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O foro por prerrogativa de função: um instituto jurídico criado para administrar a impunidade no Brasil

O foro por prerrogativa de função: um instituto jurídico criado para administrar a impunidade no Brasil

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O foro por prerrogativa de função traz grande sensação de impunidade no seio social. É preciso expurgar do ordenamento qualquer tentativa de exceção ao império da lei para aqueles que cometem atos ilícitos.

Resumo: O presente artigo científico tem como objetivo geral analisar como o instituto do foro por prerrogativa de função vem sendo aplicado como instrumento para retardar a aplicação da lei. E, assim, possuindo os seguintes objetivos específicos: analisar qual o objetivo deste instituto no direito pátrio brasileiro; analisar se existe algum privilégio ao ser julgado diretamente por um tribunal; verificar se houve alguma modificação na legislação ao longo do tempo sobre o tema do foro por prerrogativa de função; analisar se deve limitar ou criar uma justiça especializada para julgar pessoas que gozam de foro por prerrogativa de função. A metodologia de pesquisa utilizada no presente estudo é qualitativa, através de estudo bibliográfico, sendo estes estudos dados por livros, artigos científicos e websites que abordam sobre a temática com o intuito de adquirir informações e conhecimento sobre a temática. Conclui-se, então, que o foro por prerrogativa de função traz grande sensação de impunidade no seio social, é preciso que seja feita uma reforma para que se busque expurgar do ordenamento qualquer tentativa de exceção ao império da lei para aqueles que navegam pelas águas turvas da ilicitude. Sem quaisquer excessos, seria importante a redução dessa sensação de impunidade por meio de criação de uma justiça especializada que dê agilidade aos processos que envolvam essas autoridades com especialidade de foro, uma solução mediana, restringir o foro, para reduzir a quantidade de autoridades com esse privilégio, ou em condições mais severas ou até mesmo uma das mais sensatas, a extinção definitiva deste instituto jurídico do ordenamento brasileiro.

Palavras-chave: Foro por prerrogativa de função. Privilégio. Competência. Jurisdição.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 DA ANÁLISE CONCEITUAL DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO; 3 O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL; 4 O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO COMO UM PRIVILÉGIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 4.1 DAS TENTATIVAS DE MODERNIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE O FORO ESPECIAL; 4.2 LIMITAÇÃO OU EXTINÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro nunca se falou tanto, em Foro Por Prerrogativa de Função como na atualidade, e buscar entender o verdadeiro significado deste instituto jurídico em nosso ordenamento é mais que necessário, pois é fundamental constatar se de fato cumpre o objetivo para o qual foi criado. É uma tarefa importante para um amplo debate sobre a existência e a permanência deste instituto, de forma a privilegiar os princípios que fundam a república. E para alcançar esse objetivo foi utilizado no presente, o método da pesquisa bibliográfica indutiva, baseado nas observações de uma realidade concreta em volta do tema Foro por prerrogativa de função mais especificamente no âmbito federal da República brasileira.

Nos últimos anos, sobretudo no que se refere aos grandes escândalos de corrupção em que políticos e empresários, para a prática de ilícitos, desviou-se milhões em verbas públicas. Essa discussão ganha destaque sobretudo, no ano de 2005 durante o processamento da Ação Penal 470, conhecida popularmente como o “mensalão”, que tramitou na Suprema Corte Brasileira.

E mais recentemente com o escândalo do “Petrolão”, trazido a público pela operação da Polícia Federal, batizada de “Operação Lava-Jato” por envolver a petrolífera brasileira Petrobras, em um grande esquema de desvio de verba pública em razão de contratos superfaturados em favor de grandes empreiteiras, políticos e funcionários públicos nacionais e estrangeiros.

É por tudo isso que a sociedade passou a questionar as razões pelas quais determinadas autoridades tem essa prerrogativa de função, para serem processados e julgados por um tribunal superior nos crimes comuns e nos de responsabilidade pela casa legislativa competente. Nesta seara incialmente trataremos do conceito de Foro por Prerrogativa de Função no ordenamento jurídico brasileiro, bem como da sua natureza jurídica, aplicação prática e resultados, bem como a funcionalidade deste instituto no nosso ordenamento.

Buscou-se pela evolução histórica desse instituto no ordenamento brasileiro desde a nossa primeira constituição imperial até a nossa atual Constituição.  O foco da pesquisa busca o posicionamento de juristas e doutrinadores, bem como jurisprudências sobre o tema para avaliar avanços e retrocessos ao longo da história do Brasil.

Analisou-se o tema do Foro Especial, como um sistema em si mesmo, criado para não funcionar e administrar a justiça no sentido de dificultar ou até mesmo afastar a pretensão punitiva do Estado em punir aqueles detentores do Foro Especial pela prática de crimes comuns e de responsabilidade em face de inúmeros casos de corrupção que se beneficiam da morosidade no processamento pelos tribunais superiores dado o grande número de processos que tramitam nestas cortes.

Que tal instituto é identificado por juristas como Luís Roberto Barroso, como uma verdadeira fonte de proteção a impunidade, um verdadeiro câncer na sociedade, em detrimento do número estratosférico de autoridades beneficiadas por esta prerrogativa, que em muitos casos apresentam a mais manifesta e desarrazoada proteção sem um fundamento sustentável.

Realmente esse privilégio de foro na prática busca proteger de fato o cargo, verificou-se os objetivos do legislador ao criá-lo e como funciona o seu processamento nos tribunais, de modo a levantar as inserções legislativas que buscaram ao longo do tempo modernizar o nosso ordenamento relativamente a este instituto jurídico e a possibilidades de solução viável para a sua controvérsia no ordenamento jurídico brasileiro.


2. DA ANÁLISE CONCEITUAL DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

O instituto jurídico do Foro por Prerrogativa de Função é uma das formas de se fixar a competência jurisdicional no ordenamento jurídico pátrio brasileiro, em estrito respeito as características e peculiaridades do cargo ou função pública ocupada por determinada pessoa.

Para NUCCI (2008, p. 246), a jurisdição “é o poder atribuído constitucionalmente ao Estado para aplicar a lei ao caso concreto, compondo litígios e resolvendo conflitos”. Face a este dispositivo processual, o órgão é especificado e determinado competente para processar e julgar as ações que versem sobre crimes comuns e ou de responsabilidade, em desfavor de determinadas autoridades públicas, precipuamente  as que ocupam cargos do alto escalão do nosso país, que por sua vez submeter-se-ão a jurisdição especializada.

 O agente detentor do foro especial ou ainda foro privilegiado, ao praticar um ilícito tido como comum ou de responsabilidade, de modo que esta especial proteção se dá em detrimento do resguardo da coisa pública e não do ocupante do mesmo, serão submetidos a julgamento por um Tribunal Superior. Para explicar melhor essa dicotomia invocou-se a lição de Renato Brasileiro ao nos ensinar que a infração penal comum engloba quaisquer infrações penais, podendo ser crime eleitoral, crime doloso contra a vida, contravenção penal e ainda crime militar. No que diz respeito aos crimes de responsabilidade, o autor deixa claro que são aqueles que estão sujeitos à jurisdição política:

Em sede de competência por prerrogativa de função é importante perceber que a constituição federal adota uma dicotomia entre crimes comuns e crimes de responsabilidade. Assim, para fins de foro por prerrogativa de função, a expressão crimes comuns abrange todas as infrações penais que não constituam crimes de responsabilidade, sujeitos que estão estes à denominada Jurisdição política. Por isso, quando o art.102, I, “b”, da Magna Carta estabelece que ao Supremo compete o processo e julgamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns, tem-se que o parlamentar deve ser processado perante a Suprema Corte em relação a qualquer infração penal, que se trate de crime eleitoral, crime doloso contra a vida, crime militar, quer se trate de uma simples contravenção penal. LIMA, (2015, p.478).

    Por ligar-se à função e não à pessoa, essa forma de determinar o órgão julgador competente, não acompanha a pessoa após o fim do exercício do cargo ou função pública. Sobre o conceito de crime de reponsabilidade, importa trazer à baila também a lição de Eugênio Pacelli, onde o mesmo afirma que estes crimes estão submetidos à jurisdição política, onde encontra-se previsto também como penalidade ou sanção, a perda do cargo ou da função pública, com a possibilidade ainda, de inabilitação para o exercício de cargo público futuro nos termos a seguir:

Os chamados crimes de responsabilidade não configuram verdadeiramente infrações penais. Constituem, ao contrário, infrações de natureza eminentemente política, com tratamento bastante distinto, daquele reservado as infrações abrangidas pelo Direito Penal. Estão submetidos a processo e julgamento perante jurisdição política. PACELLI, (2016, p.189).

De outro modo, existem determinadas outras autoridades como os de atividade parlamentar de cargos eletivos, que para além da prerrogativa de foro, são detentoras de determinadas imunidade, que podem ainda ser absoluta e relativa, conforme o disposto no art.53 da Constituição da República Brasileira de 1988, em redação dada por força de Emenda Constitucional nº35 de 2001:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. 

§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. (BRASIL,1988).

No que se refere a estrita fixação da competência penal, a imunidade de caráter relativo está disposta no inteiro teor do art.53, §2º da Constituição Federal de 1988, também com redação dada por força da Emenda constitucional nº35 de 2001. Diante hipótese trazida pelo dispositivo constitucional, em caso de flagrante delito de crime inafiançável, o respectivo inquérito policial, deverá ser remetido dentro de 24(vinte e quatro) horas para a casa competente do congresso nacional, que por sua vez submeterá o fato, a votação pela maioria de seus membros, e decidir-se-á pela autorização ou não da prisão do agente, conforme abaixo:

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão (BRASIL,1988).

É público e notório, que além de alguns ocupantes de funções públicas terem na ordem constitucional brasileira o direito de serem julgados por um órgão colegiado do poder judiciário, se forem ocupantes dos cargos de Senador da República ou Deputado Federal, quando da prática de ilícitos comuns, ou ainda de responsabilidade, somente poderão ser presos mediante flagrante delito e se for por crime que não seja compatível com o instituto da Fiança.


3. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL

O Foro por Prerrogativa de Função ou simplesmente Foro Privilegiado, ou ainda Foro Especial, não é matéria nova, já se percebe a sua existência ainda na Grécia antiga, bem como em Roma, onde verificou-se a inclusão de determinados privilégios, ou ainda prerrogativas para proteger os membros das assembleias ou do Senado.

Naquela ocasião, quem possuía essas determinadas prerrogativas eram o chefe do poder privado, chefe de família, chefe militar e o chefe religioso que eram figuras sempre vistas ao lado do monarca ou imperador da época. Nesta ótica, a base fundamental e ideológica em razão da função estava vinculada diretamente aquele que detinha o poder e que, portanto, não estaria sujeito as mesmas regras ou leis, impostas aos cidadãos comuns, no curso da vida em sociedade.

No regime absolutista, autores como Jean Bodin, Machiavelli e Thomas Hobbes tinham bastante afinidade com este instituto em comento, para além disso, Bobbio (1986, p.36), no livro “O Futuro da Democracia” trouxe à baila um princípio do Direito Romano que ressalta a proteção daqueles que detém o poder, afirmando se tratar de resultado histórico para a sociedade humana, que ficou subordinada ao império da monarquia conforme a seguir:

A máxima de Ulpiano, ‘princeps legibus solutus est’, enunciada para o principado romano, foi interpretada pelos juristas medievais no sentido de que o soberano está livre das leis positivas que ele mesmo produz e dos costumes que valem até quando são tolerados[...]BOBBIO (1986, p.36).

Essa expressão “princeps legibus solutus est” significa dizer que o Príncipe não se submete a todas as leis, na prática, o detentor do poder não está obrigado ao cumprimento de regras. No Brasil esse instituto chegou por meio do texto constitucional assentado na carta política outorgada de 1824 mais precisamente em seu artigo 47, que concedeu ao Senado da República a especial competência para conhecer dos delitos de cada um dos integrantes da Família Imperial, dos Ministros de Estado, dos Conselheiros de Estado, dos Deputados durante o período de sua legislatura, e até dos próprios Senadores, a saber:

Art. 47. E' da attribuição exclusiva do Senado;

I. Conhecer dos delictos individuaes, commettidos pelos Membros da Familia Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, e Senadores; e dos delictos dos Deputados, durante o periodo da Legislatura.

II. Conhecer da responsabilidade dos Secretarios, e Conselheiros de Estado.

 III. Expedir Cartas de Convocação da Assembléa, caso o Imperador o não tenha feito dous mezes depois do tempo, que a Constituição determina; para o que se reunirá o Senado extraordinariamente.

IV. Convocar a Assembléa na morte do Imperodor para a Eleição da Regencia, nos casos, em que ella tem logar, quando a Regencia Provisional o não faça (BRASIL, 1824).

Ainda no período imperial e na vigência da carta de 1824 sobre o regime monárquico, a mencionada carta política dispunha, ainda, sobre o assunto em seu art. 179, XVII a saber; “à excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem commissões especiaes nas causas cíveis, ou crimes”.

Ademais, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, em seu artigo 57, §2º manteve este instituto, para determinar que o Senado da República julgue os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, senão vejamos:

Art 57 - Os Juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial.

§ 1º - Os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos.

§ 2º - O Senado julgará os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, e este os Juízes federais inferiores (BRASIL, 1891).

A Carta política de 1934, no art.113, 25, manteve em seu texto, previsão especial de vedação aos tribunais de exceção, porém admitindo determinados juízos especiais, conforme a seguir, “Não haverá foro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se, porém, juízos especiaes em função da natureza das causas”. (BRASIL, 1934).

Assim, abstrai-se das primeiras Constituições brasileiras, que textualmente tinha exceções nas cláusulas que vedavam a previsão do foro por prerrogativa de função, os casos em que de acordo com a sua natureza, estariam subordinados a apreciação e julgamento por juízos especiais.

 Todavia, essa reserva legal, restaria sem efeitos práticos do ponto de vista do processo, vez que a previsão dos juízos especiais, e em razão da matéria sob a sua ótica, em si mesma, não demonstra elementos que consubstanciem o foro por prerrogativa de função, pois este, é fixado com base em critérios em razão do cargo ou função pública, e não da matéria que deve ser submetida ao juízo.

Logo em seguida da carta totalitária de 1937, a Carta política de 1946 textualmente vedou o foro por prerrogativa de função conforme podemos abstrair do seu art. 141, § 26 que asseverou: “não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção” (BRASIL, 1937). E aqui estamos diante do princípio do juiz natural tão necessário para assegurar ao nosso ordenamento a imparcialidade necessária para conhecer e processar os casos sob sua jurisdição.

 A constituição de 1946, atribuía também ao Supremo Tribunal Federal a competência originária para processar e julgar os crimes comuns praticados pelo Presidente da República, pelos Ministros de Estado e o Procurador-Geral da República:

Art 101 - Ao Supremo Tribunal Federal compete:

I - processar e julgar originariamente:

a) o Presidente da República nos crimes comuns;

b) os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos              crimes comuns;[...] (BRASIL, 1946).

 O art. 150, § 15, da Constituição de 1967, permaneceu inalterado pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969, dado que manteve a expressa vedação, nos exatos termos a seguir: “a lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção” (BRASIL, 1967).

Desta feita, as demais constituições que se seguiram também mantiveram o respectivo instituto e inclusive o ampliaram para contemplar outras autoridades, como é o caso da Carta Republicana do Brasil promulgada em 1988, ou mais conhecidamente como a Constituição Cidadã, que trouxe taxativamente em seu texto constitucional do art.102, I, “b” e “c” a especial competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente na infrações penais comuns cometidas pelo Presidente da República, Vice-Presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os seus próprios Ministros, inclusive o Procurador-Geral da República.

É importante, ainda revelar no texto da carta política brasileira de 1988, a nossa Constituição Cidadã, em que pese as suas especialíssimas qualidades quanto as garantias individuais e coletivas, é a mais benevolente ao conceder foro por prerrogativa de função a autoridades públicas, firmando em seu texto normativo 19(dezenove) hipóteses que asseguram privilégio de foro, conforme a seguir, nos arts. 29 incisos X, art.102 incisos I alíneas “b” e “c”, art.105, inciso I alínea “a”, e art.108 incisos I ao VII.

Afirma a Carta Política de 1988 que o Supremo Tribunal Federal também será competente para processar e julgar nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, excetuando-se o disposto no art.52, I do mesmo diploma constitucional a saber:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

a)[...]

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999)

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; (BRASIL, 1988).

Trata-se, portanto, de uma relativização constitucional do princípio da isonomia ou ainda de igualdade, em face dos cidadãos comuns que não detêm a especialidade do cargo para ascender a prerrogativa de foro, que em muitos dos casos vêm sendo utilizado como verdadeiro salvo-conduto para impunidade institucionalizada e a administração do instituto jurídico da prescrição dos ilícitos praticados pelos detentores deste privilégio.

Estas proteções e privilégios nos remonta ao passado, onde os reis eram tidos como verdadeiros Deuses na terra, e que como tal, estavam imune as leis, não se submetendo às mesmas, e já percebemos que esta forma de desigualar cidadãos para lhe dar especialidade onde a própria constituição lhe nega em razão de que todos somos iguais perante a lei sem quaisquer distinção, é como se a criatura se voltasse contra o seu criador e o fosse contra à sua vontade, agindo contra legem, e isso não é possível de ser tolerado.


4. O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO COMO UM PRIVILÉGIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Ao longo da história das constituições do Brasil, desde o tempo do império, observamos que o legislador buscou uma especial proteção para aqueles detentores de cargos ou funções públicas de maior relevância para o país, na intenção de que se preservasse o especialíssimo  interesse público, dado que não poderia ser o cidadão detentor daquele cargo ou função, ser tão facilmente inviabilizado nos exercício das suas funções públicas por juízes de primeiro grau, mediante provocação de quaisquer um do povo.

O legislador buscou expressar no texto constitucional uma especial proteção em razão do cargo, e não em razão da pessoa que o ocupa, o que muitos dos quais ocupam esses cargos, pensam ou até acreditam equivocadamente ser eles os detentores originários do foro especial. Nesta seara, é impossível adentrar neste tema sem invocar o princípio constitucional da isonomia ou da igualdade, ou ainda equiparação ou paridade, vez que a ligação entre estes é juridicamente umbilical.

Nos ensina o Ministro Luis Roberto Barroso que:

A igualdade constitui um direito fundamental e integra o conteúdo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas as pessoas são fins em si mesmas4 , possuem o mesmo valor e merecem, por essa razão, igual respeito e consideração5 . A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. Em torno de sua maior ou menor centralidade nos arranjos institucionais, bem como no papel do Estado na sua promoção, dividiram-se as principais ideologias e correntes políticas dos últimos séculos. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e sua diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras. BARROSO (2014, p.3)

É inconcebível que em tempos atuais, os cidadãos testemunhem a forma vergonhosa daqueles que exercem o poder. O instituto do foro por prerrogativa de função no ordenamento jurídico pátrio brasileiro, criado único e exclusivamente na maioria dos casos como forma de blindagem pessoal do ocupante do cargo frente ao império da lei e da justiça. Tudo com direito a ato solene dos representantes dos poderes e uma ampla plateia para demonstrar com certa naturalidade o ritual que esvazia em si, o princípio constitucional da isonomia de forma manifestamente desleal ao texto da lei maior, quando se pretende ascender alguém para lhe conceder a especial proteção que se dá ao cargo.

Já afirmava José Afonso da Silva sobre o princípio constitucional da igualdade que:

O direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno desta, obnulibaram aquela. É que a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade, tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa. SILVA (2005, p.211).

Sobre ser ou não, um privilégio, existem controvérsias a respeito do assunto na doutrina. Assevera a nossa Constituição vigente, em seu art.5º, a lei maior da República do Brasil que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] (BRASIL, 1988).

Existe uma corrente majoritária formada por alguns doutrinadores como, Renato Brasileiro de Lima e Júlio Fabbrini Mirabete, que sustentam a tese de que o Foro por prerrogativa de função, de forma alguma ataca o princípio constitucional da isonomia ou de vedação a tratamento diferenciado para quaisquer do povo, dado que segundo eles, não existe um tratamento diferenciado em razão da pessoa ocupante do cargo ou função pública, mais estritamente em razão da especial e relevante importância do cargo público, e que em nada se atribui tratamento diferenciado ou especial em detrimento de adjetivos pessoais.

Assevera, Renato Brasileiro de Lima, que:

Em face da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e a legislação infraconstitucional lhes conferem o direito de serem julgados por Tribunais. Cuida-se da denominada competência ratione funcionae. (LIMA, 2015, p.470).

Arremata ainda sobre o tema Júlio Fabbrini Mirabete que:

[...]Fala-se em competência ratione personae (em razão da pessoa), quando o Código deixa bem claro que a competência é ditada pela função da pessoa, tendo em vista a dignidade do cargo exercido e não do indivíduo que o exerce. É usual o nome de foro privilegiado, agora mais aceitável, já que a Constituição Federal de 1988 não menciona proibição ao “foro privilegiado”, mas apenas a “juízo ou tribunal de exceção” (art.5º, XXXVII). [...] MIRABETE (2007, p.176).

Portanto, em contraponto a tese defendida pela corrente majoritária, que essa proteção em nada garante o interesse público, mais sim, a pessoa que ocupa o cargo, sendo o respectivo Foro Especial ou ainda, Privilegiado, uma espécie de blindagem pessoal, como uma forma de proteção ou escudo contra as tão propagadas manipulações políticas e ideológicas, de tal forma que se iniba o império da lei e da justiça, não se submetendo o agente de nível hierárquico superior à jurisdição de juiz hierarquicamente subordinado.

Afirma, Guilherme de Souza Nucci que:

“A doutrina de maneira geral justifica a existência do foro privilegiado como maneira de dar especial relevo ao cargo ocupado pelo agente do delito e jamais pensando em estabelecer desigualdades entre os cidadãos. Entretanto não estamos convencidos disso. Se todos são iguais perante a lei, seria preciso uma particular e relevante razão para afastar o criminoso do seu juiz natural, entendido este como o competente para julgar todos os casos semelhantes ao que foi praticado”. NUCCI (2008, p.263).

Restou-se cristalino aqui, que a forma que o foro privilegiado vem sendo utilizado no Brasil, revela um verdadeiro sistema criado para não funcionar, trata-se de uma espécie de administração da justiça para a especial implementação da injustiça e da impunidade institucionalizada e que nos parece ser bastante utilizado pela classe política brasileira.

Outrora, fazia parte do ordenamento jurídico brasileiro a súmula 394 do STF, permitindo que muito embora o ilícito fosse cometido no exercício funcional do cargo, e o inquérito ou ação penal fossem iniciados após a sua cessação, permaneceria a especialíssima competência do foro por prerrogativa de função.

O dispositivo legal da súmula 394 do STF, foi cancelado por decisão do plenário da corte em decisão datada de 25.08.1999.

A classe política insatisfeita com a decisão acima proferida pela Corte Excelsa brasileira que afastou tamanho privilégio da classe política, providenciaram a implementação para ressuscitar a referida súmula 394 na forma da lei 10.628/02 que acabou por acrescentar os §1º e 2º do art.84 do Código de Processo Penal.

Entretanto, conforme ADIN nº 2.797-2 que tramitou no Supremo Tribunal Federal, a Corte novamente atuou para declarar a referida lei inconstitucional, por entender que o dispositivo oriundo do poder legislativo, além de ter feito uma interpretação fiel do texto da nossa Carta Magna o que é de reserva de norma com hierarquia constitucional, usurpou a competência da Suprema Corte brasileira que é o guardião da nossa constituição ao inverter a leitura já realizada da norma constitucional.

Como exemplo, pode-se citar aqui uma dada pessoa que é titular do cargo de Prefeito Municipal, que responde processo pela prática de ilícito e tem seu processamento originário no Tribunal de Justiça de determinado estado da federação, que prestes a ter decisão definitiva do processo, é eleito Deputado Federal, fato este que desloca a competência para o Supremo Tribunal Federal que levará considerável lapso de tempo para fazer o processamento e a devida ratificação da denúncia, e assim por diante, dado que é possível ainda, a renúncia do mesmo sujeito ao cargo de Deputado Federal com vistas a deslocar novamente a competência para o Tribunal do estado onde tramitava originariamente, até que se opere a prescrição da pretensão punitiva provável do estado juiz.

Deste modo, o instituto do Foro Privilegiado, em nada prestigia os princípios republicanos, é um sistema criado para implementar a impunidade de forma institucionalizada, de modo a blindar determinadas pessoas ocupantes de cargos públicos para que se opere a prescrição de suas práticas de ilícitos, demonstrando uma verdadeira desmoralização social das instituições do Estado Democrático de Direito e em especial ao poder judiciário, poder da república criado para garantir aos cidadãos as garantias da vida em sociedade de forma igualitária

Importa trazer à baila que o indivíduo agraciado com o foro especial não terá direito ao duplo grau de jurisdição, e por isso alguns levantam a tese de ser um prejuízo processual para o agente, e que não há benefício algum quanto a isso, pois limita-se muito os atos processuais recursais para revisão das decisões vergastadas, pelo fato de que o processo originariamente nascerá em um tribunal e da decisão deste órgão caberia em tese, a ele mesmo rever tal decisão.

É inaceitável tamanha aberração constitucional, conceder benefícios diferenciados à cidadãos sem uma razoável fundamentação legal e republicana. A nossa Constituição de 1988, deixa cristalino em eu texto maior que todos somos iguais perante a lei e que, portanto, não haverá tratamento diferenciado para quaisquer um do povo.

4.1 Das tentativas de modernização da legislação Brasileira sobre o Foro Especial

De forma lenta e de maneira progressiva, houve um esforço no sentido de modernizar a legislação brasileira para coibir e punir a prática de ilícitos contra a administração pública, como exemplo, o crime do colarinho branco com redação dada pela lei dos crimes contra o Sistema Financeiro (Lei 7.492/86);

Dentre outras tentativas de modernizar e dar maior efetividade a punição estatal em face da prática de ilícito, evoluímos com a inserção das seguintes legislações no nosso ordenamento jurídico tivemos a Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária (Lei 8.137/90); a lei do agravamento de pena pela prática de Corrupção Ativa e Corrupção Passiva (Lei 10.763/2003); tivemos também a lei de Lavagem e Ocultação de Bens, Direitos e Valores (Lei 9.613/98, que posteriormente foi alterada pela Lei 12.683/2012).

Muito embora já existisse a possibilidade da tão propagada colaboração premiada, dado que de modo incipiente, estava disposta na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), e que posteriormente tenha sido fortificada com a letra da lei de Lavagem e Ocultação de Bens, Direitos e Valores, acima mencionada, foi a Lei 12.850/2013 que definiu a organização criminosa e dispôs sobre a investigação criminal, de modo a detalhá-la de forma eficaz.

Tão merecida quanto, a conhecida Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), permitiu a notória responsabilização de forma objetiva de pessoas jurídicas envolvidas na prática de ilícitos contra a administração pública com o chamado “Acordo de Leniência”, que tanto tem auxiliado para a descoberta de crimes contra o patrimônio público do nosso país, porém certa resistência entre os juristas devido as negociações das punições.

4.2. Limitação ou extinção do Foro Por Prerrogativa de Função?

Existem grandes debates entre os estudiosos do ordenamento jurídico brasileiro no sentido de limitar ou extinguir o instituto do foro especial pelo fato do mesmo reverenciar a impunidade institucionalizada ao passo que os agentes políticos de maneira mais acentuada, se utilizam deste instituto para administrar as decisões judiciais e ou até mesmo protelá-las até operar-se a prescrição da pretensão punitiva do estado juiz, pela prática de ilícitos.

Assevera o Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, sobre a necessidade de repensar o Foro por Prerrogativa de Função em face da sua disfuncionalidade. Segundo ele, a sociedade jurídica debate atualmente, sobretudo com a crise política e institucional que assola o Brasil, a hipótese da extinção do instituto jurídico, foro por prerrogativa de função, o que seria o ideal, ou que, ao menos, o mesmo possa ser limitado aos chefes dos poderes da República.

Portanto o foro especial seria apenas para o Presidente da República, os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Sendo Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal, e que por força do princípio da simetria previsto no art.125, Caput do texto maior, os demais entes federados atuem no mesmo sentido da limitação do foro especial, senão vejamos o que diz a constituição sobre o assunto, (BRASIL, 1988), “Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”.

Sobre os entes federados, na lição de Tourinho Filho, o foro especial por prerrogativa de função tem a sua fixação dada pela Constituição Federal de 1988, no seu (art. 96, III), pelas Constituições dos estados no art. (125, § 1º da CRFB) e pelas Leis Orgânicas dos Municípios no (art. 29, X da CRFB), todos da Carta Política de 1988. Deste modo estaríamos saneando o poder judiciário de milhares de processos que engessam os tribunais superiores brasileiros e evitando que estes processos venham a ser extintos por reconhecer que se operou a prescrição e nada mais pode ser feito senão lamentar a vitória da impunidade.

Haveria uma terceira hipótese, que seria criar uma justiça especializada para processar e julgar todas as demandas que tenham como parte, autoridade com privilégio de foro, e neste caso não importando se durante o trâmite do processo a autoridade venha ou não a perder tal benefício, o processo continuaria o seu rito normal até que se obtenha uma sentença definitiva, claro que observando os princípios da ampla defesa e do contraditório, que devem a todo custo ser preservados no ordenamento jurídico pátrio brasileiro, como forma de prestígio a nossa lei maior, previsto no inciso LV do art.5º, a seguir:

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente. [...] (BRASIL, 1988).

De acordo com os ensinamentos do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso proferido no “Seminario en Latinoamérica de Teoría Constitucional y Política” – SELA, organizado pela Yale Law School no Rio de Janeiro, em 2014:

A igualdade formal é a do Estado liberal, cuja origem foi a reação aos privilégios da nobreza e do clero. Na sua formulação contemporânea, ela se projeta em dois âmbitos diversos. Em primeiro lugar, na proposição tradicional da igualdade perante a lei, comando dirigido ao aplicador da lei – judicial e administrativo –, que deverá aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidência. Em segundo lugar, no domínio da igualdade na lei, comando dirigido ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo.[1]               

Seguindo ainda, o pensamento do Ministro Luis Roberto Barroso, o Brasil é um país de conexões políticas que permitem um certa “pessoalização” ou “jeitinho” para o exercício do contorno da lei, uma disfunção decrescente mais ainda encontrada com frequência:

Esta é uma página virada na maior parte dos países desenvolvidos, mas ainda existem problemas não resolvidos entre nós. É certo que a maior parte das dificuldades nessa área têm mais a ver com comportamentos sociais do que com prescrições normativas. O Brasil é um país no qual relações pessoais, conexões políticas ou hierarquizações informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela “pessoalização”, pelo “jeitinho” ou pelo “sabe com quem está falando”. Trata-se de uma disfunção decrescente, mas ainda encontrável com certa frequência. Paralelamente a isso, as estatísticas registram que os casos de violência policial injustificada têm nos mais pobres a clientela natural. Sem mencionar que certos direitos que prevalecem no “asfalto” nem sempre valem no “morro”, como a inviolabilidade do domicílio e a presunção de inocência.[2]

O ministro buscou com perspicácia notável sobre o tema dos privilégios, que de republicanos não apresentam absolutamente nada, ao afirmar que:

É inegável, todavia, que no plano normativo também subsistem resquícios aristocráticos e pouco republicanos. Cabe lembrar que até a Constituição de 1988, juízes e militares eram imunes ao pagamento de imposto de renda. Já sob a vigência da nova Constituição, e até a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, não era possível instaurar ação penal contra parlamentares, independentemente de qual fosse o crime, sem prévia licença da casa legislativa a que pertencesse. Atualmente, não é possível a decretação de prisão, salvo em caso de flagrante delito, mesmo quando presentes os requisitos da prisão preventiva. Por fim, com intensa gravidade, subsiste o foro privilegiado para diversas autoridades e para parlamentares, que respondem a ações penais perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, uma jurisprudência leniente do STF tem permitido a manipulação corriqueira da jurisdição, com renúncias e eleições para cargos diversos, fazendo com que processos subam e desçam, gerando prescrição e impunidade.[3]

Luís Roberto Barroso, posiciona-se abertamente pela mitigação do instituto do Foro por Prerrogativa de Função, em despacho proferido nos autos da Ação Penal 937 que tramita no Supremo Tribunal Federal datado de 10/02/2017 e publicado no DJE nº 33, divulgado em 17/02/2017:

De lege ferenda (i.e., em uma urgente modificação do Direito vigente), o foro por prerrogativa de função deve ser reduzido a um número mínimo de autoridades, aí incluídos os chefes de Poder e pouquíssimas mais. Sintomaticamente apelidado de foro privilegiado, passou a constituir um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país. Há três ordens de razões que justificam sua eliminação ou redução drástica. Em primeiro lugar, existem razões filosóficas: trata-se de uma reminiscência aristocrática, não republicana, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável. Em segundo lugar, devido a razões estruturais: Cortes Constitucionais, como o STF, não foram concebidas para funcionarem como juízos criminais de 1º grau, nem têm estrutura para isso. O julgamento da Ação Penal 470 (conhecida como Mensalão) ocupou o Tribunal por um ano e meio, em 69 sessões. Por fim, há razões de justiça: o foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque dele resulta maior demora na tramitação dos processos e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 937/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso.[4]

O Ministro, pugna pelo respeito aos princípios republicanos em sua mais profunda importância para o estado democrático de direito, ao afirmar que:

Não é preciso prosseguir para demonstrar a necessidade imperativa de revisão do sistema. Há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais. Não é assim em parte alguma do mundo democrático. O senso comum de que “quanto mais competências, mais poder” deve ser superado. Poder mal exercido traz desprestígio e mina a autoridade de qualquer instituição. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 937/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. [5]

Já a classe política brasileira não recebe com bons olhos essa iniciativa do poder judiciário de tentar limitar ou até mesmo extinguir o foro por prerrogativa de função, em entrevista dada ao Jornal Estado de São Paulo, o Senador Romero Jucá (PMDB-RR), demonstra a sua preocupação sobre o tema ao afirmar que, “Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada”.[6]

É possível depreender da fala do senador um total e profundo desrespeito aos poderes da república, sobretudo sobre a moralidade e integridade que deve ser sempre prestigiada nas relações institucionais do país. A preocupação do senador pode manifestar reação natural, pelo fato de ser o mesmo investigado na tão propagada “Operação Lava Jato”, ação penal que busca punir investigados envolvidos com desvios de dinheiro da Petrobras.

Segundo Newton Tavares Filho Consultor Legislativo da Área I da Câmara dos deputados em Estudo Técnico realizado em julho de 2016 sobre o tema “Foro Privilegiado: pontos positivos e negativos”, afirma:                                               

[...]vê-se que o foro especial por prerrogativa de função é um instituto complexo que comporta tanto críticas quanto elogios. Concretamente, entretanto, constata-se que seus resultados têm sido sobretudo deletérios para o regime republicano, impedindo que as autoridades acusadas de delitos sejam responsabilizadas pelos seus atos de forma eficaz e a impunidade seja combatida. Cabe ao Congresso Nacional equacionar o problema, mediante a apresentação de propostas legislativas que reduzam o número de autoridades beneficiárias do foro especial e agilizem a tramitação dos processos nas altas instâncias judiciárias nacionais. A extinção pura e simples do instituto também não deve ser descartada, em atenção ao princípio constitucional da isonomia entre os cidadãos.[7]

             E que, portanto, a questão do Foro privilegiado merece ser equacionada pela sociedade brasileira, sobretudo pelo congresso nacional que tem dever constitucional para rever a matéria, para que de fato expresse os princípios republicanos que sustentam nossa sociedade.


CONCLUSÃO

Em detrimento do apresentado neste trabalho, é possível concluir que o Foro por Prerrogativa de Função apresenta simetria em face da carta política brasileira de 1988. É um instituto que goza da eficácia jurídica. O legislador atuou para dar especial proteção a autoridade detentora de cargos ou funções públicas de maior relevância para o país, na intenção de que se preservasse o especialíssimo interesse público, quando na condição de acusada pela prática de crimes comuns e ou de reponsabilidade no exercício das suas funções.

Não obstante, é importante salientar que o Foro por Prerrogativa de Função não é questão pacificada na sociedade brasileira, ao passo que grandes escândalos de corrupção revelados e grande parcela da classe política do alto escalão do país envolvida, não aparenta naturalidade ao cidadão que esse político que em tese cometeu ilícitos seja beneficiado pela especialidade de Foro e que seu processo se arrastará por anos nas prateleiras do poder judiciário, já esgotado em suas forças, dada a quantidade de processos  em que atua, e que em muitos dos casos a pretensão punitiva prescreve.

É notório e já sedimentado que o ordenamento jurídico que rege uma sociedade deve refletir não só a sua realidade, como também a vontade de sua maioria. É evidente que não é vontade da maioria de uma sociedade ver as autoridades de seus país, que têm Foro por Prerrogativa de Função, cometendo dos mais diversos ilícitos e ainda tolerar saber que estão imunes de certa forma, do império da lei e da justiça, ou ainda pior saber que serão processados e julgados por um Tribunal em que possivelmente terão regalias ou benesses por parte de seus julgadores.

Por fim, a cada dia, o cidadão comum se depara com o crescente número de escândalos de corrupção que envolvem grandes autoridades dos mais diversos seguimentos sociais, e que a existência dessa prerrogativa de Foro pode conferir-lhes um Salvo-conduto para se esquivar do império do estado em aplicar a lei e a justiça. Isso reforça a ideia de injustiça institucionalizada que promove e incentiva a desigualdade e a justiça social.

Importa ainda trazer à baila, que avançando ainda mais sobre o tema, podemos afirmar com propriedade, que o instituto do Foro por prerrogativa de função com todos os seus atributos e mecanismos atuais no ordenamento jurídico brasileiro, no tocante aos crimes comuns e de responsabilidade e o número estratosférico de autoridades detentoras dos cargos e funções públicas abrangidas, não seria uma irresponsabilidade afirmar que este instituto privilegia uma verdadeira característica antidemocrática, pois trata-se de exceção ao princípio da igualdade previsto constitucionalmente.

Como está não pode ficar, atualmente o Foro por prerrogativa de função traz grande sensação de impunidade no seio social, é preciso que seja feita uma reforma para que se busque expurgar do ordenamento qualquer tentativa de exceção ao império da lei para aqueles que navegam pelas águas turvas da ilicitude.

Sem quaisquer excessos, seria importante a redução dessa sensação de impunidade por meio de criação de uma justiça especializada que dê agilidade aos processos que envolvam essas autoridades com especialidade de foro, uma solução mediana, restringir o foro, para reduzir a quantidade de autoridades com esse privilégio, ou em condições mais severas ou até mesmo uma das mais sensatas, a extinção definitiva deste instituto jurídico do ordenamento brasileiro.

Dessa forma, com a aplicação de tais medidas abre-se um novo caminho possível para que o poder judiciário possa buscar o interesse da sociedade brasileira. Nesse contexto também é importante asseverar que também se trata de uma mudança relativa a cultura de uma sociedade, e que, portanto, os atores do poder judiciário precisam atuar para buscar o fim do protecionismo as autoridades detentoras do Foro prerrogativa de função e que apliquem a lei com todo o rigor extraído de seu texto.


REFERÊNCIAS

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______________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891). Promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm> Acesso em: 20 maio 2017.

______________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934). Outorgada em 16 de julho de 1934. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm> Acesso em: 20 maio 2017.

______________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1937). Outorgada em 10 de novembro de 1937. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm> Acesso em: 20 maio 2017.

______________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1946). Promulgada em 18 de setembro de 1946. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm> Acesso em: 20 maio 2017.

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______________. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 20 maio 2017.

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Notas

[1]Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf Acesso em: 20 maio 2017.

[2] Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf Acesso em: 20 maio 2017.

[3] Pesquisado em:

Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf>Acesso em: 20 maio 2017.

[4] Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4776682. Acesso em: 20 maio 2017.

[5] Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf>Acesso em: 20 maio 2017.

[6] Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,foro-nao-pode-ser-suruba-selecionada-afirma-juca,70001673059 >Acesso em: 22 maio 2017.

[7] Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-conle/tema6/2016_10290_foro-privilegiado-pontos-positivos-e-negativos>Acesso em: 20 maio 2017.


Autores

  • Carlos Henrique Gomes da Silva

    Graduado em Direito e Administração de Empresas pela UNESA. MBA em Gestão Fiscal e Tributária pela UNESA. Especializando em Direito Tributário pela PUC MINAS.

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    Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Especialista em Administração de Marketing pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. MBA em Auditoria em Gestão de Sistema de Saúde e Hospitais pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Especialista em Gestão Escolar pela Faculdade da Aldeia de Carapicuíba. Graduando em Licenciatura em Educação Profissional Científica e Tecnológica pelo Instituto Federal, Ciência e Tecnologia do Ceará. Graduando em Letras Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá. Mestrando em Ciências da Educação pela Universidad Interamericana, com linha de pesquisa em Inovação Tecnológica em Educação. Atualmente é Tutor Presencial do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual do Ceará. Também é Professor da Educação Básica e Educação de Jovens e Adultos da Prefeitura Municipal de Fortaleza, onde leciono a disciplina de Língua Portuguesa.

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  • Antônio Joel Maciel Uchoa

    Antônio Joel Maciel Uchoa

    Graduado em Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará (2017). Tem experiência na área de Direito Imobiliário, com ênfase em regularização de terrenos, usucapião, ordinária, extraordinária e Especial, confecção de minutas de contratos empresariais, Cessão de Direitos, Posse, despachos em cartórios de registro de imóveis Lei n.º 6.766/79 - Parcelamento do Solo Urbano no Registro Imobiliário, Plantas e Memoriais descritivo, Licenças ambientais para implementação de obras urbanas e rurais. Acompanhamento de processos nos sistemas da justiça; e-SAJ, PJ-e, confecção de guias para recolhimento de custas processuais e preparos recursais. Elaboração de relatório para o controle do escritório, leitura de publicações e agendamento de prazos processuais, procedimentos, despachos, pesquisas jurisprudenciais e doutrinárias, auxiliar no que for necessário ao bom andamento dos trabalhos. Minutas de procurações e contratos, peticionamentos iniciais de baixa, média e alta complexidade, ações de usucapião, regularização de imóveis, correção, retificação e abertura de matrículas, preposto em audiência, aditivos à contratos sociais e constituição de empresas, diligências nos órgãos de controle ambiental dos municípios para obter licenças e alvarás de instalação e supressão vegetal, loteamento, construção e incorporação imobiliária.

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