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Poderes das comissões parlamentares de inquérito

Poderes das comissões parlamentares de inquérito

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Os poderes investigatórios que são conferidos a uma CPI pela Constituição não são ilimitados, tendo em vista o princípio da reserva de jurisdição e a proteção aos direitos individuais, que visam a obstar a prática de abusos.

INTRODUÇÃO

Na visão de Alexandre de Moraes, o art. 58, §3º, da Constituição Federal, foi extremamente lacônico e impreciso, ao prever que as CPIs terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, tendo em vista a regra da inexistência do juiz-investigador no ordenamento jurídico brasileiro, sendo essa tarefa deixada a cargo das Polícias Civil e Federal e do Ministério Público, em face da adoção do processo acusatório (MORAES, 2011, p. 1013).

Destarte, os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidos constitucionalmente às CPIs consistem nos poderes instrutórios que os magistrados possuem durante a instrução processual penal, de forma a possibilitarem a indagação probatória necessária à consecução das finalidades dessas comissões.

Porém, para Luis Roberto Barroso, a atribuição às CPIs dos poderes de investigação de autoridades judiciais pretendeu que a Comissão Parlamentar de Inquérito tivesse o poder de atribuir às suas determinações o caráter de imperatividade. Ou seja, suas intimações, requisições e outros atos pertinentes à investigação deviam ser cumpridos, e em caso de violação, ensejaria o acionamento de meios coercitivos.

Esse entendimento se justifica em razão do quadro jurídico-político vigente à época da Constituição Federal anterior, visto que, até então, prevalecia o entendimento do Supremo Tribunal Federal assentado no Habeas Corpus nº 32.678/DF de que os cidadãos não estavam obrigados a comparecer e testemunhar nas Comissões Parlamentares de Inquérito.

Estas, portanto, não estavam dotadas de poder coercitivo investigatório, caindo, inevitavelmente, num vazio por falta de instrumentos legais na condução dos trabalhos. Tal situação jurídica foi revertida com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que como se sabe, outorgou expressamente às CPIs poderes de investigação próprios de autoridade judicial (PORTO FILHO, 2008, p. 81).

 Segundo o mesmo autor, tais medidas, contudo, não seriam autoexecutáveis pela comissão, sob a alegação de que como qualquer ato de intervenção na esfera individual, resguardada constitucionalmente, deveriam ser precedidas de determinação judicial (BARROSO, 2008, p. 12). Tal entendimento, porém, será refutado mais adiante.

Em razão dos poderes instrutórios que lhe foram conferidos, o art. 2º da Lei 1.579/52 estabelece que, no exercício de suas atribuições, poderão as CPIs determinar diligências que reportarem necessárias e requerer a convocação de ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença.

No entanto, tais poderes, apesar da inquestionável importância político-institucional da atividade de controle e fiscalização exercida pelo Poder Legislativo, são regidos por normas que, visando a coibir eventuais excessos, impõem insuperáveis limitações jurídico-constitucionais ao exercício das prerrogativas parlamentares na investigação de fatos determinados. Dessa forma, uma CPI não pode exceder os parâmetros que delimitam a extensão dos seus poderes investigatórios, sob pena de incidir em abuso de poder. 

Vê-se, assim, que as Comissões Parlamentares de Inquérito não têm poderes absolutos – haja vista a inadmissão de núcleos orgânicos investidos de poderes absolutos pelo regime democrático de governo –, uma vez que sofrem restrições impostas pela Constituição da República e limitam-se pelos direitos fundamentais dos cidadãos, que só podem ser afetados excepcionalmente, nos termos que a Carta Política estabelecer.

No julgamento do MS 23.452/RJ, o ministro Celso de Mello, em seu voto, afirmou:

Na realidade, a concepção de poder – na estrutura de um Estado fundado em bases democráticas – deve conviver, necessariamente, com a ideia correspondente de limitação e de controle. Esse paradigma de contenção, cuja observância se impõe aos detentores e exercentes do poder estatal, reflete um dos elementos essenciais que dão substância, no plano da teoria da Constituição e da organização da sociedade política, à noção mesma de Estado Democrático de Direito.


1. O PRINCÍPIO DA RESERVA DE JURISDIÇÃO

Importante analisar, agora, o postulado da reserva constitucional de jurisdição, tendo em vista sua indiscutível importância político-jurídica, uma vez que se destina a proteger valores essenciais resguardados pela própria Constituição. Ao mesmo tempo, representa um relevante fator de limitação jurídica aos poderes de investigação de uma CPI.

Não obstante a amplitude da competência investigatória das Comissões Parlamentares de Inquérito, não se revela lícito a qualquer órgão parlamentar de investigação a prática de atos sujeitos ao princípio constitucional da reserva de jurisdição, ou seja, a prática de atos cuja efetivação a Constituição Federal atribuiu, com absoluta exclusividade, aos membros do Poder Judiciário.

O ministro Celso de Mello assim definiu tal princípio:

O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de verdadeira discriminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios de autoridades judiciais.

O princípio da reserva de jurisdição consiste em confinar ao âmbito do Poder Judiciário a prática de certos atos que impliquem a restrição a direitos individuais especialmente protegidos. A partir da aplicabilidade desse princípio, haveria poderes de investigação que apenas as autoridades judiciais estariam legitimadas a exercer (BRANCO, 2009, p. 913).

Em outras palavras, essa cláusula de primazia judiciária exige, para a legítima efetivação de determinados atos, especialmente daqueles que implicam restrição a direitos, que sejam eles ordenados apenas por magistrados. Dessa forma, o princípio da reserva de jurisdição representa, na concreção do seu alcance, um expressivo instrumento de proteção das pessoas em geral contra as ações eventualmente arbitrárias do Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que se projete a atividade estatal.

Devido à cláusula de reserva de jurisdição, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado no sentido de que uma CPI, por exemplo, não tem poderes para decretar a prisão cautelar de qualquer pessoa, nem para ordenar, por autoridade própria, buscas domiciliares.

A busca domiciliar, nos termos do art. 5º, XI, da CF, verificar-se-á com o consentimento do morador, sendo que, na sua falta, ninguém poderá adentrar na casa, visto ser considerada um asilo inviolável, salvo em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro, durante o dia ou à noite, mas, durante o dia, somente por determinação judicial, não podendo a CPI tomar para si essa competência, que é reservada ao Poder Judiciário (LENZA, 2011, p. 465). É o que se abstrai do seguinte trecho de ementa:

(...) A cláusula constitucional da reserva de jurisdição - que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI)- traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.

(...)

(STF - MS: 23452 RJ , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086)

Pedro Paulo de Rezende Porto Filho acredita que dois fundamentos teriam levado o STF a restringir os poderes investigativos das Comissões Parlamentares de Inquérito. O primeiro seria que as CPIs não podem ser consideradas órgãos imparciais, na medida em que, representando a longa manus do Poder Legislativo, são organismos políticos impregnados de posições partidárias – o que não deixa de ser legítimo. E o segundo consiste na importância atribuída a certos direitos fundamentais envolvidos em conflitos. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal preferiu deixar a decisão sobre a relativização de tais direitos na mão do Estado-imparcial, no caso, do próprio Poder Judiciário (PORTO FILHO, 2008, p. 84).

Ainda acerca da limitação dos poderes investigatórios de uma CPI, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência assentada no sentido de que as Comissões Parlamentares de Inquérito não podem formular acusações e nem punir delitos, não podem desrespeitar o privilégio contra a autoincriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha, nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância, como por exemplo, por crime de falso testemunho. Isso porque a regra geral sobre a prisão prevista no art. 5º, LXI, determina que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente – e não de CPI –, ressalvados os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

 Tudo o que foi dito pode ser constatado no trecho da ementa abaixo transcrito:

(...) OS PODERES DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO, EMBORA AMPLOS, NÃO SÃO ILIMITADOS E NEM ABSOLUTOS . - Nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição. No regime político que consagra o Estado democrático de direito, os atos emanados de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, quando praticados com desrespeito à Lei Fundamental, submetem-se ao controle jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV). As Comissões Parlamentares de Inquérito não têm mais poderes do que aqueles que lhes são outorgados pela Constituição e pelas leis da República. É essencial reconhecer que os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito - precisamente porque não são absolutos - sofrem as restrições impostas pela Constituição da República e encontram limite nos direitos fundamentais do cidadão, que só podem ser afetados nas hipóteses e na forma que a Carta Política estabelecer. Doutrina. Precedentes. LIMITAÇÕES AOS PODERES INVESTIGATÓRIOS DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO . - A Constituição da República, ao outorgar às Comissões Parlamentares de Inquérito "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais" (art. 58, § 3º), claramente delimitou a natureza de suas atribuições institucionais, restringindo-as, unicamente, ao campo da indagação probatória, com absoluta exclusão de quaisquer outras prerrogativas que se incluem, ordinariamente, na esfera de competência dos magistrados e Tribunais, inclusive aquelas que decorrem do poder geral de cautela conferido aos juízes, como o poder de decretar a indisponibilidade dos bens pertencentes a pessoas sujeitas à investigação parlamentar. A circunstância de os poderes investigatórios de uma CPI serem essencialmente limitados levou a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal a advertir que as Comissões Parlamentares de Inquérito não podem formular acusações e nem punir delitos (RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD), nem desrespeitar o privilégio contra a auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD). (...)

(STF - MS: 23452 RJ , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086)

No mesmo diapasão, o pensamento de Luis Roberto Barroso:

É bem de ver, no entanto, que poderes de investigação não se confundem com competências jurisdicionais em sentido material. Não cabe às comissões parlamentares de inquérito dizer o direito em qualquer hipótese, praticar atos materiais coercitivos ou determinar providências acauteladoras. Isto significa que elas não produzem decisões de conhecimento – sejam condenatórias, constitutivas ou declaratórias – nem de execução. Tampouco estão investidas do poder cautelar genérico próprio dos juízes e tribunais, com base no qual se podem tomar medidas, inclusive constritivas de direitos, destinadas a assegurar a eficácia da decisão que se venha a proferir. Mas, também aqui, tais comissões podem ter legítimos fundamentos para pretender sejam tomadas medidas acauteladoras como a prisão provisória, a indisponibilidade de bens ou a proibição de alguém ausentar-se do país. Neste caso, deverão apresentá-los à autoridade judicial competente, com o requerimento adequado. (BARROSO, 2008, p. 19)

Sobre as medidas assecuratórias, que são aquelas pertinentes à eficácia de eventual sentença condenatória, Pedro Lenza cita Cássio Juvenal Faria, que em trabalho sobre as CPIs, asseverou que os provimentos dessa natureza, como o sequestro, o arresto e a hipoteca legal, previstos nos artigos 125 e seguintes do Código de Processo Penal, bem como a decretação da indisponibilidade de bens de uma pessoa, medida que se insere no poder geral de cautela do juiz, são atos tipicamente jurisdicionais, próprios do exercício da jurisdição cautelar, quando se destinam a assegurar a eficácia de eventual sentença condenatória, apartando-se, assim, por completo, dos poderes da Comissão Parlamentar de Inquérito, que são apenas de “investigação”. (LENZA, 2011, p. 465).

Numa abordagem diferente, Paulo Hamilton Siqueira Jr. afirma que a cláusula de reserva judiciária não alcança as Comissões Parlamentares de Inquérito no que se refere aos poderes de investigação, pois se assim o fosse, o próprio texto constitucional teria previsto a ressalva. Tal entendimento não se distancia muito do até aqui exposto, visto que o citado autor concorda que o princípio da reserva de jurisdição persiste quando o caso se tratar, por exemplo, de julgamento ou de cerceamento de liberdade. Tanto é assim que ele conclui que a Constituição parece não ter consagrado uma reserva total da função jurisdicional, mas uma reserva parcial, pois no que tange à investigação, não se verifica a necessidade de uma intervenção inicial do Poder Judiciário (SIQUEIRA JR., 2007, p. 86).

Desta feita, se a prática de atos cobertos pelo princípio da reserva de jurisdição forem úteis ou necessários para a investigação levada a efeito na Casa Legislativa, caberá à Comissão Parlamentar de Inquérito voltar-se para o Judiciário, requerendo de forma motivada a decretação da medida extrema.


​2. DA QUEBRA DOS SIGILOS BANCÁRIO E TELEFÔNICO

Interessante examinar, agora, a questão do sigilo em face dos poderes de investigação constitucionalmente outorgados às Comissões Parlamentares de Inquérito.

No sistema constitucional brasileiro, não há direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, uma vez que razões de relevante interesse público podem legitimar a adoção excepcional, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das liberdades públicas, desde que respeitados os termos estabelecidos na Constituição.

Partindo desse ponto, as Comissões Parlamentares de Inquérito podem decretar, por autoridade própria, a quebra do sigilo bancário de pessoas investigadas por elas, desde que demonstrem a existência concreta de causa provável apta a legitimar essa medida excepcional, e que indiquem a necessidade de sua efetivação para o andamento da investigação de determinado fato.

A maioria da doutrina entende que o direito ao sigilo bancário não é absoluto, com base nos princípios da proporcionalidade e da supremacia do interesse público. De acordo com o primeiro, deve-se verificar a conformidade do ato com o fim a que se destina, assim como a sua necessidade e adequação em comparação com outros meios possíveis de alcance da finalidade. O segundo princípio, por sua vez, estabelece que o interesse individual não pode se sobrepor ao interesse da coletividade, visto ser a busca deste o objetivo norteador da atuação do Estado.

Nesse sentido, o seguinte trecho da ementa do MS nº 23.669/DF:

(...) O DIREITO AO SIGILO BANCÁRIO - QUE TAMBÉM NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO - CONSTITUI EXPRESSÃO DA GARANTIA DA INTIMIDADE.- O sigilo bancário reflete expressiva projeção da garantia fundamental da intimidade das pessoas, não se expondo, em consequência, enquanto valor constitucional que é, a intervenções de terceiros ou a intrusões do Poder Público desvestidas de causa provável ou destituídas de base jurídica idônea.O sigilo bancário não tem caráter absoluto, deixando de prevalecer, por isso mesmo, em casos excepcionais, diante da exigência imposta pelo interesse público. Precedentes.Doutrina. (...)

(STF - MS: 23669 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 08/02/2001, Data de Publicação: DJ 14/02/2001 PP-00017)

Em situações nas quais seja requerida a quebra do sigilo bancário, de acordo com o ex-ministro Sepúlveda Pertence, na proferição do seu voto no MS nº 23.466, deve-se efetuar um juízo de ponderação, à luz do princípio da proporcionalidade, entre o interesse público na produção da prova visada e as garantias constitucionais de sigilo e privacidade por ela necessariamente comprometidas. Tal ponderação visa apurar se a informação relevante pode ser obtida por outro meio menos danoso a essas garantias (BRANCO, 2009, p. 912).

Sobre esse tema, há também jurisprudência do STJ, in verbis:

Relatividade do sigilo bancário: STJ – É certo que a proteção ao sigilo bancário constitui espécie do direito à intimidade, consagrado no art. 5º, X da Constituição, direito esse que revela uma das garantias do indivíduo contra o arbítrio do Estado, todavia, não consubstancia ele direito absoluto, cedendo passo quando presentes circunstâncias que denotem a existência de um interesse público superior. Sua relatividade, no entanto, deve guardar contornos na própria lei, sob pena de se abrir caminho para o descumprimento da garantia à intimidade constitucionalmente amparada [...] (STJ Ag. RG. no IP nº 187/DF, Corte Especial, Rel. Min. Sávio de Figueiredo Teixeira, j. 21-8-1996, Diário da Justiça, 16 set. 1999, IBCCrim, n.57).

Ademais, a professora Maria dos Remedios Calado, em artigo intitulado “O Poder e o Limite Investigatório das Comissões Parlamentares de Inquérito na Quebra do Sigilo Bancário”, tratando da relevância desse meio de prova nas questões investigadas pelas CPIs, assevera que:

A possibilidade de violação do sigilo bancário em sede de Comissões Parlamentares de Inquérito constitui um meio de prova importante, uma vez que em muitos casos concretos, apresenta-se como o único meio probatório para a comprovação de irregularidades administrativas dos órgãos do poder estatal, favorecendo, assim, o interesse da coletividade em face do interesse individual.

Além de não ser considerado um direito absoluto, o direito ao sigilo bancário, consoante o magistério da doutrina, não se acha submetido ao princípio da reserva de jurisdição, razão pela qual tal garantia constitucional – que representa uma projeção do direito à intimidade (art. 5º, X, CF) – não é oponível às Comissões Parlamentares de Inquérito.

Entretanto, esse não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que, em recente julgamento, estabeleceu a necessidade de autorização judicial para a quebra de sigilo bancário, considerando se tratar de verdadeira cláusula de reserva de jurisdição, não tendo o Fisco esse poder, por exemplo.

SIGILO DE DADOS. AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção, – a quebra do sigilo, – submetida ao crivo de órgão equidistante, o Judiciário, e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS. RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal, parte na relação jurídico-tributária, o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.

(STF - RE: 389808 PR , Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 15/12/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218)

Há que se fazer, contudo, um esclarecimento sobre a competência extraordinária das CPIs, a qual o ministro Celso de Mello ressalvou quanto a decretação da quebra do sigilo bancário. Segundo ele, com exceção delas, tal decretação pressupõe, sempre, a existência de ordem judicial, sem o que não se imporá à instituição financeira o dever de fornecimento, seja à administração tributária, seja ao Ministério Público, seja, ainda, à Polícia Judiciária, as informações que lhe tenham sido solicitadas.

Acerca do sigilo concernente aos registros ou dados telefônicos, também se admite a possibilidade jurídico-constitucional de as CPIs determinarem, por autoridade própria, a quebra do sigilo telefônico, desde que, por óbvio, motivadamente. Nesse ponto, há que se destacar a diferença dessa situação com a da interceptação das comunicações telefônicas, que por sua vez, constitui matéria sujeita ao princípio da reserva de jurisdição, conforme previsão do art. 5º, XII, CF.

A garantia constitucional instituída no art. 5º, XII, da Constituição Federal, objetiva preservar a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, ao passo que não se refere à questão da divulgação dos registros telefônicos, cuja tutela deriva da cláusula de proteção à intimidade inscrita no art. 5º, X, da Constituição Federal.

A interceptação das comunicações telefônicas possui finalidade específica, qual seja a de servir como meio probatório para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal (art. 5º, XII, CF). Por estar submetida ao postulado da reserva de jurisdição, deve haver ordem judicial para que tal medida seja tomada. Desta feita, essa circunstância exclui a possibilidade constitucional de uma CPI determinar, ex propria auctoritate, a escuta de conversações telefônicas.

Não custa reiterar que o inciso XII do art. 5º da Carta Política não impede o acesso aos registros telefônicos, e sim à própria ação comunicativa. Aqueles, portanto, protegidos pela cláusula tutelar da intimidade, não constituem um limite absoluto à ação do Poder Público. Sobre essa distinção, Paulo Gustavo Gonet Branco afirma:

O sigilo telefônico se refere aos registros dos números telefônicos de onde procederam ligações para o investigado ou dos números telefônicos para os quais o investigado ligou, bem assim dados sobre quando as ligações foram efetivadas e quanto duraram. Essas informações são mantidas pelas companhias telefônicas, e o sigilo se fundamenta na proteção geral do direito à privacidade – a mesma garantia constitucional que embasa o sigilo fiscal e o bancário. O sigilo telefônico pode ser quebrado por deliberação da CPI. A interceptação de comunicação telefônica é algo diverso. Na interceptação, a própria comunicação é objeto de escuta. O conteúdo da comunicação torna-se o alvo da interferência. Com relação ao conteúdo das comunicações telefônicas, a Constituição conferiu proteção reforçada ao indivíduo. (...) o sigilo somente pode ser violado, por ordem judicial, nas hipóteses previstas em lei, e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.  (BRANCO, 2009, p. 912)

Em sentido contrário, Luis Roberto Barroso considera que as duas hipóteses – a divulgação dos registros telefônicos e a interceptação telefônica – estariam compreendidas na inviolabilidade das comunicações telefônicas, ou seja, ambas as hipóteses estariam submetidas à reserva constitucional de jurisdição, por importar a efetivação desses atos em restrição de direitos. Para ele, saber para quem se ligou pode ser tão invasivo da privacidade quanto saber o que foi falado (BARROSO, 2008, p. 18). 

Entretanto, qualquer interpretação diferente da exposta anteriormente inibiria a atividade desenvolvida por uma CPI, frustrando, de modo ilegítimo, o exercício da competência investigatória conferida pela Constituição a esse órgão do Poder Legislativo.

O ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto no MS nº 23.452/RJ, asseverou:

Quero enfatizar, por necessário, a partir da jurisprudência desta Suprema Corte e do autorizado magistério doutrinário que lhe dá suporte, que não recuso à Comissão Parlamentar de Inquérito – que tem poderes imanentes ao natural exercício de suas atribuições, como os de colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante a elas e a depor, bem assim os de requisitar documentos e buscar todos os meios de provas legalmente admitidos – a possibilidade de praticar atos que eventualmente impliquem limitação a direitos individuais garantidos pela Constituição da República, desde que esse órgão de investigação legislativa o faça mediante deliberação devidamente fundamentada, com apoio em elementos jurídicos idôneos, em ordem a permitir o controle jurisdicional de abusos que possa cometer, a pretexto de investigar os fatos que justificaram a sua criação.

Vale advertir, ainda, que a Comissão Parlamentar de Inquérito, embora disponha, por autoridade própria, de competência para ter acesso a dados reservados, não pode agir arbitrariamente, de modo a conferir indevida publicidade a registros sobre os quais incide a cláusula de reserva derivada do sigilo bancário e do sigilo telefônico.

Com a transmissão das informações pertinentes aos dados reservados, transmite-se à Comissão Parlamentar de Inquérito – enquanto depositária desses elementos informativos – a nota de confidencialidade relativa aos registros sigilosos.

Isso significa, portanto, que constitui comportamento altamente censurável – com todas as consequências de ordem penal que dele possa resultar – a transgressão, por membros de uma CPI, do dever jurídico de respeito e de preservação do sigilo concernente aos dados a ela transmitidos.

Entretanto, se houver justa causa, a divulgação do segredo não configurará situação de ilicitude, já que estará legitimada pelos fins que a motivaram. Tais fins podem estar ligados ao interesse social, à justificativa da adoção de medidas que podem ser implementadas pelo Poder Público, ou à comunicação que se fez necessária ao Ministério Público sobre as conclusões da CPI, com a observância do que dispõe a parte final do art. 58, §3º, da Constituição. Vale ressaltar que essa hipótese traduz providência revestida de absoluto grau de excepcionalidade.

Voltando à quebra do sigilo em si, há que se falar dos requisitos necessários para que tal medida seja considerada válida, levando-se em consideração as garantias fundamentais do cidadão. 

2.1. Da necessidade de fundamentação

No desempenho de seus poderes de investigação, as Comissões Parlamentares de Inquérito, quando no exercício de prerrogativas dos magistrados, estão sujeitas às mesmas normas e limitações que incidem estes. Isso significa, por exemplo, que qualquer medida restritiva de direitos dependerá, para ser reputada como válida e legítima, da necessária motivação, posto que sem ela, o ato seria destituído de eficácia jurídica e desprovido de validade constitucional, assim como ocorre com as decisões judiciais (art. 93, IX, CF).

Nesse sentido, a decisão que determina a quebra de sigilo precisa estar revestida de fundamentação adequada, de modo que esteja embasada em fatos concretos e idôneos, sob pena de o ato estatal ser declarado inválido. A esse suporte fático idôneo, a doutrina e jurisprudência designam como “causa provável”, causa esta necessária para compatibilizar a ruptura da esfera de intimidade de qualquer pessoa com o modelo consagrado na Constituição da República, visando a coibir arbitrariedades.

Portanto, não é qualquer motivo que se presta à caracterização daquela motivação exigida pela Constituição. Para Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, a motivação tem que ser minimamente clara e concreta, de modo a possibilitar o pleno exercício de fiscalização por parte do Poder Judiciário e a permitir ao investigado entender os fatos e atos que lhe estão sendo imputados como desconformes com a lei (PORTO FILHO, 2008, p. 99).

Esse entendimento impede que as Comissões Parlamentares de Inquérito utilizem meras presunções, ou, ainda, afirmações vagas e genéricas como fundamentos da medida extraordinária da quebra de sigilo. Se assim agissem, estariam desrespeitando o modelo institucional de poderes limitados e o sistema de garantias subjetivas estabelecidas na Constituição.

Como já foi dito, os órgãos de investigação parlamentar, no que se refere às medidas restritivas de direitos e garantias individuais que podem adotar, estão vinculados ao dever de motivar tais deliberações, sob pena de as decisões serem declaradas nulas. Nesse sentido, para Paulo Hamilton Siqueira Jr:

A fundamentação das decisões das Comissões Parlamentares de Inquérito é medida que se impõe por força de dispositivo constitucional, que é mandamento dirigido a qualquer espécie de decisão estatal, civil, administrativa e penal, em especial às que restringem os direitos fundamentais. As decisões das Comissões Parlamentares de Inquérito, do mesmo modo que as decisões judiciais, quando não motivadas são nulas. Nenhuma medida restritiva de direitos pode existir, sem que o ato seja fundamentado pela autoridade estatal. A fundamentação é um verdadeiro limite da atuação estatal. (SIQUEIRA JR, 2007, p. 88).

O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão no julgamento do MS 23.851/DF. Tratava-se de mandado de segurança contra ato da CPI do Futebol – já citada nesse trabalho – consistente na quebra do sigilo bancário e fiscal do então diretor da CBF, Antônio Osório Ribeiro da Costa. Tal CPI, com essa medida, pretendia averiguar o possível envolvimento do diretor da CBF nas irregularidades investigadas. Porém, o STF entendeu que o fato de o impetrante ser da diretoria da CBF não se revestia de qualquer ilicitude, e que a comissão havia falhado em indicar situações concretas das quais pudessem aferir o suposto envolvimento do diretor da CBF. O STF decidiu, então, pela ausência de fundamentação da referida medida, concedendo o mandado de segurança para invalidar a deliberação tomada ela CPI do Futebol, por considerá-la uma indevida devassa da intimidade financeira do impetrante.

Ainda no que tange à motivação, ela deve constar na decisão que ordena o ato excepcional de privação da liberdade, visto que a ausência de fundamentação não pode ser suprida posteriormente, pois a existência contemporânea da motivação constitui pressuposto essencial de legitimação do próprio ato decisório, conforme entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência.

Da mesma forma, uma CPI não pode alterar posteriormente a motivação de seus atos investigatórios, sob pena de tornar-se inócua, pois de nada adiantaria motivar o ato se fosse permitida uma eventual alteração. Se assim o fosse, não seria possível constatar se a motivação externada inicialmente foi ou não a verdadeira causa de decidir.

Há jurisprudência do STF nesse sentido:

(...) MOTIVAÇÃO PER RELATIONEM CONSTANTE DA DELIBERAÇÃO EMANADA DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. Tratando-se de motivação per relationem, impõe-se à Comissão Parlamentar de Inquérito - quando esta faz remissão a elementos de fundamentação existentes aliunde ou constantes de outra peça - demonstrar a efetiva existência do documento consubstanciador da exposição das razões de fato e de direito que justificariam o ato decisório praticado, em ordem a propiciar, não apenas o conhecimento do que se contém no relato expositivo, mas, sobretudo, para viabilizar o controle jurisdicional da decisão adotada pela CPI. É que tais fundamentos - considerada a remissão a eles feita - passam a incorporar-se ao próprio ato decisório ou deliberativo que a eles se reportou. Não se revela viável indicar, a posteriori, já no âmbito do processo de mandado de segurança, as razões que deveriam ter sido expostas por ocasião da deliberação tomada pela Comissão Parlamentar de Inquérito, pois a existência contemporânea da motivação - e não a sua justificação tardia - constitui pressuposto de legitimação da própria resolução adotada pelo órgão de investigação legislativa, especialmente quando esse ato deliberativo implicar ruptura da cláusula de reserva pertinente a dados sigilosos. (...)

(STF - MS: 23452 RJ , Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086)

Acerca da motivação per relationem abordada pelo STF no julgado acima transcrito, Uadi Lammêgo Bulos, citado por Jessé Claudio Franco de Alencar, discorda do posicionamento adotado por essa Corte, sustentando que as motivações nas quais há mera referência aos atos produzidos em outro relatório ou processo, assim como as motivações que repousam suas bases em outra fundamentação posta em local diverso, estariam recaindo no vício da motivação implícita – aquela que reclama análise conjunta de argumentos principais e subsidiários. Segundo ele, as Comissões Parlamentares de Inquérito não podem valer-se das cognominadas motivações aliunde ou per relationem (ALENCAR, 2005, p. 72).

Apesar dessa controvérsia, o certo é que a motivação clara e concreta é condição de validade das decisões das Comissões Parlamentares de Inquérito, devendo ser contemporânea em relação à medida requerida, e imutável.

​2.2. Do princípio da colegialidade

Embora as Comissões de Inquérito possam ser criadas pela vontade das minorias parlamentares, sendo constituídas, “tanto quanto possível”, com observância da representação proporcional dos partidos que participam da respectiva Casa Legislativa, suas deliberações devem obedecer ao princípio da colegialidade. Tal princípio determina que, nos órgãos coletivos, a vontade da maioria deve prevalecer na tomada de decisões.

O STF enfrentou a questão no julgamento do MS nº 23.669/DF, impetrado contra a CPI do Narcotráfico, sob a alegação de que esta, ao quebrar o sigilo bancário do impetrante, não submeteu, à prévia e necessária deliberação dos parlamentares que a compõem, o pedido que motivou o ato ora impugnado, transgredindo, dessa forma, o princípio da colegialidade e, por conseguinte, a garantia constitucional que tutela a privacidade e a intimidade das pessoas. Abaixo, trecho da ementa desse julgado:

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE. SIGILO BANCÁRIO.POSSIBILIDADE DE SUA QUEBRA. CARÁTER RELATIVO DESSE DIREITO INDIVIDUAL. OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA DO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE, EMBORA NÃO TENHA CARÁTER ABSOLUTO, NÃO PODE SER ARBITRARIAMENTE DESCONSIDERADA PELO PODER PÚBLICO.- (...) O PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE CONDICIONA A EFICÁCIA DAS DELIBERAÇÕES DE QUALQUER COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO,ESPECIALMENTE EM TEMA DE QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO.- O princípio da colegialidade traduz diretriz de fundamental importância na regência das deliberações tomadas por qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, notadamente quando esta, no desempenho de sua competência investigatória, ordena a adoção de medidas restritivas de direitos, como aquela que importa na revelação das operações financeiras ativas e passivas de qualquer pessoa.O necessário respeito ao postulado da colegialidade qualifica-se como pressuposto de validade e de legitimidade das deliberações parlamentares, especialmente quando estas- adotadas no âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito - implicam ruptura, sempre excepcional, da esfera de intimidade das pessoas.A quebra do sigilo bancário, que compreende a ruptura da esfera de intimidade financeira da pessoa, quando determinada por ato de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, depende, para revestir-se de validade jurídica, da aprovação da maioria absoluta dos membros que compõem o órgão de investigação legislativa (Lei nº 4.595/64,art. 38, § 4º)."(MS 23.669-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 17/04/2000) 

(STF - MS: 23669 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 08/02/2001, Data de Publicação: DJ 14/02/2001 PP-00017)

Para Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, a própria Constituição Federal, ao prever a existência da Comissão Parlamentar de Inquérito como um órgão do Poder Legislativo composto pela proporcionalidade partidária, estabeleceu um colegiado que é representado unicamente pela decisão de sua maioria. Segundo ele, os atos emanados de uma CPI são caracterizados pela junção de diversas vontades paralelas que produzem um único ato que repercutirá na esfera de direitos dos investigados, como ocorre com a quebra de sigilo (PORTO FILHO, 2008, p. 91).

Destarte, conclui-se que o princípio da colegialidade impede que um ou mais membros, isoladamente ou em conjunto, promovam atos de investigação em nome e pela Comissão Parlamentar de Inquérito, sem prévia deliberação favorável pela vontade majoritária de seus membros.

Tal princípio pode ser facilmente constatado na própria Lei Complementar 105/2001, no §2º do art. 4º, in verbis:

 Art. 4o O Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, nas áreas de suas atribuições, e as instituições financeiras fornecerão ao Poder Legislativo Federal as informações e os documentos sigilosos que, fundamentadamente, se fizerem necessários ao exercício de suas respectivas competências constitucionais e legais.

(...)

§ 2o As solicitações de que trata este artigo deverão ser previamente aprovadas pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito.

Jessé Claudio Franco de Alencar cita Alexandre Issa Kimura, que adverte que não se pretende, com a preservação do princípio da colegialidade, impedir que o membro da CPI possa, isoladamente, no exercício de suas funções, após aprovada a diligência ou qualquer outro ato investigatório, concretizá-la. Em outras palavras, a materialização das diligências, submetida à autoridade do pronunciamento de sua viabilidade pela Comissão, é medida que pode ser tomada, isoladamente, por um de seus membros (ALENCAR, 2005, p. 69).

Enfim, o princípio da colegialidade oferta às deliberações da CPI a devida eficácia jurídica, por ser considerado um princípio cogente. E eventual decisão de Comissão Parlamentar de Inquérito que determine a ruptura do sigilo do investigado deve, necessariamente, observar o princípio do colegiado, sob pena de reputar-se nula.

2.3. Do direito de defesa

Apesar de as Comissões Parlamentares de Inquérito submeterem-se a um procedimento similar ao judicial, seus atos são revestidos de natureza inquisitorial. Desta feita, não são afetados pela exigência do exercício do contraditório, que por sua vez, é inerente aos atos contenciosos judiciais e administrativos, por força do disposto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal.

A razão pela qual a garantia do contraditório resta inaplicável às CPIs consiste num fato imperativo de natureza técnica, qual seja, o de facilitar a apuração dos fatos que estão sob investigação. Se tal direito fosse admitido durante o inquérito parlamentar, os investigados poderiam se antecipar, tomando providências aptas a criar obstáculos aos trabalhos investigatórios.

Da mesma forma, a dinâmica própria da apuração parlamentar restaria inviabilizada se toda e qualquer pessoa que se reconhecesse como investigada passasse a contrariar o inquérito parlamentar, mediante petições ou requerimentos de produção de determinadas provas, por exemplo,“tal um réu de processo-crime no afã de convencer o julgador de sua inocência” (CARAJELESCOV, 2007, p. 176).

De fato, as CPIs não emitem sentenças ou juízos condenatórios sobre pessoas, por serem incumbências das autoridades judiciais. Tais comissõesrealizam diagnósticos de cunho político sobre determinadas realidades socialmente relevantes. Suas conclusões, se for o caso, podem ser encaminhadas aos órgãos competentes para a adoção das medidas coercitivas cabíveis.

Eventualmente, dessas conclusões decorrem procedimentos judiciais ou administrativos, no âmbito dos quais as pessoas porventura apontadas pelas CPIs exercerão,então, o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes. Desta feita, a supressão da garantia do contraditório na fase de investigação parlamentar denota não acarretar constrangimentos que não possam ser reparados.

Contudo, esse não é o posicionamento de Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. Para ele, o exercício do contraditório deveria ser manejado de forma prévia, ou seja, de acordo com a matéria em exame, antes da decisão da CPI que determinar a quebra dos sigilos bancário e telefônico do investigado, entendendo que o texto constitucional garante o direito de defesa já na esfera de competência do Poder que pretende interferir nos direitos fundamentais do particular. (PORTO FILHO, 2008, p. 100).

No entendimento de Porto Filho, nenhum ato decorrente de intervenção estatal pode afetar a esfera de direitos do particular ou investigado, sem um procedimento válido; e no tocante à Comissão Parlamentar de Inquérito, ela teria o dever de observar todos os direitos fundamentais, inclusive o do contraditório, por se tratar a CPI de um procedimento jurídico-constitucional (PORTO FILHO, 2008, pp. 103 e 104).

Ele faz uma ressalva no caso da quebra de sigilo das comunicações telefônicas, no qual se dispensa a obediência ao dever constitucional, em virtude da natureza da prova a ser obtida – para evitar que a investigação seja destituída de qualquer sentido útil e prático (PORTO FILHO, 2008, p. 107). Sobre esse ponto, vale lembrar que as CPIs não têm o poder de decretar uma interceptação telefônica, e sim a quebra do sigilo dos dados telefônicos.

Segundo o citado jurista:

A inteligência que se colhe do referido princípio constitucional é a de que os investigados têm assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa antes que suas esferas de direitos sejam alcançadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Decidir de plano pela quebra do sigilo fiscal e bancário, para só então propiciar o direito de manifestação do investigado, se revelaria inútil, pois a decisão já teria afetado a esfera de direito do investigado, suprimindo-lhe instrumento constitucional. É justamente esse proceder que caracteriza um vício, inadmissível em nosso ordenamento jurídico. Trata-se de inconstitucionalidade insanável, que enseja a nulidade do ato da comissão que decretar a quebra dos dados do investigado. (PORTO FILHO, 2008, p. 101).

No entanto, esse entendimento não deve prosperar, visto que as CPIs limitam-se a atuar numa fase estritamente pré-processual, realizando diligências investigatórias destinadas a comprovar, de maneira preliminar, os fatos que poderão propiciar o futuro oferecimento de acusação formal contra o investigado. Em outras palavras, o procedimento adotado pela CPI durante as investigações reveste-se do caráter de unilateralidade, não comportando a prática do contraditório.

Acerca da inaplicação do princípio do contraditório às CPIs, o ministro do STF Joaquim Barbosa negou medida liminar em mandado de segurança impetrado por particular que pedia a suspensão da quebra de seus sigilos bancário, fiscal e telefônico pela chamada CPI da Biopirataria.

No aludido writ, qual seja o MS nº 25.508/DF, o demandante alegou a insubsistência da medida determinada pela comissão, entre outras razões, pela inobservância do contraditório e da ampla defesa. Tal argumento, entretanto, não foi acolhido pelo ministro, na medida em que, em suas palavras, a própria natureza do inquérito parlamentar, semelhante ao inquérito policial, afasta o contraditório como requisito de validade do procedimento.

Ademais, ao se referir ao procedimento de natureza unilateral do inquérito parlamentar, ou seja, sem o exercício do contraditório, não se pretende que os direitos e garantias fundamentais dos investigados sejam suprimidos, os quais, evidentemente, devem restar preservados.

O STF, inclusive, já ressalvou, no julgamento do HC 79.812/SP, que a unilateralidade da investigação parlamentar não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção das provas e na pesquisa dos fatos. Em tal julgamento, foram tratadas as prerrogativas com as quais estão investidos o indiciado ou a testemunha perante as Comissões Parlamentares de Inquérito. Dentre elas, estão o privilégio contra a autoincriminação e o direito ao silêncio, que devem ser respeitados, nos termos da ementa abaixo transcrita:

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO - DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA - IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA - PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO . - O privilégio contra a auto-incriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito - traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário . - O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio - enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemotenetur se detegere) - impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado . - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.

(STF - HC: 79812 SP , Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 08/11/2000, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 16-02-2001 PP-00021 EMENT VOL-02019-01 PP-00196)

No mesmo sentido, a Suprema Corte deixou assentado, no julgamento do MS nº 23.452/RJ, que o caráter inquisitorial não autoriza o arbítrio do órgão estatal, na medida em que ainda que trate de mera investigação conduzida sem a garantia do contraditório, há direitos titularizados pelo indiciado que não podem ser ignorados pelo Estado em tal procedimento inquisitivo.

Enfim, apesar de não ser aplicado o princípio do contraditório ao inquérito parlamentar, é inegável que aqueles que têm a sua conduta examinada pela investigação legislativa, podem se utilizar de seus direitos corolários do direito de defesa, tendo em vista sua compatibilidade com a efetividade e o modus operandi das apurações parlamentares. Outros exemplos desses direitos são a possibilidade de serem assistidos por advogados durante os depoimentos e acareações, o acesso a provas documentais produzidas pela comissão que não estejam submetidas à cláusula de sigilo, e a solicitação de informações e certidões sobre o que já foi apurado.

Os três requisitos citados neste capítulo para validar a quebra dos sigilos bancário e telefônico do investigado, quais sejam a necessidade de fundamentação, o princípio da colegialidade e o direito de defesa, foram objeto de debate no julgamento do já citado MS 25.508/DF, conforme ementa abaixo transcrita:

Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar impetrado por MARIA JOANA DA ROCHA PESSOA contra ato da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados destinada a investigar o tráfico de animais e plantas silvestres brasileiros, a exploração e o comércio ilegal de madeira e a biopirataria no país - CPI DA BIOPIRATARIA. O ato impugnado é o requerimento nº 119/05, referente à quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico da impetrante.Alegou-se na inicial: (i) a falta de embasamento objetivo do pedido de quebra de sigilo (fls 4/13-15); (ii) a inobservância, na aprovação do requerimento atacado, de normas regimentais da Câmara dos Deputados, resultante de falta de quorum mínimo necessário à deliberação (fls. 5/11); (iii) ausência de contraditório e ampla defesa (fls. 16/17).O pedido de liminar foi fundamentado no periculum in mora resultante do encaminhamento, ao Banco Central, do requerimento de quebra do sigilo (fls. 18).Pediu-se, liminarmente (fls.18-19):"(...) a suspensão da eficácia das deliberações tomadas na reunião ocorrida aos 04 de agosto de 2005, pela assim denominada CPI da Biopirataria, da quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico da Impetrante, vedando, outrossim, a reedição de requerimentos e o implemento de novo crivo sem fundamentação, bem como se abster a autoridade coatora de promover a execução do decidido, lacrando todos os documentos porventura recebidos em decorrência da quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico da Impetrante até o trânsito em julgado do presente mandamus. (...)".Em 30.08.2005, determinei a juntada aos autos de petição em que a impetrante corrige erro material da inicial.Antes de apreciar o pedido de liminar, solicitei informações à autoridade impetrada, as quais foram recebidas em 13.09.2005.Em decisão proferida no dia 15.09.2005 (fls. 217-220), indeferi o pedido de liminar sob os seguintes fundamentos: (i) não foi demonstrado o não-atingimento do quorum exigido no regimento da Câmara dos Deputados para a deliberação de suas comissões; ademais, essa comprovação exigiria dilação probatória insuscetível de ser realizada em mandado de segurança; (ii) ao contrário do alegado pela parte, o ato tem fundamentação expressa, declinando razões específicas para a quebra do sigilo e seus objetivos; (iii) não há suficiente indicação de violação da garantia de contraditório e ampla defesa no inquérito parlamentar que, tal qual o inquérito policial, afasta o contraditório como requisito de validade do procedimento.Decretei, também, segredo de justiça, para proteger o sigilo de documentos de uso reservado anexados às informações.A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela denegação da segurança (fls. 222-225), visto que: (i) a Comissão Parlamentar de Inquérito apresentou fundamentação razoável e justificada para a quebra de sigilo da impetrante; (ii) não foi demonstrada de forma suficiente falta de quorum na deliberação que quebrou o sigilo da impetrante; (iii) é despropositado aventar ofensa ao contraditório e à ampla defesa em inquérito parlamentar.É o breve relatório.Nos termos do art. 205 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, pedi dia para julgamento final da impetração em 28.11.2005 (fls. 226). O feito foi incluído na pauta do pleno 44/2005 (DJ 02.12.2005).Antes de ser apregoado o julgamento do presente mandado de segurança no plenário do STF, sobreveio o encerramento dos trabalhos da CPI em questão, com aprovação de seu relatório final em 28.03.2006 (58ª reunião ordinária). Esse fato, nos termos da jurisprudência desta Corte, torna prejudicada a impetração (MS 23.480 e 23.466, rel. min. Sepúlveda Pertence, Pleno, 04.05.2000).Do exposto, com base no art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, julgo prejudicado o presente mandado de segurança.Publique-se. Arquive-se.Brasília, 20 de abril de 2006.Ministro JOAQUIM BARBOSA Relator

(STF - MS: 25508 DF , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 20/04/2006, Data de Publicação: DJ 05/05/2006 PP-00052)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobre os poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais que foram conferidos às CPIs pela Constituição de 1988, deve-se frisar que se tratam dos poderes que os magistrados possuem durante a fase instrutória de um processo. A par do princípio da reserva de jurisdição, que restringe alguns poderes às autoridades judiciais, podem as CPIs, por exemplo, quebrar o sigilo bancário dos investigados, sem intervenção judicial, para elucidar a investigação em questão.

Acerca dos requisitos legitimadores dos atos de uma CPI, em especial da quebra de sigilo, devem ser observados o princípio da colegialidade, o dever de fundamentação e o direito de defesa do investigado, além dos princípios da proporcionalidade e da supremacia do interesse público. Isso se faz necessário para proteger os direitos individuais do cidadão e evitar a devassa indiscriminada de sua intimidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luis Roberto. Comissões Parlamentares de Inquérito e suas Competências: política, direito e devido processo legal. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 12, dezembro/janeiro/fevereiro, 2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 25/01/2014.

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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. ver., atual. eampl.. São Paulo: Saraiva, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed.rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2009.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 8. ed.. São Paulo: Atlas, 2011.

PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. Quebra de sigilo pelas Comissões Parlamentares de Inquérito. 1. ed.. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Comissão Parlamentar de Inquérito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Caio e Silva de. Poderes das comissões parlamentares de inquérito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5459, 12 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58692. Acesso em: 24 abr. 2024.