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Privacidade na sociedade da informação e o direito à invisibilidade nos espaços públicos

Privacidade na sociedade da informação e o direito à invisibilidade nos espaços públicos

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O simples fato de o indivíduo apresentar-se em espaços públicos não permite concluir que se despiu de toda a proteção natural oriunda da privacidade. Ainda que fora de seu reduzido universo particular, é certo que conserva escudo contra a intromissão alheia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Privacidade como direito fundamental; 2. Sociedade da Informação; 3. Espaços públicos e espaços privados; 4. Direito à “invisibilidade” nos espaços públicos; 5. Considerações finais; 6. Referências.


INTRODUÇÃO

A Sociedade da Informação, lastreada no primado do conhecimento, na criação, circulação e oneração da informação, consubstancia-se na atual forma de fomento das inter-relações pessoais, e no direcionamento dos aspectos econômicos, políticos, jurídicos e sociais, provocando alterações significativas no cotidiano. Nesse processo, a pessoa humana, em todo seu conjunto físico, moral e espiritual, também transmuda-se em ser dependente de informações, onde dados e signos são sua vivificação em um novo plano de existência.

Com efeito, na Sociedade da Informação a pessoa é primeiramente representada por informações, ou seja, conhecida por dados, números, rotinas de compras e gastos, na forma de textos, imagens, sons e dados registrados. Esta nova percepção do indivíduo, como um ser informacional, passa a reclamar a proteção da privacidade, notadamente por se tratar de um direito fundamental de primeira grandeza, reconhecido como direito de personalidade, com caracteres de indisponibilidade, intransmissibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.

A privacidade, entretanto, tradicionalmente é vista como o direito de estar só e a salvo da percepção alheia, o que é atingido pelo recolhimento do indivíduo ao um recôndito de preservação e ocultamento, como se operasse um escudo à intromissão ou curiosidade alheias. Tal feito é obtido pelo retorno do indivíduo a um espaço próprio e individual, exclusivamente privado, no mais das vezes refletido na residência inacessível e no sigilo das informações a seu respeito.

Mas é no espaço público onde a presença das pessoas se faz  descoberta, e é neste momento que a privacidade vem reclamar luz. A toda evidência, onde a princípio se mostraria incompatível a ideia de recato e ocultação, necessário se faz preservar o ser humano da percepção alheia, num sentido de garantir um direito à invisibilidade, ou melhor, um direito de não ser notado, de não ter sua presença detectada e divulgada aos demais.

O problema se amplia diante do instrumental existente na Sociedade da Informação, e em virtude destas inúmeras inovações tecnológicas permitem que qualquer indivíduo possa ser vigilante dos que o cercam, quando munido de dispositivo e equipamentos cada vez mais potentes e invasivos, a exemplo: dos celulares, dos tablets, das câmeras e de gravadores de sons.

O presente estudo tem como objetivo conciliar o direito à informação e o livre acesso aos inventos tecnológicos, disponíveis na Sociedade da Informação, e como estes inventos podem demonstrar verdadeiros elementos de inclusão, com também o direito de que a presença pessoal nos espaços públicos não possa ser alvo indiscriminado e desautorizado do registro alheio, da conservação, da reprodução e da divulgação indevida.


 1. PRIVACIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

O direito à privacidade fulgura no conjunto dos direitos fundamentais, e, como tal, é também componente dos direitos humanos, admitidos como direitos que cabem ao ser humano pelo simples fato de assim se constituir (BOBBIO, 1992, p. 17), pois se trata de um Ser dotado de dignidade.

Em escorço histórico, explica Farias (2000, p. 70) que os direitos humanos “inicialmente foram concebidos como limites aos poderes do soberano. Eram as liberdades individuais oponíveis ao Estado. Constituíam, essencialmente, direitos de defesa contra o Estado”. Evoluindo no tempo, novos direitos com mesma carga de relevância e necessidade passaram a ser reconhecidos, agora exigindo postura ativa do Estado para sua realização, como ocorreu com os direitos sociais, de acordo com Lucas (2010, p. 37-38),

No caso específico dos direitos humanos, é evidente que a definição jurídica e a institucionalização de seus postulados constituem o quadro das importantes conquistas históricas proporcionadas pelas revoluções liberais do século 18. Sob esse ângulo, é possível afirmar que os direitos humanos tiveram um momento especial de reconhecimento institucional que se confunde com o próprio advento do Estado Moderno e se configura como elemento material de sua formação, como última instância de legitimação do Estado de Direito.

A toda evidência, os direitos humanos despontam com intuito universalista, com ares de transnacionalidade, reclamando sua validade em qualquer parcela de tempo e espaço, justificados em que são direitos humanos pelo só e simples fato do seu destinatário, o ser humano, resultando na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948.

Nesse passo, a ideia de transnacionalidade e validade universal dos direitos humanos, como concepção política, exige sua internalização nos ordenamentos jurídicos e sociais de cada país, por meio de normas jurídicas explícitas. Sarlet (2008, p. 31-32) compreende que os direitos humanos transmudaram-se para direitos fundamentais, assim:

embora sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira, e diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica àqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

Traçadas tais proposições, é certo que no processo de positivação dos direitos humanos para dentro das cercanias territoriais de cada país há um ato de escolha, cuja preocupação é trazida por Lucas (2010, p. 38-19):

A positivação dos direitos humanos, entretanto, não explica, por exemplo, o porquê da definição e da escolha de determinados direitos e não de outros; não explica por que diferentes sociedades ocidentais, com histórias política e econômica diversas, adotaram, em regra, uma mesma orientação valorativa na definição de suas cartas políticas de direitos humanos; não explica, ainda, o fato de sociedades não ocidentais concordarem, ao menos em parte, com um conjunto desses direitos mesmo antes das revoluções do século 18.

Nesta raia, se os direitos humanos que se pretendem universais e transnacionais, quando no processo de positivação sofrem opções, a positivação não deixa de ser a própria derrocada do intento universalista.

No caso do direito à privacidade, está assim reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu art. XII: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” [grifou-se]. E no processo de positivação, propriamente no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se pela Constituição Federal brasileira de 1988 esse mesmo direito contido no art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” [grifou-se].

Pela dicção constitucional supratranscrita, vê-se que o constituinte originário contemplou direitos à intimidade e vida privada, sendo que a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 acolhe apenas a vida privada. O constituinte pátrio, porém, desdobrou a vida privada em uma faceta ainda mais específica, sob o caráter de um direito à intimidade, como defende José Afonso da Silva (2012, p. 206):

O dispositivo põe, desde logo, uma questão, a de que a intimidade foi considerada como um direito diverso dos direitos à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, quando a doutrina os reputada, como outros, manifestação daquela.

(...)

Nos termos da Constituição, contudo, é plausível a distinção que estamos fazendo, já que o inciso X do art. 5º separa intimidade de outras manifestações da privacidade: vida privada, honra e imagem das pessoas, (...).

Mendes e Branco (2011, p. 315), por seu turno, ainda que não percam de vista que privacidade e intimidade possuem arestas de contato, traçam a seguinte distinção:

O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas.

Inegável que ambos os autores acima citados, visam a proteger a pessoa da interferência e intromissão alheia, por isso o foco consiste em almejar por a salvo de qualquer curiosidade e expectação desautorizada. Verifica-se, aqui, a representação de forma nítida da preservação do princípio constitucional positivado da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, Constituição Federal de 1988), e de seus reflexos.

Nessa toada, um tempero de concretitude aos direitos fundamentais da índole da privacidade e da intimidade adveio com o reconhecimento de pertença aos direitos de personalidade, como pontua Canotilho (2003, p. 396):

Muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais são direitos de personalidade. Os direitos de personalidade abarcam certamente os direitos de estado (por ex.: direito de cidadania), os direito sobre a própria pessoa (direito à vida, à integridade moral e física, direito à privacidade), os direitos distintivos da personalidade (direito à identidade pessoal, direito à informática) e muitos dos direitos de liberdade (liberdade de expressão). Tradicionalmente, afastavam-se dos direitos de personalidade os direitos fundamentais políticos e os direitos a prestações por não serem atinentes ao ser como pessoa. Contudo, hoje em dia, dada a interdependência entre o estatuto positivo e o estatuto negativo do cidadão, e em face da concepção de um direito geral de personalidade como ‘direito à pessoa ser e à pessoa devir’, cada vez mais os direitos fundamentais tendem a ser direitos de personalidade e vice versa [grifou-se].

Como se nota, o direito de privacidade está inserido em uma categoria especialíssima de direitos do ser humano denominados de direitos de personalidade, estes que, segundo Farias (2000, p. 131), são classe

composta por aqueles direitos que constituem o minimum necessário e imprescindível ao conteúdo da personalidade, sendo próprios da pessoa em si, como ente humano, existente desde o seu nascimento. Em sua, os direitos de personalidade ‘concedem um poder às pessoas para proteger a essência de sua personalidade e suas mais importantes qualidades’.

Proveitoso atestar que os direitos de personalidade formam o plexo de valores existenciais da pessoa humana, nas mais variadas nuanças, envolvendo matizes materiais (integridade física), imateriais (nome, imagem, privacidade) e espirituais (honra), e como prefere Diniz (2008, p. 118),

(...) direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria etc. Por outras palavras, os direitos da personalidade são direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta.

A privacidade, portanto, é inegavelmente um direito humano, um direito fundamental, e enfim um direito de personalidade, de forma que para Doneda (2000, p. 128),

A proteção da privacidade, elemento indissociável da personalidade, merece esta tutela integrada, sendo provavelmente um dos casos em que ela é mais necessária. A cotidiana redefinição de forças e meios que possibilitam a intromissão na esfera privada dos indivíduos demanda uma tutela de caráter incessantemente mutável.

(...)

Os autores que abordam os direitos de personalidade são unânimes em reconhecer neles integrada à proteção da privacidade. Há variações de amplitude e mesmo de nomenclatura com as locuções direito à intimidade, direito ao segredo, direito ao recato, direito à vida privada, direito ao respeito da vida privada, direito ao sigilo, entre outras. Passando ao largo do exame das características individuais de cada uma, é indiscutível, que estão superadas as discussões sobre a existência ou não da privacidade pelo ordenamento jurídico e, especificamente, pelo direito civil.

Inquestionável ser fundamental a proteção da privacidade na perspectiva do direito humano, como também sua essencialidade imprescindível à realização da dignidade da pessoa humana. Nesta trilha revela a privacidade o seu status no panorama atual de necessidade de proteção e com o objetivo de tornar eficazes os direitos fundamentais. O temor justificável consiste na falta de controle em barrar o uso indevido e indiscriminado dos aparatos tecnológicos que captam a presença humana de modo a causar lesão irreparável nos direitos atinentes a personalidade. Assim como a Sociedade da Informação cria novas formas de relações interpessoais, também reclama novas formas de controle e de proteção diante dos riscos trazidos pelos meios tecnológicos, em virtude de seu uso indiscriminado e invasivo.


2. SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Toffler (1998, passim) refere-se à Sociedade da Informação como um estado em que coexistiriam dois relógios, um analógico e outro digital. O primeiro a regular a vida humana, presa a limites temporais e físicos, e o segundo, como o que transcenderia estes limites exigindo acesso e ações simultâneas em torno e em razão da informação, como se presente um tempo e espaço paralelos. Este descompasso entre vivência e regulação das relações sociais, e o virtuoso processo de inovação tecnológica é sentido de outro modo por RODOTÀ apud DONEDA (2000, p. 120):

Tem-se a sensação que cresce a distância entre o mundo velocíssimo da inovação tecnológicas e o mundo lentíssimo da proteção sócio-constitucional. Quase a todo momento percebe-se a rápida obsolescência das soluções reguladoras de um determinado fenômeno técnico, destinadas à solução de um problema apenas.

A aparente desarmonia entre universo tecnológico-informacional e vida cotidiana, e a visão de que tecnologias determinam os rumos sociais, entretanto não sobrevive à crítica mais acautelada feita por Castells (2003, p. 43),

É claro que a tecnologia não determina a sociedade. Nem a sociedade descreve o curso da transformação tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta científica, inovação tecnológica e aplicações sociais de forma que o resultado final depende de um complexo padrão interativo. Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas.

Na perspectiva dialética, a tecnologia incorpora a sociedade, e esta, por sua vez, faz uso da tecnologia. Não há se falar propriamente em “impacto” das novas tecnologias da informação sobre a sociedade, porque se assim ocorresse, o ambiente social deveria ser tomado como um recipiente vazio, não reativo, despido de dinamicidade, e que apenas suportasse as punções projetadas pelas tecnologias. Segundo Lévy (2003, p. 21), “não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reintegradas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade como tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas)”.

No traçado dessa inescusável interdependência, continua o autor que “é impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como dos signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo” (Lévy, 2003, p. 22). Nesse aspecto da Sociedade da Informação, não existe um simples impacto das tecnologias na sociedade, na medida em que o surgimento de tecnologias e sua infiltração no meio social é um processo dialógico intermitente, dependente de fatores multifacetados, por vezes inidentificáveis com precisão. Assim, não há uma mera resposta à provocação instada pelas tecnologias, mas sim uma maneira autoconstrutiva do sistema social. Na visão sistêmica pode se ponderar, da seguinte forma:

Um sistema é constituído por elementos autoproduzidos e por nada mais. Tudo o que opera no sistema como unidade – mesmo que seja um último elemento não mais passível de ser decomposto – é produzido no próprio sistema através da rede de tais elementos. O ambiente não pode contribuir para nenhuma operação de reprodução do sistema. O sistema, obviamente, também não pode operar no seu ambiente (LUHMANN apud NEVES e SAMIOS, 1997, p. 25).

O comportamento apresentado pela Sociedade da Informação ante o contágio por novas tecnologias não se mostra como um revide, refulgindo como um reflexo já comprometido pela integração daquelas tecnologias. Na Sociedade da Informação a tecnologia implantada ganha existência própria e irradia influxos ao corpo social, tornando impossível regredir ao estágio anterior, diante das ramificações e interdependências que estendeu com a nova tecnologia integrada. Pelo mesmo fundamento, tudo que a partir de então passar a autoproduzir levará características da integração tecnológica experimentada. É este o sentido autopoiético ventilado por Luhmann, na direção da incorporação, internalização, revelação das tecnologias e o seu uso (ou não uso) pelas sociedades, como um sistema fechado, onde “informações são sempre constructos internos” (LUHMANN apud NEVES e SAMIOS, 1997, p. 25).

Em esteira análoga, Lévy (2003, p. 25) afirma que a tecnologia tem papel, quando muito, condicionante, mas nunca determinante da sociedade e da cultura. Fenômenos sociais jamais são operados unidirecionalmente por relações de causa e efeito, pois “a multiplicidade de fatores e agentes proíbe qualquer cálculo de efeitos determinantes” (LÉVY, 2003, p. 26).

Existem pontos de irreversibilidade das sociedades diante da incorporação das tecnologias, onde considerado o contato da sociedade com a tecnologia, no instante seguinte nem a tecnologia é a mesma, tampouco a sociedade, já tendo internalizado seu uso e despontada na produção de novas rotinas e técnicas com base naquela tecnologia implantada. Vislumbra-se que a informação, em sentido bastante geral e amplo, é que dá suporte às relações humanas; e a informação lapidada é a que confere sólidos sustentáculos à nova e complexa Sociedade da Informação, e que tem na infraestrutura de tecnologias de informática e comunicação a propulsão de uma inescondível e veloz dinamicidade.

A Sociedade da Informação, ou sociedade informacional como prefere Castells (2003, p. 57-60), apresenta características específicas que permitem sua identificação e percepção como formação autônoma. A primeira destas facetas é a de que a informação é sua matéria prima, posto que as tecnologias evoluem adrede à propiciar a apropriação e uso da informação pelo ser humano. Como segunda característica está a profícua e elevada penetrabilidade, visto que a informação é elemento indissociável de toda ação humana, de sorte que são autopoieticamente afetadas por cada nova tecnologia.

Outra característica da Sociedade da Informação é sua flexibilidade, já que torna facilitada a reorganização, e a factível capacidade de redefinição, ressignificação. A interação de tecnologias é outra característica luzente da Sociedade da Informação, pois se observa o contínuo processo de diálogo entre áreas do conhecimento e tecnologias, com integração de elementos de eletrônica, telecomunicações, biologia e robótica.

Por fim, não há se falar em Sociedade da Informação, com a vertiginosidade que a se experimenta, sem reconhecer a característica sobranceira da lógica de redes, isto é, aparato essencial que permite a produção, compartilhamento e disseminação da informação, e ao mesmo tempo, no despertar de tecnologias para o trato e uso da informação. A propósito, essa conformação é reconhecida na Diretiva 2002/58 da Comunidade Europeia:

(...). O desenvolvimento da sociedade da informação caracteriza-se pela introdução de novos serviços de comunicações electrónicas. O acesso a redes móveis digitais está disponível a custos razoáveis para um vasto público. Essas redes digitais têm grandes capacidades e possibilidades de tratamento de dados pessoais.

Diante destas características, a Sociedade da Informação desconhece, a priori, limitações espaciais e temporais, negligenciando espaços públicos e privados, conferindo-se a si próprio cunho universal e incombatível.


3. ESPAÇOS PÚBLICOS E ESPAÇOS PRIVADOS

A vivência na sociedade moderna perpassa, diuturnamente, pela oscilação da presença do ser humano entre espaços públicos e privados. A cisão entre recônditos privados e aberturas de espaços públicos é fruto da modernidade, numa clara associação ao reconhecimento do direito de propriedade, e daquilo se possa garantir de exclusivo aos indivíduos, pressuposto para em contraponto se poder falar em espaços não-privados, isto é, públicos e compartilháveis com uma coletividade.

Rousseau (2006, p. 23) apresenta uma relação de integração do indivíduo que, pelo contrato social, submete-se reciprocamente a espaços públicos e privados, ressaltando que “cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, acha-se comprometido numa dupla relação, a saber: como membro do Estado em face dos particulares e como membro do Estado em face do soberano”. Na visão rousseauniana, a vontade geral reflete-se na coletividade, o espaço público, sobrepondo-se ao privado.

Habermas (2003, p. 92), porém, ao investigar a modernidade, à luz da burguesia, identifica uma vital conformação do espaço público, chamado de esfera pública, em cotejo com o espaço privado, tomando-o como um fenômeno social de interação e diálogo, expondo o jusfilósofo que:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomada de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.

Essa concepção permite inferir que na sociedade existem os espaços privados (íntimos), notadamente representados pela família e sociedade civil, ao passo que também existem os espaços públicos (esfera públicas) nos quais, por meio do agir comunicativo, se propiciaria a intermediação entres sociedade e Estado. Entremeando esta inter-relação atuariam os direitos fundamentais, para de um lado assegurar o princípio da autonomia privada e propriedade, e de outro o exercício das liberdades públicas. Entretanto, a participação ou mesmo a simples estada da pessoa em espaço público é apreendida com Arendt (2007, p. 59-60), que vislumbra um locus temporal-espacial de aparecimento e visibilidade, quando assim descreve:

a aparência — aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima ... vivem uma espécie de vida incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se adequadas à aparição pública.

(...)

A realidade da esfera pública conta com a presença simultânea de inúmeros aspectos e perspectivas nos quais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais ser inventado.

Martins (2005, p. 157), por sua vez, pressupõe um aspecto diferenciado dos espaços públicos, altercando que “em termos sociais, todavia, o espaço público designa a constituição de uma intersubjectividade prática, do reconhecimento recíproco como sujeitos, da ligação das pessoas e do encadeamento das suas acções na cooperação social”. E nesse propósito, Habermas (2003, p. 93), prospecta que

(...) as esferas públicas ainda estão muito ligadas aos espaços concretos de um público presente. Quanto mais elas se desligam de sua presença física, integrando também, por exemplo, a presença virtual dos leitores situados em lugares distantes, de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia, tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para a generalização da esfera pública.

A par dos espaços públicos, os espaços privados apresentam-se como aqueles destinados ao exercício das faculdades privativas do ser humano que se quer deixar a salvo do conhecimento alheio, sobremodo entrelaçados com os ideais de privacidade, intimidade e sigilo. Nesse aspecto, Arendt (2007, p. 61) pondera que a “esfera pública só tolera o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante torna-se automaticamente assunto privado”.

A toda evidência, a dicotomia entre espaços públicos e privados identifica-se, num primeiro momento, sob o aspecto físico e espacial, tomando por base espaços físicos. Não se pode olvidar que o reconhecimento de um ambiente ser espaço privado ou público também está condicionado a um determinado momento histórico, e até mesmo no contingente cultural de determinada comunidade, pois quanto mais individualista for o pensamento cultural, mais espaços privados existirão, e do contrário, quando mais coletivo e transcendente ao indivíduo for determinada cultura, avolumar-se-ão os espaços públicos.

Ao presente estudo importa, pois, a qualificação dos espaços públicos e privados por seu cunho institucional e jurídico, na linha prelecionada por Martins (2005, p. 158):

Por sua vez, pelo critério institucional ou jurídico, são qualificados como públicos os lugares ou os problemas que relevam de uma instituição pública. Neste caso, o privado opõe-se ao público e o segredo ou a inacessibilidade constituem a condição da sua protecção. Podemos falar então do domicílio ou da empresa, que relevam de uma autoridade privada, e das ruas ou das praças, que relevam da ordem pública. Dada esta incerteza, fica claro que não existe um espaço público natural e que a nossa atenção deve recair não apenas na evolução e na porosidade da fronteira entre público e privado, mas também na evolução das significações que estas noções revestem, por exemplo, nas deslocações entre uma acepção física concreta e uma acepção imaterial do espaço público.

De toda forma, a fronteira entre espaços públicos e privados nem sempre é pressentida e facilmente identificada, dado que experimentam um latente processo de imbricação, pela própria dinâmica dos sujeitos neles insertos e por meio deles reciprocamente envolvidos. Nesse contexto, a mediação tecnológica, característica da Sociedade da Informação, que propicia o trânsito entre tais espaços e fomenta o esmaecimento de barreiras entre eles, merece urgente atenção.


4. DIREITO À “INVISIBILIDADE” NOS ESPAÇOS PÚBLICOS

Como alhures visto, entre direitos fundamentais essenciais do ser humano está a privacidade, um verdadeiro direito proprietário de se ver a salvo de toda e qualquer intromissão alheia, nos moldes tencionados por Doneda (2000, p. 113):

O surgimento da doutrina do right to privacy, em matiz fortemente identificado com o direito ao isolamento, corresponde justamente a um dos períodos de ouro da sociedade burguesa norte-americana, o final de século passado.

(...)

Tomado como garante do isolamento e da solidão, o direito à privacidade não se aprestava exatamente como uma realização de exigências naturais do homem, mas sim de uma classe.

Se a privacidade representa o direito de ser deixado em paz, traduzido da célebre fórmula do direito de estar só construída pelo magistrado norte-americano Cooley (DONEDA, 2000, p. 113), instiga saber se há campo e possibilidade de sua incidência nos espaços públicos, onde pairam a visibilidade tratada por Arendt (2007, p. 59-60) e os processos comunicativos enfocados por Habermas (2003, p. 92-93).

O simples fato de o indivíduo apresentar-se em espaços públicos não permite concluir que se despiu de toda a proteção natural oriunda da privacidade. Ainda que fora de seu reduzido universo particular, é certo que conserva escudo contra a intromissão alheia. Tal concepção engloba todo o universo de pessoas da comunidade, tenha alguma delas ou não qualquer participação pública de maior expressão. Mesmo nestes casos, quando em mira pessoas públicas, a doutrina reconhece que não abandonam por completo os obstáculos da privacidade em face das investidas alheias. Mendes e Branco (2011, p. 321-322) dedilham a questão:

Por vezes, diz-se que o homem público, i. é, aquele que se pôs sob a luz da observação do público, abre mão da sua privacidade pelo só fato do seu modo de viver. Essa impressão é incorreta. O que ocorre é que, vivendo ele do crédito público, estando constantemente envolvido em negócios que afetam a coletividade, é natural que em torno dele se avolume um verdadeiro interesse público, que não existiria com reação ao pacato cidadão comum.

(...)

Fatos desvinculados do papel social da figura pública não podem ser considerados de interesse público, não ensejando que a imprensa invada a privacidade do indivíduo.

Como se nota, a doutrina supracitada admite um arrefecimento da proteção à privacidade da pessoa pública (políticos, artistas, celebridades em geral), tão-somente quanto a fatos relevantes ao papel social, que despertem a importância para o interesse público, sendo que os mesmos autores advertem que “decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse do público” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 321) [grifou-se].

Logo, se nem mesmo a figura pública é desnudada de toda sua privacidade nos espaços públicos, menos ainda o será o cidadão comum, o homo medius, cuja existência e presença é desimportante para o interesse público. Porém, ainda que a assertiva afigure-se lógica e razoável, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão datada do ano de 2004, externou posição em sentido diverso:

DIREITO CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. TOPLESS PRATICADO EM CENÁRIO PÚBLICO. Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. Recurso especial não conhecido. (STJ – 4ª Turma - REsp 595.600/SC - Rel. Min. Cesar Asfor Rocha – j. 18.03.2004 – DJ 13.09.2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013) [grifou-se].

Em que pese os argumentos do julgado acima, não se pode confiar numa suposta cláusula tácita de consentimento à exposição e apropriação da presença pessoal pelo simples fato de o indivíduo apresentar-se em determinado espaço público. Considerando que a privacidade visa à proteção de direitos de personalidades preciosos como à honra e imagem, indisponíveis que são (art. 11, Código Civil), não há como supor que ao adentrar a um espaço público a pessoa tacitamente aceita ser alvo de toda e qualquer espécie de intervenção alheia.

Na Sociedade da Informação a questão desponta mais espinhosa preocupação, uma vez que as tecnologias de comunicação, cada vez mais rápidas e vorazes, mais acessíveis e integralizadas aos afazeres cotidianos da vida comum, a exemplo de celulares, tablets, redes de comunicação de alta velocidade, transmissão eletrônica em tempo real, criam um ambiente em que cada indivíduo é ao mesmo tempo vigilante e vigiado de todos e por todos. Martins (2005, p. 158) expõe esta evidência:

Esta questão da fronteira entre espaço público e espaço privado abre caminho à reflexão sobre a mediação técnica, sobre o modo como as novas tecnologias da informação, que incluem os media, participam da redefinição da fronteira entre público e privado, ao misturarem em permanência lugares e actividades públicas e privadas. O exemplo-tipo desta realidade é a publicitação da intimidade nos media audiovisuais e na Internet, assim como, de um modo geral, a comunicação electrónica.

Silva (2012, p. 209-210) também se debruça sobre a questão, analisando que:

O intenso desenvolvimento de complexa rede de fichários eletrônicos, especialmente sobre dados pessoais, constitui poderosa ameaça à privacidade das pessoas. O amplo sistema de informações computadorizadas gera um processo de esquadrinhamento das pessoas, que ficam com sua individualidade inteiramente devassada. O perigo é tão maior quanto mais a utilização da informática facilita a interconexão de fichários com a possibilidade de formar grandes bancos de dados que desvendem a vida dos indivíduos, sem sua autorização e até sem seu conhecimento.

A questão relevante é que nos espaços públicos da Sociedade da Informação cada sujeito que esteja dotado de um dispositivo tecnológico capaz de captar a presença de outros, pode registrar e reproduzi-la de forma instantânea, e para um contingente indeterminado de pessoas, sem qualquer autorização prévia de tal divulgação. Em outras palavras, em poucos comandos intuitivos de um dispositivo tecnológico (celular, smartphone, tablets.) registra-se uma pessoa lendo jornal em uma praça, e no instante seguinte este registro está disponível em alguma rede social para livre consulta uma infinidade indeterminável de pessoas.

Ocorrência desta natureza representa ofensa ao direito de privacidade, que no espaço público pode ser entendido como um possível direito à invisibilidade, um direito de não se notado e de não ter a presença registrada. A rigor, apenas o consentimento expresso, inadmitindo-se consentimento tácito pela simples exposição, pode afastar a ofensa à privacidade nos espaços públicos.  Neste sentido já decidiu o STJ - Superior Tribunal de Justiça em histórica construção juscultural no ano de 2011, in verbis:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE IMAGEM EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PARA EMPRESA ESPANHOLA. CONTRATO COM CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO NO EXTERIOR.

1. A evolução dos sistemas relacionados à informática proporciona a internacionalização das relações humanas, relativiza as distâncias geográficas e enseja múltiplas e instantâneas interações entre indivíduos.

2. Entretanto, a intangibilidade e mobilidade das informações armazenadas e transmitidas na rede mundial de computadores, a fugacidade e instantaneidade com que as conexões são estabelecidas e encerradas, a possibilidade de não exposição física do usuário, o alcance global da rede, constituem-se em algumas peculiaridades inerentes a esta nova tecnologia, abrindo ensejo à prática de possíveis condutas indevidas.

3. O caso em julgamento traz à baila a controvertida situação do impacto da internet sobre o direito e as relações jurídico-sociais, em um ambiente até o momento desprovido de regulamentação estatal. A origem da internet, além de seu posterior desenvolvimento, ocorre em um ambiente com características de auto-regulação, pois os padrões e as regras do sistema não emanam, necessariamente, de órgãos estatais, mas de entidades e usuários que assumem o desafio de expandir a rede globalmente.

 (...)

10. Com o desenvolvimento da tecnologia, passa a existir um novo conceito de privacidade, sendo o consentimento do interessado o ponto de referência de todo o sistema de tutela da privacidade, direito que toda pessoa tem de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, nelas incluindo o direito à imagem.

(...). (STJ – 4ª Turma - REsp 1168547/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão  j. 11.05.2010 - DJe 07/02/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 04.03.2013) [grifou-se].

Emblemático nesse campo de discussão é o caso da modelo brasileira Daniella Cicarelli, que em 2006, numa praia de Ibiza, Espanha, foi flagrada em atos lascivos e sexuais com o namorado. Em instantes, o vídeo ali captado foi lançado na Internet, espalhando-se tal qual um vírus de alta capacidade de replicação. A modelo ingressou com pedido judicial pretendendo que fosse vetada a exibição e circulação nos meios midiáticos da Internet, obtendo êxito no intento por força da decisão proferida no recurso de Agravo de Instrumento n. 472.738-4, julgado pela 4ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo, sob relatoria do Desembargador Ênio Santarelli Zuliani.

A discussão empreendida centrou-se justamente da aferição da mantença ou não do direito a privacidade por atos – no caso eróticos – praticados em espaço público, prevalecendo a tese de que:

Não soa razoável supor que a divulgação cumpre funções de cidadania; ao contrário, satisfaz a curiosidade mórbida, fontes para mexericos e ‘desejo de conhecer o que é dos outros, sem conteúdo ou serventia socialmente justificáveis’(...).

Não há motivo público que justifique a continuidade do acesso.

(...)

Tendo em vista que o vídeo não contém matéria de interesse social ou público, há uma forte tendência de ser, no final, capitulada como grave a culpa daqueles que publicaram, sem consentimento dos retratados e filmados, as cenas íntimas e que são reservadas como patrimônio privado. Portanto e porque as pessoas envolvidas são conhecidas, a exploração da imagem poderá ter um sentido e uma conotação mercantilista, o que justifica mensurar a astreinte na mesma proporção das vantagens que as requeridas pretendem auferir com a divulgação, sob pena de se tornar inócua a providência judicial (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013).

O pronunciamento judicial acima incorpora, em sua justificação, os postulados encetados por Mendes e Branco (2011, p. 320-321) no tocante às pessoas de fama expostas em espaços públicos, numa visível vinculação com a relevância pública da divulgação:

Verifica-se a tendência de tomar como justificável a intrusão sobre a vida privada de alguém quando houver relevância pública na notícia que expõe o indivíduo.

(...)

O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio, notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar a garantia da privacidade.

Com efeito, o caso analisado continha dois fatores que o tornaram especial a ponto de suscitar elevada argúcia na busca da solução jurídica adequada. O primeiro por se tratar de pessoa famosa, e que assim naturalmente detém menor “pretensão de retraimento da mídia” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 321). O segundo fator consistiu em que as cenas captadas envolviam a prática de atos eróticos em local público, cuja reprovabilidade da conduta despertou a ideia de que, diante da prática consciente de ato impróprio, estariam os indivíduos envolvidos impedidos de reclamar contra a divulgação e exposição do fato.

Destaque-se as razões do voto divergente e vencido, nas palavras do Desembargador Maia da Cunha, in verbis:

Pessoas públicas, cuja popularidade atrai normalmente turistas e profissionais da imprensa em geral, particularmente os conhecidíssimos “paparazzi” da Europa, não podem se dar ao desfrute de aparecer em lugares públicos expondo abertamente suas sensualidades sem ter a consciência plena de que estão sendo olhados, gravados e fotografados, até porque ninguém ignora, como não ignoravam os autores, que hoje qualquer celular grava um filme de vários minutos com razoável qualidade.

(...)

Quem age assim em local absolutamente público, sendo pessoa pública, não pode reclamar da exposição que a mídia em geral dá pela natural curiosidade do ser humano em relação aos artistas e modelos famosos. Exposição que não passa daquela exposta pelos protagonistas, que, embalados pelo sucesso e pela paixão do momento e do lugar, não se preocuparam com a própria privacidade e intimidade. A veiculação do filme verdadeiro nada mais é do que a realidade no limite que os próprios autores explicitamente consideraram razoável quanto às suas privacidades e intimidades (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013).

Com efeito, o fato de tratar-se de pessoa de notoriedade e fama a reclamar a tutela da privacidade em espaços públicos induz tônica peculiar e agudizante ao tema. Nada obstante isso, mostra-se extremamente relevante contemplar o trato à privacidade do cidadão “comum”, cuja vida cotidiana, profissional e social, não é ordinariamente alvo dos holofotes, não desperta a curiosidade e a ânsia da expectação pelo público. Nesse contexto, duas ocorrências envolvendo pessoas comuns e os meios de captação da presença próprios da Sociedade da Informação servem de mote à discussão.

O primeiro, verificado em março/2009 na cidade de Londres, quando um homem fora flagrado pelo serviço Google Street View{C}[1] com carro estacionado em frente a uma loja Sex Shop. A esposa surpreendeu-se ao ver pela Internet a imagem de seu marido captada pelo serviço, pois imaginava que o cônjuge estava em outa cidade. Segundo relata a notícia publicada no Jornal The Sun{C}[2], o fato desaguou no divórcio do casal.

O segundo caso, similar ao primeiro, é de uma mulher russa que ao buscar em serviço parecido com o Goggle Street View informações sobre determinada rua de sua cidade, acabou visualizando imagem de seu namorado na companhia de outra mulher. O fato também levou ao fim do relacionamento[3].

Como se nota, nos dois casos acima as pessoas expostas não ostentavam caracteres de pessoa de notoriedade pública. Em comum apenas a presença em espaços públicos, captada por refinados mecanismos eletrônicos e reproduzidos na rede mundial de computadores. Tanto aqui, quando no anterior caso da modelo Daniela Cicarelli, detecta-se um ponto em comum: a disseminação na rede mundial de computadores (Internet) da imagem captada em espaço público, com os efeitos deletérios que então se viu.

Nesse contexto, a indagação que se deve fazer é se no espaço público a pessoa pode opor-se à captação de sua presença, a conservação desta sua representação e, num momento posterior, sua exibição a um auditório qualquer, que na era da Sociedade da Informação representa fortemente a disponibilização na Internet. O questionamento necessário consiste em desvelar se se pode reclamar um direito à “invisibilidade” nos espaços públicos, uma prerrogativa de não ser notado, de ter sua presença e passagem efêmera, vendando seu registro e o aprisionamento daquele passado de aparição nos meios eletrônicos e midiáticos. Trata-se aqui também do chamado direito ao esquecimento, que será objeto de discussão aprofundada num próximo estudo.

À circunstância, Diniz (2002, p. 101) discute que a restrição à tutela da privacidade em espaços públicos é válida sempre que a pessoa ali não é destacada com ênfase, na medida em que o objetivo da captura é de divulgar um determinado cenário no qual a pessoa afigura-se como mero elemento acidental, secundário e, assim, desimportante. Em outras palavras, a pessoa não é o foco daquela representação. Pensamento análogo é partilhado por Mendes e Branco (2011, p. 320), para quem:

Em princípio, se alguém se encontrar num lugar público está sujeito a ser visto e a aparecer em alguma foto ou filmagem do mesmo lugar. Haveria, aí, um consentimento tácito na exposição. A pessoa não poderá objetar a aparecer, sem proeminência, numa reportagem, se se encontra em lugar aberto ao público e é retratada como parte da cena como um todo.

Na Sociedade da Informação, porém, os mecanismos de captação e registro de informações conduzem a que a imagem pessoal possa ser aprisionada para a posteridade, aniquilando o direito ao esquecimento, uma vez que a divulgação pela Internet desconhece barreiras espaciais e temporais, sem se olvidar ainda da velocidade do fluxo das informações e da intercomunicação de equipamentos e dispositivos permite a qualquer pessoa armazenar e replicar cópia daquela representação pessoa captada. A toda evidência, é um cenário diferente daquele abrangido outrora por jornais, revistas, e mesmo pela televisão.

Nesse passo, a tese de consentimento tácito na exposição em espaços públicos merece temperamento, pois se deve rememorar que se está diante de direitos de personalidade cuja proteção à sua exposição injusta advém justamente da tutela da privacidade, pois como pontua Farias (2000, p. 152-153), “se o seu titular pode exercer atos de disposição sobre o direito à própria imagem livremente, não pode privar-se totalmente do mesmo, em razão de ser esse um direito da personalidade (e portanto, inalienável, irrenunciável, inexpropriável, intransmissível e imprescritível)”.

Por razões de legítimo interesse público, especialmente em casos de saúde e segurança pública, os espaços públicos poderão ser vigiados e funcionar como ambientes de recolhimento latente da presença das pessoas. Nesta perspectiva pode haver a instalação de equipamentos como câmeras de segurança em prédios públicos, nas ruas e nas praças, mas destaca-se que as imagens e cenas captadas serão mantidas em sigilo e contra terceiros, justamente porque falta interesse público na divulgação livre, aberta e incondicionada destes registros. Nessa perspectiva, a Diretiva 95/46 CE da Comunidade Europeia identifica:

Considerando que os dados susceptíveis, pela sua natureza, de pôr em causa as liberdades fundamentais ou o direito à vida privada só deverão ser tratados com o consentimento explícito da pessoa em causa; que, no entanto, devem ser expressamente previstas derrogações a esta proibição no que respeita a necessidades específicas, designadamente quando o tratamento desses dados for efectuado com certas finalidades ligadas à saúde por pessoas sujeitos por lei à obrigação de segredo profissional ou para as actividades legítimas de certas associações ou fundações que tenham por objectivo permitir o exercício das liberdades fundamentais;

Considerando que, sempre que um motivo de interesse público importante o justifique, os Estados-membros devem também ser autorizados a estabelecer derrogações à proibição de tratamento de categorias de dados sensíveis em domínios como a saúde pública e a segurança social - em especial para garantir a qualidade e a rentabilidade no que toca aos métodos utilizados para regularizar os pedidos de prestações e de serviços no regime de seguro de doença - e como a investigação científica e as estatísticas públicas; que lhes incumbe, todavia, estabelecer garantias adequadas e específicas para a protecção dos direitos fundamentais e da vida privada das pessoas;

Em outro plano, enfim, para os casos concretos acima analisados, nota-se que o direito à privacidade merece prestígio. Porém, no primeiro caso, porque a captação da imagem teve como foco justamente as pessoas incluídas no cenário, é possível objetar-se tanto à captação e registro da imagem quanto à sua posterior divulgação e exposição. No segundo, por ser parte do cenário, mas apenas como elemento acidental, quer parecer inviável opor-se à captura, porém válido combater a exposição, divulgação e o armazenamento da representação pessoal para a posteridade, porque o direito de não ser notado reflete-se aqui na garantia de não ter sua aparição levada livremente a conhecimento de terceiros, sobremodo no universo infindável e incontrolável da rede mundial de computadores e similares.

Infere-se que na Sociedade da Informação o direito à privacidade recebe nova roupagem, descrita por Doneda (2000, p. 120) como “uma transformação na definição do direito à privacidade, do ‘direito de ser deixado em paz’ para o ‘direito a controlar o uso que outros fazem das informações que me digam respeito’”. No todo contextualizado, nos espaços públicos da Sociedade da Informação precisa ser defendida à pessoa, famosa ou não, o direito a uma passagem efêmera e delével, sem resquícios à posteridade.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se, ao longo deste estudo, que o direito à privacidade faz parte do grande arcabouço dos Direitos Humanos, inclusive com expressa referência na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, ali denominado de direito à vida privada. Na Constituição Federal brasileira de 1988 recebe o mesmo nome, acompanhado de um desdobramento na forma de direito à intimidade, um aspecto mais profundo e atinente a traços ainda mais íntimos e reservados da vivência humana.

Privacidade e intimidade, de toda forma, são pressupostos para o exercício de direitos de personalidade, como a imagem e honra. Nos dias de hoje, o estudo do direito à privacidade não pode ignorar a Sociedade da Informação, realidade permeada pelo imprescindível trânsito de informações imbricadas com a aplicação de tecnologias. A utilização de informações e tecnologias, assim como sua reprodução e replicação, é uma constante que caracteriza a Sociedade da Informação e as relações sociais que nela se estabelecem, de tal modo que corpo social e pessoas individualmente consideradas tornam-se dependentes da dinâmica tecnológica informacional continuamente auto-redefinadora.

A velocidade com que as práticas e transformações ocorrem na Sociedade da Informação acende questionamento sobre a proteção da privacidade em espaços públicos e privados, sendo aqueles reconhecidos como locus de amplo diálogo e auditório aberto, com franca exposição e visibilidade das pessoas, e os últimos recônditos de reserva, aptos a acondicionar aquilo que se quer proteger do conhecimento alheio.

Porque a Sociedade da Informação consubstancia-se numa realidade que desconhece barreiras físicas, o uso de tecnologias de captação da presença pessoal em espaços diversos traz à tona a discussão se, nos espaços públicos, de tradicional exposição e visibilidade pessoal, existiria proteção à privacidade, e se o indivíduo poderia invocar um pretenso direito de não ser notado, de não ter sua presença captada, registrada e reproduzida. Em outras palavras, coube perquirir se o indivíduo tem direito à “invisibilidade” nos espaços públicos, para pô-lo a salvo de toda e qualquer intromissão alheia.

Analisando casos concretos bastante emblemáticos, um deles envolvendo a modelo brasileira Daniela Cicarelli, e outros dois sobre o serviço Google Street View e análogo, pode-se traçar distinções quando pessoa famosa, cuja presença foi captada por instrumentos e tecnologias de informática e informação, e quando se tratar de cidadão comum, mas, sobretudo, com o adendo de que o fator de maior relevância é a posição da pessoa no cenário da captação da imagem, e, quanto mais o foco for a pessoa, e não aquilo que a cerca, mais firme e defensável será a invocação do direito de não ter sua presença notada e divulgada.


6. REFERÊNCIAS

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Notas

[1] O Google Street View é um serviço on-line que permite explorar lugares no mundo todo por meio de imagens em 360 graus no nível da rua, mediante acesso público via internet.

[2] Notícia disponível em: < http://www.thesun.co.uk/sol/homepage/news/article2350771.ece>. Acesso em: 05.03.2013.

[3] Notícia disponível em: <http://newspressrelease.wordpress.com>. Acesso em: 05.03.2013.


Autores

  • Silvano Ghisi

    Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC (2013-2014): linha de pesquisa em direitos fundamentais civis. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (2005). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná (2008). Professor universitário da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (CESUL) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Advogado.

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  • Maria Cristina Cereser Pezzella

    Maria Cristina Cereser Pezzella

    Professora do Programa de Pesquisa e Extensão e Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC. Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) intitulado Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos - sediado na UNOESC. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS (1988). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS (1998). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR (2002). Avaliadora do INEP/MEC e Supervisora do SESu/MEC

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Informações sobre o texto

Texto produzido no Mestrado Acadêmico em Direito na UNOESC - Universidade do Oeste de Santa Catarina. Texto anteriormente publicado no CONPEDI (2013)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GHISI, Silvano; PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Privacidade na sociedade da informação e o direito à invisibilidade nos espaços públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5476, 29 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65512. Acesso em: 25 abr. 2024.