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Uma reflexão sobre a teoria geral do processo penal à luz da doutrina nacional e estrangeira

Uma reflexão sobre a teoria geral do processo penal à luz da doutrina nacional e estrangeira

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O processo, enquanto série ou sucessão de atos tendentes à produção de um resultado final, não é um fenômeno peculiar do Direito Processual. É um fenômeno comum ao Direito em geral e comum até no mundo não jurídico, onde encontramos processos das mais diferentes espécies.

Sumário: 1. Do Processo; 2. Processo e Procedimento; 3.Sistemas Processuais; 4.Pressupostos de Existência e Validade da Relação Processual; 5. Conclusão; 6.Bibliografia.


1. Do Processo.

            O processo, oriundo do latim procedere, tem entre alguns dos seus significados, o de seguir adiante, caminhar, avançar, fenômeno de desenvolvimento,... O processo é forma, instrumento, modo de proceder (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo p.504).O processo lato sensu abrange os instrumentos de que se utilizam os três poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), cada qual desempenhando funções diversas, utilizando-se de processos próprios cuja fonte criadora é a própria Constituição.Cada processo estatal está sujeito a princípios próprios, específicos, adequados com as funções que lhe incumbe. O processo judicial não pode ser igual ao processo legislativo nem estes podem ser iguais ao processo administrativo. Devem ser respeitados por todos os tipos de processo os princípios da competência, da formalidade, da predominância do interesse publico sobre o interesse particular. Em suma, todo processo deve estar em consonância com a Teoria Geral do Processo. Logo, podemos concluir que a Teoria Geral do Processo é a "peça-chave" do estudo das várias categorias processuais na qual está inserido o Direito Processual Penal.

            É ao conjunto de conceitos sistematizados que servem aos juristas como instrumento para conhecer os diferentes ramos do Direito Processual que se denomina Teoria Geral do Processo. Quando falamos de Teoria Geral do Processo, já sabemos que estamos nos referindo a esse corpo de conceitos sistematizados que nos servirá como instrumento para analisarmos, com certo rigor, os diferentes ramos do Direito Processual.

            A Ciência do Direito Processual é, como qualquer ciência, o conhecimento qualificado sobre as normas do Direito Processual e estas (normas processuais) são o objeto de conhecimento da Ciência do Direito Processual.

            Afrânio Silva Jardim faz um comentário simples, mas de forma primorosa dá as primeiras diretrizes do que seja o processo. Segundo entendimento do autor é através do processo que o Estado resolve conflitos opostos, através uma atividade jurisdicional ex vi legis, dando a cada um o que é seu e reintegrando a paz no grupo. É com o nascer de uma resistência de uma das partes à pretensão da outra que o Estado através do seu poder de império, resolverá estes conflitos.

            Assim comenta o respeitado autor: "De tal importante tarefa se desincumbe o Estado através da jurisdição, poder-dever, reflexo de sua soberania, através do qual, substituindo-se à atividade das partes, coativamente age em prol da ordem ou segurança jurídica. Trata-se de uma função pública de capital importância para o bom convívio dos homens na sociedade complexa e tensa em que vivemos" (JARDIM. Afrânio Silva. Direito Processual Penal, p.9).

            Nem sempre foi desta maneira, haja vista que nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o Direito acima das vontades dos particulares.Esta fase é conceituada pelo Positivismo Moderno como "o estado prévio de natureza" ou status naturae: por isso, não só inexistia um órgão estatal que com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito como ainda não havia sequer as leis (normas legais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares).

            Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir por si mesmo, a satisfação da sua pretensão. A própria repressão aos atos criminosos se fazia em regime de vingança privada e, quando o Estado chamou para si o jus punitionis (direito de punir para uns autores, para outros, o poder-dever, e ainda para outros, o dever de punir), ele o exerceu inicialmente mediante seus próprios critérios e decisões, sem a interposição de órgãos ou pessoas imparciais independentes e desinteressadas.

            Essa evolução não se deu assim linearmente, de maneira límpida e nítida. A historia das instituições se faz através de manchas e contra-manchas, entrecortada freqüentemente de retrocessos e estagnações, de modo que a descrição acima constitui apenas uma analise macroscópica da tendência do sentido de chegar ao Estado todo o poder de dirimir conflitos e pacificar pessoas. Mais tarde, e, à medida que o Estado foi se afirmando e conseguiu impor-se aos particulares mediante a invasão de sua antes indiscriminada esfera de liberdade, nasceu, também gradativamente, a sua tendência em absorver o poder de ditar as soluções para os conflitos.

            Uma das tarefas essenciais do Estado foi passar a regular a conduta dos cidadãos por meio de normas objetivas, consistindo no poder genérico de punir qualquer pessoa culpável que venha a cometer um ilícito penal (jus puniendi in abstracto), sem as quais a vida em sociedade seria praticamente impossível.No momento em que a infração penal é cometida, o direito abstrato de punir concretiza-se, individualizando-se na pessoa do transgressor.

            Surge o jus puniendi in concreto. É a nova fase ou período da cognitio extra ordinem, onde há a extinção da justiça privada e a afirmação da justiça publica ("Os súditos de um Estado se comprometeram a obedecer a lei civil quer a tenham feito uns aos outros, como quando se reúnem para escolher um representante comum, quer com o próprio representante, um por um, quando, subjugados, pela força, prometem obediência em troca da garantia de vida." HOBBES, Thomas.Leviatã ).

            O Estado passa a inibir a autotutela. Esta se caracteriza pela imposição da decisão sobre um determinado conflito por uma das partes à outra, marcada pela ausência de um juiz distinto à estas partes, que possa dar um provimento jurisdicional de forma imparcial.

            Em contrapartida, para que o Estado pudesse inibir que o particular resolvesse o problema à sua maneira (está previsto como crime o exercício arbitrário das próprias razões conforme estabelece o art.345 do CP, caput, in verbis: "Fazer justiça com as próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legitima, salvo quando a lei permite"), este mesmo Estado, detentor do jus imperium, do jus puniendi, do jus persequendi, teve que oferecer aos particulares meios que fossem satisfatórios e que atendessem às suas pretensões. Quem se afasta do imperativo das regras jurídicas fica submetido à coação do Estado pelo descumprimento de seus deveres, pois seriam inócuas as normas se não estabelecessem sanções para aqueles que as desobedecem, lesando direito alheio, pondo em risco a convivência social e frustrando o fim perseguido pelo Estado.

            Sobre o tema também se manifesta o mestre espanhol Jaime Guasp, cujo trecho foi retirado da obra do grande Afrânio Silva Jardim: "El Estado asume esta función no porque si no lo hiciera quedaria sin resolver um conflicto o lesionado um derecho, sino porque, al no reconocer la figura de la pretensión procesal, quedaria estimulada por el abandono público la satisfación privada de otras pretensiones de análogo contenido".

            Haveria então um descrédito generalizado para com o Estado caso este não conseguisse atender às pretensões dos particulares? Sim. Vem a lume neste momento a tese defendida por Ihering. Na realidade televisiva, a imprensa, de forma aberta e indiscriminada, também divulga o nascimento de um poder paralelo ao Estado. Seria a volta ao estado prévio de natureza?

            A tarefa da ordem jurídica é exatamente a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos sem desfazer a soberania do Estado.O jus puniendi é uma manifestação da soberania estatal e enquadra-se na categoria dos direitos públicos subjetivos do Estado.Mas o direito-poder de punir só se realiza através do Processo Penal (MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, p. 27).A atividade jurisdicional é eminentemente pública, tutelando o ordenamento jurídico estabelecido como fator de segurança e paz social.A jurisdição terá a natureza penal se a pretensão deduzida pelo autor tiver que ser decidida através da aplicação do Direito Penal ou de alguma norma do Direito Processual Penal.

            O processo lato sensu é esta série de atos coordenados para a realização do que Carnelutti chama de interest republicae (interesse do Estado) (CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Nuevo Proceso Civil Italiano, pg.48).Neste sentido amplo do processo está contido o processo legislativo, pelo qual o Estado elabora a lei e também estão contidos os processos judicial e administrativo, pelos quais o Estado aplica a lei (o processo atual, principalmente o que regula o Processo Penal, deve ser visto como um emaranhado de preceitos públicos, em razão do qual, o Estado-juiz tem interesse em dirimir os conflitos sociais).Toda a atividade jurídica é exercida pelo Estado mirando um objetivo maior que é a pacificação social.

            A paz social somente pode ser alcançada através de um instrumento que é o processo. O processo judicial se instaura mediante provocação e sua relação jurídica é trilateral, composto pelo autor, pelo réu e pelo juiz, este último atuando com imparcialidade (como bem veremos na lição de Carnelutti, o juiz deve ser uma pessoa desinteressada no processo). Já o processo administrativo pode ser instaurado mediante provocação do interessado ou por iniciativa da própria administração (por esta razão, não pode a Administração Publica proferir decisões com força de coisa julgada).

            O processo, enquanto série ou sucessão de atos tendentes à produção de um resultado final, não é um fenômeno peculiar do Direito Processual. É um fenômeno comum ao Direito em geral e comum até no mundo não jurídico, onde encontramos processos das mais diferentes espécies, como por exemplo, um processo político, um processo econômico, um processo biológico. Foi no setor do Direito Processual jurisdicional que o fenômeno processo foi estudado de maneira mais acentuada. No entanto, o processo não é uma realidade exclusiva na área judicial. Como noção jurídica, pode e deve ser estendida ao âmbito das outras funções do Estado, sejam as administrativas ou as legislativas.

            O processo é uma realidade do mundo social, legitimado por três ordens de objetivos que o Estado persegue a todo o momento: os sociais, os políticos e os jurídicos. A consciência dos escopos da jurisdição e, sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social, constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo em sua conceituação e endereçamento social e político.

            Por outro lado, a instrumentalidade do processo aqui considerada pode ser encarada como um aspecto positivo da relação que liga o sistema processual à ordem jurídico-material. Liga-se, por conseguinte, ao mundo das pessoas e do Estado com realce à necessidade de predispô-lo ao integral cumprimento de todos os seus escopos sociais, políticos e jurídicos.Falar da instrumentalidade neste sentido positivo é alertar para a necessária efetividade do processo, ou seja, alertar para a necessidade de se ter um sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à "ordem jurídica justa". Para tanto, não só é preciso ter a consciência dos objetivos a atingir como também conhecer e saber superar os óbices econômicos e jurídicos que se antepõem ao livre acesso à justiça.

            Na visão do ilustre promotor de justiça do Estado de São Paulo, o professor Fernando Capez, o processo é uma serie ou seqüência dos atos conjugados que se realizam e se desenvolvem no tempo, destinando-se à aplicação da lei penal no caso concreto.

            O processo apresenta algumas características como a complexidade, a dimensão temporal, a interdependência entre seus atos e a progressividade. O conceito de complexidade nos impulsiona diretamente à idéia de que o processo se compõe de mais de um ato. Com relação à dimensão temporal, esta é inseparável do processo e significa que se desenvolve necessariamente no tempo.

            Já a interdependência entre seus atos significa que cada ato tem como pressuposto o ato antecedente e, por sua vez, é pressuposto do conseqüente. Em outras palavras, a interdependência que dizer que todos os atos do processo estão relacionados entre si, tendo em vista a produção do resultado final.A progressividade significa que os atos do processo avançam em busca da produção do resultado final.

            Entende o autor Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo que o processo é o conjunto de atos que tem como objetivo comum resolver um conflito. (DAL POZZO.Antonio Araldo Ferraz.Manual Básico de Direito Processual Civil, p. 26).Pari passu, o direito de ação e o direito de defesa acontecem concretamente pela prática desta serie coordenada de atos.O processo é, segundo o autor, um fenômeno jurídico porque faz nascer entre as pessoas que dele participam uma relação jurídica.A esta relação jurídica chamamos relação jurídica processual, ou ainda, o complexo de atos tendentes à formulação ou à atuação pratica da regra jurídica concreta, por meio dos órgãos jurisdicionais.

            Para o sublimado processualista italiano Francesco Carnelutti, o processo é um conjunto de atos dirigidos à formação ou à atuação de mandatos jurídicos cuja característica consiste na colaboração (para estes fins) de pessoas interessadas, que são as partes, e com uma ou mais pessoas desinteressadas, que são os juizes ou os órgãos judiciais.De forma magistral, o processualista aponta qual é a relação direta existente entre o Direito e o processo. Segundo o autor, o processo serve ao Direito quanto se figura como método para a formação e para a atuação deste ultimo.Por outro lado, o Direito, de servido passa a servidor ao processo quando funciona como regulador dos conflitos de interesses formados no âmbito do processo.Esclarecida a relação fundada entre o Direito e o processo, Carnelutti reduz a termos menores o conceito de Direito Processual: é aquela parte do Direito que regula o processo (CARNELUTTI, Francesco.Instituciones del Nuevo Proceso Civil Italiano, pg.29;30).

            Por sua vez, a ocorrência de uma fusão entre o Direito e o processo nos sugere expor o seguinte conceito didático do que vem a ser o Direito Processual: um complexo de princípios que regem o método de trabalhar com normas adequadas, ou seja, o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado-Juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado.

            O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que o compõem.E, estando o bem estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, o Estado se valerá deste sistema processual para eliminar os conflitos e devolver à sociedade a paz desejada ("... é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade, em latim Civitas, que nada mais é senão um homem artificial, de maior estrutura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado." HOBBES.Thomas.Leviatã).

            A jurisdição atua através de um instrumento que é o processo, e aos interessados a ordem jurídica outorga o direito de ação, isto é, o direito de pleitear em juízo a reparação das violações dos direitos. Por outro lado, os efeitos da jurisdição projetam-se fora do processo, porquanto a sujeição das partes não se limita à aceitação da decisão dentro da relação processual, mas consagra a validade da sentença no mundo jurídico em geral.

            A jurisdição é a função enquanto que o processo é o instrumento da sua atuação, assim analisa Fernando Capez. Diz o autor: "Sem processo não há como solucionar o litígio razão porque é instrumento imprescindível para resguardo da paz social" (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, p.13).

            Pelo Direito Processual, o Estado presta um serviço, dirimindo as questões que surgem entre os indivíduos e os grupos. A solução do conflito de interesses se exerce através do processo, e em se tratando de uma lide penal, através do processo penal. É a forma com que o Estado impõe a sua vontade no interesse de compor litígios, através dos órgãos próprios da administração da Justiça.Como na infração penal há sempre uma lesão ao Estado, este, no papel de administrador, toma a iniciativa de garantir a observância da lei. Para isto, recorre ao Estado que julga para, através do processo penal, fazer valer a sua pretensão punitiva.

            Sustenta o reputado promotor de justiça do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Rangel (explicando como o processo concretiza sua função dentro do Direito Processual), que em razão do direito de agir, consolidando-se com a propositura da ação, há uma deflagração da jurisdição e esta própria jurisdição irá instaurar o processo criando a relação jurídico-processual (RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p.459).

            O processo, na visão de Vicente Greco Filho, é uma entidade complexa que apresenta dois aspectos: o intrínseco ou essencial e o exterior. No aspecto essencial, o processo é a relação jurídica que se instaura e se desenvolve entre autor, réu e juiz. No aspecto de exteriorização, o processo se revela como uma sucessão ordenada de atos dentro de modelos previstos na lei (FILHO, Vicente Greco. Manual de Processo Penal, p.393).A esta sucessão de atos é o que definimos como procedimento.

            No dizer do professor da Universidade Federal do Ceará, José de Albuquerque Rocha, processo é a seqüência de atos praticados pelos órgãos judiciários e pelas partes, necessários à produção de um resultado final que é a concretização do direito. É a sua realização no caso concreto e em última instancia (ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo, p.161).

            No dizer de Afrânio Silva Jardim: "o processo é o conjunto orgânico e teleológico de atos necessários ao julgamento ou atendimento pratico da pretensão do autor, ou mesmo de sua admissibilidade pelo juiz".Conclui o autor: "Destarte, se o julgamento da pretensão ou de sua admissibilidade se fizer, através da aplicação de uma norma penal ou processual penal, tratar-se-á de processo penal".A partir dos argumentos expostos, deduzimos que processo é a fonte da relação jurídica processual.

            De todo modo, o processo é a atividade que o Judiciário realiza para concretizar o direito, cumprir uma função jurisdicional dando a cada um o que é seu (contans ac perpetua voluntas unicuique suum tribuendi).Vem à tona, com muita maestria, a lição deixada pelo processualista penal, Alcalà-Zamora y Castillo Niceto: "O processo tende, evidentemente, à obtenção de um juízo (judicial) sobre o litígio, mas o juízo se circunscreve a este somente e decisivo momento ou atividade" (NICETO, Alcalà-Zamora y Castillo; HIJO, Ricardo Levene. Derecho Procesal Penal, pg.18).

            O processo deve ser notado à luz da concepção unitária, mas também é importante que mesmo deva ser estudado, como dito, nas diversas categorias processuais, cada qual com suas respectivas peculiaridades.Ainda que o fim do processo civil seja um fim de justiça como o do processo penal e tão público quanto o fim do Direito, segundo o pensamento de Carnelutti, é inegável a existência de diferenciações entre os tipos de processo.

            Jaime Guasp, conceituado jurista espanhol, cuja posição também não poderíamos deixar de mencionar, faz um comentário a respeito da concepção unitária do processo.O autor diz que mesmo havendo uma diversidade de tipos processuais, a unidade conceitual do processo não fica desgastada.Porém, contrapõe o autor no sentido de que, se visualizarmos o processo sob o prisma do conflito ou a forma com que atua o Direito, a unificação do processo torna-se um resultado difícil de ser alcançado.

            Afrânio Silva Jardim, citando José Frederico Marques, cuja posição é favorável à unidade do processo, afirma este que o processo é um só, seja quando esteja tratando uma lide de natureza penal, seja quando esteja tratando uma lide não penal.O Processo Penal e o Processo Civil, ainda que contenham suas diretrizes próprias, partem do mesmo ramo, que é o Direito Processual.

            Para Paulo Rangel, o processo é a seqüência ordenada de atos que se encadeiam numa sucessão lógica e com uma finalidade: o de possibilitar ao juiz a realização do julgamento.Por sua vez, há uma outra corrente doutrinária cujo entendimento é de que a finalidade principal do processo será a formação da lide (há divergências na doutrina no que tange à lide, quanto à mesma ser elemento essencial do processo civil ou do processo penal).

            Em relação à divergência doutrinária sobre o tema, Francesco Carnelutti comenta que quando se tratar da aplicação da sanção penal, a função do processo será distinta da função da composição da lide. Com isto, basta compreender que o processo penal se encontra em uma posição intermediária entre o processo contencioso e o processo voluntário.Entende Carnelutti que a matéria do processo penal não é um negócio, como ocorre no processo voluntário nem uma lide como acontece no processo contencioso, mas é de fato uma pretensão.

            Instaurado o processo, está criada uma vinculação entre estas pessoas que se perpetuará até a satisfação da pretensão.Contudo, devemos ficar alertados para a seguinte situação: se pensarmos em "satisfação de pretensão" em sentido estrito, não se supõe sempre o reconhecimento da postulação do autor, mas apenas examiná-la e decidi-la.

            Como a pena não tem caráter de satisfação (ao menos diretamente) do interesse lesionado, nem sempre há um estimulo para o sujeito deste interesse lesionado faze-lo valer.O lesionado, se não tem esperança em galgar a restituição ou o reconhecimento do dano, este não se move para obter a persecução penal.A gravidade da sanção penal não permite que se atribua à pretensão penal do sujeito o efeito análogo que é produzido no âmbito civil.

            O processo, segundo o conteúdo da prestação jurisdicional que tende a produzir, pode ser de conhecimento, de execução e cautelar. O processo de conhecimento tem por finalidade a decisão sobre uma pretensão e se encerra com a sentença (sua função essencial é declarativa).A finalidade do processo de execução é a satisfação do comando consagrado na sentença (sua função básica é a satisfação de um comando declarado na sentença).A finalidade do processo cautelar é a da proteção provisória, rápida e emergencial de bens jurídicos envolvidos no processo (sua função essencial é a proteção de bens jurídicos até que haja a solução definitiva da lide).Com relação à seara do Processo Penal, Vicente Greco Filho assevera que o mesmo encontra embasamento na Constituição Federal, porque na Constituição estão consagrados os princípios que cada nação adota sob o seu regime.

            O Processo Penal, ramo que é da Teoria Geral do Processo, é o modo pelo qual atua a jurisdição em matéria penal. Hoje, o direito processual não se ramifica apenas no Direito Processual Civil e Penal, mas também já criou e desenvolveu outros ramos, como o Direito Processual Penal Militar, o Direito Processual Eleitoral e o Direito Processual do Trabalho.Vicente Greco ainda conceitua o Direito Processual Penal como o ramo do direito público que consiste no conjunto sistemático de normas e princípios que regula a atividade da jurisdição, o exercício da ação e o processo em matéria penal bem como a tutela da liberdade de locomoção, quando o direito penal aplicável, positivo ou negativamente, é o direito penal comum.

            O autor Julio Fabbrini Mirabete conceitua o Direito Processual Penal nos seguintes termos: "é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Policia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivo auxiliares".O Direito Processual Penal possui um caráter instrumental, pois constitui o meio de fazer atuar o direito material penal, tornando efetiva a função deste de prevenção e repressão das infrações penais.

            Alcalà-Zamora cita em sua obra "Derecho Procesal Penal" o entendimento de alguns autores da doutrina internacional sobre o que é o Direito Processual Penal.Dentre eles, o processualista alemão Beling (Deutches Reichstrafprozessrecht) conceitua o Direito Processual Penal como aquela parte do Direito que regula a atividade encaminhada à proteção jurídica penal.

            Cita também o doutrinador italiano Florian (Principi di Diritto Processuale Penale), cujo entendimento é o de que o Direito Processual Penal é o conjunto de normas jurídicas que regula o processo. O processualista ainda conceitua o processo penal como "o conjunto de atos mediante os quais se provê, por órgãos fixados e preestabelecidos na lei e sob previa observância de determinadas formas, a aplicação da lei penal nos casos singulares concretos, ou seja, se provê a definição de uma concreta relação de Direito Penal" (NICETO, Alcalà-Zamora y Castillo; HIJO, Ricardo Levene. Derecho Procesal Penal, pg.22; 23).

            Para Miguel Reale, o Direito Processual, através de um arsenal de princípios e regras, objetiva a prestação jurisdicional do Estado necessária à solução dos conflitos de interesses surgidos entre particulares, ou entre estes e o próprio Estado (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, p.348).Daí a doutrina dizer que o processo é instrumento da jurisdição, exatamente porque, é através do processo que se impende a função jurisdicional.

            Qual o conceito do Direito Processual Penal definido por Capez? Para o professor, é o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal objetivo.

            Então, já podemos fazer uma distinção entre as definições que são dadas à Ciência do Direito Processual, às normas do Direito Processual inserida principalmente nos Códigos de Processo Civil e no Código de Processo Penal e também quanto à definição dada ao próprio processo que, enquanto atividade, diferencia-se tanto da Ciência do Direito Processual quanto das normas processuais.De toda esta explanação, devemos fixar o entendimento de que o estudo do processo é mais amplo do que o do próprio Direito Processual.Portanto, a análise dos problemas concretos de cada Direito Processual é tarefa própria das disciplinas que lhe dizem respeito.


2. Processo e procedimento.

            Até o século XIX, eram indistintos os conceitos entre processo e procedimento.Em 1868, foi com Oskar Von Bülow, em obra chamada "Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias" que os conceitos de processo e de procedimento puderam ser diferenciados, apesar de estarem inseridos numa mesma realidade.

            Von Bülow asseverou que o processo não se reduz a um mero procedimento, a uma mera sucessão de atos. Nós, estudantes e operadores do Direito sabemos que é inevitável a necessidade de serem praticados diversos atos processuais até o instante em que o órgão jurisdicional, com tranqüilidade e segurança, possa dar sua decisão de forma coerente e concreta.

            O processo, como visto na primeira parte do nosso trabalho, é esta série, esta progressividade, esta seqüência de atos agrupados de forma orgânica e teleológica, utilizada pelo órgão jurisdicional para o julgamento da pretensão do autor ou de sua admissibilidade.O conceito de processo é finalístico ou teleológico, uma vez que reconhecemos nele um complexo de atos processuais sob o ponto de vista de sua finalidade.

            O procedimento, por sua vez, tem noção relacionada a um conteúdo formal, a um aspecto formal do processo, onde a legislação processual disciplina quais, como e em que ordem os atos processuais são praticados.As formas procedimentais devem ser certas e determinadas, mas sempre visando à simplicidade dos atos com o intuito de atingir uma maior celeridade processual (o projeto de reforma do CPP em trâmite no Congresso Nacional desde 83, visa simplificar os procedimentos).Enfim, deve atender a um meio termo: os atos procedimentais não devem se ater a uma rigorosa disciplina na forma, quando se caracteriza por um sistema procedimental rígido, nem abolir por completo as exigências formais, quando se caracterizam os sistemas procedimentais flexíveis.

            Esta baliza, esta justa medida é manifestada através do princípio da instrumentalidade das formas.Cada ato tem o seu momento oportuno e os posteriores dependem dos anteriores para a sua validade, já que, o objetivo da pratica destes atos é o posterior julgamento.

            É neste caminho, nesta direção que os atos processuais seguem, e é aí que vamos perceber a atuação concreta do procedimento.Cada ato processual, isto é, cada anel da cadeia que se faz presente através do procedimento, realiza-se no exercício de um poder, uma faculdade ou no incumbir de um ônus, de um dever, o que significa que é a relação jurídica que dá razão de ser ao procedimento.

            Exemplos de procedimentos? A saber: a forma destes atos, o lugar onde devem ser realizados, os prazos que devem ser obedecidos,...

            Em linhas gerais, o processo é a atividade desenvolvida pelo Estado com o escopo de satisfazer a pretensão de uma das partes, seja o autor, seja o réu. A relação do processo se perfaz entre as figuras que o compõem: o autor, o réu e o juiz enquanto que a relação de atos do processo é característica do procedimento.

            O procedimento é a forma, o modo, o meio pelo qual o Estado alcançará este fim.O procedimento é ainda, a maneira como a atividade desenvolvida pelo Estado em aplicar a lei se realizará e se desenvolverá.Para que o Poder Judiciário possa, por exemplo, "produzir" uma sentença, "produzir" uma execução, "produzir" uma medida cautelar, é necessário que o próprio Judiciário desenvolva a pratica de uma serie de atos que sejam necessários à produção destes objetos. É a esta serie de atos a que chamamos processo.

            Para Paulo Rangel, o procedimento é o conteúdo formal do processo e a lide é o seu conteúdo substancial.Para entendermos melhor a distinção entre processo e procedimento, é de bom tom mostrarmos um erro corriqueiro que cometemos no nosso dia a dia, ao afirmarmos: "É um processo sumário" ou "aquele processo é especial".O correto é falarmos, por exemplo, em procedimentos comuns dos crimes de reclusão de competência do juiz singular, procedimentos comuns dos crimes de competência do júri, procedimentos comuns sumários das contravenções e dos crimes de detenção, procedimentos especiais do Código, procedimentos especiais de leis especiais ou extravagantes, procedimento dos crimes falimentares, procedimento dos crimes de responsabilidade de funcionários públicos, procedimento dos crimes de competência originária dos tribunais,...São todos procedimentos.

            No campo penal, os procedimentos de cognição classificam-se em comuns e especiais.Os procedimentos comuns subdividem-se em procedimentos ordinários e procedimentos sumários.Os procedimentos especiais são os de competência do júri e outros previstos em leis extravagantes.Procedimento, nas palavras do processualista Afrânio Silva Jardim, "é a coordenação sucessiva de atos que exteriorizam o processo".

            Segundo entendimento do professor de Direito Processual da Universidade de Barcelona, o processualista Miguel Fenech, o processo não pode ser mais que um fato com desenvolvimento temporal, um fato que tem mais de um momento, um fato que não se esgota em mais de um momento, um fato que não se esgota no mesmo instante de sua produção.Fato que se desenvolve no tempo equivale à serie encadeada de fatos parciais, menores, que constituem ou integram o fato total.O autor continua o seu raciocínio dizendo que esta dimensão temporal, este se desenvolver no tempo é a nota essencial do processo, de todo o processo e de qualquer processo.Não pode haver processo se não há um desenvolvimento no tempo.Diz o autor: "Não há nenhum fato que se desenvolva no tempo que não possa corretamente se aplicar a palavra processo" (FENECH, Miguel.Derecho Procesal Penal, pg. 54).

            Fazendo o paralelo diferenciador entre processo e procedimento, Miguel Fenech entende que o procedimento é a norma reguladora do processo.Segundo o professor, existem procedimentos cujo processo não foi levado adiante ou não se realizou nunca (neste caso, o processo se produziria se seguisse às normas estabelecidas no procedimento) (FENECH, Miguel. Derecho Procesal Penal, pg. 61).

            Vimos que existe no processo uma corrente de atos processuais.Dal Pozzo nos ensina que esta corrente de atos processuais constituirá um método (o método, segundo Antonio Araldo Ferraz dal Pozzo, pode ser enfocado sob dois ângulos diversos: sob o ponto de vista de cada um dos atos que o integram e como uma realidade única).Através do método visualizamos o que seja o processo quando nos perguntamos: Para que serve isto? Ou seja, é a disciplina legal da estrutura exterior de cada ato. É a visualização do processo sob o ponto de vista teleológico, como também acentua Afrânio Silva Jardim.Mas quando nos atemos aos atos processuais que o constituem, nos focamos ao procedimento.O procedimento vincula-se à dinâmica da realização dos atos processuais bem como à ordem que os atos processuais devem se suceder (rito procedimental).

            Uma outra diferença entre processo e procedimento diz respeito à validade de determinados fatos e quais as conseqüências que isto pode ocasionar.Há fatos exteriores que podem atingir o processo como um todo, gerando nulidades de cunho absoluto e nós sabemos que existem outros fatos que atingem apenas alguns atos dentro do processo.

            Estas irregularidades ocasionadas dentro do processo podem ser convalidadas em muitos dos casos, como o que prevê os artigos 566 e 567 do CPP, prezando pela não anulação de atos imperfeitos quando não prejudicarem a acusação ou a defesa e quando não influírem na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.Neste ultimo caso, estas irregularidades particularizadas atingem diretamente ao instituto do procedimento.

            Na visão de Vicente Greco Filho, não há processo sem procedimento e não há procedimento que não esteja associado a um processo.Para o autor, o processo constitui o que boa parte da doutrina nomeia parte essencial.Já o procedimento, este se revela através da exteriorização do processo, ou em outras palavras, é o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo.A essência e a exterioridade não podem ser separadas.

            Vicente Greco afirma ainda que, para cada tipo de processo há uma variedade de procedimentos, desde que estejam adequados a atender as suas respectivas finalidades, tanto no esquema legal quanto prático.Destarte, para que um procedimento seja satisfatório do ponto de vista prático, deve-se dedicar uma maior atenção à simplificação dos atos no que tange ao aspecto quantitativo, diminuindo a quantidade de formas sem que prejudique a sua estrutura legal.

            O procedimento é o conjunto de normas que estabelecem as condutas a serem observadas no desenvolvimento da atividade processual pelos sujeitos do processo, bem como auxiliares da justiça e os terceiros que eventualmente sejam chamados a participar da atividade processual. É através do procedimento que será definido o que os sujeitos do processo deverão fazer, de que forma agirão dentro do processo e como alcançarão o resultado final.Albuquerque Rocha, seguindo a mesma linha de Afrânio Silva Jardim, conceitua o processo como uma cadeia de atos visando produzir um efeito jurídico final.

            O processo pode ser entendido como a soma de atos que lhe dão corpo e as relações entre estes atos.Para Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, o processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas a eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta na lei (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria Geral do Processo, p.277).O processo, para os ilustres autores, é o procedimento realizado mediante o desenvolvimento da relação entre seus sujeitos.

            Os autores ainda definem o processo como o instrumento através do qual a jurisdição opera. É instrumento para legitimar o exercício do poder, estando presente em todas as atividades estatais, seja ele um processo administrativo ou um processo legislativo e até ainda em processos que não sejam do Estado.

            Luis Maria Cazorla Prietro, administrativista espanhol, fazendo um estudo das diferenças entre processo e procedimento no âmbito do Direito Administrativo, posiciona-se contrariamente ao tratamento de processo, que foi dado ao procedimento administrativo.Para o autor, não há processo administrativo, mas procedimento administrativo.Para o autor, não podemos falar em processo, uma vez que não há um poder jurisdicional na Administração Pública.Nas palavras do autor: "El procedimiento administrativo, en lo que atañe a su naturaleza, no es un verdadero proceso, puesto que la Administración carece de poder jurisdiccional propiamente dicho aunque disfrute de potestad de tal tipo, sino un procedimiento en sentido técnico" (PIETRO, Luis Maria Cazorla.Temas de Derecho Administrativo, p.364).

            Bülow, na visão do professor Fernando Capez, teve mérito na realização da obra "Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias" porque sistematizou a relação jurídica processual fazendo uma distinção da relação jurídica material.A relação jurídica processual passa a ter conceituação própria e exposta da seguinte forma: nexo que une e disciplina a conduta dos sujeitos processuais em suas ligações recíprocas durante o desenrolar do procedimento.Capez explica que o procedimento será adequado à respectiva infração penal cometida pela pessoa (por exemplo, os crimes apenados com detenção seguem o rito sumário).

            O processualista Francesco Carnelutti comenta que o processo pode se desenvolver em um ou mais procedimentos.Se, por exemplo, a parte vencida não se conforma com a decisão do juiz de primeiro grau e recorre em apelação, aí está demonstrado um processo compreendido por dois procedimentos, o de primeiro e o de segundo grau.O mestre ainda distingue os conceitos de processo e procedimento, comparando-os a um sistema decimal.Enquanto o procedimento corresponderia a uma dezena, o processo poderia corresponder ou a um número concreto que não chegasse a uma dezena ou a um número correspondente a mais de uma dezena.

            Para o autor italiano, o procedimento é um tipo de combinação de atos cujos efeitos jurídicos estão vinculados entre si pela causa.Cada um desses atos supõe a existência de um ato ocorrido anteriormente e o último ato supõe a existência de todos os atos anteriores.Assim, por exemplo, se percebe que a sentença, última fase do procedimento, supõe a existência da fase de instrução (CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Nuevo Proceso Civil Italiano, pg.243;244)


3. Sistemas Processuais.

            Paulo Rangel define o sistema processual penal como o conjunto de princípios e regras constitucionais que estabelecem as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do Direito Penal de acordo com o momento político de cada Estado.São três os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do Direito: o inquisitivo, o acusatório e o misto.

            O sistema inquisitivo tem suas raízes no Direito Romano, firmou-se no mundo medieval através dos Tribunais da Santa Inquisição, os quais tinham como objetivo o julgamento e punição das chamadas "heresias".O acusado, em meio de coações e torturas, era interrogado pelo tribunal religioso.

            O sistema perpetuou-se nas monarquias absolutistas e entrou em declínio com o marco divisório da História: a Revolução Francesa.

            Contemporaneamente, o sistema inquisitivo é traço característico dos regimes totalitários.Neste sistema se permite ao juiz iniciar o processo ex officio, ou seja, o processo de desenvolve em fases por impulso oficial.Possui as características de ser um sistema que vela pelo sigilo processual, é escrito e secreto (o máximo de segredo se alcançou, provavelmente, na atuação da famosa Heilige Vene alemã, especialmente no século XIV. Os Tribunais da Heilige "Santa" Vene eram compostos do conde local, atuando como presidente, e dos escabinos pertencentes à nobreza, denominados wissendes).Não dispõe à pessoa que está sendo acusada a garantia do contraditório e reúnem na mesma figura as funções de acusar, defender e julgar (o juiz é quem inicia ex officio o processo, é o mesmo que defende, é o mesmo que acusa e é o mesmo que julga o processo, prolatando a decisão).

            Em geral, não há garantias ao acusado, tanto é que como vimos, as praticas de tortura chegam a serem comuns neste sistema.O sistema processual inquisitivo se mostra inconveniente, pois fere princípios como o da imparcialidade do juiz, o do devido processo legal, o da igualdade e o principio da ampla defesa e do contraditório.

            O sistema de provas adotado é o sistema da certeza moral do juiz (também chamado de sistema da intima convicção do juiz).Neste, o juiz é quem vai determinar o valor da prova sem nenhum limite na lei.O legislador impõe ao magistrado toda a responsabilidade pela avaliação das provas encarregando a ele total liberdade para decidir de acordo, única e exclusivamente, com a sua consciência.O magistrado não está obrigado a fundamentar sua decisão.

            O segundo sistema em estudo é o acusatório. É o vigente no Brasil desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.Tem as características de ser um sistema que valoriza a imparcialidade do órgão julgador, garante a publicidade dos atos permitindo a qualquer do povo a sua fiscalização.Caracteriza-se também no agir de acordo com o principio da ampla defesa e do contraditório como forma de segurança jurídica ao cidadão e, ainda nesta linha de raciocínio, há distribuição das funções de acusar, defender e julgar designados a três órgãos diferentes, nos quais são: a parte que irá propor a acusação, a parte que irá defender-se desta acusação e o magistrado, como órgão julgador.

            No sistema acusatório, a fase investigatória fica a cargo da autoridade policial e do Ministério Publico.A autoridade judicial não atua como sujeito ativo na produção da prova e não instaura processo por iniciativa própria, pois, acabaria ligado psicologicamente à pretensão, agindo em muitos dos casos em desacordo ao principio da imparcialidade.De todo modo, o sistema acusatório certifica o acusado de garantias contra qualquer arbítrio advindo do Estado.

            É patente a consonância do sistema acusatório com os princípios da tutela jurisdicional, o principio do devido processo legal, o principio do acesso à justiça, o principio do juiz natural (nulla poena sine judice), o principio do tratamento paritário entre as partes, o principio da publicidade dos atos processuais, o princípio da motivação dos atos decisórios e o principio da presunção de inocência.O principio da imparcialidade do juiz na solução das causas que lhe são submetidas, possui uma relação direta com o sistema acusatório e se funda em obstruir influências sobre a decisão que será prolatada.Em termos práticos, retira-se o juiz da função da persecução penal (jus persequendi) devendo este permanecer inerte, aguardando ser provocado (ne procedat judex ex officio).

            Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, há um estabelecimento expresso de que o Estado deve garantir o principio da imparcialidade do juiz:

            "Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial...". (Previsão também no artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica).

            Antes da Constituição de 1988, em que prevalecia a constituição ditatorial de 1967, consubstanciada num sistema inquisitivo, o Ministério Público tinha o encargo artificial de representar os interesses do Poder Executivo em juízo, como bem regulamentava os artigos 94, §2º e 126 da CF/67.Esta era a redação prevista no §2º do art.94, in verbis: "Nas comarcas do interior, a União poderá ser representada pelo Ministério Público estadual".No art.126 também havia esta previsão: "A lei poderá... atribuir ao Ministério Público local a representação judicial da União".Após 1988, o encargo de representar as entidades de direito publico interno passou a ser dos seus respectivos procuradores.

            É inegável que a Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar o fortalecimento das garantias e direitos fundamentais, como a cidadania, além de fortalecer direitos difusos e coletivos, removendo toda uma conjuntura autoritária, inquisitiva e intolerante que foi imposta ao país durante a ditadura militar.Pari passu, o Ministério Público passa a ter a função de dominus litis com a prerrogativa de ser o titular da ação penal, apenas outorgando legitimação à parte nos casos de ação penal privada (Thomas Hobbes, mesmo vivendo sob o sistema inquisitivo, formula um exemplo que bem expressa a necessidade de se deslocar para um órgão dotado de imparcialidade e domínio da função da persecução penal: "Suponhamos um homem dotado de excelente uso natural e desteridade em mexer os braços, e um outro que acrescentou a esta destreza uma ciência adquirida acerca do lugar onde pôde ferir ou ser ferido pelo seu adversário, em todas posturas e guardas possíveis. A habilidade do primeiro estaria para a habilidade do segundo: ambas úteis, mas a segunda infalível". HOBBES. Thomas. Leviatã).

            A forma de apreciação das provas no sistema acusatório brasileiro é a da livre (mas não intima) convicção do juiz (ou sistema da verdade real, do livre convencimento ou da persuasão racional).Dá ao juiz liberdade de agir de acordo com as provas que se encontra nos autos, não podendo fundamentar qualquer decisão em elementos estranhos (quod non est in actis non est in mundo).A partir daí, o juiz avalia as provas de forma comparativa.O sistema da livre convicção não estabelece valor entre as provas, pois nenhuma prova tem mais valor do que a outra nem é estabelecida uma hierarquia entre elas.Todas as provas são relativas, nenhuma delas terá valor decisivo.Como característica do sistema acusatório, o juiz está obrigado a motivar sua decisão diante dos meios de prova constantes nos autos, sob pena de nulidade.

            O sistema da persuasão racional faz com que o magistrado somente possa condenar com base em provas contraditadas.São aquelas que foram objeto de analise judicial e submetidas às partes em contraditório, mirando impedir a chamada condenação com base em "provas" do inquérito policial. É o sistema que dá ao juiz liberdade para apreciar as provas, sem se tratar de liberdade absoluta, mas restringida pelo que determina a lei e a Constituição Federal.Perceba que as características deste sistema de prova demonstram o tratamento igualitário em oportunidades dado às partes, tanto a quem acusa quanto a quem defende, reprimindo uma provável atuação imparcial do juiz, tudo em estreita ligação com os valores perfilhados no sistema acusatório.

            O terceiro sistema que vamos analisar é o misto. É fortemente influenciado pelo sistema acusatório privado de Roma.Tem também comunicação direta com o posterior sistema inquisitivo desenvolvido a partir do direito canônico e da formação dos Estados Nacionais sob o regime da monarquia absolutista.Embora as primeiras regras deste processo fossem introduzidas com as reformas da Ordenança Criminal de Luis XIX(1670), a reforma radical foi operada com o Code d’Instruction Criminelle de 1808 na época de Napoleão Bonaparte, espalhando-se pela Europa Continental no século XIX. É ainda o sistema adotado em vários paises da Europa e da América Latina, como por exemplo, a Venezuela.

            Este sistema se compõe de duas fases distintas, sendo a primeira a fase a de instrução preliminar, onde o magistrado procede às investigações e uma segunda fase, em que nasce a acusação propriamente dita, proposta pelo Estado-administração através do Ministério Publico.Enquanto que na fase preliminar, o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é objeto de investigação sem direito ao contraditório e ampla defesa, na fase judicial é assegurado ao acusado a ampla defesa e o contraditório, garantindo também a publicidade do processo.

            Partiremos agora para o exame minucioso dos sistemas inquisitivo e acusatório.

            Para bem compreendermos o sistema inquisitivo brasileiro antes da CF/88, decifrarmos o porquê de tantas restrições à ampla defesa e quais os motivos que levaram à busca incessante pela condenação dos que estavam sendo acusados em todo este período antecedente, basta acompanharmos os comentários feitos na Exposição de Motivos de nosso Código de Processo Penal de 1941.Transcrevemos um dos comentários para uma melhor reflexão do mesmo:

            "Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet".

            A partir daí podem começar a surgir alguns questionamentos: O que teria de errado à possibilidade do juiz buscar averiguar melhor a matéria processual?A principio não há nada de errado, mas se remetermos a frase ao contexto histórico de 1941...

            Pois bem.Para acentuarmos a intenção do legislador de 1941 em coibir algum tipo de defesa do acusado, não devemos esquecer que em 1941 o contexto histórico nos remete à 2ª Guerra Mundial e o Brasil vivia um período ditatorial imposto por Getúlio Vargas.O nosso presidente regia o país sob forte influência dos ideais facistas de Mussolini e reprimia violentamente qualquer atitude que "cheirasse" a comunismo.O período foi marcado por profunda retração de direitos e somente com um Código de Processo Penal autoritário seria possível "legalizar" todo o pensamento inquisitivo que pairava no Estado ditatorial brasileiro no início da década de 40 (a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal é incisiva ao dispor: "É restringida a aplicação do in dubio pro reo").

            Já sabemos que, quanto ao efeito ou valor, a prova pode ser classificada como plena, sendo aquela que é convincente para a condenação. É aquela que dá um juízo de convicção acerca dos fatos, auxiliando-lhe a formar o seu juízo de certeza no momento da sentença.No sistema inquisitivo, se o juiz não dispõe de provas plenas (mesmo que o Ministério Público não tenha logrado êxito em provar a acusação que fez em sua peça exordial) e tendo duvidas a respeito da culpabilidade do acusado, não lhe deve ampliar a aplicação da máxima in dubio pro reo (em dúvida, a favor do réu).

            A doutrina tradicional e majoritária ainda guarda um certo apreço por valores resguardados pelo sistema inquisitivo adotados até antes à promulgação da Constituição Federal de 1988.O renomado autor Julio Fabbrini Mirabete, dentre tantos outros autores, entende que é necessário possibilitar ao juiz a produção de prova com vista a adquirir plena certeza do cometimento um ilícito penal e imputar a determinada pessoa uma sanção pelo crime cometido.Esta corrente doutrinária preza por uma maior segurança jurídica quando designa ao juiz o poder de produção de provas, como mais um ente (além do Ministério Publico e das partes) capaz e perseguidor da verdade real.Dentro da discussão doutrinária que ronda o principio da imparcialidade do juiz, lanço a seguinte pergunta: De fato, não é uma segurança a mais para o Estado a possibilidade de mais um ente poder produzir prova, aumentando em graus a probabilidade de descobrir a verdade do fato acontecido?Vou mais além.

            Em geral, as instituições públicas do nosso Estado Brasileiro e, caminhando nas searas do Poder Judiciário e do Ministério Publico, sofrem, por todos os lados com o descaso dos governantes, que marginalizam estruturas sérias como as citadas.Falta de estrutura para o trabalho, envolvimento de juizes com os crimes organizados, venda de sentenças, omissões em interposições de ações penais públicas por promotores públicos, descaso destes próprios promotores públicos com o andamento de ações penais já interpostas,...Enfim, são inumeráveis os exemplos que assolam tanto o Poder Judiciário quanto o Ministério Publico.São casos sabidos de todos.

            A partir daí, pergunto: Não é interessante que o juiz, em nome do Estado Democrático de Direito, possa vir a suprir a desídia de algum promotor publico ou de um advogado incompetente no que diz respeito à produção de provas?Vamos supor, num exemplo hipotético, que esteja bem visível o cometimento de um crime por determinada pessoa e que tudo leve a crer que esta virá a ser condenada (não vamos avaliar aqui a presunção de inocência desta pessoa, esta assegurada como principio constitucional). Por imperícia tanto do promotor publico quanto do advogado de acusação, este no papel de assistente de acusação, o acusado veio a ser absolvido por falta de provas ou por uma acusação mal fundamentada (não entraremos no mérito da imperícia, mas sabemos que existem bons e maus profissionais do Direito em todas as áreas em que atua, mas vamos supor que a imperícia seja devido à falta de atualização, à falta contínua de estudo).

            Por conseguinte, vamos supor que o juiz do processo seja uma pessoa de extremo caráter, uma pessoa dotada de honestidade, alguém preocupado em sempre estar atualizado, sempre estudando e acima de tudo, disposto a dar o melhor de si na sua profissão.Vamos supor que este juiz, mesmo presenciando toda esta "falta de atenção" da acusação com relação ao processo, não pudesse produzir nenhum tipo de prova e o acusado viesse a ser absolvido.Como ficaria o principio da supremacia do interesse publico, valor absoluto do Estado a da sociedade, diante da falta de condenação do acusado?

            Que diria o jurista Rosseau a respeito do caso in concreto?O Estado não estaria violando o "contrato social" pactuado com os civis?

            Indo de encontro com o lado pratico do nosso dia a dia, como ficam as pessoas que foram vitimadas, sabendo da absolvição do acusado e que certamente irá cometer mais atrocidades contra as mesmas?O tema realmente é polêmico.

            Numa outra linha de raciocínio, Paulo Rangel, citando o mestre Afrânio Silva Jardim como seguidor do mesmo posicionamento acerca do tema, demonstra todo o desapreço tanto pelo sistema inquisitivo quanto pelo sistema misto.Entendem os renomados autores que, se a sociedade dispõe de uma instituição regida pelos interesses do Estado como o Ministério Público, capaz de realizar investigações e promover a acusação, a partir deste momento se torna inaceitável dar ao juiz a função de órgão investigador.Um Estado Democrático de Direito não pode ser complacente com um sistema repressivo, que inibe a defesa do acusado, que mantém caracteres de um estado autoritário.

            Infelizmente, é sob esta ideologia inquisitiva que o Código de Processo Penal de 1941 ainda vige no Direito Processual Penal brasileiro até hoje (daí a necessidade de haver uma reforma urgente no nosso Código).Mesmo havendo o entendimento de que a Constituição Federal em 1988 tenha adotado o sistema acusatório, é impressionante o resquício deixado pelo sistema inquisitivo.São recentes e também diversos, os números de casos em que o legislador insiste na concepção de que não cabe ao juiz a única e exclusiva função de julgar, afrontando o principio da imparcialidade do juiz. Permitem, como se diz o jargão popular, "derrubar ladeira abaixo" a previsão constitucional do artigo 129 da Carta Magna.

            O Procurador de Justiça Sergio Demoro Hamilton, no prefácio da 2ª edição da obra "Direito Processual Penal" do professor Paulo Rangel, bem acentua as violações cometidas ao sistema acusatório brasileiro.O procurador dá seu parecer favorável ao princípio da imparcialidade do juiz e diz que após a CF/88, outras leis vieram a atentar contra o sistema acusatório. É o caso da Lei do Crime Organizado, Lei nº 9034/95, art.3º, in verbis:

            "Nas hipóteses do inciso III do artigo 2º desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligencia será realizada pessoalmente pelo juiz, adotando o mais rigoroso segredo de justiça".

            É visível o destaque de figura inquisitiva dada ao juiz.Outra lei que atenta contra o principio acusatório é a Lei de Interceptação Telefônica (Lei nº 9296/96), também situando o juiz em posição investigatória na fase de inquérito policial, ferindo sua indispensável imparcialidade.

            Conjunturas que permitem deturpar o princípio da imparcialidade do juiz são analisadas pela doutrina de vanguarda e torna-se ponto de discussão na disciplina de Direito Processual Penal em diversas Faculdades do Brasil.Uma destas discussões refere-se à prevenção do juiz para julgar a causa a partir do momento em que figura como investigador na fase de inquérito policial.

            Não seria uma porta de ilegalidade o fato de um juiz requerer prova em fase de inquérito policial e a este mesmo juiz ser dada a prerrogativa de julgar o feito em sede de instrução criminal?Volto a frisar que o tema é bastante polemico e que a doutrina de vanguarda, tanto a brasileira quanto a internacional, como por exemplo, a doutrina espanhola, combate ferozmente a possibilidade do juiz produzir prova na fase de inquérito e dar ao próprio juiz o munus de julgar, baseando-se nestas provas produzidas por si próprio.

            Sob a mesma discussão observada acima, um ponto que é alvo de constantes debates diz respeito às arbitrariedades que o juiz pode se valer na produção da prova e a imediata falta de controle do mesmo, em fase de instrução criminal.Sabemos que o procedimento probatório é composto de quatro fases: a proposição, a admissão, a produção e a valoração.A proposição de provas pode ser feita tanto pelas partes quanto pelo juiz. É o primeiro momento da parte se manifestar nos autos (por exemplo, o primeiro momento previsto para a produção de prova pelo Ministério Público é com o oferecimento da denúncia e o primeiro momento previsto para a produção de prova pela parte que defende o acusado é com a defesa prévia).A segunda fase do procedimento probatório é a admissão, cuja competência exclusiva pertence ao juiz.Trata de ato processual específico e personalíssimo do juiz, que ao examinar as provas feitas pelas partes e o seu objeto, irá deferir ou não a sua produção.A terceira fase é a da produção das provas, cuja competência pertence tanto às partes quanto ao juiz e a quarta fase é a da valoração das provas, cujo munus pertence somente ao juiz. Pois bem.

            Expostas as fases do procedimento probatório, a partir daí, lanço a seguinte pergunta: Não é estranho que o juiz possa produzir provas na fase de proposição e que na fase de admissão ele próprio venha a fazer um juízo de valor desta prova produzida por si mesmo?Quem o fiscaliza de eventuais arbitrariedades acerca da admissibilidade desta prova que o próprio juiz produziu e depois admitiu? É com profundo pesar dizer que, na realidade, não há uma fiscalização externa direta a respeito do fato.

            Fazendo uma reflexão do princípio da imparcialidade do juiz, o autor espanhol Miguel Fenech assevera que ser imparcial é a nota exclusiva da atividade jurisdicional.Na visão do processualista, o princípio da imparcialidade é tão correlato ao conceito de órgão jurisdicional que nem sequer necessita enunciação positiva nas leis normativas de sua atividade.


4. Pressupostos de Existência e Validade da Relação Processual.

            Como visto anteriormente em nosso trabalho, Bülow entendia que toda relação jurídica processual continha elementos ou princípios que a constituía e que a existência destes elementos era fato que passava despercebido pelos operadores do Direito da época.Com isto, Bülow sistematizou a relação jurídica processual através da chamada teoria dos pressupostos processuais.A partir da guinada desta teoria, os estudos dos pressupostos processuais passaram a ser desenvolvido pelos autores do Direito Processual de forma autônoma à relação de direito material.

            Pressuposto, como o nome indica, é o que vem antes da relação processual, é o que deve existir antes da constituição da relação.Alguns requisitos processuais devem ser atendidos quando instaurada qualquer relação processual.

            Estes requisitos não devem existir somente quando nasce a relação processual, mas também durante todo o seu desenvolvimento.A ausência dos pressupostos processuais invalida a atividade tendente ao pronunciamento jurisdicional.Afrânio Silva Jardim assevera que os pressupostos para a constituição e regular desenvolvimento do processo devem ser os mesmos para o processo penal, para o processo civil quanto para o processo do trabalho.

            Os pressupostos processuais são estes requisitos que devem existir antes da prática de um ato, necessários à existência e desenvolvimento do processo, para que dele possam derivar conseqüências jurídicas através do pronunciamento jurisdicional sobre a afirmação jurídica no processo.

            Os pressupostos processuais, segundo classificação adotada por parte da doutrina processual penal, costumam ser divididos em pressupostos de existência do processo e em pressupostos de validade da relação processual.José de Albuquerque Rocha define os pressupostos de existência da relação processual como aqueles requisitos que devem existir antes da apresentação da petição inicial no processo civil e trabalhista, ou da denuncia e queixa no processo penal, para que essa petição possa instaurar a relação processual.

            Os pressupostos de existência do processo são requisitos que caso não se consolidassem, o processo não chegaria a existir no mundo jurídico, ou seja, faltando os requisitos de admissibilidade do provimento jurisdicional, não é possível existir o processo e conseqüentemente não será possível prolatar uma sentença de mérito.

            São pressupostos de existência do processo: a capacidade das partes em formular uma demanda, um juiz com investidura e um pedido regularmente formulado (a demanda).Na relação processual, deve ser clara a pretensão do autor e deve ser clara também contra quem a pretensão é deduzida.A existência de um órgão jurisdicional e a existência de um sujeito de direito que se dirija a esse órgão são fundamentais à existência da relação processual.

            Ada Pellegrini formula um conceito mais restrito sobre os pressupostos processuais.Ela sintetiza os pressupostos numa frase bastante objetiva: é a correta propositura da ação feita a uma autoridade jurisdicional através de uma entidade capaz de ser parte em juízo.

            Já os pressupostos processuais de validade são: a competência do órgão, a capacidade processual das partes, e a capacidade postulatória (estes denominados positivos por Paulo Rangel).Também a suspeição, a ausência de impedimento do juiz, a litispendência e a coisa julgada (estes denominados negativos).Se faltar algum destes requisitos, a relação processual se extinguirá.

            Numa relação processual, deve o juiz prestar a tutela jurisdicional.Também deve julgar o processo com imparcialidade (sobre o assunto já discorremos em páginas anteriores).Com relação ao autor, este deve possuir legitimatio ad processum, ou seja, deve ter capacidade para praticar os atos válidos no processo.

            Para que exista juridicamente um processo penal, se faz necessária uma demanda onde se exteriorize uma pretensão punitiva ou de liberdade, um órgão investido de jurisdição e partes que tenham personalidade jurídica, ao menos formal, no plano do processo.

            A classificação dos pressupostos processuais não é algo pacífico na doutrina.Dentre outros autores, Fernando Capez e Antonio Araldo Ferraz dal Pozzo adotam tipo um de classificação diferente daquela que divide os pressupostos processuais em pressupostos de existência do processo e pressupostos de validade do processo.Esta segunda classificação, adotada por Capez e dal Pozzo divide os requisitos para a constituição de uma relação processual válida em subjetivos e objetivos.

            Os requisitos subjetivos dizem respeito ao juiz (investidura, competência e imparcialidade) e às partes (capacidade de ser parte, capacidade processual e capacidade postulatória). Os requisitos objetivos podem ser divididos em extrínsecos (inexistência de fatos impeditivos, como por exemplo, a litispendência e a coisa julgada) e intrínsecos (regularidade do rito procedimental).

            Helio Tornaghi, citado na obra de Afrânio Silva Jardim, comenta a respeito dos pressupostos de existência e validade do processo.Diz o autor: "se falta um pressuposto de existência, não há processo em sentido jurídico, não existe aquela atividade relevante para o direito que se chama processo, não há relação jurídica entre as partes e o juiz. Haverá processo em sentido puramente físico, atividade encadeada e progressiva, relação entre fato entre sujeitos. Se, ao invés, faltar um pressuposto de validez, então há relação processual; o que não há é aquela eficácia jurídica do ato regular e são".

            Há certa divergência na doutrina quanto à dialética entre pressupostos processuais versus requisitos de validade.Segundo parte da doutrina, a classificação dos pressupostos processuais numa divisão em pressupostos de existência e pressupostos de validade do processo é imprecisa.Afrânio Silva Jardim e Ada Pellegrini Grinover fazem parte de um grupo dissidente de autores que entendem pela inexistência dos pressupostos de validade do processo.Para os autores, o que existe na realidade são condições formais que garantem o regular desenvolvimento da relação processual validando os atos do processo, os quais, por estarem conforme a norma, não podem ter sua eficácia retirada pela decisão judicial.

            Por conseguinte, segundo esta parte da doutrina, a capacidade processual das partes e a capacidade postulatória, a suspeição, a ausência de impedimento do juiz, a litispendência e a coisa julgada passam à inapropriada denominação de pressupostos processuais de validade.

            Por outro lado, há uma terceira corrente doutrinária que nega a existência dos pressupostos processuais.


5. Conclusão.

            Diante do que expusemos acerca do processo, torna-se imprescindível a sua característica de longa manus do Estado em objetivar a resolução dos conflitos sociais em consonância com o principio do devido processo legal. É através do processo que o Estado atuará como justo medidor dos direitos e deveres de cada parte que está compondo o processo.

            Por sua vez, a persecução do direito (jus persequendi) que o Estado possui, legitimará o processo com um alicerce jurídico e imperioso para o seu bom andamento e para o encadeamento justo de todos os seus procedimentos.

            É visível a relação hierárquica existente entre o Estado e o processo, haja vista que o processo é um instrumento a serviço do Estado. Contudo, o Estado e o processo possuem também uma relação de reciprocidade. Um Estado democrático de direito não sobrevive sem um processo regular e nem o processo pode sobreviver sem um anteparo legal que legitime a formação dos seus atos.O Estado somente pode diz o direito através do processo e o processo somente pode "caminhar" sem máculas, com o suporte de justiça do Estado.

            Tanto é que o próprio Estado, quando repudia as causas que infringem valores assegurados socialmente, dita normas no escopo do ordenamento jurídico e os controla também no próprio processo, não somente materialmente, mas formalmente, no que tange à forma de condução dos atos dentro do processo, anulando em maior ou menor grau as formalidades que atentam contra valores que a sociedade preserva.

            Os procedimentos processuais devem ser observados com maior rigor, mesmo porque, sendo o processo uma soma de vários procedimentos preordenados, a falta ou a macula de, por exemplo, um único entre cem procedimentos, pode gerar a nulidade de todo um processo.Daí a importância do procedimento.

            No que tange aos sistemas processuais, a própria história se incumbiu de mostrar os benefícios e malefícios de cada sistema ao longo dos séculos.Cada sistema apresenta as suas respectivas peculiaridades, as suas vantagens e desvantagens.Impossível é traçar qualquer sistema processual e incorporá-lo a qualquer ordenamento jurídico sem a observância do principio do devido processo legal.

            Impossível é submeter os acusados ao sistema inquisitivo, não pelo sistema em si, já que nós sabemos que o seu maior problema reside na fraqueza do principio da ampla defesa.Mas, partindo para o que a prática tem demonstrado, a falta de informação que os acusados têm de seus próprios direitos dá margem para que, em muitas das vezes, se aflore o que comumente denominamos abuso de autoridade.De que adianta o artigo 3º da Lei 9034/95, que deveria ser utilizado como um plus em favor da sociedade no combate ao crime organizado, se os fins, em muitos casos não são os mais corretos...De que adianta dar a possibilidade de produzir prova e ao mesmo tempo julgar, se não é possível aplicar as regras que norteiam o principio da imparcialidade na hora exata do ato de julgar.

            Em contrapartida, de que adianta a previsão do artigo 129, inciso I da Constituição Federal de 1988 se muitas ações são deixadas de ser promovidas... A fraqueza do sistema acusatório reside, em muitos casos, na incapacidade dos respectivos órgãos de gerirem, sozinhos, as suas próprias funções de forma satisfatória.

            Com relação aos pressupostos de existência e validade da relação processual, o Estado se incumbiu de criá-las para o desenrolar justo e igualitário entre as partes da relação processual. Vimos que o processo é o instrumento do Estado para fazer prevalecer o seu jus imperium e, para que este poder de dizer o direito prevaleça de forma ordenada, precisa ("correndo" em paralelo com o princípio da legalidade), tornou-se necessária a criação de regras capazes de organizar os atos de formação e de desenvolvimento do processo, com o objetivo maior de dar a cada um o que é seu (contans ac perpetua voluntas unicuique suum tribuendi).

  

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Informações sobre o texto

Texto elaborado sob a coordenação do Professor Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓES, Hugo Eduardo Mansur. Uma reflexão sobre a teoria geral do processo penal à luz da doutrina nacional e estrangeira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 547, 5 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6109. Acesso em: 26 abr. 2024.