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A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual.

As relações homoafetivas

A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual. As relações homoafetivas

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Soy gaucho, y entiéndanló como mi lengua lo esplica:
Para mi la tierra es chica
y pudiera ser mayor;
ni la víbora me pica ni quema mi frente el sol.
Recuerdo, que maravilla!
Como andaba la gauchada, siempre alegre y bien montada y dispuesta pa el trabajo;
Pero hoy em el dia..., barajo!
No se le vê de aporriada.
(El Gaúcho Martin Fierro)


Sumário: I PARTE – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,1.1 Introdução ,1.2 Breves considerações históricas e de conteúdo acerca dos direitos fundamentais ,1.3 Dignidade da pessoa humana como norma fundamental para a ordem jurídico-constitucional. ,1.4 Relação da dignidade humana com os direitos fundamentais;II PARTE – DIREITO DE FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMOAFETIVAS,2.1 Introdução, 2.2 Estrutura do novo livro do direito de família , 2.3 Liberdade sexual e os direitos humanos , 2.4 Uniões homoafetivas – uma realidade que o Brasil insiste em negar , 2.5 Relações homossexuais , 2.6 União estável homossexual ; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA


I PARTE – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

           1.1 Introdução

           O presente ensaio, visa, com base nas aulas ministradas pelo professor Ingo Sarlet, no curso de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mais precisamente na disciplina de Direito Constitucional, elaborar reflexões acerca do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em face da livre opção sexual ou das relações sexuais homoafetivas; relações estas que devem ser encaradas sob um novo enfoque constitucional e social, visando, assim, uma sociedade justa, livre, fraterna e democrática, já que a palavra de ordem deste novo milênio é a cidadania e a inclusão dos excluídos. Portanto, estamos diante dos chamados direitos de terceira geração, onde a fraternidade deve prevalecer entre os povos.

           Assim sendo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se presente em tudo que guarde relação com a essência do ser humano, estando, assim, vinculada de forma indissociável com os direitos fundamentais (postulado no qual se assenta o direito constitucional contemporâneo), apesar desse liame praticamente se limitar ao reconhecimento da sua existência e da sua importância.

           Portanto, embora a previsão no texto constitucional seja imprescindível, por si só não tem o condão de assegurar o devido respeito e proteção à dignidade; restando, assim, uma perspectiva de efetivação dessa segurança por meio dos órgãos jurisdicionais. Entretanto, estes, hoje, sofrem ameaças no que diz com o exercício efetivo e independente da sua missão de proteger e realizar concretamente a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais.

           Em relação ao conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na e para a ordem jurídica, tanto em nível doutrinário quanto no jurisprudencial, há grande divergência. Percebe-se, todavia, que a dignidade vem sendo considerada, pela grande maioria, uma qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano, e o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.

           1.2 Breves Considerações Históricas e de Conteúdo acerca dos Direitos Fundamentais.

           Antes de se buscar demonstrar os diversos conteúdos e significados, apontados pelos doutrinadores, da dignidade da pessoa humana, importante ter-se conhecimento, mesmo que breve, sobre sua origem, seu histórico. Assim, a idéia de valor intrínseco da pessoa humana possui raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. Foi a religião cristã, (pelo fato de encontrar-se no Antigo e no Novo Testamento, referência de ser, o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus), que trouxe o entendimento de que o ser humano, e não apenas os cristãos, são dotados de um valor próprio, que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.

           A dignidade da pessoa humana, no pensamento filosófico e político da antiguidade clássica guardava relação com a posição social ocupada pelo individuo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, possibilitando, assim, falar-se em uma qualificação e modulação da dignidade, admitindo-se pessoas mais dignas ou menos dignas.

           Já no pensamento estóico, a dignidade, por ser inerente ao ser humano, era tida como qualidade que o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade. Esse pensamento apresenta-se, portanto, ligado à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo, bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.

           Esta cognição de dignidade humana seguiu sendo sustentada pela concepção de inspiração cristã e estóica durante o medievo, apresentando-se a concepção do espanhol Francisco de VITÓRIA.1 Defendia ele, em meio ao processo de aniquilação e escravização dos indígenas, que os mesmos, em função do direito natural e de sua natureza humana eram, em princípio, livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeito de direitos. Nos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, (época do pensamento jusnaturalista), assim como a idéia de direito natural em si, apesar de passar por um processo de racionalização e laicização, manteve a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.

           A dignidade da pessoa humana passa, assim, a ser considerada como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção; e, na concepção Kantiana 2, a concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando a autonomia como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano não pode ser tratado como objeto.

           A autonomia da vontade, segundo KANT, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana; e, com base nisso, o homem existe como um fim em si mesmo, não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, repudiando, com isso, toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano.

           Portanto, na ótica de Ingo SARLET a "dignidade é o valor de uma tal disposição de espírito, e está infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade".3

           Apesar de continuar, a grande parte da doutrina jurídica, utilizando-se como bases de fundamentação e de conceituação, o pensamento kantiano, diante da evolução social, econômica e jurídica de tal utilização, para alguns doutrinadores, deve ser feita com reservas ou deve ser ajustada a essa evolução, visto que seu pensamento (no dizer de alguns estudiosos) apresenta um excessivo antropocentrismo, naquilo em que sustenta que a pessoa ocupa, em razão da sua racionalidade, lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos.

           Hoje, diante das modificações da sociedade, da economia e do direito, é notável a proteção que se dá à dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época de reconhecimento da proteção ao meio ambiente como valor fundamental.

           Da concepção jusnaturalista, tendo seu apogeu no séc. XVIII, remanesce a constatação de que a ordem constitucional parte do pressuposto de ser, do homem, em virtude de sua condição humana; homem este titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes, posto que, a dignidade da pessoa humana permanece a ocupar lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, sendo valor fundamental da ordem jurídica, pelo menos para as ordens constitucionais que nutrem a pretensão de constituírem um Estado Democrático de Direito.

           Destarte e por se tratar de conceitos de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade, há uma grande dificuldade de conceituação da expressão "dignidade da pessoa humana", sendo mais fácil dizer o que a dignidade não é do que expressar o que ela significa.

           Apesar dessa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência tentam estabelecer alguns contornos basilares para sua conceituação e, também, para uma possível concretização de seu conteúdo, ainda que não se possa falar aqui de uma definição genérica e abstrata consensualmente aceita.

           Cumpre salientar, desde já, que o conceito da dignidade da pessoa humana está em permanente processo de construção e desenvolvimento, pois se trata de categoria axiológica aberta, ainda mais devido à existência de pluralismo e diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas.

           Portanto, consoante ZIPELLIUS, "o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais." 4

           A dignidade, por ser, e nisso não há dúvida e nem divergência por parte dos estudiosos, é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, já que a mesma é irrenunciável e inalienável; sendo esta o elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. Advém daí a exigência de seu reconhecimento, respeito, promoção e proteção, não podendo, assim, ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Portanto, a dignidade, evidentemente, não existe só onde é reconhecida, positivada, já que constitui dado prévio, sendo valor próprio da natureza do ser humano.

           Ainda em relação à matriz Kantiana, pode-se observar sua influência no preceituado do art. 1º da Declaração Universal da Onu (1948), segundo o qual "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade"; fica evidente, desta leitura, que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar centrando-se na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).

           O ilustre constitucionalista lusitano, CANOTILHO, compartilha da idéia acima exposta, referindo-se que "o principio material que subjaz à noção de dignidade da pessoa humana consubstancia-se no principio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna da dignitas-hominis, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida, segundo o seu próprio projeto espiritual"5, ou seja, a liberdade, aqui defendida, significa a capacidade potencial que cada ser humano tem de auto determinar sua conduta.

           Diante das considerações feitas ao longo deste breve intróito, fica evidenciada a intrínseca ligação entre as noções de liberdade e dignidade, isso porque a liberdade e o reconhecimento, bem como a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais em geral), constituem uma das principais (senão a principal) exigências da dignidade da pessoa humana.

           Assim, a idéia de dignidade da pessoa humana, é algo que deve se concretizar histórico-culturalmente, e segundo BENDA, "para que a noção de dignidade não se desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana".6

           Ainda na tentativa de se estabelecer uma noção a respeito da dignidade da pessoa humana é importante destacar que os autores se referem a ela como sendo, (e isso decorrente da expressão da autonomia da pessoa humana, ligada à idéia de autodeterminação em relação às decisões a respeito de sua existência) simultaneamente, limite e tarefa dos poderes estatais, não só deles, na verdade, apontando esta condição dúplice para uma simultânea dimensão defensiva e prestacional da dignidade.

           A dimensão tarefa do principio resulta na imposição ao Estado, e também à comunidade, de preservar a dignidade existente, promovendo e criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da mesma. Pois bem, é nesse sentido que o entendimento de Frank MODERNE dispondo que "além da concepção ontológica da dignidade (como qualidade inerente ao ser humano) deve-se considerar uma visão de caráter mais instrumental, traduzida pela noção de uma igual dignidade de todas as pessoas, fundada na participação ativa de todos, partindo-se da necessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa para liberdades indispensáveis ao nosso tempo".7

           Portanto, o principio da dignidade como tarefa, impõe como obrigação do Estado a função de promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de obstáculos que estejam impedindo pessoas de viverem com dignidade; assim, impõe a promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos.

           Em relação à dimensão limite da dignidade da pessoa humana, e no âmbito de uma perspectiva intersubjetiva, destaca Gonçalves LOUREIRO que "a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao florescimento humano".8

           Impõe-se, portanto, seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, a fim de que haja consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade para com todos os seres humanos.

           Os limites impostos, pelo princípio ora estudado, à atuação do poder público, objetivam impedir uma possível violação da dignidade pessoal, resultando num comando ao Estado, qual seja, de ter como meta constante o dever de respeito e proteção. Disso resulta que todos os órgãos, funções e atividades estatais ficam vinculados ao principio da dignidade da pessoa humana, devendo todos um respeito e proteção, explicitados na obrigação de abstenção, por parte do Estado, de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, e de proteção desta contra possíveis agressões oriundas de terceiros.

           Importante, também, é que haja uma maior consciência por parte das entidades privadas e dos particulares, pois se encontram diretamente vinculados a esse principio, posto que este também vincula as relações existentes entre os particulares. Assim sendo, ressalta-se que a eficácia dos direitos fundamentais nessas relações tem encontrado fundamento justamente no principio da dignidade da pessoa humana.

           Ainda, cumpre salientar que relativamente ao âmbito da hierarquização de valores, tem-se aqui a dignidade como limite. Caso haja conflito entre princípios constitucionais, o princípio da dignidade justifica a imposição de restrições (utilizando-se do principio da proporcionalidade) a outros bens protegidos constitucionalmente.

           A dupla função defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana, portanto, refere-se tanto aos direitos de defesa, quanto às prestações fáticas ou jurídicas que correspondem às exigências e constituem concretizações da dignidade da pessoa humana; assim, são estipuladas, simultaneamente, obrigações de respeito e consideração, e, também, deveres em face da sua promoção e proteção.

           Por apresentar, cada sociedade civilizada, padrões e convenções próprios a respeito do que constitui a dignidade, haveria conflitos, caso houvesse a estipulação de um conceito de dignidade como universal, ainda que isso fosse possível. Assim, por mostrar-se mais coeso e completo, guardando relação com o que foi disposto nestas linhas, utilizaremos o conceito apresentado pelo professor Ingo SARLET, sobre a dignidade da pessoa humana, a saber: "é a qualidade intrínseca e distintiva da cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alem de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos."9

           1.3 Dignidade da pessoa humana como norma fundamental para a ordem jurídico-constitucional.

           A Constituição Federal de 1988, (art. 1º, III, bem como o art. 60, § 4º, inciso III) ao dispor sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais, como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano, não constituindo este meio da mesma atividade. Entretanto, o Constituinte considerou-a de maneira concreta e individualmente, e, como salienta J. MIRANDA 10, relembrando, assim, a idéia de Kant, de que a dignidade constitui atributo da pessoa individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, chama atenção, o doutrinador, de que não se deve confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo.

           É importante ressaltar que a positivação da dignidade da pessoa humana é recente, considerando as origens remotas a que se podem ser reconduzidas a noção de dignidade, pois foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial, principalmente após a Declaração Universal da ONU, em 1948, ressalvadas algumas exceções (como a Lei Fundamental Alemã de 1919, a

           Portuguesa de 1933, da Irlanda de 1937), que a mesma passou a ser expressamente reconhecida nas Constituições dos países ocidentais.

           Sendo reconhecida pelo ordenamento jurídico estatal, a dignidade da pessoa humana passou a integrar o direito positivo (sistema de normas integrado por regras e por princípios expressos e implícitos, ambas as categorias impregnadas de valores), e analisando-se seu status jurídico-normativo no âmbito de nosso ordenamento constitucional, o que se percebe é que o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol de direitos e garantias fundamentais, mas sim, colocou-a na condição de principio jurídico-constitucional fundamental. Os princípios fundamentais, ou estruturantes, pois são aqueles que expressam as decisões fundamentais do constituinte no que diz a estrutura básica do Estado e as idéias e os valores fundamentais triunfantes na Assembléia Constituinte.

           Por ser a dignidade da pessoa humana principio que embasa e ampara os direitos fundamentais, uma vez que, no dispositivo constitucional no qual se encontra há, além do enquadramento de uma norma como principio fundamental, uma norma como definidora de direitos e garantias fundamentais, não há como se falar em direito fundamental à dignidade, embora existam algumas referências a esse respeito. E por ser qualidade intrínseca da pessoa humana, ou seja, não é concedida e nem pode ser retirada pelo ordenamento jurídico, quando se fala em direito à dignidade o que se está realmente querendo considerar é o direito ao reconhecimento, respeito, proteção, promoção e desenvolvimento da dignidade.

           A dignidade da pessoa humana como principio fundamental, e, também, norma jurídico-positiva, (carregada de eficácia, alcançando a condição de valor jurídico fundamental de nossa comunidade) é um valor que não se restringe a guiar os direitos fundamentais, mas sim, rege toda a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional. Ressalta-se, ainda, que o referido princípio é de grande valia para a interpretação constitucional em face às normas constitucionais apresentarem caráter aberto e amplo, (principalmente aquelas atinentes aos direitos fundamentais), pois sua utilização como premissa da argumentação jurídica torna o procedimento da interpretação constitucional racional e controlável.

           Importante reconhecer-se que mesmo prevalecendo o principio da dignidade humana sobre todos os demais princípios e regras, - e aqui é importante destacar a noção de princípios suprapositivos ou extra-sistêmicos, que se referem a princípios cuja origem está além do sistema de direito positivo, enquadrando-se aí o principio da dignidade humana vez que a dignidade não existe só onde é reconhecida, positivada, já que constitui dado prévio, sendo valor próprio da natureza do ser humano, idéia também defendida por Otto BACHOF, na sua tese da "norma constitucional inconstitucional", deverá existir uma convivência harmônica do princípio em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos.

           Faz-se mister algumas reflexões acerca de quais sejam as condições necessárias e suficientes para que se possa dizer que um ser é pessoa - sujeito de direto - dotada de personalidade e passível, portanto, da atribuição da dignidade.

           A reflexão parte do pressuposto de que a definição de homem como ser dotado de direitos é uma conquista histórica, e, portanto, não é uma condição atemporal e absoluta.

           Segundo Tércio SAMPAIO, "a personificação do homem foi uma resposta cristã à distinção, na Antigüidade, entre cidadãos e escravos. Com a expressão pessoa, obteve-se a extensão moral do caráter do ser humano a todos os homens, considerando-os iguais perante Deus". 11

           Ademais, acrescenta a autora que a construção do conceito moderno de sujeito tem grande impulso a partir da noção de indivíduo, cunhada no medievo. E para tanto é necessária a análise de três concepções acerca do tema.

           Para Tomas HOBBES – em sua obra, Leviatã, a pessoa é definida pela sua função, pelo seu papel social. Aqui, podemos observar um forte resquício medieval, pois na Idade Média, a atribuição da personalidade e, portanto, da condição de sujeito de direito, dá-se em função de um status, de um papel desempenhado no seio da sociedade. È o que, modernamente, SINGLY denomina de "identidade estatutária". Todavia, alerta a autora que esse tipo de concepção atenta à dignidade da pessoa ao passo que impede o homem de se desenvolver na sua plenitude, pois sua identidade pessoal é substituída pela identidade estatutária. A dignidade é entendida como correspondência ao status social.

           Já para DESCARTES – a partir da máxima "penso, logo existo", o homem passa a ser sujeito do conhecimento (res cogitans), e o mundo, o seu objeto (res extensa). O pensante passa a ser medida de todas as coisas.

           Entretanto, na visão de KANT, o sujeito moderno torna-se inexoravelmente um sujeito moral. Para este autor o ser humano é dotado de dignidade enquanto tal, ou seja, enquanto ser humano, independentemente de sua identidade estatuária. Para Kant nada é bom em si mesmo, exceto a boa vontade. Em razão disso, a análise da moralidade de um ato está centrada na vontade do agente. O sujeito moral Kantiano dá a si suas próprias leis, somente a "liberdade do uso autônomo da própria razão", é que pode conduzir os homens à maioridade.

           Para KANT, no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade, todavia, quando uma coisa não permite equivalente ela tem dignidade. A dignidade humana repousa sobre a autonomia e deve ser atribuída a todos agentes morais, dotados, portanto, de razão prática.

           Atualmente, a concepção de Kant gera inúmeras controvérsias entre os filósofos. Os defensores dos animais e do meio ambiente sustentam que a crença na dignidade humana tem origem religiosa e não raciais, e a subordinação das outras espécies à espécie humana é um tipo de racismo, denominado de especismo.

           A noção kantiana de dignidade ganhou acolhida na lei fundamental alemã. O artigo 1° da Lei Fundamental tem a seguinte redação: "A dignidade do homem é inviolável".

           No Brasil, a Constituição de 1988 (art. 1º, III) assevera que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República. Ela serve de fundamento para todo o ordenamento jurídico. Na ótica de Ferreira dos SANTOS12, além da dignidade ser tomada como princípio, deve ser, também, tomada como paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro.

           O critério de Kant, onde a razão prática é condição necessária para a atribuição de dignidade, modernamente, sofre um desfalque, pois a racionalidade não pode ser mais usada como critério. Todavia, ainda não se conseguiu chegar a um critério que conduza com segurança a afirmar quem pode receber o qualificativo de pessoa, e, portanto, ser titular da dignidade.

           Alguns estudos mostram como critério a memória, outros mostram como critério a alteratividade - o reconhecimento do outro - como caminho para o reconhecimento da pessoa.

           Todavia, conclui a autora que a dignidade do homem reside no fato de ele ser indefinível, O homem é como é, porque reconhece essa dignidade em si mesmo e nos outros homens.

           Cunhando a lição de que a dignidade da pessoa humana pressupõe um conceito fundamental de direito civil, na concepção de MESSINETTI 13, a teoria das pessoas tem a sua origem histórica na luta pela garantia da liberdade individual, onde ninguém pode depender integralmente do arbítrio subjetivo de outrem. Nessa mesma seara afirma LAFER que "a passagem do Estado absolutista para o estado de Direito transita pela preocupação do individualismo em estabelecer limites aos abusos do todo em relação ao indivíduo". 14 E

           KANT construirá o conceito de sujeito de direito, que "é sempre o homem".

           Foi essa concepção liberal-individualista que possibilitou o surgimento dos direitos humanos individuais de garantia.

           Afirma HATTENHAUER que "o homem é o sujeito da norma jurídica e, conseqüentemente, o único objeto da teoria da pessoa".15 É por isso que, para MESSINETTI, pessoa "não é um valor universal radicado na essência racional do homem, antes um valor real e objetivo, historicamente condicionado, de um determinado ordenamento positivo". 16

           Indelevelmente ligados ao ser humano, os limites da pessoalidade são, portanto, o nascimento e a morte.

           Já OPPETIT afirma que "sem ser estritamente sinônimo de pessoa, o corpo é, no entanto, considerado como suporte da personalidade do indivíduo". 17Assim, os loucos são considerados pessoas, embora no uso de suas razões sejam prejudicados.

           Contemporaneamente, só o homem que vive em sociedade é dotado de direitos e deveres, de acordo com a submissão do conceito de pessoas ao de sujeito de direito.

           AUBRY e RAU já preconizavam a visão de patrimônio como corolário da personalidade, e não da pessoalidade, como seria correto. (patrimônio, aqui, é qualquer objeto sobre o qual o homem possa ter direito a exercer). O patrimônio sendo, em sua mais alta expressão, a personalidade mesma do homem, considerada em suas relações com os objetos exteriores sobre os quais ele pode ou poderá ter direito a exercer. É o que exprime a expressão alemã Vermogen, que significa, ao mesmo tempo, ‘poder’ e ‘patrimônio’. 18

           Todavia, tal ponto de vista não pôde sobreviver à emergência social do final do século XIX.

           Como proteção do indivíduo diante do nivelamento social da democracia de massas, ganha relevância, no cenário jurídico, a proteção da intimidade. Sai de cena a teoria das pessoas e começa a emergir a teoria da personalidade.

           Para HATTENHAUER, o direito da personalidade é "aquele que garante ao seu sujeito o domínio sobre um setor da própria esfera da personalidade. Com esse nome designam-se os ‘direitos da própria pessoa’". 19

           Já os direitos da personalidade, na ótica do filósofo e jornalista Olavo de CARVALHO, possuem três aspectos: essencialidade, indissolubidade e a ilimitabilidade. 20 Então, para cada um ser considerado pessoa é necessário possuir os direitos da personalidade.

           Para a esfera pública o princípio fundamental é o da igualdade, entretanto, para a seara privada é o da diferença e para a esfera da personalidade vige o princípio da exclusividade.

           O ordenamento jurídico pátrio faz uma grande confusão entre os conceitos de pessoa e personalidade. Teixeira de FREITAS 21 distinguiu capacidade de direito e personalidade, e essa distinção é fundamental, ao passo que a personalidade não admite gradações e a capacidade de direito as admite. O Código de 1916, embora posterior à teoria da personalidade, acabou por não adotá-la, sendo suas características: o patrimonialismo, patriarcalismo e a responsabilização.

           Com o desenvolvimento da teoria da personalidade, um novo campo de demandas de tutela foi surgindo, logo, essas demandas acabaram por alçar a dignidade humana, enquanto princípio-fonte da teia dos direitos da personalidade, à categoria de direito do Homem, ao ser incluída na Declaração Universal dos Direitos do Homem. A partir dessa inclusão, o princípio da dignidade foi positivado em vários ordenamentos jurídicos.

           Os direitos fundamentais são direitos positivos do homem, enquanto liberdades individuais são faculdades que resultam dos direitos fundamentais. O campo de realização desses direitos é, por excelência, o direito civil (porque é direito comum do homem comum).

           Umas séries de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração estão jungidas pela teia formativa da dignidade humana, como é o caso da autonomia privada. Reich relaciona o livre desenvolvimento da personalidade com a liberdade de iniciativa econômica e profissional.

           Na França, a dignidade também é usada com a intenção de combater o totalitarismo. Para Dominique ROSSEAU 22, a dignidade humana é garantidora da precedência da pessoa humana, que deve ser respeitada desde o início da vida, e da integridade e não-patrimonialidade do corpo humano. Com arrêt du lanceur de nains, o acórdão do atirador de anões, da Câmara do Contencioso Administrativo do Conselho de Estado, o princípio da dignidade humana assenta na jurisprudência de todos tribunais superiores franceses. Todavia, paira a dúvida, na doutrina francesa, se a dignidade humana é ou não é direito fundamental.

           A Constituição alçou a dignidade humana ao centro do sistema jurídico, fazendo dela o fundamento da República, dando ensejo, assim, a uma ampla esfera de "direitos civis constitucionais". (Esse termo é impróprio, pois ninguém poderia conceber a idéia de um direito civil inconstitucional, assim, o autor prefere o termo "direito civil constantes do texto constitucional").

           O novo Código Civil, ao contrário do atual Diploma Civilista, dedica-se aos direitos da personalidade, dando-lhes as características de serem intransmissíveis e irrenunciáveis.

           Quanto à questão da disponibilidade do corpo humano, o autor nos aponta que, por muito tempo, tentou-se tornar o corpo humano indisponível por tratar-se de bem fora do comércio, todavia o autor acha isso um absurdo.

           Recentemente, tem-se buscado amparar esse princípio da indisponibilidade do corpo humano na dignidade humana, uma vez que a integridade física é um dos mais importantes desses direitos.

           Todavia, existe a corrente na qual o homem e o corpo são indissociáveis, logo o corpo, enquanto suporte da pessoa, não pode ser considerado propriedade dela. Por isso, a esfera da personalidade é extrapatrimonial, não podendo ser alvo de limitação do Estado, sob pena de ser comprometido o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. Assim, cabe a cada um escolher se vai ou não patrimonializar seu corpo, desde que isso não atinja a terceiros. Por isso, o único tipo de limitação que pode ser dado a esse direito fundamental é o voluntário, advindo daí a inconstitucionalidade do artigo 11, do novo Código Civil. Então, conclui-se que a dignidade humana jamais poderá ser considerada como princípio de indisponibilidade do corpo humano, pois ela garante a liberdade de disposição.

           1.4 Relação da dignidade da pessoa humana com os direitos fundamentais

           Apesar da afirmativa de que a dignidade preexiste ao direito, para que a ordem jurídica seja legítima, ou seja, para a legitimação da atuação do Estado, faz-se necessário que a dignidade seja reconhecida e protegida pelo ordenamento jurídico. Assim são que os direitos e garantias fundamentais, de alguma forma, possam ser reconduzidos à noção de dignidade da pessoa humana, pois todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas em nível social, democrático, cultural, econômico e jurídico.

           O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre relevante papel na arquitetura constitucional, posto que é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, é, assim, valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. O principio da dignidade serve, portanto, como parâmetro para aplicação, interpretação e integração dos direitos fundamentais, mas não só deles e das normas constitucionais, como de todo o ordenamento jurídico. È, assim, um referencial inarredável para a hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico – sistemático23, ou seja, é considerado como principio de maior hierarquia do ordenamento jurídico, ressaltando sua função hermenêutica.

           Vale, ainda, dizer que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana à qual se referem, convivem de forma indissociável, posto que aqueles constituem explicitações e concretização desta; assim, ao menos em principio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, alguma projeção da dignidade da pessoa. Na condição de valor, e principio fundamental, a dignidade da pessoa humana exige e pressupõe o reconhecimento e proteção de todos os direitos fundamentais, pois, do contrário, resultará em negativa da própria dignidade o não reconhecimento à pessoa humana dos direitos fundamentais que lhes são inerentes.

           É, portanto, inquestionável que a liberdade (pois a dignidade possui respaldo na autonomia pessoal, na autonomia que tem o homem de formatar sua própria existência, ser sujeito de direitos; há reconhecimento geral ao livre desenvolvimento da personalidade), a garantia da isonomia de todos os seres humanos, (e aí se vislumbra a proibição de falar-se em tratamentos discriminatórios e arbitrários, não se podendo mais tolerar a discriminação racial, ou por motivos de religião, sexo, etc) e os direitos fundamentais são pressupostos e concretização da dignidade da pessoa.

           Paulo Mota PINTO sustenta que da garantia da dignidade humana decorre o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos, bem como a previsão de instrumentos jurídicos destinados à defesa das refrações essenciais da personalidade humana, e necessidade de proteção desses direitos por parte do Estado; sendo, ainda, para o jurista supra citado, a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento, sendo os corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado. 24

           Além de justificar a fundamentalidade material dos direitos positivados, o principio da dignidade da pessoa humana serve como diretriz material para possibilitar a identificação de direitos implícitos, funcionando, o princípio, como uma cláusula aberta, no sentido de respaldar o surgimento de "direitos novos" não expressos na Constituição de 1988, mas nela implícitos, seja em decorrência do regime e princípios por ela adotados, (inclusive em relação da orientação sexual da pessoa humana e objeto precípuo deste nosso estudo) seja em virtude de tratados internacionais em que o Brasil seja parte; sendo assim, quando se estiver diante de uma posição jurídica diretamente embasada e relacionada à dignidade da pessoa, inequivocamente estaremos diante de uma norma de direito fundamental.

           Nada impede, ainda, que do princípio se possam deduzir autonomamente posições jurídico-subjetivas fundamentais, sem que haja qualquer referência direta a outro direito fundamental.

           Entretanto, ressalva-se aqui, que a expressiva maioria dos juristas referem-se a dignidade da pessoa como fundamento vinculado a determinada norma de direito fundamental, pelo fato dos direitos fundamentais serem exigências e concretizações em maior ou menor grau da dignidade da pessoa.

           Diante da forte relação existente entre a dignidade e os direitos fundamentais (posto que aquela assume função de elemento e medida destes), a violação de um direito fundamental importará em ofensa à dignidade da pessoa. Defendem a maior parte dos doutrinadores que diante de um caso concreto, deve-se buscar primeiro verificar a existência de uma ofensa a determinado direito fundamental em espécie, para, assim, se reduzir a margem de arbítrio do interprete, pois mostra-se explícito o conteúdo do principio da dignidade da pessoa humana naquela dimensão especifica. Entretanto, outros doutrinadores salientam que uma violação a proteção da dignidade da pessoa humana sempre poderá servir de fundamento para o reconhecimento de um direito subjetivo aqui de cunho defensivo.

           Portanto, a dignidade da pessoa humana serve de fundamento para a proteção da dignidade contra ofensas e ameaças ainda não expressas pelo âmbito de proteção dos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional. Destarte, do principio da dignidade, de fato, podem ser extraídos direitos subjetivos e fundamentais com vistas à sua proteção. Assim sendo, seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo, o que se percebe do ordenamento jurídico é a sua proteção.

           Sendo parte integrante dos direitos fundamentais, o principio da dignidade serve como elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas; todavia, por servir também de justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, acaba atuando como elemento limitador destes. Assim, sempre se poderá afirmar que a dignidade da pessoa atua tanto como limite dos direitos e como limite dos limites (como barreira contra a atividade restritiva dos direitos).

           Há, na doutrina e na jurisprudência, consenso de que nenhuma restrição, em princípio, de direito fundamental poderá se mostrar desproporcional, ou resultar na afetação de seu núcleo essencial, pois do contrário, haveria o esvaziamento do referido direito. Como para alguns doutrinadores o núcleo essencial dos direitos fundamentais é o conteúdo em dignidade da pessoa humana, está, portanto, este, imune às restrições; e, qualquer caso de violação desse núcleo essencial será sempre desproporcional. Não se está sustentando a inviabilidade de impor certas restrições aos direitos fundamentais, desde que reste intacto o núcleo em dignidade destes direitos. É, portanto, desse entendimento que resulta a proteção dos direitos fundamentais, por meio da dignidade da pessoa.

           Mesmo sendo a dignidade um valor supremo do ordenamento jurídico, mesmo diante de sua prevalência no confronto com outros princípios e regras constitucionais, não se pode deixar de reconhecer uma possível relativização deste princípio, v.g. de levar-se em conta que alguém, um juiz, o legislador, irá decidir qual seu conteúdo e se houve, ou não, sua violação no caso concreto. São os exemplos da pena de morte, da tortura, que mostram o quanto são díspares os resultados referentes a este ponto, inclusive quanto ao reconhecimento da dignidade como valor essencial para a ordem jurídica e constitucional.

           Reconhecendo-se o princípio da isonomia como corolário direto da dignidade, permite-se que a própria dignidade individual admite certa relativização, quando justificada na necessidade de proteção da dignidade de terceiros. É necessário compatibilizá-la com outros valores sociais e políticos; e aí está a grande dificuldade, qual seja, encontrar o ponto de equilíbrio do tenso relacionamento entre indivíduo e sociedade. Existem, conforme Jacques MARITAIN25, três maneiras de resolver o problema: (1) priorizar os valores individuais em detrimento do da sociedade (representada pela concepção individualista da burguesia), onde o mesmo encontra seu próprio bem estar e sua própria riqueza; (2) a segunda maneira é o reverso da primeira, onde os valores das sociedades devem prevalecer sobre o indivíduo, pois para a concepção do transpersonalismo o indivíduo encontra-se em função dos interesses da sociedade, e (3) a terceira maneira é onde se visa buscar uma conciliação entre as duas concepções anteriores, que é representada pelo personalismo. Assim, para esta última postura frente ao conflito indivíduo e sociedade, deve-se pretender nem a absolutização do indivíduo, nem absolutização do social, mas sim a compatibilização entre ambas posições, a qual será alcançada caso a caso, mediante ponderação na qual se avaliará o que toca ao indivíduo e o que cabe ao todo.

           Portanto, reconhece-se que a harmonia buscada está mediatizada pelo valor da pessoa humana, na ótica de Miguel REALE, quando "o indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do homem enquanto homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da ‘personalidade’ haverá arbítrio"26. Importante, ainda, ressaltar que na perspectiva personalista identifica-se a concepção de Kant da pessoa como um fim em si mesma, e, portanto, a afirmativa de que o Estado, para a consecução de seus objetivos, não pode aniquilar a pessoa humana.

           Assim, nem o individualismo, nem o coletivismo compreendem o homem em sua integralidade, posto que por natureza, o homem é tanto um ser social como um ser individual.

           Entretanto, a relativização, anteriormente referida, se dá ao principio, e não à dignidade considerada como qualidade inerente a todas as pessoas, que as torna sujeitos de direitos e merecedores de igual respeito e consideração no que diz com sua dignidade humana. Assim, cada restrição à dignidade importa em sua violação, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, e nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade individual, uma vez que esta é considerada como valor absoluto de cada ser humano.

           Neste sentido, Castanheira NEVES defende que:

           "a dimensão pessoal da pessoa humana exige o respeito incondicional de sua dignidade.

           Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. (...) O que o homem é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a beneficio simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a sociedade ou classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente em comunidade e na classe".27

           Winfried BRUGGER28 defende que somente será possível a proteção de modo absoluto a igual dignidade de todas as pessoas enquanto se falar na dignidade como capacidade para a autodeterminação, para o livre desenvolvimento da personalidade.

           A ordem jurídica que consagra a dignidade da pessoa humana como além de sua dimensão jurídico-normativa (principio jurídico-constitucional fundamental), constituindo-a como o reduto intangível de cada (e de todos) indivíduos, ocasionando possíveis violações concretas e reiteradas à dignidade pessoal, jamais encontrará respaldo, posto que essa mesma ordem jurídica impõe ao Estado e aos particulares um dever de respeito e promoção da dignidade de todas as pessoas.

           A preservação da dignidade consistirá, sobretudo, na proibição de condutas que importem em coisificação e instrumentalização do ser humano, devendo ficar imune, a qualquer restrição, a esfera nuclear da existência humana.

           Importante, ainda, referir-se à distinção existente entre o principio jurídico-fundamental da dignidade da pessoa humana (na condição de norma) e o da dignidade da pessoa propriamente dita (valor intrínseco de cada pessoa).

           Apesar de ser consolidado o entendimento de que cada ser humano é merecedor de igual respeito e consideração, no que diz com a sua condição de pessoa, e que sua dignidade não poderá ser violada ou sacrificada, nem mesmo para preservar a dignidade de terceiros, não há como deixar de reconhecer uma certa relativização em nível jurídico-normativo, que decorre da necessidade de se definir qual o âmbito de proteção da norma que consagra a dignidade, dependendo do órgão competente a decisão sobre esta matéria.

           Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, na condição de direito de defesa, não aceita qualquer violação à dignidade pessoal, mesmo em função de outra dignidade, impondo aos órgãos estatais, a missão não só de respeito (no sentido de não violar) e proteção da dignidade de todas as pessoas, mas de promoção e efetivação das condições de vidas dignas para todos.

           Assim sendo, somente haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, não passando o homem, de mero objeto de arbítrio e injustiças, quando a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais forem, além de reconhecidos, assegurados, demonstrando-se verdadeiro respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, assegurando-se, sobretudo, as condições mínimas para uma existência digna.


II PARTE - DIREITO DE FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

           2.1 Introdução

           Sabe-se que a família é a célula básica da sociedade, a célula mater (conforme art. 226, caput, da CF/88). Precede, a família, a organização estatal, sendo uma instituição pré - jurídica, pois surge primeiro e independe de reconhecimento pelo Estado. Portanto, pode-se dizer que a família é uma expressão direta do ser humano, realizando-se de modo autônomo e prioritário em relação ao Estado e ao ordenamento jurídico, afirmando Salvatore PULEO, tratar-se de uma instituição natural.29

           No Código Civil Brasileiro de 1916 a família era transpessoal, hierárquica e patriarcal, a qual se constituía em uma entidade distinta de cada um de seus membros e o seu bem-estar determinava a vida e morte de seus integrantes, era, denominada de sociedade conjugal, consoante Guilherme de OLIVEIRA.30 Entretanto, segundo o mesmo autor, o novo conceito de família está no chamado primado do sentimento nas relações familiares, alterando-se o conceito de família decorrente do reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, entretanto dependente do bem-estar da própria instituição familiar. Com isso, passa, a felicidade da família, a ser o somatório do bem-estar de cada uma dos seus integrantes, da felicidade que cada indivíduo pode proporcionar a cada um de seus membros.

           Esta novidade, de passar a família a ser uma unidade afetiva, e não mais somente econômica, posto que se traduz numa comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias, sendo que a comunhão plena de vida (mencionada no primeiro artigo do livro de direito de família, art. 1.511) privilegia esta concepção e inovação em direito de família, possibilita, de acordo com Maria Berenice DIAS,31 o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

           O empecilho maior está na Constituição Federal, uma vez que, conforme seu art. 226, o casamento pressupõe a heterossexualidade. Assim, somente por emenda constitucional poder-se-ia fazer uma leitura diversa do caput e parágrafos do referido artigo. Assim, tem-se inviável a intenção de que o Novo Código Civil instaurasse as denominadas "famílias monoafetivas", pois, além de o tema ser complexo e estar sendo discutido pela sociedade brasileira, a técnica jurídica proíbe que o Código se rebele contra o que estabelece a Carta Magna.

           Salienta-se que por ser a família base da sociedade, mesmo diante da afirmação de que resulta da união entre homem e mulher, esta não afasta a realidade de uma nova instituição, por força dos novos tempos e de novas demandas, com formas diferenciadas.

           É o que se percebe, por exemplo, na chamada família monoparental, demonstrando a família mais restrita, nuclear, ou seja, é a família apenas com um dos progenitores com os filhos, na qual a criança é mantida e educada por somente um dos genitores. Ressalta-se, ainda, que essas modificações na área da família são acompanhadas pelo fenômeno crescente da chamada união estável, que, embora receba proteção idêntica à da família instituída pelo regime do casamento, não pode ser confundida com ela, guardando peculiaridades em sua formação e em seu status jurídico.

           A elevação da união estável ao âmbito constitucional vem a firmar o rompimento com a família do Código Civil de 1916, constituindo uma família que decorre tão-só da convivência entre os companheiros. Entretanto, ainda que nivelada ao casamento, a união estável com ele não se confunde em absoluto, uma vez que o termo equiparar utilizado pela Constituição não significa igualar, mas, sim, atribuir nível idêntico de proteção, não implicando uma igualdade substancial entre os dois institutos, que são intrinsecamente diversos.

           É o casamento o grande paradigma entre a união estável e a família, sendo ato jurídico solene protegido pelo ordenamento jurídico de maneira prioritária, pois somente ele proporciona absoluta segurança para as relações patrimoniais, ou não, que inaugura. Com o intuito de disseminar o vínculo do casamento, a Constituição Federal admite, em seu art. 226, §2º, que o casamento religioso gere efeitos civis, e ainda, em seu parágrafo 3º, determina a facilitação, pela lei ordinária, da conversão da união estável em casamento.

           Tentam os juristas, com pouco sucesso, organizar o fenômeno social e pessoal dos relacionamentos humanos através de leis, estatutos, normas, promovendo verdadeiro processo de perda de referencias comuns de valores e critérios de interpretação. Assim, necessário faz-se à observância da Constituição como norma fundamental do sistema, da qual emanam os valores e princípios fundamentais.

           E, dentre os princípios consagrados na Carta Magna está o da dignidade da pessoa humana, o qual integra o próprio espírito da Carta Maior. Salientando-se que a proteção do direito de família, pela Lei Fundamental pátria é justamente no sentido de garantir que a família seja um espaço para a promoção, resguardo e efetivação da dignidade de cada um dos integrantes do grupo familiar.

           Assim sendo, de acordo com Pietro PERLINGIERI32, a chamada função serviente da família, reconhecendo-se o primado da pessoa, pondo-se a família como instrumento e espaço para a realização da dignidade, seja no relacionamento entre os cônjuges, seja na formação da personalidade dos filhos, etc. Portanto, a família é posta como instrumento de proteção da dignidade humana, devendo ser esse entendimento utilizado para a leitura de todos os institutos típicos do direito de família, exercendo função ressistematizadora de todo o ordenamento, vinculando disposições esparsas ou desconexas sobre a família.

           Com a abertura do sistema de direito privado a valores constitucionais e metajurídicos informadores do sistema, haverá a garantia de eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é necessária a adoção de cláusulas gerais, como a constante no Novo Código Civil, para a operacionalização da prática acima referida.

           Diante da multiplicidade dos textos legais, cada qual com sua própria racionalidade e fundamentos, evidencia-se a ausência de um nexo que reúna todos estes diplomas e lhe empreste a coerência de um sistema. Assim, servem os valores como verdadeiros elos da corrente que compõe o ordenamento jurídico, apesar de muitas vezes, diante da amplidão dos valores, como o principio da dignidade da pessoa, são insuficientes para propiciar a regulamentação coordenada dos comportamentos sociais.

           O direito de família necessita, na ótica de Clóvis do Couto e SILVA, de uma "unidade valorativa e conceitual, de um núcleo valorativo e uma técnica comum que opere as ligações sistemáticas entre a Constituição, o Código Civil e as leis especiais." 32

           No Código Civil de 1916 essa unidade era realizada pelo conceito de poder marital, assim, era o poder do marido sobre a família que exercia a unidade do sistema legal. Entretanto, o princípio da igualdade substancial determinou o fim deste modelo de poder marital absoluto, gerando uma nova concepção da família, a qual é composta por pessoas, e são estas, e todas estas, que merecem a atenção da ordem jurídica.

           Buscam-se, hoje, elementos viabilizadores de uma nova concepção de direito de família, através da organização de um sistema aberto, orgânico e coeso, informado por valores comuns.

           O tão preconizado Estado Democrático de Direito, com fundamento no art 1º da Constituição Federal de 1988, tem por fim, além de outros anseios, assegurar a realização e respeito dos direitos e liberdades fundamentais inseridos naqueles, os direitos humanos.

           No intuito de proteger tudo que condiciona a vida humana, mostra-se crescente a positivação dos direitos humanos em nível constitucional, através da conversão dos direitos fundamentais em direitos humanos difusos e integrais. Para a outorga de efetividade a estes direitos humanos, consubstanciados no princípio da dignidade humana cumulado com os direitos e garantias individuais (art.1º, III, c/c art. 60, § 4º, III, ambos da Constituição Federal de 1988), apresentam-se como seus grandes pilares dois princípios constitucionais muito em voga nos dias atuais: os princípios da liberdade e da igualdade.

           Consagrado pelo texto constitucional, de acordo com o art. 3º, IV, o direito à identidade sexual, como direito humano fundamental, tem-se, portanto, ser também o direito a homoafetividade um direito humano fundamental.

           Para melhor compreensão do tema, necessário analisar-se a definição apresentada por Roger Raupp RIOS, no intuito de defender o direito a homoafetividade, sobre a orientação sexual.

           Assim, explica o autor ser a orientação sexual:

           "a afirmação de uma identidade pessoal cuja atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo sexo (homossexualismo), sexo oposto (heterossexualismo), ambos os sexos (bissexuais) ou a ninguém (abstinência sexual). Sendo assim, quando alguém opta por outrem para manter vínculo afetivo, identifica o gênero da pessoa com quem deseja se relacionar, revelando sua orientação sexual; opção essa que não pode sofrer tratamento diferenciado" (Direitos Fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, dez. 1998, nº 6, p.29).

           Em face dessa direção do desejo ou da conduta sexuais que identificam os denominados "homossexuais", estes indivíduos sofrem, desde sempre, tratamento desfavorável, sendo discriminados, pelo simples fato de sua orientação sexual não estar condizente com que a sociedade moderna (?) visa a alcançar como satisfativo no que tange a conduta e a escolha sexual de cada um.

           Importante lembrar, brevemente, que existiram certas concepções a respeito da homossexualidade; teve-se, primeiramente, a homossexualidade como pecado, prevalente na doutrina cristã, para a qual a atividade sexual se restringiria a reprodução, (conclui-se, portanto, que a homossexualidade contraria à moral cristã), e posteriormente, os atos homossexuais passaram a ser vistos como sintomas de uma doença, tendo, para alguns estudiosos, sua raiz em patologias físicas, e, para outros, como Freud, em fenômenos psíquicos (o que não mais se sustenta hoje em dia, posto que o exame nas principais obras científicas médicas e psicológicas a homossexualidade não mais é tida assim).

           Com os movimentos sociais, contrários a toda as formas de preconceitos, na defesa dos direitos de homossexuais, propondo desde já a abolição das diferenciações sexuais intrínsecas às categorias hetero/homossexual, o fim da dominação de um sexo pelo outro e da imposição de quaisquer padrões morais ante as diversas formas de expressão sexual, houve o enfraquecimento, ainda que tímido, de alguns preconceitos acerca da homossexualidade, principalmente quanto a sua vinculação com a concepção de pecado e de doença.

           Pois bem, o que se percebe é uma evolução da sociedade, na qual a escolha sexual torna-se um elemento da escolha de estilo de vida, impondo-se, assim, a abolição do binômio homossexual/heterossexual na identificação dos sujeitos, para a superação da exclusão e discriminação dos indivíduos em função de suas preferências sexuais.

           Sustenta-se, entretanto, a desconsideração da orientação sexual enquanto critério capaz de legitimar tratamentos desiguais, importantes para a concretização do princípio jurídico da igualdade, sendo necessária para a plenitude da cidadania por homossexuais.

           O direito de igualdade (princípio jurídico constitucionalmente vigente), como direito fundamental que é, demonstra a necessidade de sua concretização diante das diversas situações fáticas e jurídicas.

           No direito brasileiro, o princípio da igualdade, como é sabido, apresenta dupla dimensão: a formal e a material.

           A igualdade jurídica formal é a igualdade diante da lei (art. 3º, I, CF/88) a qual decorre imediatamente do princípio da primazia da lei no Estado de Direito - independentemente das peculiares circunstâncias de cada situação concreta e da situação pessoal dos destinatários da norma jurídica. Revela-se na aplicação absolutamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e as semelhanças verificáveis entre os sujeitos e as situações envolvidas.

           O princípio da igualdade formal objetiva visa a superação das desigualdades entre as pessoas, exigindo, portanto, que se reconheça em todos, independentemente da orientação homo ou heterossexual, a qualidade de sujeito de direito. Sua concretização, entretanto, é desafiada pelas discriminações em virtude da orientação sexual, e para implementá-lo foram positivados critérios proibitivos de diferenciações, cujo rol tem sua sede principal no art. 3º, inciso IV, da Carta Magna.

           Portanto, tem-se, assim, que a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem dirige, a outra, o seu envolvimento sexual.

           Entretanto, apesar do princípio da igualdade formal vedar a diferenciação e estabelecer a equiparação entre heterossexualidade e homossexualidade nas questões jurídicas, em determinadas hipóteses será necessário estabelecer certas distinções, e é aí que podemos vislumbrar o princípio da igualdade em sentido material.

           É a igualdade na lei, ou seja, a igualdade material, que exige a igualdade de tratamento dos casos iguais, bem como a diferenciação em face de hipóteses distintas. Entretanto, somente diante de uma razão suficiente para a justificação do tratamento desigual é que não haverá violação a este princípio, sendo a suficiência e a não suficiência da motivação um problema de valoração.

           Inexistirá, assim, razão suficiente sempre que não for alcançada fundamentação racional para a instituição da diferenciação, impondo-se uma carga de argumentação para que se justifiquem tratamentos desiguais. Num regime democrático, orientado pela idéia de Estado Democrático de Direito, estas valorações estão abertas para o legislador, sendo lícita a opção por tratamento desigual sempre que, em virtude de razões desta monta, o tratamento desigual não se revelar arbitrário.

           Dessa forma, a garantia do direito de igualdade dá-se mediante a imposição de um ônus de argumentação e de prova, por conta de quem afirmar a desigualdade e reivindicar um tratamento desigual, sendo necessário que toda diferenciação tenha fundamento racional, pois quando inexistente, surge o juízo arbitrário na fundamentação da desigualdade estabelecida, donde decorre a inconstitucionalidade do discrímen. Salienta-se, ainda, que diante do estágio do conhecimento humano que hoje compartilhamos, desautoriza-se o juízo discriminatório baseado exclusivamente nos critérios da orientação sexual sob pena de revelar-se em puro preconceito.

           Em cada uma das questões onde surgir a indagação sobre a possibilidade da equiparação ou da diferenciação em função da orientação sexual, é de rigor a igualdade de tratamento, a não ser que fundamentos racionais possam demonstrar suficientemente a necessidade de tratamento desigual, cujo ônus de argumentação, repita-se, cumpre ao que reivindicar o tratamento desigual.

           É, portanto, diante do princípio constitucional da igualdade, conforme art. 3º, IV; art. 5º, I e art. 7º, XXX, todos do texto constitucional, que se proíbe qualquer desigualdade em razão do sexo, ou melhor, em razão da orientação sexual do ser humano, cuja liberdade nasce da separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função procriativa. Todos seres humanos dispõem, assim, de liberdade de escolha; mas, se recebe, devido à escolha feita por alguém do mesmo sexo, o repúdio social, está sendo discriminado em função de sua orientação sexual, evidenciando-se numa clara discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade sexual. Portanto, o direito à opção sexual é um direito que goza de proteção constitucional, em face da vedação de discriminação por motivo de sexo.

           A garantia do livre exercício da sexualidade relaciona-se com os postulados da liberdade individual, da igualdade social e da solidariedade humana, sendo necessário que as relações homossexuais não sejam excluídas do mundo do Direito, para a possível contraposição à intolerância social, aos preconceitos.

           Conclui-se, assim, que a inclusão das relações homossexuais no rol dos direitos humanos fundamentais, (como expressão de um direito subjetivo individual, categorial e difuso), impõe-se não só em face do princípio da isonomia, como também da liberdade de expressão (exercício da liberdade individual), do respeito aos direitos de personalidade, no que diz com a identidade pessoal e a integridade psíquica e física, e da necessidade de segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (base jurídica para construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo). Salienta-se, ainda, o respeito ao princípio da dignidade humana, regra maior da Constituição Federal de 1988, a qual dota os princípios da igualdade e isonomia de potencialidade transformadora na configuração das relações jurídicas, sendo invocáveis como fonte de disciplina destas, quando não existirem normas ordinárias a respeito do fato em consideração.

           No que se refere à homossexualidade e o direito de família, cumpre salientar que as concepções tradicionais do conceito de família contêm, a partir da segunda metade do século XX, em virtude das transformações que desde então se verificam na realidade social e na evolução do direito, espaço para a consideração das uniões de pessoas do mesmo sexo.

           Diversas inovações legislativas foram enfraquecendo o modelo institucional hierárquico e patriarcal, como a compreensão do divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. Surge, a partir da década de oitenta, a configuração da chamada "família pós-moderna", que se caracteriza pelo predomínio da individualidade de cada um de seus membros sobre a comunidade familiar.

           Importante, ainda, para defender-se as relações homossexuais como entidades familiares, demonstrar uma, e a que no caso em tela nos interessa, das mais profundas modificações pelas quais passou o Direito de Família com a Constituição Federal de 1988: a outorga de proteção constitucional à família, independentemente da celebração do casamento, resultando na inserção de um novo conceito, qual seja, o de entidade familiar, conforme art. 226, §3º, o qual alberga tanto a união estável de uma mulher com um homem, como as relações de um dos ascendentes com sua prole.

           Assim, o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional existente até então. E em virtude desta nova disciplina constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social exige, sem a rigidez de um modelo único que desconhece a pluralidade de estilos de vida e de crenças que caracteriza os nossos dias. Do exposto, a atualização do direito de família requer não só a superação do paradigma da família institucional, mas também o reconhecimento de novos valores e das novas formas de convívio das formações familiares contemporâneas, que alcançam a família pós-moderna.

           Contudo, apesar de resultar em mudanças de conceitos, o disposto no art. 226, §3º da Constituição Federal de 1988, ao impor, a fim de proteção constitucional, a diferenciação de sexos do casal, apresenta-se como norma discriminatória, vez que contraria o princípio da igualdade, (o qual veda a diferenciação das pessoas em razão de seu sexo), pois ignora a existência de uniões formadas por pessoas do mesmo sexo.

           Infelizmente, apesar de a Carta Magna contemplar, explicitamente, três espécies de família, quais sejam, a família derivada do casamento ("a família legítima"), a família decorrente da união estável e a família monoparental, dificulta o reconhecimento das uniões homossexuais no âmbito do direito de família, uma vez que se torna questionável a possibilidade de se subsumir a uma delas as uniões em questão.

           Mostra-se a norma do art. 226, §3º, da Carta Maior inconstitucional, conforme sustenta Otto BACHOF, (apud Maria Berenice Dias. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 80, 2001) por apresentar-se discriminatória, posto que nem o matrimônio, nem a diferenciação dos sexos ou capacidade procriativa, servem de elementos identificadores da família; deve, assim, ser banida do ordenamento jurídico-constitucional, para que prevaleça o princípio da igualdade e da liberdade individual. Ainda referindo-se ao dispositivo, Anna Maria LAYDNER Gaudie LEY, sustenta que "repugna ao princípio constitucional da igualdade sejam regulados os aspectos materiais do relacionamento afetivo heterossexual e não o sejam os do relacionamento afetivo homossexual" (Idem anterior p.82), por saber-se que o princípio da igualdade não se resume ao enunciado básico de que todos são iguais perante a lei.

           Fica evidente, assim, que a Constituição Federal de 1988, por absoluto preconceito ético, limitou-se, em seu artigo 226, §3º, a emprestar juridicidade às relações heterossexuais, configurando verdadeira afronta aos princípios da dignidade humana, liberdade e da igualdade, verdadeiros dogmas do Estado Democrático de Direito. Entretanto, é de extrema importância ter-se sempre em mente que a Constituição Federal, antes e acima de tudo, apresenta-se como um conjunto de princípios. E, diante deste enfoque dado a Carta Maior, resulta a necessidade de as próprias normas constitucionais se afeiçoarem aos princípios.

           Reconhece-se, frente ao acima exposto, a possibilidade de existência de normas constitucionais inválidas ou ineficazes, uma vez que, e segundo entendimento de jurista lusitano Gomes CANOTILHO, (Idem anterior p.84), a possibilidade da existência de contradições transcendentes entre o direito constitucional positivo e os valores, diretrizes ou critérios materialmente informadores da modelação do direito positivo. Dessa maneira, mostrando-se as normas constitucionais contrárias a um princípio constitucional, serão elas carecedoras de legitimidade, tendo, diante disso, o princípio da dignidade da pessoa humana, o condão de subtrair a eficácia de qualquer regra que o infirme, ainda que ela se encontre no bojo da própria constituição.

           Salienta-se, mais uma vez, silenciosa a nossa tão exaltada Constituição Federal de 1988, e, ainda, omissas as demais leis infraconstitucionais no tocante às relações homossexuais, resultando na inexistência de proteção legal a essas uniões, importando em verdadeiras violações aos direitos humanos. Ficam, assim, os indivíduos que se encontram nessa situação, à margem da própria cidadania, o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito. Não é demais, portanto, lembrar que a omissão legal não pode resultar numa negativa de direitos a vínculos homoafetivos, em respeito à dignidade humana.

           Se inconstitucional, inválida ou ineficaz a ressalva feita pelo art. 226, §3º da Carta Magna, assim também é a igual restrição repetida na legislação infraconstitucional, com as Leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96, que regulamentam a referida norma constitucional. Assim, podem e devem ser aplicadas, por analogia, as leis reguladoras do relacionamento entre um homem e uma mulher, às relações homossexuais, que constituem uma unidade familiar que em nada se diferencia da união estável.

           É sabido, mas nunca é demais ressaltar, que o Direito deve acompanhar o momento social, pois a sociedade está em constante transformação. Não pode o Direito ficar à espera da lei, estanque ao fato concreto. Assim, o fato social antecipa-se ao jurídico, e a jurisprudência antecede a lei. Ainda que a sociedade se mostre resistente em não aceitar a nova realidade, ainda que haja conflitos e persistam objeções morais, religiosas e posturas discriminatórias, tais situações não devem inibir o juiz de solver as lides que lhe são trazidas a julgamento.

           Na ausência de normas para a solução de conflitos, precisará, o magistrado, buscar respostas em relações jurídicas outras, cujas circunstâncias de fato guardem similitude com a situação posta em julgamento. O juiz, portanto, diante do silêncio constitucional e a omissão legiferante, não pode negar, entretanto, efeitos jurídicos a tais vínculos; deverá, sim, subsidiar-se da analogia, estabelecida no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916, buscando uma aproximação entre os institutos normatizados (união estável e o casamento - relações que têm o afeto por causa) e a situação que se encontra desamparada, reconhecendo a existência de uma entidade familiar, bem como nos princípios amplamente aqui veiculados.

           Fica evidente que se abstraindo o sexo dos conviventes, não há nenhuma diferença entre as relações homossexuais e heterossexuais, pois, em ambos, o vínculo se origina no afeto, existindo identidade de propósitos, qual seja, a concretização do ideal de felicidade de cada um. Havendo, assim, vínculo afetivo entre duas pessoas, e mantendo elas uma relação duradoura, pública e contínua, forma-se um núcleo familiar, uma vez que, como bem foi dito, a capacidade procriativa, ou a vontade de ter prole, não se mostram como elementos essenciais para que se empreste proteção legal a um par. Dessa forma, deve-se conferir direitos e impor-se obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexos dos conviventes, sob pena de se infringir o maior princípio imposto pela Constituição Federal, qual seja, o da dignidade da pessoa humana.

           Esse foi o entendimento, pioneiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 14 de março de 2001, reconhecendo o vínculo homoafetivo como entidade familiar, utilizando-se, analogicamente, da legislação que regula as uniões extramatrimoniais, para reconhecer o direito do parceiro à meação. (Apelação nº 70001388982, relatada pelo Desembargador José Carlos Teixeira GIORGIS, a saber:

           "UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados destas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica".

           Cumpriu, dessa forma, o Poder Judiciário, sua função renovadora, reconhecendo o vínculo homoafetivo como entidade familiar.

           O Tribunal Regional Federal da 4º Região (Apelação Cível nº 96.04.55333-0/RS, Relatora Juíza Marga Barth Tessler, j. 220.08.1998) decidiu que a proibição de discriminação em virtude de orientação sexual decorre do princípio da igualdade formal e da proibição expressa de discriminação por motivo de sexo, considerando inconstitucional discriminação contra homossexual na vedação contratual de inclusão, como dependente em plano de saúde, de companheiro do mesmo sexo. O mesmo Tribunal confirmou liminar em Ação Civil Pública destinada em reconhecer, em todo o território nacional direitos previdenciário a companheiros homossexuais, decisão fundada no princípio constitucional da igualdade.(ACP nº 2000.71.00.009347-0). Por fim, confirmou sentença que reconheceu a companheiro do mesmo sexo direito à pensão estatutária de servidor público federal autárquico.

           Há, no direito brasileiro, ainda que de forma tímida, uma certa evolução da jurisprudência e da legislação, no intuito de proibir-se a discriminação por orientação sexual. Além da existência de projeto de emenda constitucional visando à inclusão da orientação sexual como explícito critério proibitivo de discriminação (proposta de Emenda à Constituição nº 67, de 1999), há na legislação federal, proibições de discriminação a respeito dos homossexuais; neste âmbito, ainda, não se podem esquecer a pertinência aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados no nosso ordenamento jurídico, v.g. a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996. Também se verificam, no âmbito municipal, previsões de proibição de diferenciação por orientação sexual.

           Na doutrina, alguns estudiosos tratam do tema, como José Carlos Teixeira GIORGIS, salientando que:

           "não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, por analogia e com suporte nos princípios gerais do direito, aplicar os mesmos efeitos patrimoniais que se deslumbra da união estável, repartindo-se o acervo angariado por parceiros em sua vida em comum, desde que vislumbre nesta os pressupostos da notoriedade, da publicidade, da coabitação, da fidelidade, de sinais explícitos de uma verdadeira comunhão de afetos" (idem anterior p. 100).

           O direito de família contemporâneo ruma cada vez mais para a valorização das uniões de pessoas em que se estabelece uma comunhão de vida voltada para o desenvolvimento da personalidade, mediante vínculos sexuais e afetivos duradouros, sem depender mais de vínculos formais ou de finalidades reprodutivas. O que importa, portanto é a vida em comum, a conjugação de mútuos esforços, constituída a partir do entrelaçar de sexo e afeto.

           Desta forma, a negativa do status familiar às uniões homossexuais acaba fragilizando a intimidade, na medida em que sua privação, de forma indireta, mas concreta, dificulta gravemente a construção de uma relação afetiva e o seu desenvolvimento. Salienta-se que a compreensão de Estado Democrático de Direito requer não só a ausência de invasões ilegítimas das esferas individuais, mas, também, reclama a promoção positiva da liberdade, destinada a criar as condições de desenvolvimento da liberdade e da personalidade. Dentro, portanto, destas medidas positivas, inclui-se o reconhecimento familiar às uniões homossexuais.

           De tudo que já fora exposto, tem-se claramente que não se define a família somente pelo vínculo entre um homem e uma mulher, ou pela convivência dos ascendentes com seus descendentes; também, pessoas ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas como entidades familiares. Descabe, portanto, deixar de fora do conceito de família as relações homoafetivas, se presentes os requisitos já dispostos, como o da vida em comum, coabitação, mútua assistência, etc.

           Mostra-se, assim, totalmente errônea a exclusão da união homossexual da órbita do Direito de Família, identificando-a simplesmente como uma sociedade de fato, posto que esta é fundamentada em um vínculo obrigacional, enquanto o fundamento da união homossexual é afetivo, psicológico. Além disso, tendo-se a relação homossexual como uma sociedade de fato, impede-se a concessão de direitos que defluem das relações familiares, como a meação, a herança, usufruto, alimentos, habitação, etc.

           Diante do óbice constitucional para albergar o relacionamento homossexual no conceito de família, fica evidenciada a necessidade de alteração constitucional para que a união homossexual deixe de ser considerada uma sociedade, já que atualmente é considerada uma sociedade de afeto.

           De fato, se quiser subsumir relações desta espécie ao quadro conceitual obrigacional, onde sobreleva o elemento econômico, ignorar-se-á o elemento afetivo que permeia tais uniões. As uniões homossexuais, onde os vínculos afetivos e sexuais constroem uma comunhão de vida estável e durável, desde já satisfazem as notas requeridas pela regulação jurídica da família estampada na Constituição Federal de 1988.

           Cumpre aos juizes, mais como um dever do que meramente uma faculdade, e enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, promover a justiça, desempenhando seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade, assegurando aos indivíduos que estabelecem, entre si, uma relação homossexual, os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas, uma vez que é inadmissível confundir-se questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso.

           Salienta-se, portanto, a união estável como um gênero, onde as relações hetero e homoafetivas são espécies, fazendo, ambas, jus à mesma proteção. Como também ocorre com a união heterossexual estável, com a união homossexual surge um novo estado civil, sendo importante determiná-lo, e definir-se, judicialmente, o seu termo a quo. Somente assim se poderá assegurar higidez aos negócios jurídicos e atribuir-se a conseqüência jurídica que resultam da lei.

           O Estado, somente através da outorga de proteção devida às relações homoafetivas, reconhecerá, verdadeiramente, que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade, consagrando, de vez, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

           Ë, com certeza, um tema tabu que se apresenta aos operadores do direito, sejam eles juízes, advogados, membros do Ministério Públicos e da Defensoria Pública, mas por tratar-se de um fenômeno social, possui relevância jurídica, e, mascarar a realidade não irá solucionar as questões que emergem das relações que constituem sociedade de afeto. Assim, lembra Américo Luís Martins da SILVA que "o não reconhecimento legal de sua condição e a falta de atribuição de direitos constituem certamente cerceamento de liberdade e uma das formas que a opressão pode revelar" (Idem anterior p.106).

           A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária apenas demonstra o enorme preconceito a que estão expostos certos indivíduos, contribuindo para uma limitação de direitos, fortalecendo os estigmas sociais, causando sentimento de rejeição, além de apresentarem-se como fonte de sofrimentos a essas pessoas que, simplesmente, exerceram um direito que lhes assiste, qual seja, de opção sexual.

           Importante salientar que a vedação à discriminação assenta-se não só na Carta Magna, mas também possui previsão na Convenção Internacional dos Direito Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é signatário. A ONU já explicitou seu entendimento de que em razão dos princípios da igualdade e dignidade humana, é ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos.

           O princípio jurídico da proteção da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, tem como núcleo essencial a idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentalizada ou descartada em função das características que lhe conferem individualidade e imprimem sua dinâmica pessoal.

           Relembrando-se, brevemente, o conceito de orientação sexual (identidade atribuída a alguém em função da direção de seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo, seja do sexo oposto, ou de ambos os sexos), tem-se, com efeito, que na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental da constituição da subjetividade, a qual é alicerce indispensável para a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade.

           Evidente, portanto, que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção da dignidade da pessoa humana, cujo reconhecimento é elemento central na sociedade que caracteriza o Estado Democrático de Direito, uma vez que este promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, mas, também, a promoção positiva de suas liberdades.

           De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento digno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constituída de sua identidade pessoal (incluindo-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação nenhuma com a dignidade humana. Assim, o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, servindo para o fortalecimento de estigmas sociais e espezinhamento dos fundamentos constitucionais.

           Diante de toda a exposição feita, ficam patentes que as uniões homossexuais configuram verdadeiras comunidades familiares. Cumpre, assim, ao legislador, atualizar o direito de família. Nesta tarefa, a ciência e a prática jurídica precisam tomar consciência das concepções que forjaram historicamente os tradicionais modelos de casamento e de união estável, de cunho marcadamente machista e patrimonial, a fim de um efetivo desenvolvimento do direito de família, onde a proteção da dignidade humana e os valores de igualdade, solidariedade e pluralismo, fundamentais para a Constituição e a vida em coletividade, possam florescer.

           Sem que seja vencida a realidade discriminatória, cidadãos continuarão a ver negligenciados direitos e garantias constitucionais fundamentais, em virtude de preconceito e intolerância, os quais, de uma só vez, violam o princípio isonômico, comprometendo, além da dignidade humana, posto que há um desrespeito, de forma reflexa, a liberdade pessoal e sexual, também, a própria legitimidade democrática do ordenamento jurídico.

           2.2 Estrutura do novo livro do direito de família

           O direito, já é sabido, é relação, só acontecendo quando puder ocorrer relação entre pessoas. Assim, são nas relações jurídicas que o cientista jurídico se depara com o objeto da sua ciência. Entretanto, apesar disso, o legislador normatizou o direito de família na forma de institutos jurídicos: casamento, filiação, parentesco sem dar atenção às relações jurídicas que os compõem.

           A maior parte das ditas inovações no livro de direito de família da Nova lei civil pátria são, em verdade, mudanças já assimiladas pelo seu texto durante o lapso de tempo de tramitação do então projeto. As ditas inovações já estavam inseridas no direito de família pelos microssistemas legislativos, ou pelas interpretações jurisprudenciais.

           Entretanto, o Novo Código Civil, graças a Clovis do Couto e Silva, apresenta uma grande inovação: direito pessoal de família (vínculo de natureza moral ou existencial) e direito patrimonial de família (vinculo de natureza patrimonial, relação econômica que liga seus membros). Essa inovação é de suma importância porque traz uma visão realística e plena do fenômeno familiar, pois o ente familiar não é somente uma reunião de afetos ou de patrimônios, mas, sim, é o resultado da interação dinâmica desses dois componentes. Estabelece-se, com isso, um liame efetivo entre a norma, o fato e o valor.

           Resumidamente, poderíamos dizer que quando se fala em direito pessoal de família, está se valorizando de dialeticidade entre as relações, presentes as normas que incidem de forma dialética sobre o fato e o valor afeto. Dessa maneira, inova-se na legislação, uma vez que a mesma se desprende daquela visão ultrapassada da família, a qual tinha a mera função de reprodução, sustento e educação dos filhos, para uma atual, qual seja, a de um casal que se une para buscar a felicidade através de relações de afeição e solidariedade, que significam os pilares da família moderna.33. Em relação ao direito patrimonial de família, são destinados os institutos que não apresentam de forma tão aguda a carga das relações pessoais, sendo regulados sob a forma do direito das obrigações ou das coisas, sem, contudo, perderem a informação dos princípios de direito de família.

           Apesar dessa grande inovação é importante ter-se que somente terá valia se o Código Civil permitir uma nova leitura dessas relações, que deve, obrigatoriamente, passar a ser feita pela inserção da cláusula geral da comunhão plena de vida. Esta, prevista no art. 1.511 da nova lei civil que apresenta um conceito ético, operativo, com conteúdo não totalmente definido, dispondo que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges". Permite essa cláusula uma abertura da ordem jurídica a outros valores sociais, ainda não preenchidos pelo Direito, facilitando as interações interpretativas entre os diversos diplomas legais que compõem o direito de família (Código Civil, Constituição Federal, Lei do Divórcio, etc.).

           Essa cláusula remete a valores éticos, aos comportamentos sociais, aos costumes de hoje e do futuro, oportunizando sua aplicação pelo operador do direito. O grande papel da cláusula geral será o sintetizar (porque sua amplitude dispensa a produção constante de novas normas assim que mudam os valores sociais) e enriquecer (pois somente a ocorrência dos casos concretos permite dimensionar toda a potencialidade de casos a serem resolvidos pela irradiação da cláusula geral), conforme lição do professor Clóvis do Couto e SILVA.34

           Entretanto, há uma contradição interna entre o art. 1.511, acima descrito, com o art. 1.513, pois este dispõe que "é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família", deixando dúvidas a respeito de quem estabelece a comunhão plena de vida, o casamento, conforme o art. 1.511, ou a família, do art. 1.513?

           Pois bem, entende-se, particularmente, que a família é a comunhão plena de vida, instituída pelo casamento.

           Outro aspecto importante de ser analisado é o da incapacidade legislativa de dar respostas a dramas atuais da sociedade, principalmente no direito de família em face da celeridade com que se desenvolvem as idéias, conceitos e os relacionamentos humanos. Diante de um novo modelo família, acima caracterizado, seria um grave erro pretender restabelecer a criação de normas fechadas e dispostas a conterem em si todas as indagações e inquietações de hoje e do porvir. Nesse entendimento, o novo Código Civil estabelece um modelo jurídico aberto, suscetível de permeabilidade com o meio social em que está inserido. Assim, será desde o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da cláusula geral da comunhão plena de vida que o direito de família avançará em sua constante construção.

           O novo Código Civil tem compromisso com os mecanismos modernos da ciência jurídica que permitam ao Direito renovar em sua interpretação e aplicação sem que haja necessidade de nova e pontual reforma legislativa. Assim, a compreensão do Direito como um sistema informado por valores sociais, e a conseqüente organização de modelos jurídicos, garantem atualidade à norma jurídica. É o que ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual serve de liame a todas as normas jurídicas referentes, por exemplo, ao direito de família (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei da União Estável, etc.), acabando com a indiferença com que se relacionavam essas normas, superando as divergências interpretativas.

           Por fim, salienta-se, mais uma vez, que a cláusula geral da comunhão plena de vida, além de unificar o sistema de direito privado, facilita a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, permitindo que a dignidade da pessoa seja tutelada por uma família comprometida juridicamente a ser espaço de preservação, tutela e estimulo da dignidade da pessoa humana, centro de toda a preocupação jurídica contemporânea.

           2.3 Liberdade Sexual e os Direitos Humanos

           Já é sabida, em níveis científicos, que a sexualidade faz parte da personalidade da pessoa humana, integração esta que já pode ser visualizada deste o nascimento do indivíduo. Assim sendo, a sexualidade integra a própria condição humana do indivíduo.

           No que tange respeito ao próprio exercício da sexualidade do Homem, este conceito engloba não tão somente a sexualidade, mas como também a liberdade sexual, tutelando, assim, a própria liberdade da livre orientação sexual.

           Destarte, a sexualidade como um direito de liberdade, pode ser enquadrada nos chamados direitos de primeira geração, pois juntamente com a liberdade e a igualdade, estariam estes jungidos dentro daquela classificação, já que estes mesmos direitos são inerentes ao próprio indivíduo, pois acompanha o homem desde seu nascimento, pois decorre da própria natureza. É um direito natural, tal qual pregava a escola jusnaturalista.

           Entretanto, não podemos desconsiderar que a livre orientação sexual também faz parte dos direitos de segunda geração, pois esta categoria de indivíduos (homossexuais), considerada famigeradas por alguns, seria hipossuficiente em face dos outros indivíduos que a luz da sociedade conservadora não necessitaria de tal tutela jurídica.

           Assim sendo, a hipossuficiência decorre do fator social, gerando, assim, na esfera jurídica um reflexo a ser considerado.

           E por derradeiro, temos a novel concepção de que o direito à sexualidade passa a ser inserido como um direito de terceira geração, é a chamada geração da solidariedade e fraternidade, pois com bases nestes moldes de geração ou dimensão, como preferem outros autores, é que o direito à sexualidade passa a exigir de outros indivíduos a presença de um direito de todo ser humano de exigir o devido respeito a fim de assegurar a própria escolha de liberdade sexual a qual prefere seguir. E para isto, se faz mister a existência de um próprio direito à solidariedade a fim de se buscar o bem comum, sem a qual a condição humana não se realiza.

           Tudo isto supra elencado decorre de que as relações humanas não são estáticas, mas pelo contrário, são dinâmicas a ponto de, em pleno século XXI, concebermos relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo, o que no século passado, seria inconcebível.

           Daí o papel importante que tribunais possuem nos dias atuais, pois a jurisprudência é a ponta de lança do direito praticado nas diversas épocas da sociedade.

           Importante, então, salientar que as relações homoafetivas não são apenas meras relações, mas sim demonstrações de carinho, amor, solidariedade e principalmente respeito pelas relações amorosas de pessoas do mesmo sexo. Assim sendo, nos dias atuais, a união estável comportaria, sem problema algum, duas espécies: união estável heterossexual e união estável homossexual.

           E está na hora, hoje, de o Estado, na função de juiz julgador, com base em um Estado Democrático de Direito, começar a tutelar esta nova modalidade de união estável, a de pessoas do mesmo sexo, a fim de se consagrar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em face da liberdade de escolha pela livre orientação sexual.

           2.4 Uniões Homoafetivas – uma realidade que o Brasil não quer ver

           Esta realidade que se põe à prova do crivo crítico da sociedade brasileira e mundial, faz com que as relações homossexuais se tornem objeto de descaso e de discriminação. Não pode a nossa sociedade querer fazer vistas grossas para tal problema. Problema não no sentido pejorativo da relação homoafetiva, mas sim no sentido de existir este preconceito por parte do legislador que não edita normas capazes de satisfazer tal anseio, bem como por parte da sociedade que insiste em negar tal existência homoafetiva, fazendo, assim, com que o nosso judiciário se torne calado quando enfrenta este tipo de demanda nas salas de audiência de seus tribunais.

           Mas simplesmente dar as costas para esta realidade não significa estancar o problema, pelo contrário, dificultaria ainda mais o objetivo que a nossa Carta Maior se propõe, qual seja, levar a dignidade da pessoa humana juntamente com os direitos e liberdades das garantias individuais ao extremo de sua aplicabilidade, fazendo com que nossa sociedade se torne mais justa, equânime e fraterna.

           É claro que a proteção às relações homoafetivas já se enquadram tuteladas, mas de forma implícita, seja no Diploma Maior, como nas leis infraconstitucionais.

           No âmbito constitucional, o núcleo, a pedra de toque, é o respeito ao princípio da dignidade humana, princípio este calcado nas idéias de liberdade e de igualdade. De foram clara e precisa, o texto constitucional elenca como tutela o bem estar de todos, independente de cor, sexo, credo, idade ou qualquer outra qualificação que venha a castrar a liberdade e a dignidade do ser humano (art. 3º, IV). Ocorre que esta proteção, quanto à opção sexual, não fica de toda forma explícita na Lei Fundamental brasileira, pois tutelar a livre opção sexual combinada pelo desejo de manter uma relação homoafetiva vai muito além do que uma simples proteção constitucional, é preciso que a expressão "orientação sexual" figure de forma clara e precisa no corpo do texto maior a fim de satisfazer esta tutela tão esperada pelas pessoas que compartilham das relações homoafetivas.

           Já na esfera infraconstitucional, existe um único Projeto de Lei (projeto este sob o de nº 1.151/95), que traça a parceria civil registrada. Este projeto possibilita a elaboração e a averbação de um contrato escrito perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, de uma parceria, seja hetero ou homossexual, a fim de se tutelar eventuais e futuros direitos patrimoniais e de cidadania.

           Este projeto suprirá o anseio dos parceiros homoafetivos, pois tutelará os direitos previdenciários e sucessórios, bem como os demais direitos relacionados com a cidadania da pessoa humana.

           Portanto, chegou a hora de o legislador abrir os olhos a fim de que estas relações homoafetivas não fiquem estagnadas devidas á falta de amparo legal. È necessária uma sociedade em constante evolução e dinâmica que conceda e aceite tal transformação social, pois se assim não for, deverá então o judiciário tomar para si tal responsabilidade a fim de se tutelar tal relação afetiva, sob pena de se estar negando a mais íntima das garantias individuais, a opção sexual.

           2.5 Relações Homossexuais

           O homossexualismo existe desde que o mundo foi concebido e teve seu auge nos tempos do império romano, com as famosas "orgias romanas", onde imperavam Nero e seus sucessores. Com o crescimento do cristianismo, séculos após, a Igreja do medievo, que somente concebia o sexo a fim de mera reprodução, começou a execrar a liberdade, naquela época, da livre orientação sexual.

           Com a evolução dos costumes, bem como da desvinculação do Estado da Igreja, começou a florescer o sentimento do vínculo afetivo entre as famílias.

           Com o a atual modificação do Estado autoritário para um Estado Democrático de Direito, começou a se vislumbrar um maior respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, tutela esta calcada na seara da proibição da discriminação, bem como nos princípios da igualdade e fraternidade (solidariedade = direitos de terceira dimensão).

           Começa a aflorar a idéia de que para ter uma família não é necessário simplesmente o dever de procriação a fim de perpetuar a espécie humana, mas sim na própria existência de um lado afetivo na relação, seja de pessoas heterossexuais, como nas relações homoafetivas. A união estável entre homossexuais passa a ter o caráter de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato.

           Portanto, na concepção de diversos autores de ponta e que sustentam a possibilidade da tutela de relações oriundas de pessoa de mesmo sexo, não pode o Judiciário se esquivar de sua responsabilidade precípua, que é a própria segurança destes indivíduos que optaram, através da livre escolha de orientação sexual, pelos direitos emergentes deste tipo de relação.

           2.6 A União Estável Homossexual

           Como já dito supra, a união estável entre homossexuais passa a ter o caráter de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato, onde, mesmo nos dias atuais, a Igreja execra todo e qualquer tipo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo; a Igreja católica considera uma aberração, uma verdadeira aberração aos princípios norteadores daquela religião.

           Atualmente, a Constituição Federal pátria vigente afirma a existência de um Estado Democrático de Direito, preservando, assim, os próprios princípios da liberdade e da igualdade. Protegendo, desde já, os direitos humanos oriundos destes relacionamentos. A própria idéia constitucional do artigo 2º, inciso IV, já consagra o bem estar de todos sem preconceitos de qualquer ordem, inclusive do sexo. Nota-se que o próprio legislador constituinte, à época, já vislumbrava a idéia de uma futura proteção das relações oriundas de pessoas do mesmo sexo. Portanto, cabível, a idéia de que as uniões estáveis não podem ser negadas pelo próprio Estado, sob pena de ferir o princípio da liberdade e da igualdade, já que a Constituição não é um conjunto de regras, mas sim de princípios, princípios estes que nortearão a existência e convivência de uma sociedade na qual ela estará vinculada àquela Carta Maior.


CONCLUSÃO

           Com a evolução do pensamento humano, hoje, é impossível não conceber a união entre pessoas do mesmo sexo. De tal sorte, como esta declaração de relacionamento entre parceiros da mesma estirpe sexual, pelo Poder Judiciário, originar-se-ão inúmeros direitos, tais como direito à partilha de bens, direitos sucessórios, e até mesmo direitos de ordem previdenciários.

           Entretanto, para que os homossexuais tenham seus direitos reconhecidos, é necessário que os mesmos batam, hoje – em face da negativa de legislação a respeito daquela proteção - às portas do judiciário a fim de terem seus direitos reconhecidos, em face da mudança de comportamento da sociedade e do judiciário.

           Assim sendo, já preconizavam que o direito de família moderno se apresenta nas seguintes searas: o amor como valor capaz de dar origem ao relacionamento; completa paridade entre os cônjuges; a igualdade dos filhos, inclusive os adotivos (concepção esta tutelada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente); o reconhecimento e a proteção ao concubinato, e ao nosso sentir, nas relações homossexuais; bem como demais enfoques que para este estudo não cabe analisarmos.

           Portanto, o amor, como primeiro e principal requisito, deve ser o suficiente para relacionamentos oriundos de pessoas heterossexuais, bem como para indivíduos homossexuais.

           Logo a orientação heterossexual não é característica essencial à configuração familiar.

           Países com algum grau de evolução, em nível cultural, superior ao nosso, já concebem tal idéia: comunidade familiar decorrente de uniões estáveis e casamentos de homossexuais. É claro que, em um país conservador como é o Brasil, tal construção legislativa seria encarada como estapafúrdia. Mas na Holanda, na Suécia, na Noruega, e até mesmo no Estado de Vermont, nos Estados Unidos, já existem legislações que visam à tutela de tais direitos.

           Destarte, entendemos que as uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo são tidas como verdadeiras entidades familiares, devendo, pois, serem protegidas tal como são como concebidas.

           Portanto, a própria Constituição Federal de 1988 já aduz a proteção das uniões de vida estável e durável nos relacionamentos heterossexuais; e fazendo uma analogia visando à tutela dos direitos homossexuais, podemos conceber e estender esta proteção às uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo, pois conforme já dito anteriormente, o amor é a pedra fundamental a fim de se começar uma relação duradoura, seja a relação hetero ou homossexual. Assim sendo, entendemos que a união estável de homossexuais deve ser protegida sob a égide dos direitos fundamentais, esculpidos na Carta Maior, pois a sociedade vive constantemente sob fervorosa ebulição, e não podemos negar tais direitos, e nem outros, sob pena de nos tornarmos uma sociedade estanque que não prospera a evolução dos direitos dos próximos que nos circundam.


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Notas

           1 Ingo Sarlet, Dignidade da pessoa humana, p. 31

           2 Ingo Sarlet, op. cit. p. 34

           3 op. cit. p. 34

           4 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 40

           5 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 44

           6 apud Ingo Sarlet, op. cit p. 46

           7 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 54

           8 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 54

           9 op. cit. p. 60

           10 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 52

           11 apud Gláucia Barcelos Alves, Sobre a dignidade da pessoa in A Reconstrução do Direito Privado, p. 214

           12 apud Gláucia Barcelos in op. cit.p. 227

           13 apud Alexandre dos Santos Cunha, Dignidade da pessoa humana, in Reconstrução do Direito Privado, p. 232

           14 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit. p. 233

           15 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 234

           16 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 235

           17 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 236

           18 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 236

           19 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 235

           20 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 239

           21 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 242

           22 apud Alexandre dos Santos Cunha, op. cit.p. 245

           23 Juarez Freitas, Interpretação sistemática do direito, p. 83

           24 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 88

           25 apud Edilsom Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 47

           26 apud Edilsom Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 48

           27 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 133

           28 apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 131

           29 apud Eduardo Silva, A dignidade da pessoa humana e a comunhão plena da vida: direito de família entre a Constituição e o Código Civil, in A Reconstrução do Direito Privado, p. 450

           30 apud Eduardo Silva, op. cit. p. 451

           31 apud Eduardo Silva, op. cit. p. 452

           32 apud Eduardo Silva, op. cit. p. 460

           32 apud Eduardo Silva, op. cit. p. 464

           33 Maria Cláudia Crespo apud Eduardo Silva, op. cit. p. 469

           34 apud Eduardo Silva, op. cit. p. 474


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BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual. As relações homoafetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 625, 25 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6494. Acesso em: 16 abr. 2024.