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Brasil x apartheid social.

As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero

Brasil x apartheid social. As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero

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            "O mundo deu muitas voltas. Caíram barreiras, referências, mitos e muros. A história não coube em teorias. As teorias negaram suas promessas. O capitalismo continuou produzindo miséria, mas o socialismo avançou sem conseguir eliminá-la (...). Depois de 100 anos de socialismo e capitalismo, a miséria no mundo aumentou, e a economia transformou-se num código de brancos e numa fábrica de exclusão racionalizada. A modernidade produziu um mundo menor do que a humanidade. Sobraram bilhões de pessoas. Não se previu espaço para elas nos vários projetos internacionais e nacionais. No Brasil, essa exclusão tem raízes seculares. De um lado, senhores, proprietários, doutores. Do outro, índios, escravos, trabalhadores, pobres. Isso significa produzir riqueza pela produção de pobreza."

(Betinho)


Introdução

            A pretensão deste trabalho é fazer uma análise do problema da desigualdade de raça e de gênero dentro da atual sociedade brasileira, que pode ser denominada de complexa e global, trazendo a proposta de que somente com a observação do princípio da igualdade no respeito às diferenças e injustiças é que se poderá atingir o nível de sociedade justa buscada – uma sociedade diferenciada.

            Assim, inicialmente tratamos da sociedade, estrutura em que vivemos e que se apresenta como campo para o surgimento dos problemas sociais, econômicos e políticos que enfrentamos hoje no Brasil.

            Tentamos abordar as dificuldades causadas pela errônea distribuição de renda em nosso país, que traz como conseqüência à pobreza e sua apartação social.

            Dentro da análise das questões de gênero e raça tornou-se imprescindível falar da desigualdade existente no mercado de trabalho, onde negros e mulheres são tratados de forma discriminatória. Adentrando mais no estudo destas desigualdades observamos que há uma busca pelo respeito às diferenças, efetivada por muitos através de critérios de discriminação positiva, instituindo as chamadas de Ações Afirmativas que têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente que dá às minorias discriminadas direitos a uma parcela proporcional de recursos e oportunidades.

            O que tentamos demonstrar ao longo deste estudo é que a única forma de promover a justiça é realmente diferenciando, ou seja, respeitando as diferenças de cada ser humano de forma irrestrita e assimétrica.


1. O Desenvolvimento Brasileiro

            No Brasil, foi na década de trinta que se promoveu profundas mudanças na indústria e nas ciências, tendo como base desse momento histórico, a forma de desenvolvimento do capitalismo.

            Entre o período monárquico brasileiro e a Revolução de 1930, se passam quase quatro décadas e é durante este período que o país atravessou um tumultuado processo de expansão capitalista, pois a partir dos anos 30 foram sentidos os impactos das transformações econômico-sociais e culturais promovidas por esse processo. (1)

            Todas essas manifestações descritas por Marco Aurélio Nogueira têm o objetivo de denunciar a velha oligarquia, e quando, combinou-se com isso a crise mundial do capitalismo (1929) e o agravamento das dissidências entre as oligarquias, eclodiu a Revolução de 1930.

            O Estado aproveitou o momento aberto pela crise de 1929 para conduzir a modernização e organizar a sociedade civil, com isso, passamos a ter um Estado que além de garantir a ordem capitalista, tinha o intuito de participar do processo. (2)

            Na verdade, os eventos mais importantes da década de trinta estavam carregados de influências autoritárias e golpistas, tais como: a Revolução de 1930; a luta civilista de São Paulo, em 1932; o final da fase do tenentismo, entre 1930 e 1934; as manifestações comunistas de 1935; o golpe do Estado Novo, de 1937; a agitação fascista do integralismo, e até mesmo, a estrutura sindical, a ordenação institucional e o pensamento político.

            A transição de 1945 ocorre em outubro com um golpe político que depôs o presidente Vargas, e que acabou com as chances de uma democratização, sendo que o sonho comunista apenas voltou a se acender em 1954 com o suicídio de Vargas e a "desestanilização" da União Soviética em 1956.

            Assim, o país ingressou na década de 80, ainda sem superar a era de Vargas. (3)

            No final da década de 80 o que se observa na área política são assuntos centrados nos ajustes econômicos e no problema da estabilidade econômica, que causou a chamada "Crise do Estado", e que fez do ingresso nos anos 90 uma época de inúmeros reformismos.

            Apesar do Brasil poder ser considerado como o país da América Latina que mais se opôs às políticas de desregulamentação financeira e abertura irrestrita do mercado, as políticas de ajuste que foram implementadas nos anos 90, até hoje causam grandes impactos em nossa economia.

            Para o entendimento dos acontecimentos deste período é necessário que saibamos que na década de oitenta o Brasil era o país mais industrializado da América Latina, pois possuía uma indústria de porte, um certo grau de articulação interindustrial e inserção internacional, e por isso, a economia brasileira não fazia blocos comerciais regionais, não obtendo assim, algumas complementaridades decisivas, fatos esses que dificultaram o ajuste passivo da economia do país à nova ordem econômica mundial.

            No mais, o Estado encontrava-se fragilizado devido à série de acontecimentos políticos, como já narramos, não conseguindo disciplinar o trabalho, o capital e a si próprio, de forma simultânea. (4)

            Em 1989 foram realizadas, depois de anos de ditadura, as primeiras eleições democráticas no país, e em março de 1990 o presidente eleito pelo povo Fernando Collor de Mello tomou posse, elevando os problemas do Estado à posição de destaque absoluto. Neste momento o país era desafiado a ajustar sua economia à nova fase do capitalismo mundial, cuja ideologia, o neoliberalismo, encontrava-se precisamente no Estado seu sparring preferencial. (5)

            É nesse contexto que Collor implantou seu plano de governo, ou seja, o plano de estabilização e reforma econômica que ocupou o centro das preocupações políticas e econômicas, deixando de lado os demais setores do governo que muito importavam à sociedade brasileira, tal como a política social.

            O governo Collor viu seu fim após dois anos de mandato, através de um processo de impeachment inédito na história do país, tendo sido condenado pela sociedade, pelo Congresso e pela Justiça. Sua trajetória "espetacular" não será sem conseqüências. Aproximará a questão do Estado dos termos neoliberais e globalizados, desmoralizará ainda mais as atividades de governo e aprofundará com radicalidade à distância entre o Estado e a sociedade civil. (6)

            O Brasil passou por um período de transição (Itamar Franco, 1992-1994), onde foi formulado um plano de estabilização que criaria a atual moeda – o denominado Plano Real – porém, tal governo não tomou medidas radicais em termos de privatização e cortes nos gastos públicos.

            Nas eleições de 1994, Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente do país, e seu governo teve um firme empenho em consolidar o combate à inflação, porém, demonstrou-se refém do capital financeiro internacional.

            Ocorre, portanto, o fortalecimento do neoliberalismo e a proposta de "desregulamentação" da economia é aceita, sendo responsável pelo surgimento das privatizações das empresas estatais, o que colaborou para a redução do setor público. Infelizmente, essa proposta se estendeu também para a área social, inclusive na Educação e na Saúde.

            A manutenção de uma recessão para atingir os objetivos pretendidos pelo ajuste neoliberal no Brasil, além de uma difícil sustentação política, atingiu a sociedade de modo extremamente desigual. Mais uma vez o preço a ser pago pelos mais frágeis – os de baixa renda e os agentes econômicos de menor poder de concentração de capital e menos capacidade de operação de sua própria liquidez – foi muito alto. (7)

            O governo de Fernando Henrique Cardoso durou oito anos (1994-2002), quando em novas eleições presidenciais foi eleito o novo Presidente da República do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, um ex-operário que por sua história de vida tenta efetivar diversas formas de políticas sociais, visando com isso minimizar as desigualdades. (8)

            Depois de uma breve elucidação sobre a transformação histórica, política e social do Brasil pode-se começar a compreender a atual situação do país diante do mundo globalizado.

            Percebemos que os efeitos desses "estabilizadores" podem ser facilmente verificados através do recrudescimento da inflação, mas, especialmente, por meio da precariedade da situação social que devido a ausência de políticas sociais por longos anos agravou ainda mais a situação da população brasileira.

            E é sobre essa situação, que vive atualmente a população brasileira, que trataremos no próximo tópico, tentando demonstrar, inclusive, o que a nossa legislação, através da Carta Magna de 1988, nos trouxe no sentido de diminuir esta difícil conjuntura social.

            1.1. A Pobreza como Apartheid Social

            Ao longo dos anos, o país alterou o eixo das atividades econômicas. A lavoura cedeu a primazia à indústria, o artesanato deu lugar à empresa. Na esteira dessas mudanças, a população migrou das fazendas para as cidades. O Brasil se fez cada vez mais urbano. O impacto da urbanização deu ao comércio novos contornos e importância no cenário econômico. As políticas públicas do Estado Brasileiro, no que se referiam à ordem econômica sempre traziam, em maior ou menor grau, a submissão a um grande pensamento: "primeiro faremos o bolo crescer, para, depois, dividirmos". Aos pobres, portanto, a palavra de ordem era: paciência. Contando com a resignação e a paciência da pobreza, construímos um país com desigualdades sociais indecentes e concentração de renda escandalosa que chega a ser obscena. (9)

            De todos os males do desenvolvimento perverso que o Brasil teve, talvez o maior de todos – ou dos maiores – tenha sido o aprisionamento da nossa mentalidade e da nossa cultura ao linguajar econômico. Linguajar econômico que nega a palavra "pobreza" e que coloca em seu lugar a palavra "desigualdade"; que nega a palavra "exclusão", e no seu lugar coloca a "falta de crescimento". (10)

            A atual sociedade tem se mostrado como uma sociedade de apartação e não apenas de desigualdade, onde a pobreza tem sido utilizada para estabelecer um verdadeiro apartheid social.

            O Brasil possui uma economia que devido a sua história de implementação não consegue eliminar a pobreza. (11)

            O percentual da população que se encontra em extrema pobreza – abaixo da linha da pobreza – aumenta a cada dia, podendo ser definido como aqueles cuja renda familiar não dá para comprar uma cesta básica de alimentos. (12)

            Para demonstrar essa pobreza, basta lembrarmos que um quarto da população do mundo vive no Norte, e que esta região é detentora de 70% da energia mundial e de 60% dos alimentos do planeta, outro índice atemorizante é que 20% das pessoas mais ricas possuem 82% da renda mundial, e entre os mais pobres (60%) esta renda não chega a 5,6%. Na América Latina existem 180 (cento e oitenta) milhões de pobres e 80 (oitenta) milhões de miseráveis. Isto é pobreza!

            E pela falta de alternativas que são oferecidas a estas pessoas, a medida em que a pobreza aumenta, elas vão, paulatinamente, perdendo os referenciais de cidadania.

            Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econômicas entre as camadas sociais, e que já foram superadas em outros países, inclusive, mediante ação diligente do Estado, somente persistem nos Estados de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qualidade de vida de vastos segmentos da sociedade, bloqueia-lhes o acesso àquele "mínimo de cultura política". (13)

            Há uma crença de que se o país ficar mais rico, conseqüentemente a pobreza será diminuída em seu território, o que quer dizer que a pobreza é a falta de riqueza. Porém, Cristovam Buarque afirma que tal alegação é falsa, pois a riqueza não cresce para os lados, ocupando o espaço onde estão os pobres; a riqueza cresce para cima, para as mesmas pessoas que já são ricas. De vez em quando alguém penetra nesse cone da riqueza, e, por outro lado, alguém que está dentro do cone cai na pobreza. Mas a luta contra a pobreza não pode se dar dentro do espaço da economia. A eliminação da pobreza não ocorrerá como fruto do crescimento econômico. (14)

            No Brasil normalmente a elevação do nível de renda diminui a pobreza, mas aumenta as diferenças entre pobres e ricos, mulheres e homens, brancos e negros, ou seja, a desigualdade.

            Na verdade, a pobreza e a desigualdade de renda não caminham juntas, pois, a redução da pobreza não importa em diminuição das diferenças de renda. O que vai determinar a redução ou não da pobreza e da desigualdade são os produtos socialmente aproveitáveis do aumento da renda.

            A desigualdade de renda é um osso duríssimo de roer. Ela só diminui quando submetida a uma árdua, ferrenha, incessante e paciente ofensiva social. Depende muito mais de uma infinidade de mudanças institucionais do que do aumento do nível de renda, por mais significativo que possa ser. Principalmente porque, em termos macroeconômicos, 1% de aumento da renda per capita costuma ter um impacto sobre a redução da pobreza que pode variar de 1% a 5%. Ou até bem mais de 5% se o critério de aferição da pobreza não estiver aprisionado apenas à renda, mas incluir, por exemplo, a expectativa de vida. (15)

            A supressão da pobreza, e, por conseguinte, da exclusão social se dará quando tivermos uma democracia capaz de respeitar as liberdades individuais, religiosas e os direitos das minorias.

            Assim, teremos uma sociedade – claro que com desigualdade – mas sem exclusão; com desigualdade no consumo, mas sem desigualdades nos bens e serviços essenciais; desigual no consumo, mas igualitária nos valores. (16)

            A realização de um projeto democrático de implementação da cidadania no Brasil passa necessariamente por uma profunda reformulação cultural, que torne possível o aparecimento de um cidadão crítico em relação às políticas públicas, de uma mídia independente e informadora, do fim do clientelismo e fisiologismo como forma de se fazer política, ou seja, pelo surgimento daquilo que Paulo Freire chamava de vivência democrática. (17)

            Formalmente, o Brasil segue o que foi preceituado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, acolhendo em sua Carta Magna os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, como veremos a seguir.

            É de extrema importância a análise destes princípios para que possamos encontrar soluções para a superação das desigualdades em nosso país, pois somente através do reconhecimento da igualdade é que se pode verificar a existência e as conseqüências da desigualdade, preservando assim a dignidade de cada cidadão brasileiro.


2. Igualdade: a Carta Magna de 1988

            Encontramos desde a antiguidade menções e lutas pela igualdade, tal como na obra A República de Platão, onde este defendia um conceito absoluto de igualdade, ou seja, ele preconizava a existência de um Estado onde não haveria pobreza nem riqueza, Estado cujo objetivo seria o de conceder maior felicidade ao todo e não a qualquer classe em separado. (18)Também, Aristóteles já se insurgia a favor da igualdade, porém, defendendo, contrariamente, a Platão, uma igualdade proporcional. (19)

            Nesta época, a igualdade possuía apenas valor teórico e se restringia à parcela "livre" da população, não incluindo os escravos. O autor Hermann Heller afirma que a idéia de igualdade é de origem cristã, pois na Antiguidade havia duas possibilidades naturais para o homem: ser livre ou ser escravo. (20)E realmente, foi somente com o advento do Cristianismo que podemos considerar a idéia de igualdade, pois, aparecem as duas idéias que constituem os primeiros fundamentos da democracia contemporânea, a liberdade e a igualdade de natureza (21), inclusive, o Cristianismo foi responsável, em grande parte, pela extinção da escravidão. (22)

            Podemos dizer que o primeiro texto onde se caracteriza expressamente a igualdade formal foi a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776. E logo depois a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 1789, que se constituirá na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

            A Declaração reconhece os Direitos Humanos considerados essenciais para garantir a dignidade de cada pessoa na sociedade em que vive, de forma que possibilite a cada uma o desenvolvimento integral de sua personalidade e de sua capacidade de participação na sociedade, entre eles a igualdade e a dignidade da pessoa humana. (23)

            Assim, a Declaração dirige sua aplicabilidade a todas as pessoas, e não somente aos Estados, pois não cabe só a ele a proteção e a promoção dos Direitos Humanos, mas sim a todos os membros da sociedade, pessoas físicas ou jurídicas, isto é, a todos os órgãos da sociedade.

            As prerrogativas contidas na Declaração têm caráter universal, ou seja, devem ser gozados por todos os seres humanos independentemente de sua cidadania. Porém, é imprescindível observar que essa universalidade, que goza os Direitos Humanos, não pode ser confundida com uniformidade, pois, devem ser observadas as diferenças específicas entre as pessoas, por razões de gênero, etnia, raça ou credo, caso contrário, estaremos produzindo – como muitas vezes ocorre – desigualdades que violaram os Direitos Humanos.

            As primeiras Constituições a absorverem os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana foram a Constituição do México, de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar, de 11 de agosto de 1919.

            No ordenamento brasileiro, o princípio da igualdade sempre teve sede no texto constitucional, desde a Constituição Imperial, datada de 1824.

            A atual Constituição Brasileira de 1.988, foi chamada de "redentora", pois fez frente ao período dos governos autoritários e ditatoriais. (24)

            Tanto, que surgiu com os ares da modernidade, prescrevendo no caput do art. 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes".

            Todas as demais Constituições dos Estados Modernos também adotaram o princípio da igualdade como um de seus fundamentos precípuos, se respaldando na Declaração Universal de Direitos Humanos.

            A Constituição Federal de 1988 possui várias normas programáticas que visam nivelar e diminuir as desigualdades existentes, tais como: art. 5º, inciso I, que determina que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações; art. 3º, inciso III e IV, que trata da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades sociais, da promoção do bem comum e da extinção de preconceitos e discriminações; art. 170 e incisos, que tratam da ordem econômica e social; art. 7º que trata da questão salarial; art. 205 que trata da democratização do ensino; o art. 226 que se refere a igualdade entre os cônjuges e muitos outros.

            Em nosso Direito Constitucional a busca pela igualdade material vem contida em numerosas normas constitucionais positivas, porém, estas a princípio são dotadas de características puramente formais.

            A igualdade entre os seres humanos deve ser encarada, portanto, sob dois aspectos: o formal e o material.

            Isto quer dizer, que o princípio da igualdade tem uma dupla aplicação: a primeira delas, pode ser considerada teórica, tendo a finalidade de afastar prerrogativas injustificadas; e a segunda, que é considerada prática, ajuda no arrefecimento dos efeitos decorrentes das disparidades evidenciadas diante do caso concreto.

            A igualdade formal – teórica – é a "igualdade de todos perante a lei", sendo essa a pura identidade de direitos e deveres concedidos aos membros da coletividade através dos textos legais. (25)

            Já a igualdade material consiste no tratamento igual e uniforme a todos os seres humanos, e também, a possibilidade de todos os seres humanos possuírem as mesmas oportunidades, as mesmas chances.

            Hoje, observando as desigualdades sócio-econômicas no mundo globalizado, percebemos que o princípio da igualdade e as normas que procuram diminuir as desigualdades materiais são impunemente desrespeitadas. (26)

            Assim, a igualdade material é a mais humanitária, idealista e desejável de todas, porém, nunca se concretizou em uma sociedade complexa, basta olharmos para a realidade a nossa volta.

            No próximo tópico analisaremos o paradoxo igualdade/desigualdade, e tentaremos estabelecer as possibilidades de se promover uma maior igualização através de práticas desiguais.

            2.1. A Contradição: Igualdade/Desigualdade

            Temístocles Cavalcanti, quando cita Barker, traz que todos têm o mesmo direito, mas não o direito às mesmas coisas. (27)

            Podemos encontrar em vários historiadores, ou mesmo no senso comum, que por mais plausíveis que pareçam as idéias de uma perfeita igualdade, elas são, no fundo, realmente impraticáveis, e se, não o fossem, seriam extremamente perniciosas para a sociedade humana. Por mais iguais que se façam as posses, os diferentes graus de habilidades, atenção e diligência dos homens irão imediatamente romper essa igualdade. (28)

            Portanto, e como veremos ainda no decorrer deste texto, o que tentamos defender é que a proteção ao mais fraco, seja por motivo econômico, social, de gênero ou de raça, não constitui ofensa à regra da igualdade perante a lei (formal).

            Na realidade, a interpretação do princípio da igualdade deve, acima de tudo, levar em consideração a existência das desigualdades e as injustiças causadas pela atual conjectura da sociedade, para, somente assim, promover-se uma igualização justa.

            José Afonso da Silva traz em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, o entendimento de Mauro Cappelletti que dizia que "está bem claro hoje que tratar ‘como igual’ a sujeitos que economicamente e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça". (29)

            Hoje, a sociedade moderna vive uma constante busca pela igualdade, tratando essa como um dos fatores da tão sonhada Justiça Social, e sobre isso já ensinava o brilhante Rui Barbosa:

            "A regra da igualdade não consiste em quinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada a desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem."(1960)

            O que se pode entender, portanto, é que o ser humano embora sendo igual em sua essência, se difere nos acidentes do cotidiano, ou seja, todos têm direitos iguais àquilo que diz respeito à essência do ser humano – alimentação, à vida, ao trabalho e etc. – porém, certas desigualdades acidentais, acabarão por ensejar a aquisição de direitos desiguais.

            Deixar agir a natureza, dar liberdade a cada homem para que exercite e desenvolva suas peculiares aptidões e virtudes, traduz-se, pois, em fomentar desigualdades. A contrario sensu, coarctar tais desigualdades, submetendo a sociedade a uma inexorável prensa niveladora, implica cercear o livre e natural desenvolvimento da atividade humana. E a natureza só se dobra com a força. Daí a íntima e inarredável conexão entre igualitarismo e tirania. (30)

            Obviamente, devido à pluralidade de pessoas, a lei não pode alcançar peculiaridades atinentes a cada um, mas, algumas características físicas, sociais e psicológicas ressaltam-se, e tanto permitem quanto obrigam, que se legisle levando-as em conta.

            Toda forma de aviltamento ou de degradação do ser humano é injusta. Toda injustiça é indigna e, sendo assim, desumana. (31)

            E é por isso, que nos últimos tópicos deste trabalho trataremos das desigualdades de gênero e de raça, que são implacáveis em nossa sociedade, apresentando ao final do estudo algumas possibilidades de soluções para essas diferenças.


3. As Desigualdades Raciais e de Gênero

            O Brasil é um país que possui, segundo estimativas do IBGE (Censo Demográfico 2000), cerca de 179 milhões de habitantes, sendo que de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE mais de 45,3% da população nacional é constituída por negros e pardos, ou por afro-brasileiros, sendo a menor concentração nas áreas metropolitanas (26,9%).

            Em uma sociedade racialmente excludente como a nossa, na qual as desigualdades raciais são mascaradas pelo mito da democracia racial, a formulação e implementação de políticas sociais exclusivamente universalistas, por não atacarem os mecanismos geradores dessas desigualdades, vêm operando antes como forma de atualização delas, que como instrumentos que concorram para dirimi-las. É que tais políticas aumentam, de forma escandalosa, o fosso que separa aqueles considerados como cidadãos, daqueles percebidos como não-cidadãos. (32)

            3.1. As Desigualdades no Mercado de Trabalho

            Devido às transformações econômicas do mundo capitalista o perfil do trabalhador está sendo modificado e redefinido, seguindo as contratações, agora, critérios de produtividade e competição, ou seja, passou-se a ser exigido dos trabalhadores atributos e habilidades que lhes permitam responder às exigências do mercado econômico. Nesse aspecto, a educação básica se tornou o requisito indispensável para a inserção dos trabalhadores nos novos processos produtivos, o que acaba por reduzir as chances de trabalho tanto para os mais jovens quanto para os mais velhos.

            O desemprego assola o país, a última pesquisa realizada pelo IBGE referente ao mês de abril/2004, demonstra que os índices de desemprego na indústria diminuíram se comparados a abril/2003, porém, constitui-se um pequeno aumento se analisarmos a realidade sócio-econômica do país, pois ainda há um grande número de desempregados.

            Toda essa problemática se agrava quando tratamos de questões de raça e gênero, pois, a situação dos desempregados afro-brasileiros e das mulheres é mais preocupante. Por exemplo, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que é um instrumento de análise desenvolvido pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em quase todos os países, as mulheres trabalham mais horas do que os homens, correspondendo às mulheres 53% do total de horas trabalhadas nos países em desenvolvimento e 51% nos países industrializados. (33)

            E essa conjectura piora ainda mais quando pesquisamos dados do desemprego das mulheres afro-brasileiras (DIEESE/SEADE – PED), pois são números alarmantes de desigualdades raciais e de gênero, constantemente promovidas dentro de nosso país.

            O DIEESE através das Pesquisas de Emprego e Desemprego (PED) realizadas nos anos de 2001/2002, nas regiões metropolitanas, demonstra esta desigualdade tanto nas taxas de desemprego quanto nos índices de rendimento médio dos empregados negros e brancos, mulheres e homens.

            A Organização Internacional do Trabalho (OIT) através da Convenção 111, que trata da discriminação em questões de trabalho e profissão traz preceitos para a diminuição dessas desigualdades, porém, o que nos aflige é a questão da plena aplicabilidade desta Convenção. Encontramos no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e na ONG Criola, entidades que lutam para solucionar estes problemas.

            A defasagem da renda percebida entre brancos e negros, mulheres e homens nas empresas no ano de 2000, retirada da obra de Jurema Werneck "Desigualdade Racial em Números – coletânea de indicadores das desigualdades raciais e de gênero no Brasil" demonstra as alegações acima efetuadas, ou seja, nos cargos de diretoria, o salário médio dos homens brancos era de R$19.268,00, dos homens negros era de R$16.677,00, enquanto que das mulheres brancas era de R$11.617,00, observando que não há registro de mulheres afro-brasileiras em cargos de diretoria. Já os cargos gerenciais, podem ser considerados como uma exceção à regra, pois nestes as mulheres negras ganhavam, em média, R$6.457,00, enquanto que as brancas percebiam R$6.415,00. E obviamente, nas funções administrativas e de produção, a remuneração das mulheres afro-brasileiras é invariavelmente bem menor, que a das mulheres brancas, e muito mais inferior que a dos homens, sejam eles negros ou brancos, que percebem ainda mais que os negros, em qualquer cargo ou função.

            E para tentar minimizar estas desigualdades raciais e de gênero a CF/88 autorizou a adoção das chamadas Discriminações Positivas. Nos próximos tópicos analisaremos tal autorização contida na Carta Magna e a aplicação das Ações Afirmativas de Gênero e Raça como forma de superação destas desigualdades.


4. A Constituição Federal de 1988 e suas Discriminações Positivas

            A Constituição Federal de 1988 traz várias exceções ao princípio da isonomia, inclusive tendo preconizado o Supremo Tribunal Federal que "a igualdade perante a lei que a Constituição Federal assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, não compreende a União e as demais pessoas de direito público, em cujo favor pode a lei conceder privilégios impostos pelo interesse público sem lesão a garantia constitucional". (34)

            Dessa forma, fica claro, o reconhecimento dos Tribunais brasileiros à autorização – por vezes implícita – do princípio da isonomia ao Estado, para que esse se utilize do tratamento desigual, isto quando necessário e de forma justificada.

            Neste aspecto, o grande problema é a de saber quando se deve estabelecer estas distinções.

            Celso A. Bandeira de Mello, em sua obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade traz uma solução a esta questão: "o reconhecimento das diferenças que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação (fator de discrímen); b) a segunda reporta-se a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados". (35)

            Já, J. J. Gomes Canotilho acredita que haverá observância da igualdade "quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária (...) existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (I) fundamento sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável". (36)

            Assim, em nosso ordenamento jurídico, pode haver discriminação desde que com o intuito de alcançar a igualdade entre os seres humanos, porém observando os seguintes elementos: a) o fator de discriminação, em questão, não pode atingir, de forma alguma, um só indivíduo; b) deve-se observar a distinção entre as pessoas e as situações objeto de discriminação, sendo vedado à lei discriminar com base em elementos exteriores; c) tem que existir um nexo lógico entre o fator de discriminação e a discriminação efetuada pelo regime jurídico; d) esse nexo deve ser relacionado à função dos interesses constitucionalmente protegidos, visando sempre o bem público.

            Mas, uma efetiva analise sobre a violação do princípio da isonomia, somente poderá ser feita quando do estudo criterioso dos casos concretos. (37)

            A realidade é que o Brasil vive um descompasso total em relação a este assunto, primeiro, porque não admite a existência de discriminações invocando sempre o princípio da isonomia, e segundo, porque por outro lado há a discriminação quando se oferece tratamento diferenciado, como ocorre com a mulher, o pobre, o negro e o deficiente físico.

            Exemplificaremos, assim, algumas das várias exceções trazidas pela Constituição Federal:

            1.As imunidades parlamentares (art. 53, parágrafo 7º, da CF);

            2.As prerrogativas de foro ratione muneris em benefício de determinados agentes políticos;

            3.A exclusividade do exercício de determinados cargos públicos somente a brasileiros natos (art. 12, parágrafo 3º, CF);

            4.Obrigatoriedade, vedação à eleitores, e condições especiais de elegibilidade (art. 14 CF);

            5.Isenção do serviço militar às mulheres e ao clero (art. 143, parágrafo 2º, CF);

            6.Proteção à maternidade e a gestante (art. 201, inciso II, CF);

            7.Condições para concessão de aposentadoria entre homens e mulheres (art. 201, parágrafo 7º, inciso I e II, e parágrafo 8º);

            8.Proteção ao trabalho do menor e as condições do deficiente físico (art. 227 CF);

            9.Licença gestante (art. 7º, XVIII, CF); e outros.

            E como uma tentativa de superação desses problemas de desigualdade racial e de gênero, trazemos as Ações Afirmativas, que obviamente, não são soluções definitivas para os problemas, mas podem, paulatinamente, superar as desigualdades sofridas por essas minorias discriminadas.

            4.1. As Ações Afirmativas como Hipóteses de Diminuição das Desigualdades

            Joaquim B. Barbosa Gomes, em sua obra Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade, traz que "toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semi-governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material, se em conseqüência de sua aplicação resultarem efeitos nocivos de incidência desproporcional sobre certas categorias de pessoas". (38)

            Para esse mesmo autor as Ações Afirmativas "consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física". (39)

            Já, Ronald Dworkin observa que o objetivo é implementar Ações Afirmativas que, com o passar do tempo, torne o critério passível de discriminação menos relevante: "Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente, dividida em grupos raciais e étnicos, cada um deles, como grupo, com direito a uma parcela proporcional de recursos, carreiras ou oportunidades. Essa é uma análise incorreta. A sociedade norte-americana, hoje, é uma sociedade racialmente consciente; essa é a conseqüência inevitável e evidente de uma história de escravidão, repressão e preconceito. (...) Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte-americana, como um todo, é racialmente consciente."(DWORKIN, 2000: 439).

            Essas políticas discriminatórias positivas surgiram, inicialmente, nos Estados Unidos da América e tinham o intuito de enfrentar o desemprego das minorias étnicas. Mas, estas políticas também vêm sendo implementadas em outros países além dos EUA, como, por exemplo, na Índia que após tornar-se independente em 1947, adotou um sistema baseado em cotas destinando aos chamados "intocáveis", em média "22.5% das vagas na administração e no ensino públicos." (40). E na Malásia a etnia bimiputra recebeu tratamento diferenciado para que conseguisse promover seu desenvolvimento econômico. (41)

            Na verdade, esse tipo de política utiliza fatores que antes eram vistos como propensos à discriminação negativa para promover a igualdade material.

            É importante observar que as políticas de Ação Afirmativa, ainda que não se constituam como intervenções governamentais suficientemente potentes para eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, elas desempenham o significativo papel de corrigi-las na atualidade, ao promoverem as igualdades de oportunidade e de tratamento, o que certamente concorre para uma democracia de resultados, além de trazerem efeitos imediatos e conseqüentes. (42)

            As Ações Afirmativas podem ser promovidas tanto pelo Estado como por entes particulares.

            Em nosso Direito Pátrio, como já visto, encontramos dispositivos que não só possibilitam a adoção das discriminações inversas por parte do Estado e de particulares, mas também, criam verdadeiros preceitos para sua prática sob pena de inconstitucionalidade por omissão.

            Obviamente, que a implementação destas formas de discriminação positivas devem ser bem elaboradas e utilizadas com o máximo de rigor, pois, conforme verificaremos mais adiante, é sabido que devido a inúmeros outros problemas constantes em nosso país a implementação destas ações pode se tornar não uma solução, mas sim um problema ainda maior, a ser resolvido pelo Estado e pela sociedade.

            No Brasil, entre as políticas de Ações Afirmativas que se tem tentado implementar – principalmente, em nível infraconstitucional – destacam-se duas formas: a Ação Afirmativa de Gênero e a Ação Afirmativa de Raça.

            4.2. As Ações Afirmativas de Gênero

            Entre as muitas disposições sobre o princípio da isonomia, a Constituição Federal de 1988, determinou em seu artigo 5º, inciso I, a igualdade de direito e obrigações entre homens e mulheres.

            E para garantir essa igualdade algumas Ações Afirmativas têm sido efetuadas, seja por meio da proteção do mercado de trabalho da mulher, seja pela instituição de uma família onde o sexo não determina as relações de poder.

            Com relação, a instituição de uma família onde o poder encontra-se nas mãos de ambos os cônjuges sem que haja distinção pelo sexo, verifica-se a implementação do Novo Código Civil (2002) que traz tal regra de forma expressa, e tem como finalidade igualar as oportunidades que são decorrentes do passado patriarcal da família brasileira.

            Já, internacionalmente o Brasil celebrou em 1984, a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, datada de 1979, que afirma em seu texto que o fato de existir políticas públicas compensatórias pela discriminação de gênero não significa que haja uma discriminação negativa.

            Entre todos os problemas de discriminação sofridos pela mulher, os que, ainda hoje, trazem preocupação dizem respeito às relações de trabalho, como já foi descrito anteriormente, e a representação política.

            No Brasil, no que se refere às relações de trabalho, o art. 7º, inciso XX da CF/88, determina a adoção de incentivos para a proteção do mercado de trabalho da mulher, porém, até o presente momento, não foram efetivadas as regulamentações infraconstitucionais necessárias.

            No que diz respeito à participação política da mulher, o Brasil, estipulou em 1996, por meio do art. 11, §3o, da lei n.º 9.100, que os partidos políticos deveriam, no registro dos seus candidatos, reservar no mínimo 20% das vagas a mulheres. Mas, essa lei foi revogada pela Lei n.º 9.504/97, que, ao invés de adotar uma Ação Afirmativa, baseando-se no critério das ações positivas de gênero feminino, preferiu instituir uma espécie de quota neutra, isto é, 30% (trinta por cento) dos candidatos registrados pelo partido político devem pertencer a um dos sexos (masculino ou feminino). Mas mesmo dessa forma, essa medida ainda se torna uma Ação Afirmativa tendente a promover a integração da mulher no cenário das eleições.

            Na realidade, o Direito e a sociedade brasileira mudaram muito, porém, ainda há um longo trajeto a ser percorrido para que se alcance a igualdade prática e real, pois, ainda hoje, o homem é o detentor do poder dentro e fora do lar, já que é ele, na maioria dos casos, o titular das ações dos clubes; é em nome dele que os imóveis encontram-se registrados; da mesma forma que os automóveis da família; é o homem o titular dos planos de saúde, sendo a mulher e os filhos os seus dependentes. E esta situação deve-se exclusivamente aos costumes de longos anos, e não será modificada por dispositivos legais, embora assim quisesse o legislador, e sonhassem todas as mulheres. (43)

            Portanto, até mesmo na educação faz-se fundamental e necessário as discussões sobre a igualdade de gênero e o combate às discriminações, pois, a partir daí as pessoas, tanto homens quanto mulheres, passam a ser cidadãos que respeitam e querem ser respeitados, e sabem de suas responsabilidades, deveres e principalmente de seus direitos. (44)

            Portanto, hoje, é inegável contribuição feminina na vida social, e também, que muito ainda precisa ser feito para que a mulher seja dignamente tratada como pessoa e como profissional. Porém, já caminhamos, ainda que pouco. Mas perdemos muito, ainda estamos perdendo, e poderemos perder mais, por esse reconhecimento parcial da cidadania feminina.

            A igualdade real e plena será alcançada assim que entendermos que homens e mulheres são seres diversos, mas com capacidades semelhantes. (45)

            4.3. As Ações Afirmativas de Raça

            Em nosso país, no que diz respeito às Ações Afirmativas de Raça deve-se salientar que elas se refletem principalmente sobre os negros, e para um melhor entendimento da situação faz-se necessária uma análise da história, isto porque, a sociedade brasileira tem uma considerável dívida para com os negros, devido ao seu descaso e injustiça.

            Portanto, historicamente percebemos que o drama dos negros começou em sua terra natal, na África, onde as tribos disputavam entre si a permanência e a conquista de áreas. A partir do início do mercantilismo os derrotados nestas disputas transformavam-se em peças – em objetos que podiam ser vendidos pelas demais tribos, ou por seus colonizadores –, ou seja, passariam a se transformar na mão-de-obra do imperialismo europeu.

            No Brasil, a história dos negros encontra sua origem em nossa colonização. E, a partir dela iniciou-se contra os mesmos um processo acentuado de desigualação social, pois, após a edição da Lei Áurea, não houve a publicação de nenhuma outra lei ou projeto que permitisse a inserção do negro ex-escravo na sociedade, diferentemente do que aconteceu com os demais imigrantes europeus do final do século XIX. Essa falta de implementação à liberdade do negro ex-escravo fez com que as gerações futuras ficassem expostas a um legado de exclusão social.

            Em outros países, como os EUA, a África do Sul, e alguns Estados europeus – que também tiveram um passado escravista – há experiências sociais que viabilizaram aos ex-escravos e a seus descendentes uma maior chance de igualdade em direitos e oportunidades.

            Assim, o tema em questão é o racismo e a desigualdade social.

            O racismo antinegro existente no Brasil, embora dissimulado pelo mito da democracia racial, exclui os afro-brasileiros da sociedade inclusiva, do direito a ter direitos, pois a intolerância racial ignora os afro-brasileiros, relegando-os a uma cidadania amedrontada.(ABREU, 1999: 40) (46)

            Ou seja, o problema que no passado se chamava "escravidão", hoje se chama "desigualdade".

            Até antes do governo de Fernando Henrique Cardoso, iniciado em 1995, a única forma de proteção aos negros brasileiros contra o racismo e a discriminação era através da edição de leis penais.

            Portanto, em nossa pátria desde a extinção da escravidão, a comunidade afro-brasileira nunca foi contemplada com políticas públicas de caráter compensatório.

            Observando toda a evolução histórica da sociedade brasileira percebemos que a falta de oportunidades aos negros ex-escravos influenciou na estratificação social, mas, sobretudo, na concentração racial da riqueza.

            Tudo isto porque no nosso país, como já narramos, os negros e os pardos perfazem cerca de 45,3% da população, ou seja, quase 70 (setenta) milhões de pessoas, o que quer dizer que o Brasil possui a maior população negra fora da África, sendo a segunda maior população negra do mundo, somente inferior à população da Nigéria (Continente Africano).

            E apesar dessa grande miscigenação do povo brasileiro, nosso país possui uma das piores distribuições de renda do planeta, como já foi narrado. (47)

            Até algum tempo atrás, a maioria dos países – inclusive o Brasil – não assumia que em sua nação pudesse haver racismo e discriminação, por isso, acreditamos que o maior progresso das nações no combate à discriminação foi assumirem sua existência. E o marco desta assunção ocorreu em Durban (África do Sul), no final de agosto de 2001, na Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. (48)

            A discriminação racial é um fato presente, pois, por exemplo, porque os trabalhadores "negros" percebem salários inferiores aos dos trabalhadores "brancos"? Ou ainda pior, porque as "mulheres negras" recebem salários inferiores aos das "mulheres brancas", e muito mais inferiores aos dos "homens brancos"? O que poderia explicar esta distinção? A resposta é uma só, a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos.

            Como já descrito, em nosso país, o legislador utiliza-se apenas da legislação penal para atenuar essas discriminações, não alcançando, como podemos perceber pela análise desse estudo – e pela análise de nosso cotidiano – o sucesso desejado.

            Podemos afirmar que existem pelo menos duas causas para a ineficácia da legislação brasileira antidiscriminatória, a primeira é o "mito" da democracia racial, que na verdade nunca existiu, e apenas serviu para que não se condenassem as práticas discriminatórias; a segunda é a nossa cultura da impunidade, sobre esta acredito, que não precisemos fazer nenhum comentário, pois estamos cansados de conhecê-la.

            A situação legal somente se alterou com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, onde houve o reconhecimento expresso e concreto da existência do racismo em nosso país. Até 05 de outubro de 1988 a única legislação antidiscriminatória existente era a Lei no 1.390, de 1951, "Lei Afonso Arinos", que considerava as manifestações de racismo como meras contravenções penais, que deveriam ser sancionadas com penas de multa.

            Mas, o Brasil ainda tem muito a fazer para poder oferecer aos negros brasileiros pleno acesso aos direitos humanos fundamentais.

            Hoje, há uma intensa movimentação da comunidade negra no Brasil, lutando pela implementação das Ações Afirmativas e de mecanismos para diminuir as desigualdades sociais e raciais, tais como o Sistema de Cotas. (49)

            Em nosso país, começamos a viver sob a experiência de implementação de Ações Afirmativas para os afro-brasileiros, como, por exemplo, é o caso da criação de cotas nas Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF) e da Bahia (UFBA).

            Nesta área, existem algumas dificuldades, principalmente para definir quem seria "negro" para fins de tratamento compensatório, e até que ponto, a instituição de cotas seria eficaz no sentido de diminuir a exclusão sem que houvesse um incremento do próprio processo discriminatório.

            4.5. A Complexidade da Implantação do Sistema de Cotas no Brasil

            O sistema de cotas, mínimas e obrigatórias, que devem ser reservadas aos grupos minoritários é a forma mais radical, mais polêmica e mais difundida de Ação Afirmativa.

            Há dois problemas criados pela implementação do Sistema de Cotas: o primeiro, é que ele determina, necessariamente, a exclusão dos membros que não pertencem aos grupos minoritários; e o segundo, é saber se esta implementação não afronta o princípio da igualdade formal. (50)

            A situação contém um paradoxo, pois, para implementar-se o princípio da igualdade material é necessário aplicar um critério de justiça distributiva, que reverta – na prática – os efeitos da discriminação. Para isso, a solução encontrada é a redução das chances de acesso à maioria da população, pelo simples fato de pertencerem a ela. Analisando por este aspecto, há uma aparente violação do princípio da igualdade formal, porém, somente com a análise do caso concreto e observando a ponderação dos princípios, é que poderemos decidir sobre essa violação.

            Acreditamos que para a implementação de Ações Afirmativas, tais como o Sistema de Cotas, seja necessário observar alguns critérios: a) primeiramente, o critério para discriminação deve basear-se em uma discriminação pretérita de um grupo definido, e que, necessariamente, surta efeitos no presente, pois, caso contrário será inconstitucional; b) observar sempre se não há outras medidas que alcancem o mesmo fim, ou seja, a equiparação material, se houver, o sistema de quotas se torna dispensável; c) e por último, deve-se observar o critério discriminatório, evitando que este elimine definitivamente a possibilidade de concorrência dos membros da maioria.

            Já para Ronald Dowrkin a implementação de cotas só se justifica se temporária, destinada a corrigir uma distorção e a fazer com que o critério discriminatório, ao longo do tempo, seja dissolvido. (51)

            Acreditamos que é muito difícil dar uma resposta teórica à questão da constitucionalidade das cotas, porque isso, dependerá de fatores, tal como: o critério discriminatório escolhido, a relação entre a discriminação efetuada e o fim perseguido, a necessidade da restrição, a adequação ao escopo a que se presta e a intensidade da reserva feita.

            A iniciativa de reservar cotas para negros partiu, inicialmente, do então Ministro do Desenvolvimento Agrário (52), Raul Jungmann, que, em outubro de 2001, determinou, dentre requisitos para a seleção de empresa prestadora de serviços ao Ministério, a condição de pelo menos 20% (vinte por cento) dos seus empregados serem negros. Tal medida foi acompanhada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio de Mello, que incluiu o mesmo requisito entre os necessários para a habilitação de prestadoras de serviços ao Supremo Tribunal Federal e defendeu a sua constitucionalidade.

            Devemos salientar também que com relação as cotas destinadas aos cargos públicos e às vagas nas faculdades, encontramos diversos estudiosos contrários a elas, considerando-as inconstitucionais, sob o argumento de que o critério que deve prevalecer na seleção dos candidatos para ambas as vagas deve basear-se na aferição de competência dos mesmos, isto é, um critério que não visualiza os problemas raciais. (53)

            A Universidade de Brasília (UnB) foi uma das primeiras faculdades a discutir a institucionalidade da reserva de vagas para negros.

            Já nos EUA essas iniciativas foram além do ingresso na educação superior, pois também foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho e nos contratos governamentais.

            No Brasil, foram ajuizadas diversas ações para anular os efeitos dessa lei, sob a alegação de inconstitucionalidade.

            Na verdade, há uma tensão de valores constitucionais igualmente relevantes, acreditamos que somente o critério da proporcionalidade poderá revelar as devidas extensões de cada princípio.

            Por exemplo, hoje esta em pauta no Senado uma lei de autoria do Governo Federal que visa aumentar a chance dos menos favorecidos – negros e pobres – no ingresso às faculdades públicas, tendo como justificativa que somente ingressam nestas faculdades alunos de classe média alta que tiveram a oportunidade de cursar o ensino médio em escolas particulares, ou seja, que tiveram mais oportunidades.

            Neste caso específico, percebe-se o erro governamental na implementação desta lei, afinal uma ação afirmativa neste contexto não poderá e não surtirá os efeitos desejados, isto porque, o problema não está no ingresso às faculdades públicas ou particulares, mas sim na péssima qualidade do ensino fundamental e médio público de nosso país. Portanto, é neste aspecto que o Governo Federal deveria se ater, em investir maciçamente e melhorar o ensino público para que os alunos deste tenham condições de competir em nível de igualdade de oportunidades com os alunos do ensino médio particular.

            A criação destas cotas, para os alunos provindos do ensino público, não resolverá o problema da educação brasileira, muito pelo contrário, já que os alunos que ingressarão nestas faculdades estaduais não possuem uma boa base educacional, não poderão acompanhar os demais alunos, que tiveram esta base de aprendizagem.

            O Governo com esta lei apenas dificultará futuras implementações de ações positivas realmente necessárias e valorativas, já que a verdade é que esta lei visa "tapar o sol com a peneira" tentando resolver um sério e grave problema brasileiro, nossa educação, com uma medida paleatória que só esta causando conflito e discussões, e que irá prejudicar tanto os alunos que deveriam ingressar nas faculdades estaduais por sua própria capacidade, quanto aqueles que ingressarem devido a este sistema de cotas.


Considerações Finais

            Hoje, pobreza, desigualdade, exclusão, são constantes em nossa sociedade, e somente será possível superá-las quando encontramos a "nascente" dos problemas, e esta se remonta em nossa história.

            A pobreza e a desigualdade de renda que assolam o nosso país causam um verdadeiro apartheid social.

            Dentro da proposta deste estudo, que são as desigualdades de gênero e de raça, a pobreza e a desigualdade de renda somente aumentam a dificuldade destes grupos se inserirem na sociedade. Uma demonstração disto é a atual situação do Mercado de Trabalho, o desemprego tem se tornado – junto com a ausência de anos de políticas sociais – a maior preocupação do nosso povo, e quando, este desemprego recaí sobre mulheres e negros, o problema é muito maior, pois, não se trata apenas de uma situação política ou econômica, mas uma situação de pura discriminação e preconceito.

            Muitos são os estudos sobre esse tipo de desigualdade, os institutos científicos e órgãos de pesquisa demonstram claramente o alegado.

            E com base, em tudo isso muitos estudiosos passaram a acreditar que mesmo que de forma provisória, na atual situação de nosso país, a única forma de alcançarmos uma equalização seria através da aplicação de programas em benefício das minorias discriminadas, ou seja, dos negros, das mulheres, dos índios, dos deficientes físicos e etc.

            Portanto, acredito que devemos acompanhar a evolução, pois, caso contrário, estagnaremos; que devemos sempre reciclar e incorporar as novidades, e se necessário, repensar os valores que hoje concebemos como certos ou errados, tais como: o bem, o mau, a ética e o respeito. Os cientistas sociais fazem parte desta sociedade em mutação, e para que ela tenha um sentido ético há a necessidade da participação de todos no projeto político que conscientemente devemos assumir.

            Talvez, as Ações Afirmativas não sejam a solução mais viável para a superação das desigualdades de gênero e de raça no Brasil, mas na ausência de outras, estas podem significar a abertura de um espaço a pessoas que necessitam dessa implementação política, econômica e social para passarem a fazer parte da sociedade.

            Acredito que devemos estar abertos a todas as propostas que visem minimizar os problemas de desigualdade, provenham estas propostas de onde provierem, pois o bem de nosso país, de nossa nação, depende de homens com coragem suficiente para assumirem que a idéia de um "inimigo" pode ser útil para o país, e que todo o esforço para alcançarmos o sonho da igualdade é válido e compensador.


Notas

            1 "A incômoda modernidade aparecerá nas greves operárias de 1917- 1918 no Rio de Janeiro e em São Pulo, que se fazem acompanhar de um salto de qualidades na organização e na consciência dos trabalhadores. Transparecerá a inquietação das camadas médias urbanas. De maneira mais ainda evidente, irromperá invencível no simbólico ano de 1922: nele, no espaço de poucos meses, será fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – primeiro partido operário criado no país, realizar-se-á a semana da Arte Moderna e terá início o ciclo das revoltas lideradas pela jovem oficialidade militar (o tenentismo)." (NOGUEIRA, Marco Aurélio. As Possibilidades da Política: idéias para a reforma democrática do Estado, p. 25)

            2 "Modernizando-se conservadoramente e "pelo alto", o Brasil ingressará em fase propriamente capitalista-industrial com uma frágil sociedade civil e sem democracia, destituído de um pensamento liberal-democrático, sem hegemonia burguesa e sem um movimento operário organizado com autonomia e consciência de si. Terá, ao contrário, de conviver com o autoritarismo, o elitismo e o golpismo derivados do próprio processo de formação da nacionalidade."(NOGUEIRA, Marco Aurélio., ob. cit., p. 67)

            3 "O Brasil da Nova República conheceria, assim, dias carregados de promessa, incertezas e dificuldades. Até o encerramento do governo Sarney, acabariam por ficar consolidadas as condições para que se sedimentasse a idéia dos anos 80 como a "década perdida", nascida do contraste entre as promessas da redemocratização e os resultados concretos obtidos pela política implementadas – contraste entre o caráter comparativamente mais otimista dos diagnósticos subjacentes aos primeiros esforços de estabilização econômica e reforma política, e a perda de confiança dramática na capacidade do país implementar políticas de estabilização com crescimento e redistribuição de renda em um contexto democrático(...)Contraste que em boa medida poderia ser explicado por um mix de "erros" de avaliação e exigências derivadas da nova lógica globalizada e complexa em que o país começava a ingressar." (NOGUEIRA, Marco Aurélio., ob. cit., p.113/114).

            4 "O principal elemento dessa impossibilidade de ‘novas fugas para frente’ é a crise financeira do Estado, decorrente de um processo crescente de endividamento externo e interno. Esse processo leva à perda do controle da moeda e de suas finanças por parte do Estado, debilitando também sua ação estruturante, não apenas pela forte redução do gasto e dos investimentos públicos, mas também pela completa ausência de políticas de desenvolvimento."(CANO, W. Uma Alternativa não liberal para a economia brasileira na década de 1990. In: São Paulo no limiar do século XXI: perspectivas dos setores produtivos 1980-2000)

            5 NOGUEIRA, Marcos Aurélio., ob. cit., p. 123. Ver também: "A propaganda neoliberal elegeria justamente aqueles temas decisivos da área social como responsáveis pelo déficit público e pelo "excessivo" gasto estatal, atribuindo ao setor público a condição de fonte única da corrupção e da ineficiência. O neoliberalismo procederia como se o próprio Estado – com suas políticas compensatórias e de regulação – fosse o gerador da crise econômica, donde a necessidade de desmonta-lo em benefício da restauração da plenitude do mercado. Trabalhando a insatisfação existente na sociedade como respeito a esfera estatal o neoliberalismo banalizaria a idéia clássica de que o Estado deve estar sob o controle da sociedade; transformaria tudo em slogans de agitação ( combate à corrupção, corte de funcionários, privatização) e reduziria os termos da crise ao problema do déficit público, do "gigantismo" do Estado. De tabela, alcançaria o conjunto das instituições e das ações públicas, ajudando a desvaloriza-las, junto à sociedade, sempre em nome da necessidade que todos teriam de si ver livres do Estado."(LAHUERTA, Milton. A Recuperação da Esfera Pública. São Paulo em Perspectiva, p. 46/50)

            6 Idem, p. 137.

            7 SOARES, Laura Tavares., ob. cit., p. 45. Ver também: "Sob o capitalismo global, as contradições sociais agravam-se nos países dependentes, periféricos, atrasados, do terceiro Mundo." (IANNI, Octavio. A Sociedade Global, p. 144); "A incapacidade do neocapitalismo para a exploração tem, como conseqüência, o fim do capitalismo social e do bem-estar e o surgimento de novas formas de pobreza também, nas metrópoles capitalistas."(THIELEN, Helmut. Além da Modernidade?: para a globalização de uma esperança conscientizada, p. 27)

            8 "Não deve, portanto, surpreender que hoje, após décadas de modernização capitalista acelerada, regra geral viabilizada por regimes ditatoriais e caracterizada pela dificuldade de incluir socialmente as grandes massas da sociedade, estejam os brasileiros às voltas com temas e problemas reiterados teimosamente: a integração social e regional, a democracia, o desenvolvimento, a reorganização do estado, a aproximação Estado-sociedade. Temas que na sua totalidade, integram destacadamente a agenda dos anos trinta." (NOGUEIRA, Marco Aurélio., ob. cit., p.80)

            9 FREITAS FILHO, Roberto Gonçalves. A Defesa dos Excluídos: mecanismos institucionais e fatores políticos para a defesa dos carentes, p. 337.

            10 BUARQUE, Cristóvam. Os Excluídos da Educação, p. 93.

            11 Durante a crise dos anos oitenta e os posteriores processos de ajuste estrutural, o Brasil sofreu um retrocesso em matéria de equidade, tanto que a distribuição de renda do início dos anos noventa era mais concentrada que a do final dos anos setenta. E essa disparidade no aumento das desigualdades tornou-se mais visível quando percebemos o aumento da capacidade de consumo das classes mais altas da população e a diminuição das mais baixas, sobretudo, quando as possibilidades destes últimos já eram insuficientes para adquirir os bens de consumo considerados básicos.

            12 É o que se chama de "hiato de pobreza" – a distância entre a renda média dos pobres e a linha da pobreza.(SOARES, Laura Tavares., ob. cit., p. 49)

            13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A democracia e suas dificuldades contemporâneas, outubro/2001.

            14 ob. cit., p. 94. Ele traz ainda que " a economia não entende nada de pobreza! A economia só entende de riqueza." (p. 94)

            15 VEIGA, José Eli da. Pobreza e desigualdade de renda são males independentes, abril/2004.

            16 BUARQUE, Cristovam., ob. cit., p. 95.

            17 PRATES, Francisco de Castilho. Cidadania, Poder e Exclusão Social, outubro/2001.

            18 La Republique.

            19 Os autores Eduardo C.B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida, em sua obra Curso de Filosofia do Direito trazem o pensamento aristotélico: "A necessidade da aplicação da equidade decorre do fato de que as leis prescrevem conteúdos de modo genérico, indistintamente, dirigindo-se a todos(...) se aplicada a lei em sua generalidade, estar-se-á a causar uma injustiça por meio do próprio justo legal (...) É exatamente com o intuito de superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislação minimamente detalhista e futurista é que existe o équo. (...) não se trata de um erro legislativo, mas sim de um problema oriundo da própria peculiar conformação das coisas como são praticamente."(p. 110)

            20 Teoría Del Estado, p. 134.

            21 LE FUR, Louis. Lês Grands Problèmes du Droit, p. 530/531.

            22 "Os ensinamentos da Igreja e do Cristianismo eram revolucionários. Jesus ensinou a dignidade do homem; condenou a escravatura; frisou a irmandade dos homens. Esses ensinamentos estavam em flagrante contraste com os filósofos gregos, os quais favoreciam a escravatura e não admitiam a dignidade do trabalho e das ocupações."(BELL, J. Fred. História do Pensamento Econômico, p. 65)

            23 ARZABE, Patrícia Helena Massa; e GRACIANO, Potyguara Gildoassu. "A Declaração Universal dos Direitos Humanos – 50 anos".In: Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade, p. 258.

            24 "É a Constituição Cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte que a produziu, porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania." (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 91).

            25 FILHO, Willis Santiago Guerra. Sobre Princípios Constitucionais Gerais : Isonomia e Proporcionalidade. In: RT nº.719:58/59. Ver também: "... a igualdade perante a lei não basta para resolver as contradições criadas pela produção capitalista. O essencial é igual oportunidade para a consecução dos objetivos da pessoa humana. E para igual oportunidade é preciso igual condição. Igual oportunidade e igual condição entre homens desiguais pela capacidade pessoal de ação e direção. Porque a igualdade social não importa nem pressupõe um nivelamento entre homens naturalmente desiguais. O que Lea estabelece é a supressão das desigualdades artificiais criadas pelos privilégios da riqueza, numa sociedade em que o trabalho é social, e conseqüentemente social a produção, mas o lucro é individual e pertence exclusivamente a alguns".(MANGABEIRA, João. In: FERREIRA. Luís Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, p.771).

            26 "Nessa modelo dito neoliberal globalizado ou globalizante, a exclusão é provocada porque a inclusão de todos no âmbito de titulares de direitos não interessa, não garante, não é fonte de lucros."(ROCHA, Carmen Lúcia Antunes., ob. cit., p. 87).

            27 Princípios Gerais de Direito Público, p. 198.

            28 HUME, David. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, p. 50.

            29SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 200.

            30 FEDELI, Orlando. Tirania: a verdadeira face da igualdade, julho-agosto.

            31 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a exclusão social, p. 69.

            32 SISS, Ahays. Afro-Brasileiros, Políticas de Ação Afirmativa e Educação: algumas considerações.

            33 SANT’ANA, Vânia. Desigualdades Étnico/Raciais e de Gênero:as revelações possíveis do IDH e do IDG, março/2001.

            34 Revista Forense, nº201. p.118.

            35 MELLO, Celso A. Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 21.

            36 CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.401.

            37 Neste sentido: Celso A. Bandeira de Mello. In: Revista de Direito Administrativo, nº 183, p.146. Ver também: "... a igualdade substancial é um objetivo constitucionalmente tutelado. Mas como igualar substancialmente pessoas entre si tão diferenciadas? A única solução é desigualá-las em termos jurídicos para que através desse desigual tratamento se obtenha maior igualdade substancial. Desigualar nesses termos é permanecer fiel ao princípio constitucional da igualdade e seu consectário lógico, o princípio de não discriminação. Desigualar em termos diversos é discriminar, o que está constitucionalmente vetado. Ali, o tratamento desigual deixou de ser discriminador, por ter produzido maior igualdade como resultado. (...)A mim se afigura que a coluna mestra dessa construção hermenêutica, em matéria do princípio de não discriminação, é o ter-se presente, sempre, que o tratamento desigual só se legitima quando dele resulta maior igualdade em termos substanciais."(PASSOS, J. J. Calmon de. O Princípio de Não Discriminação. Julho/2002)

            38 GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade, p. 24; o mesmo autor ainda explica "É a forma mais trivial de discriminação. A pessoa vítima da discriminação é tratada de maneira desigual, menos favorável, seja na relação de emprego ou em qualquer outro tipo de atividade, única e exclusivamente em razão de sua raça, cor, sexo origem ou qualquer outro fator que a diferencie da maioria dominante"(p. 20)

            39 Idem, p. 06. No mesmo sentido "... visa ir além da tentativa de garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como beneficiários os membros de grupos que enfrentam preconceitos."(CASHMORE, Ellis. Dicionário das relações étnicas e raciais, p. 31); e "Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade"(GOMES, Joaquim B. Barbosa., ob. cit., p. 6-7)

            40 D’ADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo, Racismos e Anti-Racismos No Brasil.

            41 SANTOS, Hélio. Políticas de Ação Afirmativa.

            42 SISS, Ahias., ob. cit.

            43 CABRAL, Karina Melissa. A Mulher como Ser Humano: história, lutas e conquistas, p. 152.

            44 DIAS, Maria Berenice. "Aspectos Jurídicos do gênero feminino". In: Construções e perspectivas em gênero, pp. 157/164.

            45 CABRAL, Karina Melissa., ob. cit., p. 154.

            46 "Racismo é a prática política que marginaliza e inferioriza determinadas pessoas em relação à referência superior de outra raça a quem eles não pertençam"(ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade, p. 76).

            47 "Tão flagrante quanto a desigual distribuição da riqueza nesta sociedade é a visível contradição (ou, talvez, condição sine qua non, de sua reprodução nestes moldes) entre seus graus superlativos de exclusão (estrutural, e não conjuntural) e o mito da possibilidade da ascensão social individual." (SANTOS, Renato Emerson Nascimento dos. Raça & Classe: o curso pré-pestibular para negros e carentes do Rio de Janeiro, p. 8); E veja também: "O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) acaba de revelar a profundidade e extensão de uma tragédia nacional. Esta semana, o instituto divulgou dados de um estudo inédito no Brasil. Eles mostraram que, caso não sejam adotadas medidas capazes de reverter a atual tendência, a distância entre o Brasil branco e o Brasil negro – que já é enorme – deve aumentar"(LOBO, Flavio. "Mais desigualdade". Revista Carta Capital, fevereiro/2002, p. 24)

            48 "A conjuntura internacional, principalmente a partir dos atentados do dia 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, nos EUA, e o acirramento dos conflitos entre a nação palestina e os israelenses, no Oriente Médio, radicalizou as manifestações racistas e xenofóbicas, colocando a temática do combate ao racismo e à discriminação racial, como uma questão candente do nosso tempo."(SILVA, Luiz Fernando Martins da. Racismo e desigualdade social na ordem do dia. Agosto/2002)

            49 "O tratamento mais favorável em razão da vulnerabilidade ou debilidade econômico-social justifica e autoriza, ou seja, não caracteriza arbítrio ou violação do princípio da igualdade, pelo contrário, viabiliza a igualdade material. A superação das desigualdades – através de políticas de redistribuição de renda e equalização de posições excessivamente desvantajosas, denominada discriminação positiva (discrimination positive ou positive action) ou ainda as affirmative action, - visa alcançar a igualdade substancial. Resulta desse aperfeiçoamento jurídico-político, pela via da ação afirmativa, a possibilidade do afro-brasileiro pleitear o acesso ao trabalho e à educação. Este se constitui num mecanismo jurídico eficaz no combate à discriminação indireta e direta, comuns nas sociedades racialmente estratificadas." (SILVA, Luiz Fernando Martins da., ob. cit.); Ver também: "Guardadas as devidas proporções e singularidades sociais, culturais e políticas, os legisladores daqueles países (EUA, a partir dos anos 50, e África do Sul, pós apartheid) – justamente os dois países onde as discriminações raciais foram mais assumidas entre os seus cidadãos - primaram pela abordagem desta questão no âmbito civil e das políticas públicas, preocupando-se com a implementação de ações afirmativas, deixando para segundo plano a área da repressão."(SILVA, Katia Elenise Oliveira da. O papel do Direito Penal no enfrentamento da discriminação, p. 129)

            50 "É certo que as quotas se constituem na forma mais radical de ação afirmativa e, possivelmente, na mais polêmica, mas também é correto que existem diversas outras medidas de promoção capazes de desempenhar o papel de instrumento de realização do princípio da igualdade material tais como incentivos fiscais (e outras sanções promocionais, tais como aumento de pontuação em licitações) a empresas que favoreçam a contratação multiracial de empregados."(SILVA, Alexandre Vitorino. O Desafio das Ações Afirmativas no Direito Brasileiro, novembro/2002)

            51 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio, p. 439.

            52 Jornal do Brasil, p. 03.

            53 "Os alunos que são barrados no vestibular não o são por sua raça. Eles o são, negros ou brancos, porque não atingem o nível mínimo e básico de conhecimento para ingressar na universidade. Seu destino é decidido na precária escolaridade prévia que os inabilita para seguir adiante. A escola deficiente é apenas o reflexo de outras muitas injustiças próprias de um país em que ainda há trabalho escravo. A crônica degradação geral das condições de vida de grande parcela da população não será corrigida com o regime de cotas. A cota não supre o saber inexistente e necessário para seguir um bom curso universitário."(MARTINS, José de Souza. Cota para Negros na Universidade. In: Folha de São Paulo, 25.05.03); "Prega, inconsciente e infelizmente, a superioridade intelectual do branco sobre o negro. Não acerta no critério e tende a discriminar um novo grupo de pessoas ainda mais excluído: os negros pobres."(PENA FILHO, Sebastião José. Cota para negros nas universidades: uma abordagem unicamente jurídica, agosto/2002)



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Karina Melissa. Brasil x apartheid social. As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 677, 13 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6711. Acesso em: 26 abr. 2024.