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A importância do inquérito policial como instrumento de persecução penal

A importância do inquérito policial como instrumento de persecução penal

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A propagada ideia de que a quantidade de inquéritos abertos e sem solução seria culpa da polícia judiciaria é absurda.

RESUMO: Esse trabalho teve como meta esclarecer a real importância do inquérito policial, no sistema persecutório adotado no Brasil. Baseando o estudo no histórico do inquérito e em suas características, procurou-se estabelecer uma relação entre a realidade do sistema persecutório brasileiro, seus desafios. Como o sistema persecutório brasileiro é baseado em duas fases distintas, uma administrativa e inquisitorial e outra acusatória e judicial, tivemos o cuidado de sempre estar delimitando nossa análise, mas sem nunca descuidar de estabelecer a real interdependência lógica entre ambas. Como o estudo foi direcionado apenas à lógica intrínseca do mecanismo inquisitorial e de sua realidade e importância, ampliou-se ao máximo a consulta bibliográfica, com a seleção de obras elaboradas por magistrados, promotores e delegados de polícia. Por fim, cumpre salientar que, tomando por análise apenas as características do inquérito, não se teve como objetivo direcionar o estudo a uma conclusão preestabelecida, mas enfatizar a importância de se contextualizar o inquérito como um meio, e que nessa direção, seu resultado prático é consequência tanto da realidade em que é utilizado, como da maneira em que é tratado pelo legislador.

Palavras-chave: inquérito, persecução, sistema persecutório.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto discutir a importância do inquérito policial no processo de elucidação do crime e na aplicação da lei. Nos últimos anos, têm sido recorrentes as discussões em torno do tema, mas demonstraremos a sua importância abordando seus aspectos gerais e peculiaridades. Muito do que se discute acerca de sua relevância advêm do fato de o Código de Processo Penal determinar a dispensabilidade do Inquérito para o oferecimento da denúncia. Todavia, tal regra funciona como garantia última, sendo a regra, sua utilização, mesmo porque é o instrumento mais eficaz para captar os carácteres do fato, tornando mais fácil e seguro o exercício da defesa e acusação.

A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, onde se procurou selecionar os ensinamentos de alguns doutrinadores acerca do surgimento e da realidade do inquérito, procurou-se também demonstrar o distanciamento que existe entre a alegada ineficiência do instrumento e sua real importância. Abordamos também a problemática em torno da substituição do inquérito por outro instrumento e os riscos decorrentes desse processo frente ao nosso modelo de ordenamento jurídico e a administração da justiça.


1 O INQUÉRITO POLICIAL

1.1 Breve Histórico

O crime pode ser estudado de várias maneiras, mas a sua elucidação e a responsabilização dos culpados, constitui tarefa árdua, que envolve conhecimento multidisciplinar além de experiência de campo. O processo de descoberta de provas, sua documentação e seleção sempre foi um desafio àqueles que se propuseram a levar à justiça os autores de crimes. Nesse compasso, o Estado, enquanto titular do direito de punir, necessitou desenvolver um mecanismo que pudesse padronizar esse processo e ainda garantir o respeito as garantias do cidadão. Nesse sentido, Souza e Cabral:

O legislador brasileiro diferenciou o inquérito policial (IP ou IPL) de qualquer outro procedimento administrativo, prevendo-o normativamente no Código de Processo Penal (CPP), delimitando o campo de atuação da polícia judiciária e do Ministério Público, tendo em vista assegurar ao cidadão a quem se imputa, em tese, a prática de uma infração penal, a garantia de que será investigado apenas pelo órgão estatal incumbido de tal mister, qual seja, a polícia. (SOUZA; CABRAL, 2013)

Ainda em relação ao tema, observa Machado, com ênfase na investigação criminal, que segundo seus ensinamentos possui duas características essenciais:

A persecução prévia apresenta duas notas características que merecem destaque: instrumentalidade e autonomia. Em primeiro lugar, é um procedimento instrumental à ação penal, pois se destina a esclarecer os fatos constantes na notícia de crime, fornecendo subsídios para o prosseguimento ou arquivamento da persecução penal. (MACHADO, 2010)

    E continua, complementando o que foi dito:

Do caráter instrumental da investigação criminal infere-se a sua dupla função assinalada pela doutrina pátria, a saber: (I) preservador e (II) preparatória. Preservadora, porque inibe a instauração de ação penal infundada e, com isso, resguarda a liberdade do inocente, e evita custos desnecessários para o Estado. Preparatória, porque acautela meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso de tempo. (MACHADO, 2010)

    Em relação a autonomia, esclarece:

Em segundo lugar, a investigação criminal é marcada pela autonomia, pois, apesar de servir ao processo, sua existência não depende deste. Há casos em que a imputação é descabida e a investigação arquivada sem se iniciar a relação jurídica processual. Por outro lado, pode haver processo sem prévia instrução preliminar, se o órgão acusatório possuir dados suficientes da autoria e materialidade delitiva para apresentar, desde logo, acusação formal. (MACHADO, 2010)

O tema se mostra de crucial importância, uma vez que é no inquérito policial que se materializa a investigação criminal, sendo outros procedimentos investigatórios, exceção, e não a regra.

Nos tempos mais antigos, já se observava uma distinção entre o oficio de julgar e a tarefa de trazer à luz, aquilo que fora praticado na clandestinidade, com o objetivo de tornar impune o crime. Nesse sentido:

Na Grécia Antiga, entre os atenienses, existia uma prática investigatória para apurar a probidade individual e familiar daqueles que eram eleitos magistrados.

Já entre os romanos, conhecidos como inquisitio, era uma delegação de poderes dada pelo magistrado à vítima ou familiares para que investigassem o crime e localizassem o criminoso, acabando se transformando em acusadores. Anos após, a inquisitio atinge melhoras no seu procedimento e também ao acusado, concedendo-lhe poderes para investigar elementos que pudessem inocentá-lo.” (PICOLIN, 2007)

Foi justamente durante o Império Romano que se iniciou o processo de estatização da fase investigativa. Corroborando isso, assevera Marcello Mazella de Almeida, “teve início em Roma a investigação promovida pelos agentes do Estado, onde não se encontravam quaisquer obstáculos.” (ALMEIDA, 2012)

Por óbvio, naqueles tempos as garantias eram mínimas e aplicáveis apenas aos cidadãos, ficando desprotegidos escravos e estrangeiros. Todavia, foi um primeiro passo rumo ao surgimento das garantias, vez que antes, nos tempos da vingança privada, a aplicação da justiça se dava alheia a qualquer tipo de gerência por parte do estado, que quando muito apenas editava leis, sem se preocupar com quem a aplicava ou com o processo de elucidação do crime.

Foi ainda durante o Império Romano que se separou o procedimento de aplicação da lei em duas etapas, sendo justamente a de investigação, denominada de inquisitio que foi a semente do futuro do inquérito.

No Brasil adotou-se sistemática semelhante, nos ensinamentos de Souza e Cabral:

                                      Assim, em resumo, no processo penal brasileiro, tem-se:

a)   Uma fase policial investigativa e preparatória a ação penal, materializada por excelência no inquérito policial, procedimento que é conduzido inquisitorialmente;

b)   Uma fase judicial de instrução e julgamento, materializada na ação penal, conduzida primordialmente sob as diretrizes do sistema acusatório, mas ainda com reminiscências do sistema inquisitório. (SOUZA; CABRAL, 2013)

Foi durante a primeira metade do século XIX, ainda durante o Brasil Império, com a elaboração do Código de Processo Penal, que se traçou as primeiras linhas do que se conhece do hoje por Inquérito Policial, mas de forma bastante incipiente ainda, apenas criando um instrumento informativo para utilização pelos Inspetores de Quarteirão, responsáveis por levar ao conhecimento da justiça o cometimento de crimes, sem nenhuma conotação de polícia judiciaria.

Sobre o tema, leciona Machado:

Desde o seu primórdio, o direito brasileiro sempre previu alguma forma de investigação preliminar de infrações penais, isto é, um procedimento prévio a fase judicial, destinado a reunir elementos atinentes à possível conduta criminosa e verificar a viabilidade de eventual juízo acusatório.

Na época do Brasil colonial, durante a vigência das Ordenações, existiam duas formas de investigação criminal: a devassa e a querela. A primeira era uma inquirição ordinária, sem preliminar indicação de autoria ou de indícios; e a segunda era uma inquirição sumária, com indicação prévia de autoria ou de indícios. (MACHADO, 2010)

Na esteira do exposto Picolin, acerca da criação do inquérito policial:

No entanto, com a Lei nº 2.033, de 20/09/1871, regulamentada pelo Decreto nº 14.824, de 28/11/1871 (art. 4º, § 9º), surgiu, entre nós o Inquérito Policial com essa denominação, sendo que o artigo 42 da referida lei chegava inclusive a defini-lo: "O Inquérito Policial consiste em todas as diligências necessárias para o desenvolvimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito". (PICOLIN, 2007)

A realidade é que desde a sua criação, ainda no século XIX, o inquérito foi o principal instrumento a disposição do Estado para conduzir a investigação criminal, tendo obviamente sofrido alterações para adaptar-se às mudanças sociais e políticas ocorridas ao longo tantos anos, mas continuando o mesmo em termos de finalidade e utilidade.         

Aspectos Gerais

O inquérito policial como hoje se delineou, é resultado do próprio modelo persecutório adotado no Brasil. É importante perceber que o inquérito esteve presente em várias fases de nossa história e sempre teve que se adaptar, agregando características que o compatibilizassem com a realidade vigente. Sobre o tema discorre o professor Machado:

No transcorrer de nossa história, a investigação criminal assumiu várias formas, com diferentes cargas de poderes e deveres para o imputado, mas sempre com o propósito comum de obter dados sobre a materialidade e a autoria de eventual prática delitiva. Essa fase preliminar apresentou características próprias de acordo com o sistema processual existente (inquisitório, acusatório ou misto), que, por sua vez, se estruturou conforme o modelo estatal vigente à época. (MACHADO, 2010)

O inquérito é instrumento de coleta de provas, e precipuamente se dirige a desvendar os acontecimentos e suas circunstâncias, possibilitando ao Ministério Público o oferecimento da ação penal com segurança.

Machado o define como:

A nosso ver o inquérito policial pode ser considerado procedimento, pois, apesar de inexistir ordem legal rígida para realização dos atos, o legislador estabeleceu uma sequência lógica para instauração, desenvolvimento e conclusão deste procedimento investigatório. (MACHADO, 2010)

Outro aspecto interessante do Inquérito Policial é sua função garantidora, por que serve também a defesa, uma vez que os fatos são como são, mas o exercício da defesa pode tomar vários postos de vista.

Possui peculiaridades que o tornam instrumento de extrema utilidade e que serve de elemento essencial a proteção de provas, leciona Guilherme de Souza Nucci,

[...] é, por sua própria natureza, inquisitivo, ou seja, não permite ao indiciado ou suspeito a ampla oportunidade de defesa, produzindo e indicando provas, oferecendo recursos, apresentado alegações, entre outras atividades que, como regra, possui durante a instrução judicial. (NUCCI, 2014)

Nesse mesmo sentido, Capez:

A finalidade do inquérito policial é a apuração de fato que configure infração penal e a respectiva autoria para servir de base à ação penal ou às providências cautelares. (CAPEZ, 2012)

E por fim a visão de Bonfim:

O inquérito policial tem caráter essencialmente instrumental. Sua finalidade é possibilitar a reunião de elementos de prova que reforcem e fundamentem as suspeitas acerca da pratica de delito de natureza penal. Nesse sentido o inquérito policial é um procedimento preparatório para eventual ajuizamento de ação penal.

Além disso, o inquérito policial serve também como elemento de “filtragem” do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria desconhecida. (BONFIM, 2012)

O inquérito policial possui características singulares, que o transformam em instrumento ímpar, haja vista, servir tanto a fase inquisitiva, quanto a acusatória, e também poder balizar os trabalhos de defesa e acusação.

Outro aspecto interessante do inquérito policial diz respeito a sua fase inicial. Quando ainda incipientes as provas, caberá a autoridade policial averiguar a verdade dos fatos, por isso diz-se que o inquérito tem também características de cautelaridade. Assim elucida Machado:

 [...] o inquérito policial é procedimento cautelar pré-processual, pois serve para a captação e preservação dos meios de prova da materialidade e da autoria delitiva, a serviço de eventual ação penal, e é preliminar a processo, embasando a sua instauração ou impedindo acusações descabidas. (MACHADO, 2010)

A utilidade do inquérito, entretanto, é fundamentalmente atrelada à qualidade de seu conteúdo, pois as investigações policiais são feitas por diversos agentes, utilizando-se de inúmeros mecanismos, além de perícia técnica, o que exige grande habilidade do delegado de polícia no mister de selecionar, interpretar e utilizar essas provas e informações técnicas, colocando-as ao alcance do ministério público e judiciário. No mesmo sentido Sousa e Cabral:

 [...] a autoridade policial deve sempre buscar, com isenção e equilíbrio, a verdade real. Tal tarefa nem sempre é simples, posto que, em seu dia-dia, a praxe policial revela difíceis e complexas situações fáticas que exigem soluções imediatas do delegado de polícia, que deve adequar o fato ao ordenamento jurídico. Em outras palavras: o delegado de polícia deve saber “o que fazer”, “como fazer”, e “quando fazer”, para alcançar o êxito da investigação. (SOUZA; CABRAL, 2013)

Nesse mesmo diapasão, é importante lembrar que muitos crimes são julgados muitos anos depois de seu cometimento, tempo em que as testemunhas já não são capazes de trazer ao processo depoimentos com tanta riqueza de detalhes; então o inquérito serve de amparo essencial a interpretação dos fatos por parte do magistrado.

Outro relevante aspecto a se considerar preliminarmente diz respeito à ausência de contraditório durante o inquérito, e isso tem relação com o fato de o inquérito ser um procedimento administrativo, no qual não vigoram determinadas garantias constitucionais. Todavia, isso não quer dizer que não possa o investigado valer-se de meios para defender-se, podendo trazer fatos, indicar testemunhas e colaborar com a busca pela verdade. Na lição de Sousa e Cabral:

No inquérito, tenha sido ele instaurado por portaria ou auto de prisão em flagrante, o investigado tem a primeira oportunidade de defesa ao ser interrogado pela autoridade policial. Nessa fase investigatória, o inquérito policial é, como entende largamente a doutrina, um procedimento administrativo e, como tal, não se coaduna com o consagrado princípio constitucional do contraditório.

Contudo, admite-se por parte do investigado o requerimento de diligências (art. 14 do CPP), a apresentação de documentos e o relato de fatos que possam levar à convicção de sua inocência no conjunto probatório dos autos. (SOUZA; CABRAL, 2013)

As garantias constitucionais incitam ao procedimento investigatório visam proteger o cidadão da arbitrariedade do Estado. Todavia, em relação ao inquérito policial, algumas dessas garantias são mitigadas a um segundo momento, não com o intuito de desguarnecer direitos, mas sim de tornar célere a coleta de provas, e evitar a movimentação do judiciário desnecessariamente. Nesse sentido,

“o inquérito policial serve também como elemento de “filtragem” do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria desconhecida.” (BONFIM, 2012)

Apenas considerando esses dados iniciais, é possível perceber que o inquérito policial, apesar de não receber o status de peça essencial por parte da doutrina, constitui, na prática, uma referência para persecução penal, constituindo não só um ponto de partida, mas uma garantia para a aplicação da justiça.


2 Características

2.1 Procedimento Escrito

O fato de ser escrito exige que o inquérito seja documentado, e isso se dá pela necessidade de se poder consultá-lo quando do julgamento, para análise dos fatos, e exercício da defesa e acusação.

Os acontecimentos são dinâmicos, os crimes deixam vestígios, produzem testemunhos. Se o inquérito não fosse documentado de forma escrita muito se perderia, e não só pelo decurso de tempo, mas por que a prática de um crime envolve uma gama de outros fatores, de várias ordens e isso pode provocar uma distorção da realidade. Assim, ao se exigir a documentação de tudo, se corre um menor risco de que os detalhes de percam.

Nas palavras de Capez:

Tendo em vista as finalidades do inquérito não se concebe a existência de uma investigação verbal. Por isso, todas as peças do inquérito policial serão, num só processo, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade (CPP, art. 9º). (CAPEZ, 2012)

A documentação a que se refere o termo “escrito” vai além de testemunhos, incluindo perícias e aferições de quaisquer espécies, como as acareações, ou filmagens, e isso tem como objetivo servir de esteio ao exercício de direitos. Ensina Bonfim:

A adoção da forma escrita constitui, também, uma garantia ao investigado. Conquanto o inquérito policial seja uma peça informativa, é possível que, no seu decorrer, seja atingido o patrimônio jurídico do investigado, seja pela necessidade de acesso as informações ordinariamente cobertas pelo sigilo, seja, mesmo, pela possibilidade de decretação de sua prisão ainda durante o inquérito.

Dessa forma a documentação em peças escritas é essencial para que a atividade policial de investigação possa ser submetida ao controle de legalidade. (BONFIM, 2012)

Outra grande utilidade do ponto de vista investigatório é a possibilidade de a autoridade policial  utilizar-se das informações documentadas em uma investigação para desvendar outros crimes, quer seja pela conexão entre eles ou pelo meio empregado pelo criminoso. As investigações policiais são conduzidas, muitas vezes, baseando-se na experiência adquirida em anos de trabalho. Não há uma fórmula cartesiana que possa ensinar como se investiga; isso é feito a duras custas, pelas mãos de investigadores hábeis e dedicados. Assim, um inquérito bem feito e documentado acaba se tornando fonte de consulta de outros policiais.

2.2 Sigiloso

O inquérito não é confeccionado como peça isolada ao fim das investigações; muito pelo contrário, é um encadeamento de etapas, que dependem muitas vezes umas das outras, pois o objetivo final é cristalizar um momento e suas nuances, para que os envolvidos possam dele se valer quando vierem a buscar a aplicação da justiça.

Os inquéritos como pensamos ordinariamente, acabam por ser orientados depois que um crime foi executado, mas no âmbito da polícia judiciária é comum existirem inquéritos que demoram meses, e até anos para serem concluídos, haja vista a complexidade que envolve determinados crimes.

À medida que as investigações evoluem e se alcançam novas informações, são delineadas novas hipóteses ou tomadas outras linhas de análise, outros processos investigativos, não há como se saber onde se chegará antes que se chegue ao fim e sejam esgotadas todas as possibilidades, pois enquanto houverem dúvidas acerca de algo, dificilmente se poderá chegar a uma condenação segura, ou absolvição justa.

O sigilo serve para garantir que não se possa alterar provas e se subverta a verdade dos fatos antes que tenham sido documentadas. Na lição de Norberto Avena:

[...] ao contrário do que ocorre em relação ao processo criminal, que se rege pelo princípio da publicidade (salvo exceções legais), no inquérito policial pode ser resguardado o sigilo durante a sua realização. Essa possibilidade inerente ao inquérito decorre, principalmente, do fato de que o êxito das investigações policiais prende-se, em muito, ao elemento surpresa nas diligências realizadas e ao fato de que as provas colhidas no inquérito são produzidas no estrépito dos acontecimentos, vale dizer, quando ainda não houve possibilidade de o investigado maquiar os fatos como muitas vezes ocorre na fase judicial. (AVENA, 2014)

          Na mesma direção elucida Renato Brasileiro:

Se na própria fase processual é possível a restrição à publicidade, o que dizer, então o, quanto aos atos praticados no curso de uma investigação policial? Se o inquérito policial objetiva investigar infrações penais, coletando elementos de informação quanto à autoria e materialidade dos delitos, de nada valeria o trabalho da polícia investigativa se não fosse resguardado o sigilo necessário durame o curso de sua realização. Deve-se compreender então que o elemento da surpresa é na grande maioria dos casos essencial à própria efetividade rias investigações policiais. (LIMA, 2014)

Complementando o exposto, vale ressaltar que o sigilo do inquérito tem dúplice função, pois visa também resguardar que a imagem do suspeito, para que não seja alvo da opinião pública por conta da exposição. Todavia, cabe frisar que esse sigilo também é relativo, uma vez que é possível a publicação da imagem de suspeitos foragidos, ou de retratos falados que possam ajudar a identifica-los.  Ainda acerca do sigilo, cabe esclarecer que não se estende ao Ministério Público e obviamente a defesa do suspeito, entretanto, em relação a este último, apenas no que diz respeito ao que já tenha sido documentado nos autos do inquérito. Neste mesmo compasso ensina Bonfim, que chega a delinear dois tipos de sigilo, um de caráter interno e outro de caráter interno:

Há, entretanto, que se fazer distinção entre: a) sigilo externo e b) sigilo interno. O sigilo externo diz respeito à restrição a publicidade dos atos de investigação com relação às pessoas do povo. Já o sigilo interno constitui impossibilidade de o investigado tomar ciência das diligências realizadas e acompanhar os atos investigatórios a serem realizados. (BONFIM, 2012)

E por fim, o mesmo autor corrobora o que fora dito anteriormente quando afirma no mesmo contexto:

O sigilo que pode cercar o inquérito policial não é, entretanto, absoluto. Com efeito, o Ministério Público e o Poder Judiciário, em qualquer situação, têm a prerrogativa de acompanhar o desenvolvimento do inquérito. (BONFIM, 2012)

Em relação ao sigilo dos atos ainda em curso quando ainda não terminado o inquérito, haja vista ser possível a investigação fora dele, como por exemplo, naquelas conduzidas pelo Ministério Público, ensinam Rogério Sanchez, de forma mais abrangente,

Tal sigilo porém, não estende aos membros do Poder Judiciário e Ministério Público a quem se confere, em relação a esse último, a faculdade de acompanhar o procedimento investigatório (art. 15, III, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). O advogado também desfruta do direito de examinar os autos de inquérito policial, conforme dispões o art.7º, XIV, do Estatuto da Advocacia (Lei no 8.906/94), o que não induz pensar que deva ser chamado para participar das investigações em curso. (CUNHA; PINTO, 2009)

Assevere-se que, em consoante a importância do tema, em 2009 o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 14, com o intuito de afastar qualquer alegação de desrespeito a direitos diante da decretação do sigilo de determinados procedimentos investigatórios, estabelecendo: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Sobre a citada Súmula leciona Capez em conformidade com o que foi dito anteriormente, “trata-se de publicidade que não se afigura plena e irrestrita, uma vez que se admite, apenas, a consulta a elementos já colhidos, não se permitindo o acesso às demais diligências em trâmite.” (Capez, 2012)

Via de regra, o acesso aos dados já documentados no inquérito não carece de autorização judicial, podendo o advogado consultá-los, a fim de orientar seu trabalho, porém, aponta Renato Brasileiro, uma exceção:

Pelo menos em regra, o acesso do defensor aos elementos de informação já documentados nos autos do procedimento investigatório independe de prévia autorização judicial. No entanto, em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, uma vez decretado o sigilo da investigação pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, o acesso do defensor aos elementos informativos deverá ser precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento (Lei n° 12.850/13. arr. 23, caput). (LIMA, 2014)

Pelo exposto, percebe-se que o sigilo segue a lógica da instrumentalidade do inquérito, e se por um lado guarnece o suspeito da exposição pública, por outro garante ao Estado meios de alcançar sucesso nas investigações; assim, funciona essa, como uma garantia dúplice, em absoluta consonância com os princípios constitucionais.         

2.3 Oficialidade

Essa é mais uma característica do inquérito e tem relação com a exclusividade do exercício do jus puniendi por parte do Estado. Assim, o poder público é o único detentor da prerrogativa de imiscuir-se na vida alheia com o fito de revolver fatos, invadir a esfera de interesses individuais e aplicar a lei e nome da coletividade.

A Constituição em seu artigo 144, §4º determinou que o a persecução penal deva ser realizada pelas policias civis, ressalvados os interesses da União, quando então a responsabilidade da apuração ficará cargo da Policia Federal. O instrumento hábil a esse mister, é justamente o inquérito policial, que deverá ser presidido pela autoridade policial, o delegado de polícia, a quem compete a presidência do inquérito.

Não se pode, por respeito à própria Constituição Federal, subverter a estrutura desse sistema e não há como se delegar essa função a outras autoridades públicas, nem mesmo ao juiz. Todavia, é possível que a investigação criminal ocorra por intermédio de outras instituições, sem contudo ser efetuada por meio do inquérito policial.

Sobre a oficialidade, leciona Avena,

trata-se de investigação que deve ser realizada por autoridades e agentes integrantes dos quadros públicos, sendo vedada a delegação da atividade investigatória a particulares, inclusive por força da própria Constituição Federal. (AVENA, 2014)

Sobre a investigação efetuada por outras instituições, o ponto mais relevante diz respeito à atribuição do Ministério Público de conduzir investigações criminais. Sobre o tema, existem dois posicionamentos: o primeiro a considerar que tal atribuição não seria sua competência. Esclarece o professor Avena:

Para os adeptos da primeira linha de pensamento, ou seja, a de que o Ministério Público não pode, por conta própria, conduzir essa ordem de investigações, o motivo da vedação reside no fato de o art.129 da Constituição Federal, ao contrário do que ocorre com a investigação civil (expressamente facultada ao Ministério Público pelo inciso III), não contém regra expressa incluindo, entre as faculdades ministeriais, a realização de investigação criminal. Sustentam, ainda, que o art. 144, §§ 1º, I e 4º, da CF, ao dispor que às polícias federais e civis cabe a apuração das infrações penais, silencia quanto ao Ministério Público, razão pela qual lhe permitir tal ordem de atividade importa aceitar uma indevida invasão de competências constitucionais estabelecidas. (AVENA, 2014)

Na mesma direção, Renato Brasileiro cita os pontos mais relevantes citados pela doutrina:

Entre outros fundamentos apontados por esses doutrinadores podemos citar:

1) a investigação pelo Parquet atenta contra o sistema acusatório, pois cria um desequilíbrio na paridade de armas;

2) a Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências e instauração de inquéritos policiais (are. 129, VIII), mas não lhe conferiu o poder de realizar e presidir inquéritos policiais;

3) a atividade investigatória é exclusiva da Polícia Judiciária (CF, arr. 144, § 1°, IV. c/c art.144, §4°);

4) não há previsão legal de instrumento idóneo para a realização de investigações pelo Ministério Público. (LIMA, 2014)

Agora, em sentido diametralmente oposto, Avena:

Já corrente oposta, que é majoritária, aduz que a prerrogativa para conduzir investigação criminal internamento à Promotoria ou Procuradoria decorre da regra do art.129, VI, da Carta Política, quando lhe confere a possibilidade de “expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva”. (AVENA, 2014)

E em referência a supracitada lei complementar continua:

Além disso, existe lei complementar consagrando a possibilidade de que o Ministério Público realize atividade investigativa sem restrição quanto a se tratar de investigação civil ou criminal. Trata da LC 75/1993, que organiza o Ministério Público da União e que, no art. 8º, V, faculta ao parquet realizar diligências investigatórias. Ora se é viável essa atribuição aos membros do Ministério Público Federal, não há motivo para que se proíba a mesma atuação na órbita do Ministério Público dos Estados, mesmo porque, simetricamente à LC 75/1993, a Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público dos Estados) incorpora, no art. 26, um rol de atribuições que se adapta tanto às investigações civis quanto as criminais. (AVENA, 2014)

Outro ponto importante que o professor Avena cita como justificativa à atuação investigativa do Ministério Público em sede criminal, está relacionado à teoria dos poderes implícitos:

Por fim, tenha-se em mente que a teoria dos poderes implícitos, pela qual os encargos estabelecidos constitucionalmente a um determinado órgão permitem a este, implicitamente, utilizar os meios necessários para alcança-los, desde que não se tratem, evidentemente, de meios proibidos pela própria constituição. Adaptando-se esta teoria à investigação criminal, depreende-se que, ao estabelecer como função institucional do Ministério Público o ajuizamento da ação penal pública, a Constituição Federal, implicitamente, está facultando ao promotor de justiça a investigação do fato delituoso para angariar os elementos necessários ao oferecimento da denúncia. (AVENA, 2014)

Considerando não só as justificativas elencadas, mas outras de mesma natureza, nos dois sentidos, vemos que a capacidade investigativa do parquet deve ser vista como uma garantia última de que a justiça será aplicada. Todavia, não se deve esquecer que ao concentrar no órgão acusador a tarefa de produzir provas na fase administrativa, eliminando-se o inquérito e a atuação da polícia; abre-se a possibilidade que a imparcialidade seja colocada em segundo plano, mesmo porque, se o controle externo da polícia pelo Ministério Público existe justamente para garantir essa imparcialidade, que controle externo sofrerá o órgão ministerial a também garantir tal equilíbrio?

Em resumo, a oficialidade é tão importante que ainda que a titularidade da ação penal pertença ao ofendido, isso não o é suficiente para delegar-lhe a possibilidade de interferir na condução do inquérito, podendo tão somente optar por requisitar a autoridade policial sua instauração, o que poderá inclusive ser negado, caso não haja crime. Nesse mesmo paço, ensina Capez, “o inquérito policial é uma atividade investigatória feita por órgãos oficiais, não podendo ficar a cargo do particular, ainda que a titularidade da ação penal seja atribuída ao ofendido.” (CAPEZ, 2012)

E essa determinação tem um sentido prático, pois delegar a tarefa investigatória a particulares terminaria por deixar a sociedade a mercê de toda sorte de abusos e arbitrariedades, além de prejudicar o sucesso e eventuais investigações, haja vista a complexidade que envolve a tarefa investigativa. A oficialidade é característica relacionada ao controle externo da polícia, este exercido pelo Ministério Público.         

2.4 Oficiosidade

A segurança pública é dever do Estado e direito de todo cidadão. Com base nesse pressuposto, toda pratica delituosa passa a ser matéria de interesse público, devendo o aparato público mobilizar meios que levem a identificação de autores e sua responsabilização. Todavia, em sentido mais amplo, o interesse estatal não é apenas o de punir, mas apurar a verdade, haja vista muitas condutas típicas poderem estar amparadas por justificantes, como a legitima defesa ou estado de necessidade.

A busca da verdade é sempre uma obrigação do ente público, e é o Delegado de Polícia responsável pelo inquérito o incumbido de alcançá-la. Nesse diapasão, atribuir a característica da oficiosidade ao inquérito nada mais é que considerá-lo instrumento dessa busca. Em consonância com o exposto elucida Zanotti:

A característica da oficiosidade consiste em um dever legal imposto ao Delegado de Polícia, no sentido de que todo procedimento é feito de ofício e com o objetivo de colher elementos de autoria e prova de materialidade, desde a instauração do inquérito policial até o relatório final. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)

Sempre que houver crime de ação pública incondicionada, haverá a instauração de inquérito, nessa toada assevera Avena:

[...] ressalvadas as hipóteses de ação pública condicionada à representação e dos delitos de ação penal privada, o inquérito policial deve ser instaurado ex officio (independente de provocação) pela autoridade policial sempre que tiver conhecimento da prática de algum delito (art.5º, I, do CPP). Observe-se que a instauração do inquérito policial justifica-se diante da notícia quanto à ocorrência de uma infração penal, como tal considerada o fato típico. Desimportam, assim, aspectos outros como, por exemplo, eventuais evidências de ter sido o fato praticado ao abrigo de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade. (AVENA, 2014)

O fato de ser oficioso em nada está relacionado com o meio que deu início ao inquérito, e sim com o tipo de ação penal relativa ao crime cometido. Nesse sentido, Bonfim:

Ressalte-se que, embora o art.5º, caput, mencione que, “nos crimes de ação pública”, o inquérito será instaurado de ofício, a interpretação correta do dispositivo é no sentido de que apenas em relação àqueles crimes em que se preveja a ação penal de iniciativa pública sem representação ou requisição o inquérito poderá ser instaurado ex officio. (BONFIM, 2012)

Em relação às outras ações penais, a privada e a condicionada à representação, o que muda é apenas o meio pelo qual se dá a instauração do inquérito; no entanto, que uma vez feita, conduz o procedimento ao mesmo status, obrigando a oficiosidade, assim enfatiza Zanotti:

É importante ressaltar que as instaurações das ações penais públicas condicionadas e as ações penais privadas são exceções à característica da oficiosidade; no entanto, passada essa etapa inicial, o trâmite do procedimento segue de ofício. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)

Muito embora o autor tenha se utilizado do termo ações no trecho citado, a lógica é aplicável ao inquérito policial.         

2.5 Autoridade         

De fundamentação constitucional, este princípio é de importância essencial ao esquema de aplicação da justiça, pois centraliza e organiza a persecução penal em sua fase administrativa e estabelece a responsabilidade pela elucidação do fato típico e da conclusão do inquérito.

Leciona Cabral: “a autoridade é característica do inquérito policial que estabelece que o Delegado de Polícia é autoridade pública com poder de decisão na presidência do inquérito policial e poder de mando dentro da instituição policial. (Souza & Cabral, 2013)

Longe de apenas estabelecer um caráter hierárquico às policias, essa característica garante que se possa responsabilizar diretamente uma autoridade pública por pela busca da aplicação da justiça.

Deve-se, antes de tudo, rememorar que o inquérito é a cristalização de trabalho de muitas mãos, e que envolve, na maioria das vezes, o trabalho de várias disciplinas. Assim é um árduo trabalho interpretar, selecionar e trazer ao mundo do direito os fatos da vida com isenção e imparcialidade. Isso exige por parte do delegado não apenas conhecimento jurídico, mas o de várias outras disciplinas, além de extrema técnica, pois do contrário pode-se comprometer severamente o resultado final do processo.                   

2.6 Indisponibilidade

Consoante o fato de ser o inquérito policial um meio busca pelo estado da aplicação da justiça, nada mais natural do que garantir que, uma vez instaurado, alcance um fim. Considerar indisponível o inquérito nada mais traduz que sua importância ao interesse público, todavia essa indisponibilidade muitas vezes leva ao caos dentro das delegacias de polícia, e isso ocorre porque, tanto o inquérito que apura o furto de um pacote de biscoitos, quanto aquele que busca desvendar um latrocínio serem indisponíveis, o que obriga a autoridade policial a conviver com um número de inquéritos abertos muito superior ao que pode ser apurado, considerando-se os meios disponíveis para tanto.

Acerca da indisponibilidade, ensina Avena:

[...] uma vez instaurado o inquérito, não pode a autoridade policial, por sua própria iniciativa, promover o seu arquivamento (art.17 do CPP), ainda que venha a constatar a atipicidade do fato apurado ou que não tenha detectado indícios que apontem o seu autor. Em suma, o inquérito sempre deverá ser concluído e encaminhado a juízo. (AVENA, 2014)

Ao se ponderar anteriormente que um inquérito que apura crime de furto e outro que apura o de latrocínio, possuem a mesma natureza, não se disse que um crime de furto mereça manos atenção por parte do Estado, mas que, dever-se-ia encontrar meios de equacionar os meios e a realidade, haja vista não ser possível atender a demanda que hoje existe. É absolutamente essencial que o inquérito seja indisponível, mas não que se deva apurar todo e qualquer crime por meio de um inquérito.         

2.7 Discricionariedade

A discricionariedade do inquérito policial está relacionada com os atos relativos à sua condução, onde, dependendo da complexidade e natureza do crime que se apura, deverão ser adotadas uma ou outra medida, tais como exames periciais, pedidos de interceptação telefônica e buscas residências, por exemplo. Ao determinar que a condução do inquérito seja presidida pela autoridade policial, o Código de Processo Penal está delegando a ela o poder-dever de enveredar esforços no sentido de construir o conjunto probatório no corpo do inquérito, visando encerrar a fase administrativa da persecução penal, com a sua conclusão.

A respeito do tema, leciona Avena:

[...] a persecução, no inquérito policial, concentra-se na figura do delegado de polícia que, por isso mesmo, pode determinar ou postular, com discricionariedade, todas as diligências que julgar necessárias ao esclarecimento dos fatos. Isso quer dizer que, uma vez instaurado o inquérito, possui a autoridade policial liberdade para decidir acerca das providências pertinentes ao êxito da investigação. (AVENA, 2014)

Apesar de parecer contraditório considerar a existência em um mesmo instrumento da discricionariedade e da oficiosidade, pois são antagônicas, deve-se observar que a coexistências de ambas é possível porque se complementam dentro de um mesmo contexto, sendo a última referente a obrigatoriedade da instauração do inquérito e a primeira relativa a condução das investigações após o início. Nessa direção, mais uma vez esclarece Avena:

A discricionariedade que caracteriza o inquérito não colide, portanto com a oficiosidade, que também o peculiariza. Esta última refere-se à obrigatoriedade de instauração do inquérito em face da notícia de um crime que autoriza o agir ex officio do delegado, enquanto a primeira concerne à forma de condução das investigações, o que abrange tanto a natureza dos atos investigatórios (oitiva de testemunhas, perícia, etc.) quanto a ordem de sua realização. (AVENA, 2014)

A discricionariedade, entretanto, possui limites e esses aparecem em dois pontos: o primeiro na própria lei, que estabelece um rol de atos que devem ser realizados pela autoridade policial, conforme ensina Bonfim:

Não obstante gozar de ampla discricionariedade na condução das investigações, o Código de Processo Penal determina algumas práticas que, se adequadas aos casos concretamente apresentados, deverão ser adotadas, demonstrando a complexidade do inquérito, na medida em que a autoridade policial realizará várias medidas que configurarão o todo das investigações. Deverá a autoridade policial, portanto, realizar as diligencias previstas no art.6º do Código de Processo Penal, evidentemente se pertinentes ao fato investigado, cabendo-lhe livremente – dentro dos parâmetros legais – eleger outras que julgar necessárias e eficientes para a elucidação do fato. (BONFIM, 2012)

O outro limite à discricionariedade da atuação da autoridade policial durante o inquérito policial é fruto do próprio garantismo constitucional, que, em qualquer caso, deve servir de parâmetro tanto a atuação estatal quanto ao convívio social. Nesse sentido, ainda que possa determinar a realização de determinada diligência, o delegado deve observar se o feito está em harmonia com as garantias constitucionais, e que seu cumprimento obedeça a todos os direitos e garantias constitucionais. Um claro exemplo disso pode ser observado nos seguintes ensinamentos do professor Bonfim:

[...] a autoridade policial poderá proceder a reprodução simulada dos fatos – vulgarmente chamada “reconstituição do crime” -, desde que essa prática não contrarie a moralidade pública (art.7º do Código de Processo Penal). (BONFIM, 2012)

E continua, agora estabelecendo como parâmetro o direito ao silêncio:

O indiciado, ressalte-se, conquanto possa ser forçado a presenciar o ato de reprodução simulada dos fatos, não tem obrigação de colaborar com sua realização, porquanto ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo, conforme o princípio nemo tenetur se detegere (privilege against self-incrimination), que decorre da combinação da presunção de inocência (art.5º, LVII), ampla defesa (art.5º, LV), com o direito ao silêncio do acusado (art.5º, LXIII). Este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF: RT, 697/385).

Assim, pelo que foi exposto, deve-se entender a discricionariedade como uma característica multifacetada, pois, ora se apresenta com grande amplitude, quando se prevê liberdade de atuação do delegado de polícia na condução das investigações, e ora se mostra mitigada quando se impõe a realização de determinados exames ou procedimentos quando os crimes deixem vestígios, mas o crucial é, mais uma vez, perceber que antes de se mostrar como mera característica, a discricionariedade é na verdade uma garantia, pois permite a atuação do estado que, de outra maneira, não teria como elucidar a prática criminosa. Em apertada síntese, os professores Cabral e Souza esclarecem de maneira simples, mas completa:

A autoridade policial possui ampla discricionariedade ao iniciar uma investigação, ou seja, tem ampla liberdade de agir para a apuração do fato criminoso, dentro dos limites traçados pela CF/88 e pela legislação processual penal.

Assim, a autoridade policial avalia e define com base no seu conhecimento técnico e experiência quais diligências serão cumpridas no bojo do inquérito policial, bem como o momento de sua realização. (SOUZA; CABRAL, 2013)

2.8 Inquisitivo

Uma das características mais interessantes do inquérito policial, sem sombra de dúvidas, essa, não só o peculiariza, mas o torna o único instrumento capaz de atender à urgência que se instala quando do cometimento de um crime. Assim, ela não só torna viável toda a investigação, que de outra forma seria impossível, como melhora as chances de que seja concluída com êxito.

Nesse sentido Távora e Alencar:

A inquisitoriedade permite agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial. Contudo, como não houve a participação do indiciado ou suspeito no transcorrer do procedimento, defendendo-se e exercendo contraditório, não poderá o magistrado, na fase processual, valer-se apenas do inquérito para proferir sentença condenatória, pois incorreria em clara violação ao texto constitucional. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)

Acrescentando ao tema sobre a inquisitoriedade, asseveram Santos e Zanotti: “de acordo com o Código de Processo Penal, o inquérito policial não contempla os direitos fundamentais do contraditório e ampla defesa, sendo, por essa razão, qualificado como inquisitivo.” (ZANOTTI; SANTOS, 2013)

E no mesmo sentido, Cabral e Santos:

O CPP distingue a fase investigativa (inquérito policial, arts. 4º ao 23) da instrução criminal no âmbito do Poder Judiciário (arts. 394 ao 405). Assim não vigora o princípio do contraditório na fase inaugural, uma vez que na esfera policial não há acusação e defesa, institutos obrigatórios na fase judicial. (SOUZA; CABRAL, 2013)

Algo que inicialmente pode parecer meio confuso diz respeito à possibilidade do investigado de solicitar a realização de determinadas diligências, uma vez que o inquérito é procedimento inquisitivo, todavia deve-se recordar que essas poderão ou não, a critério da autoridade policial, ser efetuadas.

Como também o inquérito é discricionário, poder-se-ia imaginar que isso ocorreria por conta da liberdade de atuação do delegado de polícia relativa à discricionariedade, mas a verdade é que as características do inquérito têm entre si uma relação de complementaridade. Ainda sobre o tema, devemos considerar que, ainda que possa negar-lhe a realização, a diligência deverá ser realizada quando for relevante a elucidação dos fatos. Recordemos que, antes de tudo, a autoridade policial tem o dever de zelar pela busca da verdade.

Nessa direção apontam mais uma vez Cabral e Souza: “como já visto, o delegado de polícia busca a verdade real, não sendo parte em qualquer polo da relação processual penal. Por isso mesmo, o inquérito policial também é uma garantia para o cidadão”. (SOUZA; CABRAL, 2013)

O professor Avena leciona que o próprio judiciário tem se posicionado no sentido de determinar a execução de diligências quando forem comprovadamente relevantes ao exercício da ampla defesa:

[...] muito embora o deferimento ou não das providências requeridas fique a critério da autoridade policial, isto “não haverá de constituir empeço a que se garantam direitos sensíveis do ofendido, do indiciado etc.” (STJ, HC 69.405/SP, 6ª Turma, DJ 25.02.2008), alcançando-se, então, por meio do Poder Judiciário, a determinação para que delegado realize a medida pretendida em face da sua pertinência com a situação investigada. (AVENA, 2014)

Considerando o exposto, chegamos ao entendimento de que a inquisitoriedade, ainda que afaste a participação dos envolvidos para dar celeridade e proteger a investigação da interferência externa, não é absoluta, haja vista ser possível ao suspeito solicitar a realização de diligências.

A discricionariedade, por outro plano, complementa a inquisitoriedade, garantindo que a autoridade policial possa realizar seu trabalho da melhor maneira possível, mas encontra limites na própria necessidade pela busca da verdade. Nesse sentido, entendem ser justificável a mitigação da inquisitoriedade, Távora e Alencar:

Atenuar o contraditório e o direito de defesa na fase preliminar, por suas próprias características, não pode significar integral eliminação. O inquérito deve funcionar como procedimento de filtro, viabilizando a deflagração do processo quando exista justa causa, mas também contribuindo para que pessoas nitidamente inocentes não sejam processadas. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)

2.9 Unidirecional         

É comum encontrar autores que trazem uma separação diferente entre as características do inquérito, e dentro desse contexto consideramos válida a consignação desta, uma vez que foi elencada pelos professores Cabral e Souza, ambos delegados de polícia, e que exatamente por isso vislumbram nela uma importante referência a particularizar o inquérito.

Relacionando-a com o objetivo final das investigações, que são a elucidação dos fatos e o eventual indiciamento dos supostos autores, dão ênfase na postura profissional que deve permear a atuação profissional da autoridade policial:

O inquérito policial destina-se apenas à apuração objetiva de ilícitos penais, não sendo papel da autoridade policial, quando do término da investigação, emitir juízo de valor sobre as condutas praticadas pelos investigados.

Deve a autoridade policial lançar no relatório conclusivo apenas observações de cunho técnico-jurídico relacionadas à conduta do indiciado e o seu enquadramento penal. (SOUZA; CABRAL, 2013)

2.10 Dispensável

Existe grande celeuma em torno da relevância do inquérito policial para a elucidação de crimes. Os que argumentam pela sua ineficácia justificam que esta advém dessa característica, todavia, sem o menor fundamento, pois como se verá, dizer que o inquérito é dispensável é diametralmente diferente de dizê-lo inútil.

Antes de adentrar ao tema, é crucial entender exatamente o que a lei determina, o que acontece na prática e o porquê do distanciamento entre ambas realidades.

Em relação ao inquérito, se diz dispensável, pois o Ministério Público pode oferecer a denúncia sem que haja inquérito, ou que, contrariando as provas colhidas em seu bojo, decida fazê-lo. Em todo caso, ainda paira a responsabilidade por comprovar a existência de fundamentos para o oferecimento da denúncia, caso o Ministério Público decida oferecer a denúncia dispensando ou contrariando as provas do inquérito, nesse mesmo compasso, Capez:

O Inquérito policial não é fase obrigatória da persecução penal, podendo ser dispensado caso o Ministério Público ou o ofendido já disponha de suficientes elementos para a propositura da ação penal (CPP, arts. 12, 27, 39, § 5º, e 46, § 1º).

Atenção: O titular da ação penal pode abrir mão do inquérito policial, mas não pode eximir-se de demonstrar a verossimilhança da acusação, ou seja, a justa causa da imputação, sob pena de ver rejeitada a peça inicial. Não se concebe que a acusação careça de um mínimo de elementos de convicção. (CAPEZ, 2012)

Pensamos nessa como sendo consequência do inquérito, colocando-a apenas como uma garantia necessária para a marcha persecutória, caso não se tenha conseguido alcançar um resultado prático ou se vejam prejudicadas as investigações. Nesse mesmo paço é também compreensível que se permita o início da ação penal caso já se disponha de provas suficientes para o feito.

Relacionamos essa característica ao valor probatório do inquérito, que, apesar se ser relativo, é fundamental. Diz-se relativo, por ser inquisitorial, assim, como na fase administrativa não se oportunizou o contraditório e a ampla defesa, não se poderia dar valor absoluto às provas angariadas no inquérito.

Nesse sentido, explica Bonfim:

A doutrina discute acaloradamente acerca da possibilidade de que elementos probatórios sejam utilizados como fundamento para a condenação do réu, em juízo. Isto, principalmente, em virtude do caráter inquisitivo desse procedimento preliminar, a que não se aplicam, em sua integralidade, as regras inerentes aos princípios do devido processo legal e do contraditório. (BONFIM, 2012)

Tendo por base o que foi relacionado, vê-se que é comum relegar o inquérito a um segundo plano de importância com base no fato de a lei não dizê-lo essencial a propositura da ação penal, todavia, isso ocorre como uma garantia, tanto de independência do Ministério Público, como de que se tenha a possibilidade de divergir das investigações. Na realidade, o inquérito, como resultado do trabalho investigativo, é riquíssimo e representa a diferença entre a impunidade e a justiça. Não se pode pensar em atuação policial, em um estado democrático de direito, sem a existência de um inquérito, ou outro procedimento de cunho administrativo.

2.11 Temporalidade         

Preliminarmente, cabe relembrar que o inquérito policial é procedimento e não processo, haja vista não haver partes ou as garantias do contraditório e ampla defesa. Todavia, é entendimento dominante na doutrina e jurisprudência que o procedimento inquisitorial deve desenrolar-se dentro de um lapso de tempo coerente.

Sobre o tema lecionam Sousa e Cabral:

A doutrina entende que o art. 5º, inc. LXXVIII, da CF (direito fundamental à celeridade processual), não se aplica apenas os processos, mas também ao inquérito policial.

Em relação ao tema, é oportuno registrar que o STJ já determinou o trancamento de um inquérito policial que se arrastava à época há mais de cinco anos sem solução, por força da garantia da razoável duração do processo (HC 114.593/SP, Rel. Min. Jorge Mussi). (SOUZA; CABRAL, 2013)

Na mesma direção, Renato Brasileiro:

A nosso ver, diante da inserção do direito à razoável duração do processo na Constituição Federal (arr. 5°, LXXVIII), já não há mais dúvidas de que um inquérito policial não pode ter seu prazo de conclusão prorrogado indefinidamente. As diligências devem ser realizadas pela autoridade policial enquanto houver necessidade. Evidentemente em situações mais complexas, envolvendo vários acusados, é lógico que o prazo para a conclusão das investigações deverá ser sucessivamente prorrogado. Porém, uma vez verificada a impossibilidade de colheita de elementos que autorizem o oferecimento de denúncia, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos. (LIMA, 2014)

A despeito do que foi dito, e da própria lei disciplinar os prazos para conclusão no inquérito, a verdade é que, atualmente, é comum encontrar inquéritos que se arrastam por anos.

O desrespeito dos prazos só traz consequências imediatas em relação às medidas cautelares restritivas de liberdade, quando o excesso de prazo poderá levar a libertação do suspeito. Todavia, em relação ao próprio inquérito esclarecem Zanotti e Santos:

Eventual descumprimento de tais prazos não implicará o arquivamento precoce do inquérito policial, uma vez que se trata de vício em um procedimento administrativo e voltado, principalmente, para o bom andamento da atividade policial. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)

Assim, se por um lado a possibilidade de renovação dos prazos para conclusão possa ser necessária, a indefinição quanto ao objetivo dessas inúmeras de diligências pode levar o inquérito a total inutilidade. Por outro prisma, é possível perceber que  através do inquérito é que se pode combater a ineficiência estatal nessa primeira fase de apuração dos delitos, pois como procedimento formal, documenta tudo o que é feito, conduzindo tanto a responsabilização de eventuais desídias quanto a possibilidade de o suspeito valer-se do judiciário para o trancamento de inquéritos injustificavelmente morosos.


3 Os Vícios do Inquérito e a Ação Penal

O procedimento inquisitorial como etapa que antecede, mas não condiciona a propositura da ação penal pode estar sujeito a vícios. Considerando apenas os aspectos investigativos, é possível que provas tenham sido colhidas, por exemplo, sem que tenham sido observados os direitos e garantias constitucionais, ou por outro plano, que não tenha sido determinada uma diligência essencial, como o exame de corpo de delito. Então a questão que se aborda é: até onde um vício inerente ao inquérito pode afetar a ação penal?

Considerando a independência que existe entre a fase administrativa e a processual, ensina Avena:

Por fim, cabe ressaltar a independência formal do inquérito em relação ao processo criminal que, com base nele, for instaurado. Portanto, no caso de serem inobservadas, na sindicância policial, normas procedimentais estabelecidas para a realização de uma determinada diligência, a consequência não será a nulidade automática do processo, mas unicamente a redução do já minimizado valor probante que é atribuído ao inquérito. Neste sentido, são reiteradas as decisões do Superior Tribunal de Justiça, compreendendo que eventual mácula no procedimento policial não contamina a ação penal superveniente, vez que aquele é mera peça informativa, produzida sem o crivo do contraditório (RHC 21.170/RS, DJ 08.10.2007). (AVENA, 2014)

Outras situações, entretanto, podem se apresentar, trazendo uma complexidade maior ao tema. Analisaremos, primeiro, aquela em que o vício presente no inquérito inquinou de ilegalidade várias provas trazidas aos autos, como no caso de uma interceptação telefônica realizada de maneira clandestina e que culminou com a deflagração de buscas que vieram a colher provas do crime, e que todas essas evidências deram origem à ação penal. Na lição de Távora e Alencar:

Já se durante o inquérito obtivermos, por exemplo, uma confissão mediante tortura, e dela decorra todo o material probatório em detrimento do suposto autor do fato, como uma busca e apreensão na residência do confidente, apreendendo-se drogas, é de se reconhecer a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada ou da ilicitude por derivação, isto é, todas as provas obtidas em virtude da ilicitude precedente deverão ser reputadas inválidas, havendo assim clara influência na fase processual. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)

Assim, se no contexto dessa ação penal houver outras provas, sem relação com a ilegalidade, poderão essas ser aproveitadas, com o prosseguimento da ação penal.

Situação diversa ocorre se a ação penal for fruto unicamente de um inquérito viciado, como no caso em que se plantam provas de determinado crime, a fim de incriminar determinada pessoa. Nesse caso, ainda segundo os mesmos autores:

[...] podemos facilmente concluir que caso a inicial acusatória esteja embasada tão somente em inquérito viciado, deverá ser rejeitada por falta de justa causa, diga-se, pela ausência de lastro probatório mínimo e idôneo ao início do processo, com fundamento no art. 395, inciso VI, do CPP, com redação inserida pela Lei no 11.719/08. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)         


4 O Valor Probatório do Inquérito Policial

Tendo em face a natureza administrativa do inquérito, e as características acima relacionadas, passemos a analisar como pode o valor probatório do inquérito variar de acordo com as circunstâncias e condições nas quais foi realizado.

Em linhas gerais, tem-se que o inquérito possui valor probante apenas relativo, e isso é consequência lógica do fato de ser, ele, um instrumento administrativo, no qual estão ausentes o contraditório e a ampla defesa. Nessa direção, Sousa e Cabral:

O inquérito policial fornece o suporte probatório para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, mas não pode a autoridade judiciária condenar o réu com base exclusivamente nas informações contidas no inquérito policial, em razão da ausência dos princípios do contraditório e da ampla defesa na fase investigativa (art.155 do CPP). (SOUZA; CABRAL, 2013)

Na lição de Avena:

Considerando a ausência de garantias constitucionais apontadas (ampla defesa e contraditório), há muito tempo consolidaram-se os tribunais pátrios no sentido de que o inquérito policial possui valor probante relativo, ficando sua utilização como instrumento de convicção do juiz condicionada a que as provas nele produzidas sejam renovadas ou ao menos confirmadas pelas provas judicialmente realizadas sob o manto do devido processo legal e dos demais princípios informadores do processo. (AVENA, 2014)

No mesmo sentido Capez:

O inquérito policial tem conteúdo informativo, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público, ou ao ofendido, conforme a natureza da infração, os elementos necessários para propositura da ação penal. No entanto, tem valor probatório, embora relativo, haja vista que os elementos de informação não são colhidos sobre a égide do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco na presença do juiz de direito. (CAPEZ, 2012)

Em sentido mais amplo, a posição do professor Machado:

O inquérito policial, como visto, destina-se a colher elementos de convicção acerca de uma prática delitiva, que servem para fundamentar as decisões interlocutórias proferidas nessa fase, bem como para justificar eventual ação penal ou arquivamento do feito.

Assim, é equivocado o entendimento difundido na doutrina pátria de que o inquérito policial seria base apenas pra acusação, uma vez que ampara também o juízo do órgão ministerial e da autoridade judiciária a respeito do arquivamento. (MACHADO, 2010)

Se em um primeiro momento há uma orientação uníssona em sentido de conferir uma enorme fragilidade das provas trazidas pelo inquérito, a lei, amparada por razões lógicas suaviza essa posição.

Nessa esteira, a relativização do valor probante do inquérito está intimamente ligada à espécie das provas produzidas, uma vez que existe a possibilidade de que não seja possível a repetição da produção de provas em momento posterior, seja por razões de tempo ou natureza. Senão, vejamos o que lecionam Sousa e Cabral:

[...] as provas cautelares, irrepetíveis ou antecipadas ganham verdadeiro status de prova na fase processual, conforme ditame do art.155, in fine do CPP, podendo o juiz, nesses casos, fundamentar sua decisão nos elementos informativos construídos na fase de inquérito policial (contraditório diferido ou postergado).

Foi justamente o que aconteceu durante o julgamento do caso do “Mensalão” pelo STF (AP470/MG) quando o relator, Min. Joaquim Barbosa, usou os laudos periciais elaborados durante a fase de inquérito pelo Instituto Nacional de Criminalística da Policia Federal para fundamentar os seus votos que levaram a condenação de 25 dos 38 acusados. (SOUZA; CABRAL, 2013)

Assim, no que tange às provas, temos duas situações, uma primeira que se refere às provas que devam ser reproduzidas ou confirmadas na fase judicial, e mais, além disso, deverão estar coerentes com todo contexto fático. Nada mais justo, afinal, um depoimento, por exemplo, que venha a ser refeito diante do juiz, pode ser alterado, ainda que perca seu valor se for contraditório ou desprovido de fundamento. A segunda situação diz respeito àquelas que, como foi dito acima, não podem ser refeitas, por serem urgentes ou por perderem-se com o tempo. Esse é o entendimento de Távora e Alencar:

Vale ressaltar, contudo, que existem provas não-repetíveis, também chamadas de não renováveis, que devem ser realizadas imediatamente, pois caso contrário perecerão e não poderão mais ser produzidas, de forma a prejudicar substancialmente a demonstração da verdade. (Távora & Alencar, 2013)

Nesse contexto, podemos tomar como exemplo a perícia do local do crime, onde tenham sido encontrados vestígios que apontem a presença do suposto autor, como exame de DNA (em que o material genético usado no exame se consome) ou impressões digitais (em que seria impossível se preservar o local do crime por anos).

Ora, como se poderia condicionar a validade dessas provas pelo fato de não terem sido produzidas durante a instrução criminal se não é possível manter a cena do crime? Se não fosse a previsão legal de que essas provas possuem valor probatório, o simples fato de a justiça ser morosa levaria à impunidade de todos os crimes que deixassem tais vestígios.  Nesse mesmo diapasão ensina Bonfim:

Assim há uma importante classificação das provas, quanto à possibilidade de se repetirem em juízo, em repetíveis e irrepetíveis. As primeiras, como o próprio nome indica, podem ser realizadas novamente sob égide do princípio do contraditório em juízo (v.g., a confissão, o reconhecimento e a oitiva de testemunhas). Já as provas irrepetíveis são aquelas que não podem ser renovadas na fase processual, uma vez que possuem caráter definitivo (v.g., exame de lesões corporais em que os vestígios desaparecerão). (BONFIM, 2012

Como a finalidade do inquérito é a produção de provas, e isso, por conseguinte, orienta a atuação do Ministério Público, o que pode levar à condenação ou absolvição do suspeito, resta saber até onde pode o juiz, com base na sua livre convicção, utilizar-se dessas provas para lastrear sua decisão, quando dissociadas das provas angariadas durante a instrução criminal?

A resposta é simples, uma vez que a própria lei, como veremos, veda apenas a condenação exclusivamente nelas, mas não sua utilização amparada pelas demais provas produzidas durante a fase judicial. Assim, chegamos à conclusão de que, seja qual for a prova trazida no inquérito, uma vez que esteja em consonância com as demais, pode servir ao convencimento do juiz, senão vejamos o que diz Avena:

Importante ter em mente a redação trazida no art.155 não proíbe o juiz de utilizar, como fundamento de convicção, as provas coligidas na fase investigativa, apenas dispondo, que não poderá ele fundamentar-se exclusivamente nessa categoria de provas. Nada impede, então, sejam elas usadas como elementos secundários de motivação, isto é, supletiva ou subsidiariamente, como forma de reforço às conclusões já extraídas do contexto judicializado.

Observe-se que, apesar de exigir como regra que a prova penal seja produzida sob o crivo do contraditório judicial como condição para que possa servir de embasamento às decisões judiciais, há determinadas hipóteses em que a lei ou a jurisprudência estabelecem ressalvas. (AVENA, 2014)

    O problema, todavia, fica mais complexo se a condenação houver sido prolatada com base exclusivamente na prova trazida pelo inquérito, ainda que irrepetível. Sobre o tema esclarece Bonfim:

No entanto, a maior parte da doutrina tende a negar a possibilidade de uma condenação lastreada tão somente em provas obtidas durante a investigação policial. Admitem, quando muito, que essas provas tenham natureza indiciária, sejam começos de prova, vale dizer, dados informativos que não permitem lastrear um juízo de certeza no espírito do julgador, mas de probabilidade, sujeitando-se a posterior confirmação. Isso porque sua admissão como elemento de prova implicaria infringência ao princípio do contraditório, estatuído em sede constitucional. (BONFIM, 2012)

Como a questão parece levar a um ponto em que pareça ser incontornável a situação, encontramos, nos ensinamentos de Távora e Alencar, uma solução prática que, além de mitigar o risco de que venha a desqualificar uma sentença condenatória, termina por garantir ao suspeito o exercício do contraditório ainda na fase inquisitorial:

Além de ser recomendável que a autoridade policial, em tais casos, autorize fundamentadamente que o indiciado e/ou seu advogado acompanhe a produção da prova não-repetível, a solução encontra guarida no incidente de produção antecipada de prova, em que ainda durante o inquérito, instaura-se um procedimento, perante o magistrado, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, com a participação das futuras partes do processo, desde que determinada prova seja imprescindível para a prolação de futura sentença, e haja indícios a demonstrar que o perecimento da mesma é provável. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)         


Conclusão

Em linhas gerais, foi possível perceber que o modelo de persecução penal brasileiro, amparado em duas fases, uma administrativa e inquisitória, e outra judicial e acusatória, não foi uma criação, mas resultado da evolução de nossa sociedade.

O fato da fase investigatória (administrativa) ser um procedimento inquisitivo, não afasta as garantias constitucionais, muito pelo contrário, funciona como lastro para que se garanta a imparcialidade da autoridade policial, que deve se manter equidistante de quaisquer lados, devendo sempre nortear-se pela busca da verdade, e isso por si, já representa uma garantia fundamental a aplicação da justiça.

A fase judicial por sua vez, muito embora não se veja dependente da administrativa, funciona muito melhor quando harmonizada com esta, visto que existe entre ambas uma complementaridade óbvia e natural.

Considerando ainda que o estado de direto fundamenta-se em dois grandes pilares, quais sejam o equilíbrio e independência entre poderes e os direitos e garantias constitucionais (individuais e coletivas), é temerário observar que ainda existam linhas cinzentas entre as atribuições da polícia e ministério público. Vemos o poder investigatório do Ministério Público como uma garantia, a ser complementada por sua atribuição constitucional de exercer o controle externo da polícia, e não como uma carta branca para imiscuir-se num mister que não lhe é precípuo. Nesse diapasão, é essencial que as atuações sejam complementares, não excludentes. E que se diga, obviamente, que o risco de invasão de atribuições, além de oferecer um enorme risco ao sucesso das investigações, ainda provoca um desequilíbrio tremendo à persecução, concentrando nas mãos do parquet, tanto o poder de conduzir a investigação e produzir provas como o de acusar, o que pode acabar por retirar das mãos do magistrado a possibilidade de avaliar provas produzidas com imparcialidade, numa fase puramente inquisitória e imparcial.

Existe ainda uma enorme discussão em torno da eficiência do inquérito policial. Sobre o tema, fica claro, pela análise das caraterísticas elencadas no trabalho, bem como pelo breve histórico apresentado, que o inquérito nada mais é que um instrumento, e que, como tal, pode ser utilizado de maneira adequada ou não.

O fato é que, como a persecução penal está estruturada em duas fases, e que nosso sistema judicial é, além de fortemente garantista, baseado no civil law, não como há conceber a extinção da fase administrativa, ou sua existência dissociada da instrumentalização que o inquérito oferece.

A propagada ideia de que a quantidade de inquéritos abertos e sem solução é culpa da polícia judiciaria também é absurda, pois, quem decide ou não arquivar inquérito é o judiciário em entendimento com o ministério público, não podendo o delegado de polícia nem mesmo se manifestar a respeito, e quem determina sua abertura é a lei, justamente com o fim de apurar a possível prática de um crime. Por outro lado, é obvio que, além da polícia não dispor de meios para investigar tudo, em tempo hábil, muitos crimes, realmente acabam sem solução, e seria hipocrisia ignorar tal fato.

Assim, hoje, o que vemos como ideal, seria a reformulação do sistema persecutório, com a desvinculação da polícia do executivo e com o aumento de sua independência, além da criação de um procedimento menos garantista e burocrático para condução de investigações de crimes menos graves.

A criação de uma nova dinâmica que possibilitasse o pronto arquivamento de inquéritos sem possibilidade de solução ou sem lastro mínimo seria também fundamental para diminuição da sobrecarga que hoje assola os cartórios das delegacias.

Consoante todo o exposto, percebe-se que o grande problema em relação ao tema é o desconhecimento por parte da sociedade, e o descaso por parte do legislador.      


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. M. Histórico do Inquérito Policial no Brasil. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,historico-do-inquerito-policial-no-brasil,37218.html> Acesso em: 28 jul. 2014

AVENA, N. Processo penal: esquematizado. São Paulo: Método, 2014.

BONFIM, E. M. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAPEZ, F. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012.

CUNHA, R. S.; PINTO, R. B. (2009). Processo Penal: Doutrina e prática. Salvador: Jus Podivm, 2009.

LIMA, R. B. Manual de processo penal. Salvador: Jus Podivm, 2014.

MACHADO, A. A. (2010). Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010

NUCCI, G. d. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

PICOLIN, G. R. (26 de 01 de 2007). Surgimento do Inquérito Policial: Jurisway. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=156> Acesos em: 12 jun. 2014.

SOUZA, R. P.; CABRAL, B. F. Manual prático de policia judiciária. Salvador: Jus Podivm, 2013.

TÁVORA, N.; ALENCAR, R. R. Curso de direito processual penal. Salvador: Jus Podivm, 2013.

ZANOTTI, B. T.; SANTOS, C. I. Delegado de Policia: Teoria e prática no estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, 2013.



Informações sobre o texto

Trabalho de Conclusão de Pós-Graduação, apresentado à Banca Examinadora do Unijur-DF para obtenção do título de pós-graduado em Direito Penal, sob orientação do Professor (mestre/doutor) Reinaldo Rossano.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Rodrigo Teodoro Karlic. A importância do inquérito policial como instrumento de persecução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5623, 23 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63527. Acesso em: 25 abr. 2024.