244 – B, do ECA (Lei 8.069/90). Por seu lado, o menor corrompido, responderá por “ato infracional” respectivo na Justiça da Infância e Juventude. A competência para o processo e julgamento dos crimes perpetrados durante o Jogo Baleia Azul é da Justiça Comum Estadual. O fato de dar-se a prática por via da internet, ainda quando atinja menores, não leva os crimes para a Justiça Federal. A Justiça Federal somente processa e julga os crimes de pornografia infantil na internet porque o Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o tema, o que enseja a aplicação do 109, V, CF. É ainda de se observar que nos casos de induzimento ao suicídio, conforme expostos, a competência da Justiça Comum Estadual será afeta ao Tribunal do Júri, tendo em vista tratar-se de crime contra a vida (inteligência do artigo 5º., XXXVIII, “d”, CF c/c artigo 74, § 1º., CPP). Mas, se a conduta for dirigida somente à automutilação, hoje prevista também no artigo 122, CP, a competência será do Juiz Singular por não se tratar de crime doloso contra a vida. Ainda que, preterdolosamente, da automutilação resulte morte, a competência seguirá com o Juiz Singular, pois que não se tratará de crime doloso contra a vida. Em termos territoriais, entende-se que, independentemente de onde esteja agindo o indutor, será competente o local onde se venha a consumar a infração penal induzida, nos estritos termos do artigo 70, CPP (Teoria do Resultado). No que se refere aos crimes contra a vida, no local onde o evento tenha se dado (o suicídio ou tentativa de suicídio da vítima), ainda que a morte tenha ocorrido em outro local. Isso por aplicação de entendimento jurisprudencial, acolhido inclusive pelo STJ e STF, de aplicação excepcional, nos crimes contra a vida, da chamada “Teoria da Atividade”. Nucci apresenta a justificativa para esse entendimento que excepciona a regra do artigo 70, CPP: “(...) é justamente no local da ação que se encontram as melhores provas (testemunhas, perícia etc.), pouco interessando onde se dá a morte da vítima. Para efeito de condução de uma mais apurada fase probatória, não teria cabimento desprezar-se o foro do lugar onde a ação desenvolveu-se somente para acolher a teoria do resultado. Exemplo de ilogicidade seria o autor ter dado vários tiros ou produzido toda a série de atos executórios para ceifar a vida de alguém em determinada cidade, mas, unicamente pelo fato da vítima ter-se tratado em hospital de Comarca diversa, onde faleceu, deslocar-se o foro competente para esta última. As provas teriam que ser coletadas por precatória, o que empobreceria a formação do convencimento do juiz.” No mesmo sentido Bonfim: “Crimes contra a vida. Mitigando a regra de competência segundo a qual o juízo competente é o do local em que ocorrer o resultado, no caso dos crimes contra a vida tem parte da doutrina (posição que se adota) e da jurisprudência reconhecido a competência do juízo do local em que se deu o último0 ato de execução, caso o crime se tenha consumado em lugar diverso. Privilegia-se, com isso, o efeito preventivo do direito penal e a instrução criminal, fundamentos do critério de determinação de competência ratione locus comissi delicti” (grifos no original). Dessa forma, havendo indução de crimes no Jogo Baleia Azul, os quais não sejam de competência “ratione materiae” do Júri, o juízo para processo e julgamento será o do local da consumação, independente de que lugar esteja atuando o indutor. Por exemplo, um “curador” do jogo lança o desafio a um sujeito “A” para que pratique um roubo em sua cidade (de “A”) de Santo André-SP. O sujeito “A” comete o tal roubo em Santo André – SP. O “curador” se comunicava com ele, tendo como base a cidade de Piracicaba –SP. O Juízo competente para o julgamento e processo será o do local do roubo induzido, ou seja, Santo André – SP. Também a atribuição de Polícia Judiciária será a mesma, de acordo com o artigo 4º., CPP. No caso de induzimento ao suicídio ou homicídio (quando a vítima tiver resistência psíquica nula), a competência se dará onde o atentado contra a vida do induzido ocorrer. Por exemplo, um “curador” manda a vítima “A”, capaz, se suicidar. O “curador” atua de uma base em São Paulo – SP. A vítima “A” mora em Lorena-SP. Em Lorena-SP, ela desfere um tiro na cabeça. No entanto, não morre imediatamente, sendo socorrida no Pronto Socorro local e transferida para Guaratinguetá-SP, onde vem a falecer dois dias depois. A competência do Júri para o induzimento ao suicídio não será de São Paulo Capital (onde operava o indutor), nem de Guaratinguetá-SP (onde a vítima morreu), mas de Lorena-SP, onde a conduta se perpetrou (Teoria da Atividade). O mesmo raciocínio valerá acaso o induzido for um incapaz que não tenha resistência à indução, configurando-se o crime de indução qualificado. Se a missão dada ao influenciado é de cometer um homicídio contra outra pessoa, a solução também será a mesma, competente será o local onde a ação se desenvoleu. Novamente o mesmo raciocínio valerá para a atribuição de Polícia Judiciária, de acordo com o artigo 4º., CPP. Finalmente, cabe observar que com o acréscimo da figura do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, mesmo nas fases iniciais do Jogo Baleia Azul, quando o influenciador estabelece desafios que se concentram somente em autolesão, já estará configurado o crime do artigo 122, CP.

Autor

  • Eduardo Luiz Santos Cabette

    Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Jogo da baleia azul: tipificação penal e competência para processo e julgamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5061, 10 maio 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57269. Acesso em: 18 abr. 2024.