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Legitimidade da Defensoria Pública para tutela coletiva

Legitimidade da Defensoria Pública para tutela coletiva

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Hoje, a Defensoria Pública é expressamente prevista como legitimada para a tutela coletiva. O cenário normativo é completamente diverso do outrora, época marcada por um processo ainda nitidamente individualizado, sem as devidas adaptações às alterações sociais.

1) EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

O artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94 estabelece um rol exemplificativo das funções institucionais da Defensoria Pública. Trata-se, conforme o próprio caput do referido dispositivo normativo, de um rol não exaustivo. Entretanto, muitos doutrinadores contrários à legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva utilizavam-se do argumento de que a ausência de permissivo legal expresso no bojo do artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94 seria um obstáculo intransponível ao reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva.

O fato de o inciso XII do artigo 4º da supracitada legislação especial ("patrocinar ações civis públicas, em favor das associações que incluam entre suas finalidades estatuárias, a defesa do meio ambiente e a proteção de outros interesses difusos e coletivos”) ter sido objeto de veto presidencial era agregado ao argumento acima exposto, opondo-se à legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas. O Presidente da República à época, ao vetar o inciso ora em análise, valeu-se de argumentos expendidos pela Procuradoria-Geral da República.

A ação civil pública é instrumento típico de defesa de direitos e interesses coletivos e difusos. Se à Defensoria Pública é outorgada, como missão constitucional, a defesa de direitos individuais, não será possível que este órgão seja titular de direito de ação destinada, exclusivamente, à tutela de interesses coletivos e difusos. Ademais, a legitimação questionada é forma de burlar a única justificativa para a legitimação das associações, já que esta lhes foi atribuída exatamente pela sua capacidade de prover os meios para a defesa dos direitos que seus estatutos mandam observar. Acrescente-se que a legitimação das associações veio a atender aos reclamos da sociedade moderna de uma maior participação da sociedade civil em questões relevantes, sem a tutela de qualquer ente estatal, e como forma de exercício do direito da própria cidadania. A própria Constituição Federal, quando pretendeu legitimar órgão estatal na defesa do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, conferiu, expressamente, tal legitimação, no artigo 129, inciso III, ao Ministério Público. Além disso, a expressão patrocinar ação civil pública significa dizer que a Defensoria Pública poderá, sem mandato e ao seu livre arbítrio, na realidade, propor ação em defesa do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, fugindo assim da sua área de competência essencial, que é a de defender os necessitados, individualmente considerados – artigo 134 e artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal.

 Os argumentos acima utilizados demonstram nitidamente o contexto temporal existente à época do veto. A restrição da competência da Defensoria Pública única e exclusivamente para a defesa dos necessitados individualmente considerados será mais à frente rebatida. Entretanto, diante da referida análise, adianta-se alguns argumentos a serem melhor abordados. Como dito anteriormente, o artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94 não traça um rol exaustivo das funções essenciais da Defensoria Pública. Em nenhum momento, o artigo 134 da Constituição Federal faz alusão ao conceito exato de necessitados (apenas econômicos? Ou em um conceito mais amplo, abrangendo a necessidade organizacional?). Tampouco menciona expressamente a obrigatoriedade de qual necessidade seja aferida de forma individualizada. Com a Emenda Constitucional nº 80/14, tal fato se torna ainda mais evidente, quando se constata que foi incluída, na redação do artigo 134, a menção aos direitos coletivos no rol de atribuição da Defensoria Pública.

Quando da análise dos fundamentos do veto presidencial, constata-se, data venia, pontos contraditórios. Os argumentos expendidos fazem expressão alusão à necessidade de maior participação civil, a fim de conferir um maior grau de democracia e legitimidade às decisões judicias prolatadas. Defender tal corrente e, ao mesmo tempo, restringir a legitimidade para a tutela coletiva, concentrando-a em um número restrito de legitimados, é, salvo melhor juízo, contraditório. Quanto maior o número de legitimados, maiores as chances de se efetivar o direito pleiteado. Defende-se uma atuação em conjunto – Ministério Público e Defensoria Pública, juntos, em prol de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Uma atuação conjunta e não exclusiva ou restrita.

Corroborando o posicionamento acima esposado, é importante salientar o trecho abaixo ressaltado do livro "Direito Ambiental e as funções essenciais à justiça – o papel da Advocacia do Estado e da Defensoria Pública na proteção do meio ambiente"

De certa forma, quanto maiores e em maior numero forem os canais de acesso ao sistema de justiça, especialmente para o caso das demandas coletivas, com a descentralização de tal poder e a atribuição de tal função a um maior numero de instituições públicas (como o Ministério Público e a Defensoria Pública) e de instituições privadas (como as associações civis ou mesmo o próprio cidadão individualmente), maiores serão as chances de que as violações a direitos transindividuais alcancem o Poder Judiciário e, consequentemente, melhores as condições para a sua efetividade.[1]

Antes mesmo da entrada em vigor da Lei Complementar nº 80/94, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) já previa, em seu artigo 82, um rol de legitimados concorrentes para a tutela coletiva dos direitos consumeristas. No inciso III do referido dispositivo normativo, havia expressa previsão da legitimidade das “entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código".

Antes da EC 45/04, as Defensorias Públicas não possuíam autonomia administrativa, sendo consideradas, por muitos doutrinadores, como meros órgãos da Administração Pública. Em tese, portanto, o primeiro requisito previsto no inciso III do artigo 82 do CDC estava previsto. Entretanto, até o advento da Lei Complementar nº 80/94, não havia, em âmbito nacional, expressa previsão legal que incumbisse à Defensoria Pública a defesa dos interesses e direitos consumeristas. Apenas com o advento da supracitada lei complementar é que foi deferida à Defensoria Pública a atribuição de “patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado” (artigo 4º, XI). A partir deste momento, ambos os requisitos previstos no artigo 82, III, do CDC estavam preenchidos.

É mister salientar que, mesmo antes do advento da Lei Complementar nº 80/94,  algumas legislações já previam a defesa dos consumidores como uma das incumbências da Defensoria Pública. A Lei Complementar estadual nº 6/77 (do Estado do Rio de Janeiro) estabelecia, no §3º do artigo 22, tal incumbência, antes mesmo da Lei Complementar nº 80/94.

Art. 22. Aos Defensores Públicos incumbem, genericamente, o desempenho das funções de advogado dos juridicamente necessitados, competindo-lhes especialmente:

§3º Aos Defensores Públicos incumbe também a defesa dos direitos dos consumidores que se sentirem lesados na aquisição de bens e serviços

Com o advento da Lei Complementar nº 80/94, a legitimidade estendeu-se para todas as Defensorias Públicas. Entretanto, restritamente aos assuntos relacionados à tutela dos consumidores.

Quando da entrada em vigor da Lei nº 7.347/85, a Defensoria Pública não foi arrolada como uma das legitimadas para a propositura da ação civil pública, não estando expressamente prevista no rol do artigo 5º. Entretanto, tal realidade normativa foi alterada, com a publicação da Lei nº 11.448/07 e a alteração redacional do inciso II do referido dispositivo normativo. A defensoria pública é agora legitimada expressamente para a propositura de ação civil pública, não mais restrita única e exclusivamente a interesses consumeristas.

Indo ao encontro da referida inovação legislativa, em 2009, com a entrada em vigor da Lei Complementar nº 132, a Lei Complementar nº 80 foi expressamente alterada. Com a nova redação dada ao artigo 1º da Lei Complementar nº 80/94, há expressa referência à defesa dos direitos coletivos (não mais restrita à tutela individual, como no panorama anterior à entrada em vigor da Lei Complementar nº 132/09). Além disso, o rol de funções institucionais (previsto no artigo 4º) foi completamente remodelado, incluindo expressamente menção à tutela de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos (incisos VII, VIII, X e XI).

Art. 1º  A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;

VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal;

X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;

XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;

Constata-se do panorama histórico legislativo acima realizado que a Defensoria Pública é expressamente prevista como legitimada para a tutela coletiva. O cenário normativo é completamente diverso do outrora, época marcada por um processo ainda nitidamente individualizado, sem as devidas adaptações às alterações sociais (massificações das relações de consumo, importância dos direitos coletivos em sentido lato, etc.)


2) ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À LEGITIMIDADE 

Na petição inicial da ADI nº 3943, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), de relatoria da Ministra Carmen Lúcia, há basicamente dois argumentos para a declaração de inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei nº 7.347/85 (dispositivo normativo que prevê a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações civis públicas).

O primeiro deles refere-se à necessidade de se averiguar individualmente se cada um dos indivíduos tutelados na via coletiva é economicamente necessitado. Na petição inicial, afirma-se que “a Defensoria Pública foi criada para atender, gratuitamente, aos necessitados, aqueles que possuem recursos insuficientes para se defender judicialmente ou que precisam de orientação jurídica". Mais à frente, conclui-se que:

Aqueles que são atendidos pela Defensoria Pública devem ser, pelo menos, individualizáveis, identificáveis, para que se saiba, realmente, que a pessoa atendida pela instituição não possui recursos suficientes para o ingresso em juízo.

No tópico 3, analisar-se-á o conceito de necessidade, expressamente previsto no artigo 134 da Constituição Federal, e se averiguará se o conceito de necessidade econômica é o único que pode ser extraído do comando constitucional.

O segundo argumento utilizado refere-se à suposta afetação da competência do Ministério Público, caso seja reconhecida a legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva. Afirmam que a Constituição somente foi expressa quanto à tutela coletiva no inciso III do artigo 129, ao arrolar as funções institucionais do Ministério Público, dentre elas a de "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Afirmam que, caso o Constituinte tivesse vontade em arrolar a Defensoria Pública como mais uma instituição legitimada para a tutela coletiva, o teria feito de forma expressa, ao textualmente reconhecer sua legitimidade no artigo 134, como o fez posteriormente com o advento da Emenda Constitucional nº 80/14.

Da análise dos pedidos formulados na presente ação direta de inconstitucionalidade, constata-se que a CONAMP pretendia ter reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade total do dispositivo normativo impugnado, como se extrai do excerto abaixo transcrito.

Por isso, não há possibilidade alguma de a Defensoria Pública atuar na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, como possuidora de legitimação extraordinária.

Subsidiariamente, entretanto, pugnou por interpretação conforme à Constituição. Caso a legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva fosse de fato reconhecida como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a CONAMP requereu que tal legitimidade fosse restrita à defesa dos direitos coletivos em sentido estrito e aos direitos individuais homogêneos, somente quando forem favorecidos os hipossuficientes econômicos. É o que se depreende do trecho abaixo transcrito.

Ainda que se entenda poderem os defensores públicos propor ação civil pública, quando se tratar de interesses coletivos ou individuais homogêneos, não é constitucionalmente possível à Defensoria Pública ajuizar ação civil pública em relação a interesses difusos. Assim, há de ser dada interpretação conforme à Constituição, à lei ora questionada, para que não sejam contrariados os dispositivos constitucionais acima mencionados [artigos 5º, LXXIV, e 134]

A ADI 3943 foi julgada em 07 de maio de 2015, tendo sido reconhecida a constitucionalidade da Lei nº 11.448/07 e, em última medida, da própria legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva dos direitos e interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Ressaltando ser uma instituição essencial à função jurisdicional e à concretização do acesso à justiça, o Supremo Tribunal Federal, com arrimo nos princípios hermenêuticos garantidores da força normativa da Constituição e da máxima efetividade das normas constitucionais, entendeu que não há norma de exclusividade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública. Afirmou ainda o Supremo Tribunal Federal não existir qualquer prejuízo institucional ao Ministério Público com o reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública, razão pela qual julgou improcedente o pedido deduzido no bojo do controle concentrado de constitucionalidade, quando do julgamento da ADI 3.943/DF.


3) ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À LEGITIMIDADE

O artigo 134 da Constituição Federal estabelece que a Defensoria Pública tem como incumbência a defesa dos necessitados. Não há um molde pré-definido quanto ao alcance da expressão utilizada pelo constituinte. O que seria propriamente a necessidade que qualificaria a atuação da Defensoria Pública? Por mais que parcela da doutrina intente conferir a tal expressão um conceito meramente econômico, constata-se, à luz de uma interpretação sistemática do próprio texto constitucional, que a necessidade elencada constitucionalmente vai além das hipossuficiências econômico-financeiras. Conferindo concretude e efetividade ao direito de acesso à justiça, deve-se entender o conceito de necessidade de forma mais ampla, abrangendo a então denominada necessidade organizacional, termo cunhado pela doutrinada Ada Pellegrini Grinover, em parecer elaborado a pedido da Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP), que ingressou como amicus curiae no julgamento da ADI 3943.

Em tal parecer, Ada Pellegrini ressalta a importância do conceito de necessidade organizacional para a devida compreensão do tema.

Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos minus habentes. É este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez, mas não o único. Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico, mas também existem os necessitados do ponto de vista organizacional. Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, etc.

Muitos grupos sociais, por mais que possuam certa condição econômica, não são devidamente estruturados para aceder ao Poder Judiciário e judicializar suas demandas e conflitos sociais. Sob o ponto de vista estrutural, são frágeis organizacionalmente, sendo premente a defesa por parte da Defensoria Pública.

Corroborando o posicionamento acima explicitado, confira-se o entendimento do doutrinador Alexandre Freitas Câmara:

Há, porém, um outro público-alvo da Defensoria Pública: as coletividades. É que estas nem sempre estão organizadas (em associações de classes ou sindicatos, por exemplo) e, com isso, tornam-se hipossuficientes na busca da tutela jurisdicional referente a interesses ou direitos transindividuais. Era preciso, então, reconhecer a legitimidade ativa da Defensoria Pública para a defesa de tais interesses. Negar tal legitimidade implicaria contraria a ideia de que incumbe ao Estado (e a Defensoria Pública é, evidentemente, órgão do Estado) assegurar ampla e efetiva tutela jurisdicional a todos. Decorre, pois, essa legitimidade diretamente do disposto no artigo 5º, XXV, da Constituição Federal.[2]

Quanto àqueles que defendem a restrição da legitimidade da Defensoria Pública apenas para os casos de tutela de direitos individuais homogêneos, sob o argumento de que em tais casos seria faticamente possível aferir eventual necessidade econômica de cada um dos lesados, é mister tecer algumas considerações. Inicialmente, é oportuno salientar que a delimitação entre o interesse individual homogêneo e o interesse difuso resulta, em muitos casos, nebulosa. Zavascki, em seu livro “Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos”, exemplifica com a hipótese de transporte irregular de produtos tóxicos. Tal situação configura patente violação ao direito difuso de todos possuírem um meio-ambiente equilibrado e sadio. Entretanto, pode-se vislumbrar, sob a mesma situação fática, eventual violação a direitos individuais homogêneos. Os moradores limítrofes às rodovias utilizadas para o transporte irregular do produto tóxico, por exemplo, representam uma coletividade determinada, adequando-se ao tipo legal previsto no inciso III do parágrafo único do artigo 81 do CDC (direitos individuais homogêneos).

Os defensores desta restrição ao âmbito de legitimidade da Defensoria Pública afirmam categoricamente que apenas na tutela de direitos individuais homogêneos é possível aferir eventual necessidade econômica de cada uma das vítimas. Entretanto, tal argumento não subsiste. O regime jurídico adotado pelo CDC quanto à tutela dos direitos individuais homogêneos sofreu nítida influencia do direito norte-americano e seu split trial. Apenas a matéria comum é analisada na sentença coletiva genérica a ser proferida, postergando-se a análise dos danos individuais para a liquidação e a execução a serem propostas individualmente. Assim, como a Defensoria Pública teria legitimidade tanto para a propositura da ação coletiva para a tutela dos direitos individuais homogêneos, quanto para a promoção da execução individual, apenas na segunda fase seria possível aferir eventual necessidade econômica do representado. Na primeira fase, tal não correria. Além disso, tal argumento, ainda assim, não subsiste, levando em consideração o conceito axiológico ampliativo dado ao termo “necessidade”, como já visto no tópico anterior.

Outro argumento utilizado pelos opositores da legitimidade da Defensoria Pública centra-se na exigência legal de se aferir a necessidade econômica dos tutelados. Tal não subsiste uma análise mais acurada do instituto. A Defensoria Pública possui atribuições típicas (necessidade de comprovação da insuficiência de recursos – carência financeira) e atribuições atípicas (ocorre independentemente da condição financeira do beneficiário). Há inúmeros exemplos de atribuições atípicas por parte da Defensoria Pública que nunca foram contestados pela doutrina, existentes desde o advento da referida instituição, como a curadoria especial e a defesa em processo criminal. Por mais que os assistidos não sejam economicamente necessitados, em tais hipóteses, a Defensoria Pública tem incumbência legal em atuar como representante. Percebe-se, portanto, que não há necessidade de expressa hipossuficiência econômica para a atuação da Defensoria Pública. Pode-se enfocar o conceito de necessidade de acordo com outros viés e ângulos (conceito de necessidade organizacional).

Um dos argumentos utilizados para a defesa da inconstitucionalidade do dispositivo normativo impugnado é a suposta sobreposição à função institucional do Ministério Público. Entretanto, de acordo com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, constata-se que uma atuação em conjunto da Defensoria Pública e do Ministério Público confere um caráter mais democrático e participativo à atuação judicial, resguardando a sociedade civil, principal interessada na tutela coletiva, de eventuais arbitrariedades. Quanto maior o número de legitimados, maior o poder de efetividade dos direitos constitucionalmente previstos. Neste sentido, não há sobreposição de funções, mas sim uma atuação em conjunto em prol de um Estado Democrático de Direito há tanto almejado.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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VIANA DE LIMA, Frederico Rodrigues. Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2011.


Notas

[1] FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, acesso à justiça e justiça ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman; DE FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin (coord.). Direito ambiental e as funções essenciais à justiça – o papel da Advocacia de Estado e da Defensoria Pública na proteção do meio ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 119.

[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar ação civil pública: um possível primeiro pequeno passo em direção a uma grande reforma. In: A Defensoria Pública e os Processos Coletivos – comemorando a Lei Federal nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 46-47.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALIM, Pedro Losa Loureiro. Legitimidade da Defensoria Pública para tutela coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5228, 24 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60599. Acesso em: 19 abr. 2024.