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A teoria do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro

A teoria do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro

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STJ costuma considerar a substancialidade no cumprimento de uma obrigação, o adimplemento de algo entre os 66% e os 80%. Mas será que tal verificação se dá com meras contas matemáticas? Não estaria na hora de buscar positivá-la?

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo apresentar a Teoria do Adimplemento Substancial, de grande aplicabilidade ao Direito Civil brasileiro, em especial no momento econômico e social do país.

Tal tema será introduzido fazendo-se ligação aos diversos aspectos de Direito atrelados, por meio da conceituação do entendimento acerca do Direito das Obrigações e do Direito dos Contratos, além de ser situada a presente condição do ordenamento jurídico brasileiro.

Através da análise do quadro atual do Direito Civil Brasileiro, buscam-se entender as melhores formas de ser aplicada a Teoria do Adimplemento Substancial, de forma a suprir os anseios das partes diretamente envolvidas e da sociedade.

Por se tratar de teoria advinda do Direito inglês, naturalmente será realizada uma breve introdução ao cenário jurídico de origem, passando então a buscar a melhor adequação ao Direito pátrio.


2 TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES

Segundo Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil Vol I – Parte Geral , p 3. , 2013), “A realidade em tomo do ser humano pode ser considerada sob três formas: o mundo da natureza, o mundo dos valores e o mundo da cultura. Esses três aspectos dão ordem ao caos que nos rodeia.”

Para o autor, o Direito está introduzido nesses três ramos do conhecimento ao mesmo tempo; porém, mais intrinsicamente no ramo da cultura. E o afirma com base na observação da prática humana de se criarem elementos competentes para valorar e organizar comportamentos da sociedade, prática essa que define em seu mesmo livro, Direito Civil Vol I – Parte Geral (2013), agora na página 4: “A atividade valorativa ou axiológica orientada para realizar a ordem, a segurança e a paz social faz surgir o Direito, posicionado no mundo da cultura.”

Ainda segundo Venosa, porém em 2014, no seu livro Direito Civil Vol II - Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, página 1, ainda no início da Introdução, Direito é um ramo das Ciências Sociais; como tal, necessita estar inserido em uma sociedade. E, nessa sociedade, é comum a valoração de grande parte do que puder ser encontrado: “dentro da sociedade (...) o homem atribui valor a tudo que o circunda”.

Continua Venosa: essa escala de valoração advém da necessidade humana de algo, mais ou menos, em cada momento: “a relação jurídica estabelece-se em função da escala de valores do ser humano na sociedade (VENOSA, Direito Civil Vol II....Contratos, p. 2, 2014)”. Buscando o algo do qual necessita, para Sílvio de Salvo Venosa, se constitui a relação jurídica, pois o homem está inserido na sociedade, e busca o que lhe é necessário nessa sociedade.

Impulsionado por essas necessidades, para esse mesmo autor, o homem se vê levado a adquirir bens, ou modificar ou se desfazer deles. E, ao negociar com o outro nesse sentido, surge uma Obrigação. Pois, segundo Venosa, ao apresentar o cenário acima narrado, “eis aí descrita a relação jurídica: o liame que nos une a nosso semelhante, ou a uma pessoa jurídica ou ao Estado”; e continua, definindo mais adiante: “a obrigação, no sentido que ora se examina, consiste numa relação jurídica” (VENOSA, Direito Civil Vol II....Contratos, p. 2, 2014).

No âmbito dos direitos patrimoniais reconhecidos no Direito Civil Brasileiro, essencialmente podem se destacar duas grandes divisões; e, segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, Direito Civil Vol II....Contratos, p. 7, 2014), “direito obrigacional é um direito pessoal, pois sua íncita relação jurídica vincula somente duas (ou mais) pessoas.” E continua, explicando: “Os direitos reais, que têm sua maior expressão no direito de propriedade, incidem diretamente sobre a coisa”

No presente trabalho, temos como enfoque atual o Direito das Obrigações, pela própria natureza do tema em específico.

Álvaro Villaça Azevedo (Teoria Geral das Obrigações e Responsabilidade Civil, p. 13, 2011) conceitua obrigação como sendo relação jurídica e transitória, além de “econômica, pela qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação pessoal, positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele para satisfação de seu interesse”.

Ainda para Álvaro Villaça Azevedo (Teoria...Civil, p. 25, 2011) “O Código Civil brasileiro considera, expressamente, três fontes das obrigações: o contrato, o ato unilateral e o ato ilícito.”. Podemos citar, ainda, a Lei como fonte das obrigações, segundo o mesmo livro, em sua página 24.

De acordo com Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil Vol II....Contratos, p. 13, 2014), “pelo que se percebe da definição de obrigação, estrutura-se ela pelo vínculo entre dois sujeitos, para que um deles satisfaça, em proveito do outro, determinada prestação”.


3 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

Para Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil Vol. III, p.7, 2007), “ao tratarmos do negócio jurídico, vimos que sua noção primária assenta na ideia de um pressuposto de fato, querido ou posto em jogo pela vontade, e reconhecido como base do efeito jurídico conhecido”; ou seja, quando introduzimos os negócios jurídicos, com base na vontade das partes e com observância ao ordenamento jurídico vigente, quando há o acordo e o comprometimento entre as partes, entende-se como existindo o contrato, pois assim completa o autor: “o direito atribui, pois, à vontade este efeito (...),em coincidência, para a constituição do negócio jurídico bilateral (...). Aqui é que se situa a noção estrita de contrato”

Entretanto, para Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil Brasileiro Vol. 3, p.22, 2014), não apenas para regular as obrigações, pura e simplesmente, existe o contrato; também é aplicado a outras esferas do Direito, ou do próprio Direito Civil, como explica: “(...) o contrato não se restringe ao direito das obrigações, estendendo-se a outros ramos do direito privado (o casamento, p. Ex., é considerado um contrato especial, um contrato do direito de família)”. Como um exemplo da força desse tipo de contrato, temos o texto da Constituição da Republica Federativa do Brasil, em seu Artigo 226, quando afirma: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”, e complementa, no parágrafo terceiro desse mesmo Artigo: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Com tal afirmação, a Constituição dá igualdade de tratamento aos conviventes, porém ressalta a necessidade de facilitação da transformação da convivência em um casamento, com o contrato na forma estabelecida em Lei.

Segundo o doutrinador Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil Vol II....Contratos, p. 473, 2014), “a Teoria Geral dos Negócios Jurídicos aplica-se aos contratos que se inserem integralmente nessa categoria.” Ou seja, aplica-se tal Teoria essencialmente aos contratos. Entretanto, cita que há aspectos peculiares específicos dos contratos, e cita ainda situações nas quais o contrato pode existir, ser válido – preenchendo então 2 dos 3 requisitos da Escada Ponteana – e não gerar efeitos, como exemplo: “o contrato pode existir, isto é, possuir aspecto material de um negócio, mas não ter validade por lhe faltar, por exemplo, agente capaz”.

Segundo Flávio Tartuce (Direito Civil Vol. 3, p. 2, 2014), trata-se o contrato de “ato jurídico bilateral, dependente de pelo menos duas declarações de vontade, cujo objetivo é a criação, a alteração ou até mesmo a extinção de direitos e deveres de conteúdo patrimonial”. E prossegue, afirmando serem o contratos “todos os tipos de convenções ou estipulações que possam ser criadas pelo acordo de vontades e por outros fatores acessórios”.

Flávio Tartuce destaca, em seu livro Direito Civil Vol. 3 – Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie, que os elementos constitutivos dos contratos são, essencialmente, os mesmos que, em regra, compõem os negócios jurídicos, como possível de se observar na página 14, “os elementos constitutivos dos contratos são os mesmos que estão expostos (...) como elementos constitutivos dos negócios jurídicos em geral.” Não afasta, entretanto, as características diretamente atreladas ao objeto dos contratos, como as cláusulas relativas à economicidade do negócio, utilizando-se, nessa mesma página, do exemplo do preço, no caso de contrato de compra e venda, e do aluguel, nos contratos para locação.

A saber, constituem elementos do negócio jurídico, segundo definição de Pontes de Miranda: o Plano da Existência; o Plano da Validade; e o Plano da Eficácia (TARTUCE, 2014).

Com o advento do Código Civil de 2002, deu-se a concretização da importância dos Princípios norteadores no Direito Civil, abrindo mão, em parte, de um caráter mais individualista, e adotando uma postura mais valorizadora da sociedade, segundo Décio Seijii Fujita, em seu artigo intitulado Princípios do Novo Direito Contratual (2014).

Sílvio de Salvo Venosa (2014) apresenta como sendo os princípios fundamentais do Direito dos Contratos, o Princípio da Autonomia da Vontade; da Força Obrigatória dos Contratos; Relatividade dos Contratos; e o o Princípio da Boa Fé nos Contratos.

Podemos citar, ainda, o Princípio da Função Social do Contrato, importante desdobramento do Princípio da Boa Fé nos Contratos, com base no mesmo livro de Venosa, mas agora na página 413.

Inspirado no Direito Francês, com sua visão de que o contrato faz lei entre as partes, o Princípio da Autonomia da Vontade vem perdendo espaço no Direito contemporâneo. Para Sílvio de Salvo Venosa (Direito...Contratos, p. 408, 2014), a movimentação atual é por uma visão não mais com a vontade das partes acima de qualquer consideração: “esse princípio clássico (...) é posto hoje em nova berlinda. Desapareceu o liberalismo que colocou a vontade como o centro de todas as avenças”.

A limitação ao Princípio da Autonomia da Vontade não é movimento presente apenas no Direito Brasileiro. Como exemplo, a previsão do Artigo 405º do Código Civil Português:

ARTIGO 405º (Liberdade contratual) 1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as claúsulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.

Consideramos de destacada importância Princípio da Autonomia da Vontade. Como bem observa Flávio Tartuce (Direito Civil Vol. 3, p. 54, 2014), a liberdade de escolha, de decidir por realizar ou não determinado ato, é do âmago do humano, diretamente atrelado ao que podemos entender como natural da pessoa, e “o próprio elemento propulsor do domínio do ser humano em relação às demais espécies que vivem sobre a Terra”. Podemos citar decisão Terceira Turma do STJ acerca do assunto, reforçando o entendimento sobre a aplicabilidade de tal Princípio:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. ANULATÓRIA. CONTRATO. CESSÃO DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS. COMPENSAÇÃO. TERCEIRO. IMPOSSIBILIDADE. NOTIFICAÇÃO. DEVEDORA. ÔNUS. RECORRIDA. MOTIVO DETERMINANTE. INEXISTÊNCIA. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. NÃO OCORRÊNCIA. SOCIEDADES EMPRESÁRIAS. SIMETRIA. AUTONOMIA DA VONTADE. VINCULAÇÃO AO CONTRATO. PREVALÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a verificar se a impossibilidade de compensação de créditos tributários perante a Receita Federal é motivo suficiente para a anulação do contrato de cessão desses créditos firmado entre sociedades empresárias. 3. Na hipótese, o contrato firmado entre as partes previa que a cessão importava na transferência de titularidade para a prática de todos os atos, inclusive para a notificação da Receita Federal. 4. No caso concreto, era possível requerer a restituição dos valores, o que afasta a ocorrência de enriquecimento sem causa. 5. Para que o motivo se torne relevante, é necessário que seja indicado expressamente como razão determinante para a realização do ato, ou na forma de condição, o que não ocorreu no caso em apreço. 6. Se as partes são sociedades empresárias com as mesmas condições de negociação, inexistindo relação de dependência entre elas, os princípios da autonomia da vontade e da vinculação ao contrato são suficientes, a princípio, para disciplinar as relações contratuais. (STJ - REsp: 1645719 RJ 2014/0165253-6, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 21/11/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/11/2017)

Tal decisão reforça entendimento de que, não havendo situação específica a ensejar a relativização do princípio pacta sunt servanda, este deve ser obedecido, como no caso em tela, haja visto o respeito à liberdade de contratação das partes.

Avançando nos Princípios, podemos falar que o Princípio da Força Obrigatória dos Contratos, amplamente conhecido como sendo a conversão em um princípio para a expressão em latim pacta sunt servanda, tem relevante destaque na estrutura contratual, sendo em grande parte responsável pelo caráter coercitivo em caso de inadimplemento.

Sílvio de Salvo Venosa (Direito...Contratos, p. 409, 2014) descreve tal obrigatoriedade como sendo a base do Direito Contratual. Na visão do professor, ”essa obrigatoriedade forma a base do direito contratual. O ordenamento deve conferir à parte instrumentos judiciários para obrigar o contratante a cumprir o contrato ou a indenizar pelas perdas e danos”

Para Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil Vol. III, p.14, 2007), “com a ressalva de uma amenização ou relatividade de regra (...), o princípio da força obrigatória do contrato significa, em essência, a irreversibilidade da palavra empenhada”. Ou seja, tal autor entende que tal força obrigatória é oriunda também da função social do contrato, considerando-se a necessidade da efetivação do contrato no campo da eficácia, para o real desempenho de sua função precípua.

No Direito Civil Brasileiro não há previsão positivada desse princípio, porém podemos entender (TARTUCE, 2014) como a natural consequência de dispositivos como os Artigos 389, 390 e 391, todos do Título IV do referido Código, que tratam do Inadimplemento.

Entretanto, tal princípio encontra posicionamento forte no sentido de sua relativização, como facilmente destacável:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. REVISÃO DE CONTRATO FINDO. POSSIBILIDADE. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. OBRA FINALIZADA. ÍNDICE SINDUSCON. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. 1. É possível a revisão judicial dos contratos findos, quer pela novação ou pelo pagamento, de maneira a viabilizar o afastamento de eventuais ilegalidades, as quais não se convalescem. Aplicação, por analogia, da Súmula 286/STJ: "A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores."2. No contrato de compra e venda de imóvel com a obra finalizada, não é possível a utilização de índice setorial de reajuste - Sinduscon, pois não há mais influência do preço dos insumos da construção civil. Precedentes.3. Agravo interno desprovido. (STJ - REsp: 1709637 RJ 2017/0047616-8, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: DJ 01/02/2018)

Na decisão monocrática acima transcrita, do Ministro Antônio Carlos Ferreira, não apenas foi aplicada a relativização do Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos, como o foi em um contrato já findo, caracterizando então uma relativização ainda mais emblemática.

Citando Clóvis Beviláqua, acerca de outro princípio, Flávio Tartuce (Direito Civil Vol. 3, p. 115, 2014) apresenta o que nos parece ser uma conceituação muito próxima da ideal, de Princípio da Relatividade dos Contratos:

Os direitos obrigacionaes consistem exclusivamente em prestações, actos positivos ou negativos, pelo que se fixam apenas no acto ou facto a ser excecutado, e somente podem ferir a pessoa que se acha vinculada pela obrigação no momento de seu cumprimento.

Naturalmente há exceções, como o Artigo 436 do Código Civil Brasileiro, in verbis: “O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.”

Ensina o professor Sílvio de Salvo Venosa, (Direito...Contratos, p. 410, 2014) que os efeitos da relatividade dos contratos não se aplicam somente aos contratantes, mas também ao objeto. Ainda exemplifica que, em regra: “o contrato sobre bem que não pertence aos sujeitos não atinge terceiros”.

Logo, o Princípio da Relatividade dos Contratos vem, essencialmente e em regra, impugnar o compartilhamento dos efeitos do contratos sobre terceiros e bens de tericeiros não envolvidos na relação contratual.

Acerca do Princípio da Função Social dos Contratos, Flávio Tartuce (Direito Civil Vol. 3, p. 62, 2014), destaca a literalidade do Artigo 421 do Código CivilBrasileiro, a saber: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”, e a previsão expressa do Artigo 2.035, parágrafo único, também do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.“, dando especial importância ao segundo dispositivo, “sendo certo que é até mais importante que o primeiro”.

Vale ressaltar a preocupação já demonstrada na própria Constituição da Republica Federativa do Brasil, na qual aparece nada menos que por 7 vezes a expressão “função social”. E, não apenas como expressão, a CRFB/88 também destaca a busca por esse objetivo como sendo princípio essencial para a ordem econômica, em seu Artigo 170, III. Vale destacar ainda que, nesse caso, a instituição bancária pretendia manter seu crédito hipotecário para com a incorporação construtora, a despeito da ocorrência de quitação da unidade imobiliária; em consequência, tal cláusula contratual feriria o direito de terceiro, nesse caso, o adquirente do imóvel. Logo, a decisão da referida Turma foi sobejamente acertada, em razão da observância, dentre outros, do Princípio da Função Social dos Contratos.

Entendemos como meio de impor a observância dos bons costumes da sociedade ao trato com o Direito, sendo um comportamento observável inclusive em diferentes países, que praticam uma forma mais refinada de Direito, como podemos observar através de Vera Maria Jacob de Fradara, em seu artigo intitulado A Boa Fé Objetiva, Uma Noção Presente No Conceito Alemão, Brasileiro e Japonês de Contrato (2008), ao mencionar o Direito Japonês, acerca do bem estar social, da boa fé, e da vedação ao abuso de um direito:“Artigo 1º alínea 2: O exercício dos direitos e a execução das obrigações são coisas que devem ser feitas de boa fé e com lealdade.”

Citando o Código Alemão de 1900, a autora ainda nos traz: “§ 242: O devedor tem a obrigação de executar a prestação, tal como o exigem a confiança e a fidelidade levando em consideração os usos de tráfico.”

Como outra faceta do princípio da boa fé, e que atinge diretamente o princípio da autonomia da vontade, limitando o segundo, temos a previsão do Artigo 187 do Código Civil Brasileiro, a saber: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Observando-se o Enunciado 27 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, temos ainda: “Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.”

Com base no entendimento do Enunciado acima exposto, temos como necessária a utilização da visão de boa fé objetiva também em outros dispositivos, como no Código de Defesa do Consumidor, que traz, em seu Artigo 4º, III, a determinação de se agir “(...) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.

Tal é a importância do princípio da função social, que nos permite discutir a maleabilidade dos contratos.


4 TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

Seguindo entendimento natural após a compreensão dos institutos trazidos pela Teoria Geral dos Contratos, bem como pela Teoria Geral das Obrigações, podemos considerar como natural o avanço para, enfim, a compreensão do objeto fim do presente trabalho.

A Teoria do Adimplemento Substancial tem sua origem no Direito Inglês, com seu primeiro registro oficial datando da década de 70 do século XVIII. Tal registro valioso trata-se de conteúdo muito citado, inclusive constante de arquivo da Universidade de Harvard, sendo que traz uma lide entre um reclamante inglês, nos anos setenta do século XVIII, de nome Boone, que havia transmitido ao réu, chamado Eyre, direitos sobre uma plantação e um lote de negros localizados na região conhecida como Índias Ocidentais, ao preço de £500 no ato e outros pagamentos anuais de £160.

Covenant on a deed, whereby the plaintiff conveyed to the defendant the equity of redemption of a plantation in the West Indies, together with the stock of negroes upon it, in consideration of £500 and an annuity of £160 per annum for his life; and covenanted that he had a good title to the plantation, was lawfully possessed of the negroes, and that the defendant should quietly enjoy. The defendant covenanted, that the plaintiff well and truly performing all and every thing therein contained on his part to be performed, he the defendant would pay the annuity. The breach assigned was the non-payment of the annuity. Plea, that the plaintiff was not, at the time of making the deed, legally possessed of the negroes on the plantation, and so had not a good title to convey.

To which there was a general demurrer.

LORD MANSFIELD.—The distinction is very clear, where mutual covenants go to the whole of the consideration on both sides, they are mutual conditions, the one precedent to the other. But where they go only to a part, where a breach may be paid for in damages, there the defendant has a remedy on his covenant, and shall not plead it as a condition precedent. If this plea were to be alIowed, anyone negro not being the property of the plaintiff would bar the action. Judgment for the plaintiff. (Harvard Law School, Boone v. Eyre, Banco Aberto de Casos da Escola de Direito da Universidade de Harvard, 2013) [1]

Em razão de divergências quanto ao entregue por Boone, a saber, a plena posse dos negros na plantação, desejava Eyre esquivar-se dos pagamentos anuais, ao que o julgador, Lord Mansfield, aplicou a – ainda não existente de maneira mais formal à época – que viria a ser conhecida como “doctrine of substantial performance in contract law”, ou Teoria do Adimplemento Substancial, no Brasil, entendendo que, se Eyre deixasse de efetuar os pagamentos anuais, a propriedade lhe sairia por preço muito menor ao que valia. Para Lord Mansfield, restava direito a Eyre quanto a uma indenização pelo que deixou de receber, porém não lhe cabia deixar de efetuar o pagamento, em razão do adimplemento substancial da obrigação por parte de Boone, a quem, em aspectos gerais, Lord Mansfield deu o ganho de causa.

No Direito Italiano já existe a previsão do Adimplemento Substancial, porém sem uma especificação quanto aos critérios objetivos para sua aplicação:

Art. 1455 Importanza dell'inadempimento Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). (Código Civil Italiano, Livro Quarto, Título II, Capítulo XIV, Seção I)[2]

Nesse trecho, fica estabelecido que o inadimplemento, se de pouca importância, não resolve o contrato, protegendo-se, porém, o direito da outra parte.

No Brasil, a primeira vez em que tal teoria apareceu em um acórdão do Superior Tribunal de Justiça foi em 1995, de acordo com artigo publicado na revista eletrônica especializada em Direito, Conjur, pelo Ministro Antônio Carlos Ferreira, do próprio STJ, sendo o REsp de número 76.362/MT, com julgamento em 11 de dezembro daquele ano. Segundo o citado Ministro, “seu resumo é este: a) dois segurados promoveram ação de cobrança para receber a cobertura securitária devida em razão de acidente de veículo;”. Continua relatando o Ministro, seguindo o processo: “b) os segurados deixaram de pagar a última parcela na data do sinistro, o que foi confessado na inicial;”, e conclui com a informação do acórdão mato-grossense: “c) apreciada a ação pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu a corte que o segurado tinha “obrigação primordial” de pagar o “prêmio do seguro”. Sem isso, nada poderia exigir da seguradora, na hipótese de se achar em estado de inadimplência.”

Ministro Antônio Carlos Ferreira relata ainda o desfecho dado pelo Superior Tribunal de Justiça no caso: “No STJ (...), o relator ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. deu provimento ao recurso utilizando-se da doutrina do adimplemento substancial.”

Na interpretação do Ministro Antônio Carlos Ferreira, o entendimento do Relator foi acertado, pois se baseou na interpretação de que a seguradora não poderia “dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio”, pelos motivos que elencou: o costumeiro recebimento das prestações com atraso, nunca tendo se oposto a isso, e sendo prática autorizada em contrato, não encontrando sentido recusar-se apenas diante da ocorrência de sinistro que ensejasse o pagamento da indenização; o adimplemento substancial do contrato; e a necessidade da resolução contratual ser requerida em juízo, em razão da então possibilidade de se avaliar a importância do adimplemento. Também nas palavras do Ministro Antônio Carlos Ferreira:

A introdução da teoria do adimplemento substancial no STJ é um perfeito exemplo da virtuosa associação entre doutrina e jurisprudência, um diálogo cada vez mais raro em função do enorme acervo que os tribunais são levados a vencer todos os dias e, infelizmente, pela postura mais reativa que parte dos doutrinadores acabou por assumir em seus ofícios nas universidades e nos livros. (Antônio Carlos Ferreira, 2015, Revista Eletrônica Conjur)

O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça tem se guiado pela sobriedade, buscando sobretudo a efetivação do equilíbrio entre as partes, através da prestação jurisdicional. O julgamento do REsp 1051270 / RS, como possível de se constatar pela Ementa, é um belíssimo exemplo da melhor aplicação possível do Direito Civil, observando-se seus Princípios:

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. 1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". 2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial Adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido. (STJ – Resp: 1051270 RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Data da Publicação: 05/09/2011).

No julgado em tela, ao considerar o adimplemento substancial do recorrido, o Superior Tribunal de Justiça efetivamente fez jus a seu nome, oferecendo a melhor prestação jurisdicional possível ao caso concreto. Ora, se após o pagamento de 86% da obrigação total, que se tratava de mera questão de prestações pecuniárias sucessivas, a instituição de crédito ainda puder se utilizar de uma Ação de Reintegração de Posse e assim recuperar o bem, que nessa altura já é muito mais do pagador que da instituição bancária – afinal, 86% está absurdamente mais próximo de 100% do que de 0% - , tal situação, sim, compreenderia um rompimento total com o Princípio da Boa-Fé, com o risco até mesmo de incidir em enriquecimento sem causa, em afronta ao Artigo 884, Caput, do Código Civil Brasileiro, in verbis: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

A despeito desse assunto, aliás, não cabe preocupação quanto ao enriquecimento sem causa da outra parte, o parcialmente inadimplente, pela aplicação dessa teoria, conforme trecho final do julgado exposto, “Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título”, e também em conformidade com o Artigo 886: “Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.”

Cabe ressaltar a necessidade de se verificarem determinados requisitos para que se possa pleitear a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial. Ao julgar o REsp 1581505 / SC, o Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, da Quarta Turma, apresentou o que entende serem tais requisitos:

a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários. (STJ – Resp: 1581505 / SC, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira . Data da Publicação: 28/09/2016)

No julgamento em questão, do REsp 1581505 / SC, tais requisitos não estavam presentes, razão pela qual foi desprovido o Recurso.

Podemos destacar, dentre os requisitos para a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, o que melhor se enquadra no próprio conceito de adimplemento substancial: o da proporcionalidade do cumprimento da obrigação em razão da pretensão de resolução contratual. Exemplo relevante acerca do tema é o Resp 1636692 / RJ, no qual a Terceira Turma considerou, em um caso envolvendo o inadimplemento de um terço da obrigação, a inaplicabilidade da referida teoria.

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CONTRATOS DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATOS. ALEGAÇÃO DE CUMPRIMENTO PARCIAL DOS CONTRATOS. INADIMPLEMENTO DE PARCELAS MENSAIS E SEMESTRAIS. FATOS INCONTROVERSOS. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. INAPLICABILIDADE NA ESPÉCIE. 1. Discussão acerca da aplicação da chamada Teoria do Adimplemento Substancial, instituto que pode, eventualmente, restringir o direito do credor à resolução contratual previsto no artigo 475 do CC/02 (art. 1.092, § único, do CC/16), tendo por fundamento a função de controle do princípio da boa-fé objetiva. 2. "O adimplemento substancial constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)". 3. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 4. Caso concreto em que restou incontroverso que a devedora inadimpliu parcela relevante da contratação (cerca de um terço do total da dívida contraída), mostrando-se indevida a aplicação, pelo Tribunal de origem, da Teoria do Adimplemento Substancial. 5. Necessidade de retorno dos autos à origem a fim de que proceda ao julgamento dos demais pedidos constantes da petição inicial, bem como da reconvenção. 6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ – Resp: 1636692 / RJ, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino . Data da Publicação: 18/12/2017)

Nesse caso, o adimplemento por parte do recorrido foi de aproximadamente 66% da obrigação, apenas. Logo, não se pode considerar como ínfima (e, nesse caso, fazendo menção novamente ao entendimento do Ministro Antônio Carlos Ferreira durante julgamento do REsp 1581505 / SC) a parcela da obrigação não adimplida, restando portando incabível a Teoria do Adimplemento Substancial.

Vale ressaltar entendimento corrente de que a substancialidade do cumprimento da obrigação não se verifica apenas com uma conta matemática. Nas palavras de Flávio Tartuce: “a análise do adimplemento substancial não deve ser meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do montante do cumprimento do negócio” (2015). E continua explicando o que se deve analisar: “Deve-se considerar também o aspecto qualitativo, afastando-se a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.” (2015).

Na mesma linha de Flávio Tartuce, a respeito da não aplicabilidade da Teoria do Adimplemento Substancial com base apenas em critérios matemáticos, também vêm sendo produzidos acórdãos pelos ministros do STJ:

2.- Ressalvada a hipótese de evidente relevância do descumprimento contratual, o julgamento sobre a aplicação da chamada "Teoria do Adimplemento Substancial" não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio. (STJ – Resp: 1581505 / SC, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira . Data da Publicação: 28/09/2016)

Em Recurso Especial em ação versando sobre compra e venda de imóveis, mesmo entendimento teve a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça:

4.- No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as conseqüências que, Jurisprudência/STJ - Acórdãos Página 1 de 2 da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das conseqüências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida. (STJ – Resp: 1215289 / SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, Data da Publicação: 21/02/2013)

A despeito de tais observações, acerca da inviabilidade da análise quanto à aplicação da Teoria do Inadimplemento Substancial exclusivamente com base na percentualidade do adimplemento, devemos considerar a posição do próprio STJ acerca do tema, ao buscar uma solução prática a esse conflito, ainda que não exato, porém sendo um passo na direção da transformação do abstrato em algo mais concreto.

Naturalmente considerando-se a contínua e acertada discussão sobre a necessidade de se analisarem outros elementos além do percentual adimplido, podemos utilizar o entendimento, bastante recente, do Ministro Lázaro Guimarães, Desembargador Convocado do TRT-5:

DIREITO CONTRATUAL. CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL À PRESTAÇÃO. INADIMPLEMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO DO CONTRATO, REINTEGRAÇÃO NA POSSE E INDENIZAÇÃO POR FRUIÇÃO. INCONSISTÊNCIA. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. POSSIBILIDADE. Cumprindo a parte mais de 80% de sua obrigação, não se mostra razoável a rescisão do Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda de imóvel impondo-se o reconhecimento do adimplemento substancial pela incidência do princípio da boa-fé objetiva, a teor do artigo 422, CC/2002, e consagrada no art. 51, inc. IV do CDC. Apelação Cível conhecida e desprovida. (Resp 1351670 / GO. Relator Ministro Lázaro Guimarães. Data da Publicação 14/05/2018)

Tal entendimento reforça a percepção quanto à necessidade de se observarem elementos essenciais para a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, nesse caso havendo o adimplemento de mais de 80% da obrigação.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desse trabalho, nota-se a importância de ressaltar que o adimplemento, para que possa ser considerado substancial, não deve ter unicamente analisada a questão matemática, ou seja, não se deve considerar apenas o número absoluto de prestações devidas ou adimplidas, pois o que define a substancialidade do cumprimento de obrigação não necessariamente será a percentualidade numérica; deve, sim, ser analisado o caso como um todo, e, ante suas peculiaridades, interpretar se o montante adimplido provocaria um excessivo prejuízo ao credor, em caso de desfazimento do negócio, sendo então ocasião para a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, e obstando assim eventual abuso do poder de resolução unilateral do contrato por parte do credor.

Porém, se no caso concreto for possível visualizar que o adimplemento não teve o condão de fornecer o título de substancial quitação ao devedor, não se pode considerar justo tirar do credor seu legítimo direito ao desfazimento do contrato, deixando-o então apenas com meios menos eficazes de cobrança coercitiva, como o protesto de títulos e a negativação do devedor em cadastros especializados.

Deve-se, portanto, analisar caso a caso e verificar o justo em cada decisão, buscando assim a melhor forma de se oferecer justiça às partes.

Interessante seria a criação de uma tabela, a partir da qual se poderia identificar a existência ou não da substancialidade do cumprimento da obrigação; entretanto, isso não é possível. Possível, entretanto, é identificar os percentuais considerados pelos Ministros em seus julgados pelo STJ.

De acordo com o Resp 1636692/RJ, 66% de adimplemento não se passa por suficiente para que se configure a substancialidade. Porém, com base no Resp 1351670/GO, essa mesma substancialidade pôde ser observada em obrigação 80% adimplida, aproximadamente.

Logo, não se pretendendo estabelecer parâmetros exatos, até mesmo por não ser e nem se pretender ser, o Direito, uma ciência exata, podemos entender, como percebido pelo Superior Tribunal de Justiça, como uma das formas de se considerar a substancialidade no cumprimento de uma obrigação, o adimplemento de algo entre os 66% e os 80%.

Sabido é, entretanto, que a substancialidade não se verifica apenas com a aplicação de contas matemáticas. Logo, o que se pode fazer é positivar a Teoria do Adimplemento Substancial no Direito Civil Brasileiro, por meio do nobre Poder Legislativo, eventualmente nos moldes do Direito Civil Italiano, conforme apresentado nesse trabalho, e deixar a cargo dos operadores do Direito sua mensuração no caso concreto, sempre buscando, o advogado, a melhor Justiça para seu cliente. Pois, segundo frase atribuída por Maury Gomes de Lima (2010) ao jurista Dalmo de Abreu Dallari, “ao advogado compete assegurar a força jurídica àquele que não dispõe de qualquer outra”.


6 REFERÊNCIAS

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BRASIL. Código Civil Brasileiro – Vade Mecum Tradicional, 25. ed., São Paulo: Saraiva, 2018.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Julgamento de Recurso Especial. Recorrente: Cristal Construções e Empreendimentos LTDA. Advogado: Mario Fernando Camozzi 005020 GO e Outros. Recorrido: Leonice Sores Santiago e Outros. Advogado: Cláudio Albuquerque 016513 GO e Outros. Relator Exmo Ministro Lázaro Guimarães. Julgamento ocorrido em 10 de maio de 2018. Disponível em https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STJ/attachments/STJ_RESP_1351670_b8254.pdf?Signature=OWEz20xSGa5Kq1G7eS33QhUlwR0%3D&Expires=1528744597&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application/pdf&x-amz-meta-md5-hash=a9e288476d4800eeb19b20cdd61767e5 . Acesso em 11 jun 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Julgamento de Recurso Especial. Recorrente: Dorex Incorporações LTDA. Advogados: Luiz Henrique Ferreira Leite RJ073690, Souza Aviz e Outros RJ167541. Recorrida: Nilzete Ferreira. Advogados: Marcerlo Pires Branco da Costa e Outros RJ103925 e Tatiana Souza RJ121131. Relator Exmo Ministro Antônio Carlos Ferreira. Julgamento ocorrido em 18 de dezembro de 2017. Disponível em https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STJ/attachments/STJ_RESP_1709637_617c6.pdf?Signature=1Sy%2BqlcCGv%2F1snUEkT3dLNPUt2I%3D&Expires=1524359948&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application/pdf&x-amz-meta-md5-hash=bfe9300fe4b97482ab84218768c1786c Acesso em 21 abr 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Julgamento de Recurso Especial. Recorrente: Marina Crhistiane de Freitas Faoro. Advogado: Adolfo de Souza Barbosa SC 042435 e Outros. Recorrido: Adibens Administradora de Bens LTDA Advogados: Jeanine Batista Almeida SC 026846 e Outros Marcelo Alan Gonçalves 022365. Relator Exmo. Ministro Antônio Carlos Ferreira. Julgamento ocorrido em 01/09/2016. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201502887137&dt_publicacao=28/09/2016 Acesso em 07 jun 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Julgamento de Recurso Especial. Recorrente: MY Rio Coméricio de Material Cirúrgico LTDA e outros. Advogados:Cid Augusto Mendes Cunha e Outros - RJ076077, Alexandre Magno Celestino RJ100953, Eduardo José de Arruda Burégio e Outros - RJ076432, Aline Stumbo Muniz e Outros - RJ186198. Recorrido: Superpesa Companhia de Transportes Especiais e Intermodais. Advogados: Hélio José Cavalcanti Barros e Outros - RJ082524, Luciene Dias da Silva - RJ099173, Danielle de Albuquerque Farias e Outros – Relator Exmo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento ocorrido em 21 de novembro de 2017. RJ084583 REsp 1645719 RJ 2014/0165253-6. Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/526808897/recurso-especial-resp-1645719-rj-2014-0165253-6/inteiro-teor-526808907?ref=juris-tabs . Acesso em 21 abr 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Julgamento de Recurso Especial. Recorrrente: São Marcos Empreendimentos Imobiliários LTDA. Advogados: José Perdiz de Jesus DF 010011 João Carlos Miranda Garcia de Souza RJ 075342 e Outros Rodrigo Neiva Pinheiro DF 018251 e Outros. Recorrido Rosane Maria Gutierres Santana Advogado: Carlos Roberto Ferreira Barbosa Moreira RJ 061492. Relator Exmo. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento ocorrido em 12/12/2017. Disponível em < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201403164944&dt_publicacao=18/12/2017> . Acesso em 07 jun 2018.

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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Vol II - Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 14ª Edição. Editora Atlas. São Paulo, 2014.


Notas

[1] tradução do autor: Pacto em uma escritura, por meio do qual o queixoso transmitiu ao réu a equidade de resgate de uma plantação nas Índias Ocidentais, juntamente com o estoque de negros sobre ela, em consideração de £ 500 e uma anuidade de £ 160 por ano para sua vida; e conveniado que ele tinha um bom título para a plantação, era legalmente possuidor dos negros, e que o réu deveria desfrutar tranquilamente. O réu concordou, que o autor bem e verdadeiramente realizando tudo e todos os itens nele contidos de sua parte a ser executada, o réu iria pagar a anuidade. A violação atribuída foi o não pagamento da anuidade. Argumenta-se que o autor não estava, no momento da escritura, legalmente possuidor dos negros na plantação, e por isso não tinha um bom título para transmitir. Para o qual houve um demurrer geral. LORD MANSFIELD. — A distinção é muito clara, onde os convênios mútuos vão para o todo da consideração de ambos os lados, sendo condições mútuas, de um para o outro. Mas com vantagem para uma parte, onde uma violação pode ser paga por danos, tendo o réu um remédio em seu pacto, e não devendo alegar isso como uma condição precedente. Se tal fundamento fosse permitido, qualquer negro que não fosse propriedade do demandante impediria a ação. Julgamento pelo autor.

[2] tradução do autor: Artigo 1455. Importância do descumprimento. O contrato não poderá ser resolvido se a falta de uma das partes for de pouca importância, tendo em vista o interesse da outra.


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