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O juiz, a norma, o valor e o Direito Penal

O juiz, a norma, o valor e o Direito Penal

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Sumário: 1-A Norma o Estado e o Direito Penal. 2- Questões concretas: interpretação e aplicação da norma penal. 3- O Juiz e o Direito Penal. 4- Conclusões


1-A Norma, o Estado e o Direito Penal

            Embebidos na nossa realidade diária, pontual no tempo espaço, raramente nos damos conta de que esta mesma realidade social é fruto de um processo histórico, pois é certo que a sociedade, como a conhecemos, não existiu desde sempre.

            Noções que nos são tão caras, como lei, Estado, governo não são institutos naturais. São construções humanas, reconhecidas a partir de um ponto no desenvolvimento da humanidade, e dentre elas, o Direito representa sem dúvidas uma das pilastras da sociedade como hoje ela se apresenta.

            O Direito surge da inarredável conclusão de que é preciso estabelecer parâmetros de comportamento, regras de conduta que possam viabilizar a convivência em sociedade dentro de uma perspectiva racional, e dentro do Direito, as diversas espécies de relações humanas recebem diferenciado tratamento, conforme seja sua natureza.

            Ao Direito Penal restou o papel de ser o instrumento mais incisivo do Estado, resultado da sociedade organizada, para intervir nesta mesma sociedade, conformando comportamentos a uma pauta predefinida. Se determinado comportamento fere esta pauta, estabelecida a partir de um juízo de valoração, há a interferência do Estado, visando aplicar uma sanção estabelecida, caracterizando um mecanismo de coerção.

            Mas o Direito Penal, por isso mesmo, ou seja, pela gravidade de que se revestem as conseqüências das situações fáticas por ele tratadas e da sua própria aplicação, é um campo espinhoso, e é sabido que foi, e ainda é, utilizado como mecanismo de opressão.

            Nesta ótica, percebe-se o valor da norma penal, vale dizer, do tipo, como mecanismo de regulação e limitação do espectro penal. De fato, o Direito Penal trabalha com tipos, que por serem normas de limitação, devem ser claros, precisos, e interpretados e aplicados sem que se olvide sua natureza e função.

            Não há sociedade, não há Estado sem o Direito Penal, ou mecanismos de conformação de condutas equivalentes, e o Direito Penal no Estado Democrático de Direito, deve escudar-se no primado da legalidade, da norma positivada, produzida de forma legítima pela instância legislativa representativa, pois todo o poder emana do povo, conforme apregoa o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.

            Esta constatação, contudo, não torna a aplicação do Direito Penal uma ação de subsunção mecânica. De par com sua função puramente funcional, a norma deve agregar o valor, deve ser axiologicamente dimensionada.

            Parte desta tarefa é feita pelo legislador e parte pelo juiz.

            É então que me pergunto: qual deverá ser o papel do juiz frente ao direito penal? Até onde pode ir sem comprometer a independência dos poderes e a objetividade que permeia (ou deve permear) a norma positivada?

            É o que me proponho a analisar diante de algumas questões concretas no âmbito do Direito Penal e da Execução Penal.


2- Questões concretas: interpretação e aplicação da norma penal.

            Algumas questões concretas podem servir de paradigma para uma reflexão acerca do papel do juiz ao aplicar o Direito Penal.

            A Lei nº 8.072/90 estabelece que o cometimento de crime hediondo ou equiparado não poderá ser beneficiado por liberdade provisória e deverá cumprir pena em regime integralmente fechado. Não obstante, há várias decisões que concedem liberdade provisória quando ausentes os requisitos da prisão preventiva e concedem progressão de regime quando não tenha a sentença estabelecido de forma explícita ou implícita que o regime é integralmente fechado.

            A Lei nº 8.072/90 recebe inúmeras críticas em prestigiosos setores da doutrina e na jurisprudência. Especificamente no que tange à progressão de regime, pertinente a citação de Alberto Silva Franco, que afirma:

            "O § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 proíbe, em relação aos crimes hediondos e aos a eles equiparados, o regime progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, lesando desse modo, ao mesmo tempo, os princípios constitucionais da legalidade, da individualização da pena e da humanidade da pena." (1)

            O citado autor, após mencionar que o preso não pode ser manipulado como um objeto, referindo-se ao princípio da legalidade da execução da pena (no que lhe assiste plena razão), complementa:

            "Por sua vez, o princípio constitucional da individualização da pena, mercê do regime prisional progressivo, insere-se no tronco comum do processo individualizador que se inicia com a atuação do legislador, assa pela ação do juiz, e se finda, ao atingir o nível máximo de concreção. na execução da pena. Destarte, excluir, legalmente o sistema progressivo é impedir que se faça valer, na sua fase final, o princípio constitucional da individualização. Lei ordinária que estabeleça, portanto, regime prisional único sem possibilidade de nenhum tipo de progressão atenta contra tal princípio e revela expressa ofensa a preceito constitucional. Mas não é só. A exclusão legal do sistema progressivo conflita também com o princípio constitucional da humanidade da pena, que na expressão de Jescheck (Tratado de Derecho Penal, 3a ed. 1993, p. 23), ‘se converteu no pensamento reitor da execução penal’. Pena executada com um único e uniforme regime prisional, significa pena desumana, porque inviabiliza um tratamento penitenciário racional e progressivo; deixa o recluso sem esperança alguma de obter a liberdade antes do termo final do tempo de sua condenação e, portanto, não exerce nenhuma influência psicológica positiva no sentido de seu reinserimento social; e, por fim, desampara a própria sociedade na medida em que devolve o preso à vida societária após submetê-lo a um processo de reinserção às avessas, ou seja, a uma dessocialização." (2)

            Data venia, nenhuma destas críticas se sustenta.

            O estabelecimento de um regime integralmente fechado não implica em tratar-se o apenado como um objeto. Regime não tem nada a ver com tratamento do preso. Não há incompatibilidade alguma. O apenado não perde a condição de titular de direitos, sem dúvida, e principalmente, não perde a condição de ser humano, como tal devendo ser tratado. Mas impedir-se a progressão de regime não significa dar-lhe outra condição que não esta.

            A Constituição Federal em momento algum estabeleceu a progressão como regra. Esta foi estabelecida por lei ordinária e pode ser proibida por lei ordinária sem qualquer espécie de ofensa à legalidade ou à Constituição.

            Da mesma forma, é perfeitamente possível compatibilizar a individualização da pena com a execução em regime integralmente fechado. O mérito do condenado no cumprimento da pena pode ter diversas repercussões positivas sobre esta execução, não sendo a progressão a única possível.

            Individualizar a pena na fase de execução é dimensionar esta execução de acordo com o mérito do condenado, o que pode ser feito através da concessão de vários benefícios. Vários exemplos podem ser referidos como acesso a lazer, espécies de serviços internos, maior tempo fora da cela, etc..

            Não há nenhuma regra ou princípio lógico que limite as medidas de individualização da execução à progressão de regime. A sanção foi dimensionada pelo legislador e mensurada pelo julgador em vista do caso concreto. Deve, portanto, ser cumprida em sua íntegra, diferenciando-se a forma de cumprimento de acordo com o merecimento de cada um, avaliado através de critérios objetivos e legalmente estabelecidos.

            O que não se pode admitir é tomar-se um único benefício possível como paradigma e afirmar-se que a sua ausência gera prejuízo à individualização da execução da pena.

            E são estas outras formas de benefícios que podem servir de estímulo para que o apenado tenha um bom comportamento. A progressão de regime é uma forma de estímulo mas não a única, e, diga-se de passagem, causa mais prejuízo do que benefício à sociedade, porquanto reduz significativamente a eficácia repressiva da pena.

            Admitir-se a progressão de regime em crimes hediondos implica, por exemplo, admitir-se que um condenado por homicídio qualificado a uma pena de 12 anos possa estar nas ruas em pouco mais do que três anos. E o pior é que os jurados julgam pensando na pena formalmente imposta e não na que efetivamente será cumprida.

            A possibilidade de progressão não é uma regra absoluta. Sua inserção no regime jurídico depende de uma opção político-legislativa que deve ser tomada pelo legislador. Não se trata, como alguns parecem fazer crer, de um princípio absoluto.

            O que não é possível é que se continue a pensar em delinqüentes "ideais", passíveis sempre de "ressocialização" de "reinserção social", e se feche os olhos para as realidade dos índices de violência brasileiros. Só o medo de uma situação ainda pior pode obstar quem nada tem a perder.

            Aliás, falar-se em ressocialização e reinserção social é uma perspectiva profundamente paradoxal em relação a um direito penal humanitário e do fato. Fala-se do apenado como se ele estivesse fora da sociedade, como se seus valores devessem ser mudados.

            Ora, em um Estado Democrático cada um pode ter os valores, certos ou errados, que quiser cultivar. Ninguém, nem mesmo o Estado pode obrigar quem quer que seja a ter determinado valor como correto.

            O que o Estado pode, isso sim, é exigir determinado comportamento, comissivo ou omissivo, em vista da prejudicialidade em relação a outras pessoas ou mesmo ao próprio Estado. A pretendida ressocialização, portanto, encerra na verdade uma violência psíquica contra o apenado, tomando-o verdadeiramente, esta sim, como um objeto moldável. O indivíduo não tem o dever de pensar de determinada forma, ele tem o dever de comportar-se de determinada forma sob pena de sanção. Ele não pode ser obrigado a reinserir-se em um status quo.

            Mas ainda que se admitisse o cabimento de uma "ressocialização" é de ponderar-se que ela muito pouco funciona. Basta verificar a quantidade de deliqüentes hoje presos que apresentam algum envolvimento anterior com infrações penais (são a grande maioria) embora tecnicamente primários.

            Em síntese, a pena não pode ter uma função educativa, pelo simples fato de que uma medida de força do Estado não pode ser utilizada para compelir o indivíduo a pensar desta ou daquela forma. Isso é arbitrariedade.

            Por fim, quanto ao fato de ocorrer uma "reinserção às avessas", é de se lembrar que ela é uma conseqüência da situação carcerária brasileira, e não será afastada ou diminuída pelo fato de após um tempo o apenado sair do cárcere antes do que previsto para o término da pena. O só fato de estar condenado e encarcerado, independentemente do tempo já serve de estigma. Isso somente será afastado quando as penitenciárias oferecerem educação e trabalho. Por outras palavras, não é a aplicação da progressão ou do livramento condicional o fator decisivo.

            O artigo 61, inc. I, contempla o instituto da reincidência, consagrado de longa data em nosso direito. Decisões há que afastam a aplicação da reincidência ao argumento de que seria inconstitucional, implicando bis in idem. A respeito, Alberto Silva Franco, após referir que nem sempre o reincidente apresente maior culpabilidade, assertoa: "Por outro lado, mostra-se hoje, bastante duvidosa, em sua constitucionalidade, a agravação obrigatória da pena, em razão do agente ser reincidente", e complementa, "não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração." (3)

            José Antônio Paganella Boschi, após mencionar a doutrina de Muñoz Conde (contrário à reincidência) e de Mirabete (favorável), conclui:

            "A primeira orientação é, sem dúvida, consentânea com o princípio que proíbe a dupla valoração da mesma circunstância. É, também, a que melhor reflete a tese de que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime, insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, pode e deve ser compreendida, também, como a expressão final do processo perverso de estigmatização do homem pela prisão e da absoluta falta de políticas de amparo ao egresso, criadoras de novas oportunidades para a harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho, pela edificação de moradia, pela reconstrução da família." (4)

            Lênio Luiz Streck é ainda mais incisivo. Diz ele:

            "E o que dizer da reincidência? No nosso Código penal, a reincidência, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais, tais como a suspensão condicional da pena, o alongamento do prazo para deferimento da liberdade condicional, a concessão de privilégio do furto de pequeno valor, só para citar alguns. Esse duplo gravame da reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivíduos em ‘aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade’ e ‘aqueles-que-não-aprenderam-a-conviver-em-sociedade.’" (5)

            Primeiramente, a reincidência não está punindo o infrator pelo fato anterior. A sua punição é pelo delito atual, no qual está sendo julgado. A condenação anterior é tomada como um simples fato, indicativo de que o réu merece maior censura. De fato, se já foi condenado anteriormente, melhor do que ninguém está advertido das conseqüências do cometimento de um delito, e sabe, ou deve saber, que a condenação anterior irá repercutir negativamente sobre nova eventual infração. É maior a exigência de ação conforme os fins da lei.

            E nem se diga que o Estado é também responsável por submeter o apenado a um regime "desumano e marginalizador", pois tal argumento não seria válido para os condenados que tiveram sua penas substituídas por penas restritivas de direitos. Quantos processos criminais redundam em penas de prisão atualmente, com a larga aplicação das penas restritivas de direitos?

            O que há é uma presunção iure et de iure de maior censurabilidade, que, tecnicamente, não é punição por fato anterior. Aliás, afirmar-se que neste caso estaria havendo bis in idem faria com que o mesmo argumento fosse utilizado para afastar-se as conseqüências previstas nos artigos 91 e 92 do CP. Não há nestas conseqüências um verdadeiro bis in idem?

            O artigo 123 da LEP condiciona a concessão do benefício de saída temporária a uma decisão judicial específica e à prévia manifestação do Ministério Público. Em algumas comarcas, porém, existem portarias autorizando a concessão das saídas pela própria administração carcerária, de forma automática.

            A execução da pena está adstrita ao princípio da legalidade. Disso não resta dúvida. A lei estabelece, em numerus clausus, quais os direitos do apenado são tolhidos e em que medida isso ocorre. Estes, e nenhum outro, podem ser atingidos.

            Por este motivo, a atividade de execução da pena é jurisdicional, e não meramente administrativa, e deve contar com um sistema múltiplo de controle recíproco entre os envolvidos: apenado, administração carcerária, Ministério Público e Poder Judiciário.

            Especificamente no caso do Ministério Público, preconiza o artigo 67 da LEP que "fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução." Através deste dispositivo, "confere-se ao parquet a função de promover a observância do direito objetivo, atuando imparcialmente na verificação dos requisitos legais para o estrito cumprimento do título executivo penal" (6), pois "nem sempre o interesse da Administração confunde-se com os interesses genéricos e maiores de toda a coletividade, devendo o Ministério Público defender estes, orientando sua fiscalização para que se perfaça a exata aplicação da lei penal, processual e de execução penal." (7)

            Se a saída temporária está adstrita a requisitos específicos, se a oitiva do Ministério Público é sempre indispensável e se há necessidade de uma decisão judicial fundamentada (artigo 93, inc. IX, da CF/88), então é evidente que a concessão de saídas pela administração carcerária é ilegal.

            Realmente, como bem lembrou o Desembargador Luis Carlos Avila de Carvalho Leite no julgamento do Agravo em execução nº 70008313439: "Essas ordens de serviço foram editadas pelo próprio prolator da decisão. Em outras palavras, ‘legislou’ e ‘aplicou sua própria lei’. Assumiu as funções de legislador e de julgador". Adiante prossegue:

            "Em segundo lugar, as saídas temporárias não dependem da livre escolha do apenado, mas devem ser motivadas em um dos permissivos legais, todos eles elencados no art. 122 da LEP. Não há saída por sair, mas saída plenamente justificada, cuja motivação deverá ser sopesada pela autoridade judiciária, e não pelo administrador do presídio. Porque a lei admite saídas temporárias não significa que sejam elas desmotivadas. Assim como definido nas ordens de serviço, tem-se a nítida impressão de que se está transformando um cárcere, que é casa destinada a cumprimento de penas, em razão de condenações trânsitas em julgado, em uma colônia de férias em que o administrador do presídio se transforma em um verdadeiro agente de turismo"(grifo no original)

            "Em terceiro lugar, a saída temporária deve ser examinada previamente, caso a caso, mediante fiscalização do Ministério Público. A combatida ordem de serviço transfere o controle ao administrador de presídio, que apenas informa após o gozo do benefício, quando a saída já se consumou, impedindo a devida atuação do órgão ministerial, que se vê, dessa forma, alijado do processo"..

            E conclui: "Ora, mais não é preciso dizer. Eliminada ficou a fiscalização prévia a ser exercida pelo Ministério Público, pois até dispensada foi a própria decisão judicial. O administrador do presídio é quem define, de forma isolada, as saídas do presídio. Com isso, a decisão impugnada violou o art. 123 da LEP."

            As questões acima tratadas espelham apenas algumas das dezenas que se formam pela diversa interpretação e aplicação da lei e suscitam uma outra mais abrangente: Qual o papel do Juiz frente ao Direito Penal, ou por outras palavras, até onde ele pode ir na flexibilização da lei?


3- O Juiz e o Direito Penal

            O Juiz exerce uma das mais difíceis funções: julgar seus semelhantes. Sob seus ombros, permanentemente, recai a responsabilidade de ter importantes questões das vidas de outras pessoas submetidas a sua análise. É na sua consciência pesam o erro e o acerto. Neste mister, cumpre-lhe vivificar a norma, introduzir na sua aplicação o componente axiológico.

            Deveras, de há muito se sabe que na norma positivada não se condensa todo o direito, e "o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito." (8)

            Nesta ordem de idéias, mediante a interpretação e a aplicação do direito ao caso concreto, o juiz faz a ponte entre a dimensão normativa, abstrata e que representa a cristalização de um momento histórico, e a realidade social do momento em que a norma é aplicada. A legitimidade do exercício do poder estatal sub especie jurisdicionis está intimamente relacionada a esta capacidade de adaptação e flexibilização do conteúdo normativo in abstrato em relação a caso concreto, porque é dela que depende a institucionalização do Direito. (9)

            Mas se o juiz não é um autômato, então se questiona: até que limite pode ir neste processo de adaptação?: Este limite é diverso em termos de direito penal?

            Lênio Streck, após referir à norma constitucional como base da atuação da legislação, da administração e do judiciário, o que conduz à necessidade de construção de mecanismo efetivos de justiça social, pugna, invocando a Ferrajoli, por uma "filtragem" constitucional, reinterpretando-se a legislação à luz da Constituição e repelindo-se sujeição a uma lei de "tipo acrítico e incondicional." (10)

            É notório que a lei positivada apresenta erros e equívocos. Já advertia Carlos Maximiliano que "a lei não brota do cérebro de seu elaborador, completa, perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo. Em primeiro lugar, a própria vontade humana é condicionada, determinada; livre na aparência apenas. O indivíduo inclina-se, num ou noutro sentido, de acordo com o seu temperamento, produto do meio, da hereditariedade e da educação. Crê exprimir o que pensa; mas este próprio pensamento é socializado, é condicionado pelas relações sociais e exprime uma comunidade de propósitos." (11)

            Especificamente em relação ao processo legislativo, lembra que:

            "A vontade do não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva; porque bem poucos se informam, com antecedência dos termos do projeto em debate; portanto, não podem querer o que não conhecem. Quando muito, desejam o principal: por exemplo, abaixar ou elevar um imposto, cominar ou abolir uma pena. As vezes, nem isso; no momento dos sufrágios, perguntam do que se trata, ou acompanham, indiferentes, os leaders, que por sua vez prestigiam o voto de determinados membros da Comissão Permanente que emitiu parecer sobre o projeto." (12)

            Não é de causar surpresa, portanto, que a lei apresente falhas, tanto mais quando produzida de forma atabalhoada, e a maior destas falhas, sem dúvida, é a inconstitucionalidade, seja ela formal ou material.

            E se a lei padece deste vício é certo que o magistrado deve negar-lhe aplicação. Mas note-se, a lei presume-se constitucional e a fim de declarar inconstitucionalidade não podemos alvitrar teses cerebrinas e forçadas. Significa dizer que a inconstitucionalidade manifesta é que pode ser declarada e fazer ter-se por inválida a lei, seja no caso concreto, seja abstratamente considerada.

            Neste passo, tomando em linha de conta a finalidade fundamental do Direito Penal, que materializa a máxima coerção do Estado, não me parece correta a perspectiva que pretende fazer do Direito Penal um instrumento de transformação social, ao menos não como sua finalidade maior.

            Não resta dúvida de que o modelo de Estado hoje caminha para um Estado "intervencionista-promovedor-transformador" em contraponto a uma "faceta hobbesiana-ordenadora", sendo sua Constituição marcada pela "característica dirigente-vinculativa." (13)

            Mas a transposição deste novo paradigma hemenêutico para cada ramo do Drieito deve observar as característica e finalidades de cada um.

            Há toda uma série de mecanismos para condicionar o comportamento de cada indivíduo a um parâmetro que possibilite a vida em sociedade. Estes mecanismos podem ser oficiais ou não oficiais, políticos, religiosos, culturais, jurídicos etc...

            O Direito Penal é o último e o mais grave mecanismo oficial. Se ele vem a ser invocado, é porque os demais falharam e é por isso que ele não pode ser visto como mecanismo de transformação. Na verdade, ele é a alternativa aos mecanismos de transformação social, devendo ser secundário, subsidiário.

            O seu fundamento não é outro que não a intimidação. É a espada de Dâmocles pendendo permanentemente sobre a cabeça do cidadão a lembrar-lhe os malefícios que advirão se sua conduta violar os preceitos (certos ou errados) estabelecidos. Sem esta característica, do Direito Penal é inócuo, sem funcionalidade.

            Então, o Direito Penal não irá solucionar o problema da criminalidade, tampouco os enormes problemas sociais que estão por traz de boa parte dela. Ele apenas pode controlar, minimizar esta criminalidade pela intimidação; é a máxima coerção.

            Na medida em que restringe o aspecto de punibilidade e a punição em si, o Direito Penal é garantista, não só para a sociedade, mas também para o acusado. Mas tomar-se uma perspectiva garantista para concentrar nas mão do magistrado o poder de legislar e julgar é algo grave. Não podemos tomar realidades bem diversas como parâmetros e abraçar soluções que nada dizem com a situação da sociedade brasileira atual.

            Por outras palavras, doutrinas, institutos e soluções de países economica e socialmente diversos não podem ser tomadas como panacéia para a criminalidade brasileira, e se formos tomar por parâmetro exemplos estrangeiros, a nossa realidade recomenda mais a "lei e ordem" do que o "abolicionismo garantista".

            O sistema da tripartição de poderes pode ter falhas, mas é uma das maiores garantias do cidadão. Quando o magistrado toma posições e convicções pessoais para deixar de aplicar a lei, comete equívoco equivalente ao que ocorre quando faz o extremo oposto, ou seja, quando aplica a legislação literalmente e de forma acrítica, porque nas duas ocasiões perde de perspectiva o equilíbrio.

            A lei fornece limites dentro dos quais é lícita a adaptação e maleabilidade. Dentro destes limites manifesta-se a carga axiológico no decidir. Mas quando as convicções pessoais constroem inconstitucionalidades, e este limite é extrapolado, condensa o julgador a figura do legislador e do julgador e abre-se espaço para a arbitrariedade, para a tirania dos juizes, tão nefasta como qualquer outra.

            Diante deste contexto, verifica-se que interpretar o Direito Penal à luz da Constituição é atentar para o fato inexorável de que o acusado também é cidadão, e nenhum direito além dos previsto em lei lhe poderá ser tolhido, mas é também observar a legalidade e não olvidar que a inconstitucionalidade que pode ser declarada e a interpretação que pode ser conferida a um preceito é aquela que se conforma aos limites do texto e não a que deflui de convicções pessoais e posições filosóficas, porque o juiz também é o guardião maior da eficácia do Direito Penal.


4- Conclusões

            Infelizmente o crime sempre existirá. Não há sociedade sem regras e é uma utopia ridícula acreditar-se que existirá sociedade sem um Direito Penal ou um mecanismo de força equivalente.

            O Direito penal não resolve o problema da criminalidade e não pode ser manejado a partir desta premissa, mas pode amenizá-lo.

            Para tanto tem de ser eficaz, e para ser eficaz tem de intimidar, pois não é outra coisa se não um mecanismo de intimidação de condicionamento a uma determinada forma de comportamento. Não é instrumento para impor-se valores, que são (ou devem ser) de livre escolha de cada um. Por isso, tem por finalidade principal punir, e não ressocializar.

            O magistrado representa a ponte entre a norma e a realidade. Não pode ser um mero repetidor de textos. Para tanto nos serviriam máquinas. Mas deve ter em mente que sua função é vivificar, adaptar, moldar a norma, não desconsiderá-la de forma absoluta. O seu poder não lhe pertence, é do Estado e se exerce de acordo com a lei. Não importam suas convicções pessoais. Quando ele põe de lado a lei para julgar com suas convicções faz valer a sua vontade, e não a vontade que, bem ou mal, os representantes do povo colmataram na lei.

            Não está o magistrado adstrito a aplicar sempre e sempre a norma de modo que diante de rematada iniqüidade tivesse de fazê-lo por mera formalidade.

            Pode e deve negar-lhe aplicação quando inconstitucional ou quando evidentemente não reflete a realidade. Mas note-se, tal faculdade deve ser exercida com cuidado absoluto, porque sua função e aplicar o Direito e não legislar.

            O que se tem visto em algumas questões é exatamente isso. Derrogação ou ab-rogação pura e simples da lei com invocação de inconstitucionalidades inconsistentes que somente fazem multiplicar os recursos, refletindo teses que não condizem com a funcionalidade do Direito Penal na sociedade brasileira.

            O acusado e o apenado são seres humanos e cidadãos. Os direitos que lhe podem ser tolhidos quem determina quais e como é a lei. Na moderna concepção de um Estado Democrático, cuja justiça seja uma meta, o Direito Penal é garantista na exata medida em que estabelece em parâmetros humanos e razoáveis a punição. Mas punição é punição, e a opção para estabelece-la pertence inicialmente ao legislador, diante da hipótese abstrata, e somente no caso concreto é atribuição do juiz. Se a punição não intimida, de nada vale e se o Direito Penal não cumpre sua função, nenhum outro mecanismo resta.

            Diante de nossa realidade, é preciso sim de penas duras para certas infrações. Hoje, com as penas substitutivas e os Juizados Especiais, o delinqüente de menor periculosidade dificilmente estará preso. Quem está nesta condição é porque fez algo grave ou demonstrou propensão para o crime e que se observa é que determinadas interpretações estão comprometendo a eficácia da lei penal.

            Temos de ter, desta forma, redobrada atenção para não aderirmos a teses acadêmicas destoantes de nossa realidade, que perdem a noção do concreto em detrimento de um mundo ideal, onde os delinqüentes são vítimas e são sempre "ressocializáveis". Isso não é o que as ruas de nossas cidades demonstram e somente com um Direito Penal forte e interpretado, pelo magistrado, com razoabilidade, humanidade e observância aos limites da lei é que teremos algum resultado. Solução definitiva não.


Notas

            1 Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, 7a ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 1.195

            2 Op. cit.,.p. 1195-1196.

            3 Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 7a ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 1179-1180.

            4 Das penas e seus Critérios de Aplicação. 2a ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2002. P. 247.

            5 Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais, 3a edição, Porto Alegre, Livraria do Advogado, p. 66.

            6 Júlio Fabbrini Mirabete. Execução Penal, 9a edição, São Paulo, Atlas, 2000, p. 209.

            7 Op. et loc. cit.

            8 Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19a edição, Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 10.

            9 Institucionalização do Direito é sua aceitação pela sociedade. É na aceitação da norma que reside sua legitimidade e é na legitimidade que está o grau de eficácia.

            10 Tribunal do Júri cit, p. 64.

            11 Hermenêutica e Aplicação do Direito cit., p. 16.

            12 Op. cit. p. 20.

            13 As palavras grifadas são de Lênio Streck, Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais cit., p. 63 e 66.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. O juiz, a norma, o valor e o Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 686, 22 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6757. Acesso em: 25 abr. 2024.