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Crédito rural e venda casada

Crédito rural e venda casada

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O crédito rural distingue-se das operações de crédito em geral, pelo fato de ter um fim social de especial relevância, visando “o bem-estar do povo”, através da produção de alimentos e “possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios”, conforme previsto no art. 1 e 3 da Lei 4.829/65, por tal razão ele é subsidiado pelo Estado, ou seja, toda a sociedade paga para que ele possa ser concedido com taxas de juros menores e condições especiais de pagamento, e, por vezes são realizadas condições excepcionalíssimas para liquidações e parcelamentos de dívidas não pagas, sendo concedido até o perdão integral, em alguns casos.

Diante de tal fato o crédito rural é altamente regulamentado por inúmeras leis especiais e resoluções editadas pelo Banco Central do Brasil, cuja finalidade é garantir que os objetivos de elevado interesse social sejam alcançados.

A instituição financeira ao realizar uma operação de empréstimo de crédito rural, tem a obrigação de fiscalizar para garantir que o crédito obtido será de fato aplicado na atividade rural a que se destina, e que não haverá desvio de sua finalidade, sendo previsto inclusive muitas vezes nas Cédulas de Crédito Rural, que documentam tais empréstimos, que se o produtor aplicar o dinheiro em finalidade diversa poderá ser penalizado com o pagamento dobrado de juros.

  Visualizamos, portanto, que existe uma obrigação por parte do produtor rural tomador do empréstimo, de somente aplicar os recursos na atividade rural a que se destina, e que a instituição financeira tem a obrigação de fiscalizá-lo para garantir que de fato irá aplicá-lo adequadamente.

  O grande problema que surge nessa relação, é a questão relativa às metas que são impostas aos gerentes bancários para venderem “produtos financeiros” do Banco, tais como seguros de vida, de imóveis, de safra e aplicações financeiras como planos de capitalização.

Quando juntamos a existência das referidas metas impostas aos gerentes, com o fato de que são comissionados e remunerados para venderam tais “produtos financeiros”, aliado ao fato de que tais gerentes se encontram em uma posição crucial para viabilizarem ou não o acesso do produtor rural ao crédito, temos a combinação perfeita para a ocorrência velada e reiterada de um terrível crime contra os produtores rurais, o sistema financeiro e a sociedade.

A maior parte dos produtores rurais, quando buscam acesso ao crédito rural, o faz em uma situação de vulnerabilidade, porque necessitam de quantias vultuosas para custeio da produção ou investimento, e sabe que se não conseguir obter o crédito, simplesmente não conseguirá produzir. Nesse contexto, a capacidade do produtor de escolha, é extremamente limitada, de modo que ao contratar o empréstimo, em regra, o faz em um estado de necessidade, que praticamente o obriga a fazer a operação de acordo com as condições que o banco exigir, não tendo condições de barganha, de discutir e buscar melhores condições.

O gerente do banco tem conhecimento pleno da situação do produtor rural, da vulnerabilidade que ele se encontra, do quanto necessita do empréstimo, aliando-se tal circunstância as metas que deve cumprir e as comissões que recebe, inicia-se uma chantagem explícita ou velada com o produtor, sendo exigido do produtor que para conseguir obter o empréstimo deve adquirir os “produtos financeiros”, utilizando-se para tanto do crédito rural que lhe será concedido. O produtor é então constrangido a aceitar a proposta em forma de exigência que o gerente lhe faz, para se sentir seguro de que irá conseguir seu empréstimo.

A vulnerabilidade do produtor é tamanha que por vezes ele sabe que o que o gerente está fazendo com ele é errado, mas se submete a tal situação, por que sabe que se não o fizer, poderá encontrar o colapso de sua atividade produtiva. Sabe que se fizer uma denúncia no Banco Central ou ajuizar uma ação judicial contra o banco, poderá ser incluído em uma “lista negra” e não obter mais empréstimos com o banco.

Muitas vezes, a fatia do empréstimo rural que o produtor tem que destinar a compra dos produtos financeiros oferecidos pelo gerente faz uma falta assombrosa ao produtor, por vezes já endividado.

O produtor rural sabe que o crédito subsidiado não pode ser aplicado em atividades diversas da qual fora concedida, tendo em vista a rigorosa legislação vedando expressamente o desvio de finalidade na aplicação do crédito rural. E, ainda que pudesse aplicá-lo em atividade diversa, não iria decidir jamais entre deixar de aplicar em sua atividade produtiva, ou em um título de capitalização para resgatar anos após, o que não pode ser definido sequer como investimento, por não apresentar, em regra, nenhum lucro real para o aplicador, mas apenas e tão somente para os bancos.

A operação da qual falamos, é uma operação criminosa, assim expressamente prevista na Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1.986, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, que prevê especificamente no seu artigo 20 que constitui crime: “Aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por instituição credenciada para repassá-lo”, sendo cominada pena de “Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa”, sujeitando-se inclusive o produtor rural ao risco de sofrer tais sanções criminais.

A conduta do gerente na situação narrada pode ser definida ainda como crime de extorsão, o qual é definido pelo Art. 158 do Código Penal como “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa” com a previsão de “Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.”

            Sabendo o gerente que o produtor está desviando a aplicação do crédito rural para atividade diversa, e não comunicando tal fato as autoridades competentes estará cometendo o crime de prevaricação, nos termos do art. 319 do Código Penal: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, cuja pena prevista é de “detenção, de três meses a um ano, e multa.”

Os superiores do gerente que lhe é subordinado, se tiverem conhecimento, ou devessem ter conhecimento, de tais crimes podem ser penalizados pela conduta de condescendência criminosa tipificada no Art. 320 do Código Penal: “Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”.

Devemos ressaltar o disposto na recente Medida Provisória nº 784, de 7 de junho de 2017, a qual tipifica as infrações ao Sistema Financeiro Nacional. De acordo com seu artigo 3, constitui infração “I - realizar operações em desacordo com os princípios que regem a atividade autorizada; II - realizar operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em desacordo com a autorização concedida; XVII - descumprir normas legais e regulamentares do Sistema Financeiro Nacional”. As sanções que podem ser aplicadas pelo Banco Central em decorrência das referidas infrações, são de acordo com o art. 5º, da MP em comento: “I - admoestação pública; II - multa; III - proibição de praticar determinadas atividades ou prestar determinados serviços para as instituições mencionadas no caput do art. 2º; IV - inabilitação para atuar como administrador e para exercer cargo em órgão previsto em estatuto ou em contrato social de pessoa mencionada no caput do art. 2º; e V - cassação de autorização para funcionamento”.

As condutas descritas neste artigo, perpetrados pelos gerentes das instituições financeiras, configuram gritante violação dos princípios que regem o Sistema Financeiro do Crédito Rural, são operações bancárias vedadas (utilizar do crédito rural subsidiado para finalidade diversa para qual foi concedida) e simultaneamente configuram descumprimento das normas legais e regulamentares do Sistema Financeiro Nacional, ou seja, é algo gravíssimo.

Para o produtor rural, sob o aspecto econômico, os prejuízos são imensuráveis, posto que a depender da aplicação diversa que terá que fazer com o crédito rural que lhe fora concedido, o custo real dos juros para obtenção do empréstimo pode aumentar mais de 100%, e com isso acabar absorvendo toda a margem de lucro do produtor, a depender da situação.

Em 2015 a Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso – Aprosoja, entidade com atuação nacional, e uma das maiores do seguimento, divulgou um estudo realizado pelo IMEA estimando o aumento dos custos do empréstimo rural em algumas situações de venda casada, demonstrando que o custo total do empréstimo pode dobrar[1]:

  A seguir, daremos um exemplo real, vivenciado por uma produtora rural que nos relatou sua situação.

A Sra. Maria, uma pequena produtora rural do interior do Estado de São Paulo, que tem como principal fonte de renda a produção de laranja, vinha sofrendo há anos com as oscilações do preço do produto no mercado e os prejuízos causados por pragas, o que a fez chegar ao endividamento bancário de aproximadamente R$300 mil reais. Para continuar produzindo e não correr o risco de ter suas dívidas cobradas judicialmente, e com isso perder seu sítio, precisava de um empréstimo de R$ 400 mil reais, primeiro para cobrir as dívidas anteriores vencidas (operação “mata-mata”, o que já é vedado no crédito rural), para que lhe sobrasse R$100 mil para lhe auxiliar a cobrir minimamente os custos com insumos e prestadores de serviço.

A obtenção do empréstimo pela Sra. Maria, em sua perspectiva, não era uma questão de escolha, mas um estado de necessidade, de “vida ou morte”.

Ao perceber tal situação de vulnerabilidade, a sua gerente no Banco do Brasil, a constrangeu a ter que aplicar R$ 20 mil, do crédito rural que lhe seria liberado, para aplicar em um título de capitalização.

A Sra. Maria se viu diante de uma situação terrível, primeiro porque sabia que legalmente não poderia aplicar o crédito rural em atividade diversa, segundo, porque sabia que os R$ 20 mil reais iriam lhe fazer muita falta para pagamento de dívidas com fornecedores já vencidas. Todavia, não poderia ficar sem o empréstimo de R$ 400 mil reais, então, teve que ceder a exigência da gerente e fazer a aplicação no título de capitalização, o que lhe fez enorme falta e causou grande prejuízo ao ter que resgatá-lo antes da data prevista.

Na situação vivida pela Sra. Maria, que se repete com milhares de produtores pelo Brasil, o gerente ganha sua comissão na venda do produto financeiro e alcança sua meta de vendas, e, o banco obtém lucro com o crédito subsidiado. Para a sociedade, ocorre um prejuízo imediato, que é o desvio de finalidade na aplicação de “recursos públicos”, ou seja, de um crédito subsidiado por todos nós, e um prejuízo mediato que se dará com o prejuízo ou até mesmo a falência do produtor rural, o que pode levar a redução de vagas de emprego, a redução ou precariedade da produção, e por fim, ao risco de saída do produtor da atividade rural, o que é ruim para a micro e macroeconomia.

É lamentável, a forma ilegal e reiterada com que os principais artífices do Sistema Financeiro do Crédito Rural vêm atuando, e o mais grave, como as instituições fiscalizadoras como o Banco Central do Brasil, se mantêm em um silêncio. Tal situação deve ser reprimida de forma veemente e efetiva, especialmente pelas entidades representativas dos produtores rurais, as quais têm condições e poder para tal finalidade.

O papel dos produtores rurais, para mudar essa realidade, é de grande relevância, devendo realizar denúncias ao Banco Central, e judicialmente, se for o caso, cobrando sanções as instituições financeiras e seus prepostos.

Por fim, ressaltamos aos produtores rurais que todas as operações de compra de produtos financeiros dos bancos, que seja realizado com crédito rural e mediante o ‘procedimento de chantagem’ de forma explícita ou dissimulada, configurando “venda casada”, é anulável, por vício de consentimento, podendo ser requerida judicialmente sua anulação com a restituição dos valores pagos e, se for o caso, indenização por danos morais e materiais. Pode ainda, o produtor rural realizar denúncia diretamente no Banco Central, sujeitando assim o Banco, a agência bancária e o gerente, às sanções previstas em lei, visando coibir a prática.


Nota

[1] https://www.aprosoja.com.br. Acesso em 08 de julho de 2017.​


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