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A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão

A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão

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O reconhecimento da legitimação do Ministério Público do Trabalho também para a defesa dos interesses individuais homogêneos trabalhistas não seria uma forma de democratizar o acesso dos trabalhadores à Justiça?

Sumário:1. Introdução. 2. Teoria Restritiva. 3. Teoria eclética. 4. Teoria ampliativa. 5. A Nossa Posição. 6. A Teoria Ampliativa e a Função Social do Processo do Trabalho. 7. A Posição do STF. 8. Os Direitos Trabalhistas são Direitos Humanos de Segunda Dimensão. 9. A ACP e o Trabalho Escravo. 10. Conclusão. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

Segundo Norberto Bobbio, [01] toda teoria jurídica pode ser considerada desde o ponto de vista do seu significado ideológico ou a partir do ponto de vista do seu valor científico. Quanto ao valor científico, a teoria jurídica tem por fim compreender certa realidade e explicá-la. No respeitante à teoria considerada do ponto de vista ideológico, ela tende a afirmar certos valores ideais e a promover certas ações.

Não obstante a literalidade do art. 129, III, da CF, ainda existem barreiras técnicas e ideológicas [02] que dificultam a atuação do Ministério Público do Trabalho em defesa dos interesses difusos (e até mesmo coletivos).

Os obstáculos tornam-se ainda mais complexos quando se trata da questão da legitimação do Parquet Laboral para promover a ação civil pública em defesa dos interesses individuais homogêneos.

Realmente, os direitos ou interesses individuais homogêneos, além de não estarem expressamente mencionados no art. 129, III, da CF, também não constam literalmente do art. 83, inciso III, da LOMPU.

Daí a existência de três teorias que procuram, ora com base na ideologia, ora nos métodos da ciência do direito, responder às seguintes perguntas: o Ministério Público possui legitimidade para promover ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos? E o Ministério Público do Trabalho?

A resposta a tais perguntas ganha principal relevo quando se está diante de uma das mais graves situações de desrespeito à dignidade da pessoa humana: o trabalho em condições de escravidão.


2. TEORIA RESTRITIVA

Como o próprio nome indica, a teoria restritiva reduz a legitimação do MP à defesa exclusiva dos interesses difusos e coletivos, sendo certo que, nos domínios do direito processual do trabalho, há, ainda, alguns autores que restringem ainda mais tal legitimação aos interesses coletivos stricto sensu, assim mesmo, somente quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente assegurados aos trabalhadores.

Dito de outro modo, a teoria restritiva não admite, em nenhuma hipótese, que os direitos ou interesses individuais, ainda que homogêneos, possam ser objeto de defesa em sede de ação civil pública (ou ação coletiva) promovida pelo Ministério Público.

Os adeptos dessa corrente, portanto, utilizam exclusivamente a interpretação literal e restritiva do art. 129, inciso III, da CF, e do art. 1º, inciso IV, no âmbito do processo civil, ou do art. 83, inciso III, da LOMPU, nos domínios do processo do trabalho.

Expõe a teoria restritiva, em linhas gerais, que o MP não tem legitimação para promover a ACP na defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos, porque:

a)são inconstitucionais as normas legais que alargam a legitimação ministerial na ACP para além dos interesses difusos e coletivos;

b)os interesses individuais homogêneos, por serem disponíveis, estão excluídos das funções institucionais do MP;

c)as relações trabalhistas não são relações de consumo, pelo que inaplicável o CDC na ação civil pública promovida pelo MPT;

d)o art. 83, III, da LOMPU só permite a legitimação do MPT para a defesa dos interesses coletivos, e não dos individuais homogêneos e difusos.

Há algumas considerações, não mencionadas pelos defensores da teoria em estudo, que julgamos imprescindíveis à adequada compreensão do problema, especialmente em se tratando de ação civil pública promovida pelo MPT.

A primeira delas é a de que quando da promulgação da CF, em 5 de outubro de 1988, não estava positivada em nosso ordenamento jurídico a expressão "interesses individuais homogêneos", o que somente se deu com o advento da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o CDC (art. 81, III). Dessa forma, não se poderia esperar que o legislador constituinte tivesse empregado um termo, à época cogitado apenas timidamente por alguns estudiosos da class action for damages do direito estadunidense, que somente veio a ingressar no nosso sistema cerca de dois anos mais tarde. [03]

Eis aí a razão ontológica que pode ser extraída da mens legis contida na norma de encerramento do art. 129, III, da CF, que serve de fio condutor à inteligência da expressão "e de outros interesses difusos e coletivos".

Desse modo, a norma constitucional comporta interpretação extensiva: [04]

a)no plano subjetivo, a fim de que outras espécies de interesses ou direitos metaindividuais, além dos explicitamente proclamados, possam ser tutelados pelo MP, como por exemplo, os interesses difusos e coletivos dos trabalhadores, dos consumidores, das minorias sociais, dos excluídos, dos portadores de deficiência, das crianças e adolescentes, dos idosos etc.;

b)no plano objetivo, para permitir a criação, pelo legislador infraconstitucional, de novas espécies de interesses metaindividuais, como, por exemplo, os interesses individuais homogêneos.

A segunda decorre do fato de que uma das funções institucionais do MP repousa na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tal como desenhado no art. 127 da CF.

Ora, a interpretação sistemática dos arts. 129, III, e 127 da CF, segundo nos parece, permite que a legitimação do Ministério Público na ação civil pública seja estendida à defesa não apenas dos interesses sociais, mas, igualmente, dos interesses individuais indisponíveis que tenham características metaindividuais ou "acidentalmente coletivos", [05] como é caso dos interesses ou direitos individuais homogêneos indisponíveis.

Outra observação importante é a de que o artigo 129, III, da CF reafirma que uma das funções institucionais do MP é a defesa do patrimônio social, abrindo aqui espaço para a construção teórica de que este conceito abriga tanto os interesses sociais quanto os individuais homogêneos indisponíveis. [06]

Por outro lado, o inciso IX do art. 129 da CF vaticina que o MP poderá exercer outras funções que lhe forem conferidas (por lei, acrescentamos), desde que compatíveis com sua finalidade.

Nesse passo, prescreve o art. 21 da LACP, com a nova redação dada pelo artigo 117 do CDC, que são aplicáveis à defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III do CDC, entre os quais se destaca o art. 92, que prevê, literalmente, a legitimação do MP para propor ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos. [07]

No que concerne à afirmação genérica de que os interesses individuais homogêneos são sempre disponíveis, afigura-se-nos residir aqui um grande equívoco, data maxima venia.

É que, a rigor, existem duas subespécies de direitos ou interesses individuais homogêneos: os indisponíveis e os disponíveis. Tal constatação, segundo nos parece, é condição suficiente para demonstrar a inconsistência científica desta teoria, no particular.

No que tange especificamente à legitimação do MPT na ACP trabalhista, parece-nos igualmente frágil a alegação de que os direitos ou interesses individuais homogêneos trabalhistas nela veiculados, por não derivarem das relações de consumo, não poderiam ser objeto de regulação pelo CDC, com o que não poderia o Parquet Laboral utilizar as disposições desse Código nas ações civis públicas por ele propostas no âmbito da Justiça do Trabalho. Neste ponto, os defensores da teoria restritiva confundem normas de direito material com as de direito processual. A par disso, ignoram o que dispõe textualmente o art. 21 da LACP.

Ora, as relações materiais de consumo são reguladas pelo CDC e as relações materiais trabalhistas pela CLT e legislação especial que lhe complementa.

Todavia, a parte processual do CDC (Título III) e a LACP (art. 21) formam, com base nos princípios constitucionais da indeclinabilidade da jurisdição e do due process of law, um sistema integrado, por nós denominado de jurisdição trabalhista metaindividual [08], que é, de lege lata, a única capaz de propiciar a adequada e efetiva tutela judicial dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) decorrentes das relações de emprego e, na forma da lei, de outras relações de trabalho, desde que submetidos à competência da Justiça do Trabalho (CF, art. 114).

Um outro óbice invocado pela teoria restritiva reside na literalidade do art. 83, III, da LOMPU que, de fato, só faz referência aos interesses coletivos, silenciando-se não apenas quanto aos individuais homogêneos, mas, igualmente, quanto aos difusos.

No que respeita aos interesses difusos, o dispositivo ora focalizado deve ser interpretado conforme a Constituição (art. 129, III), que prevê a legitimação ministerial (seja no âmbito da União, seja no âmbito dos Estados) para proteger quaisquer espécies de interesses difusos.

Além disso, a interpretação isolada do art. 83, III, da LOMPU levaria a uma inexplicável capitis diminutio do MPT em relação aos demais órgãos que compõem a instituição ministerial como um todo, em detrimento, aliás, dos princípios da unidade e indivisibilidade (CF, art. 127, § 1º), uma vez que tanto a CF (arts. 127, 128, 129, III e IX) quanto a LOMPU (art. 6º, VII, d) e a LONMP (art. 25, IV, a) não fazem qualquer distinção a tal respeito.

Não se pode perder de vista, outrossim, que a norma de encerramento contida na parte final do art. 129, III, da CF, confere ao MP, sem distinção entre os seus órgãos, a legitimação para a defesa de "outros interesses difusos e coletivos".

Sabe-se que a Constituição "resulta do poder constituinte originário, tido como poder político fundamental", [09] mas, não obstante esse seu caráter político, "materializa a tentativa de conversão do poder político em poder jurídico" [10], o que implica dizer que ela também deve ser interpretada como genuína norma jurídica. [11] Disso resulta que é possível a interpretação extensiva ou ampliativa da norma constitucional em causa, na medida em que os interesses individuais homogêneos – disponíveis ou indisponíveis – são acidentalmente coletivos, [12] o que, por certo, já seria condição suficiente para validar a legitimação do MP quando promove a ACP em defesa dos mesmos.

É insubsistente, de igual modo, a alegação de que o que a Constituição não permite expressamente proibido está. Tal critério, como já foi visto, é fruto de uma concepção individualista, calcada no formalismo jurídico preconizado pelo Estado Liberal, que só admitia a existência dicotômica direito público-direito privado.

Em tema de direitos ou interesses metaindividuais rompe-se definitivamente com tal concepção, na medida em que o Estado Social brasileiro passa não apenas a prescrever, mas também a tutelar também esses "novos direitos" que, seguramente, não se enquadram no direito público, tampouco no privado, constituindo, ao revés, categoria própria: a dos direitos humanos de terceira dimensão.

Tornam-se, de tal arte, infundadas as alegações de inconstitucionalidade das normas legais que ampliam a legitimação ministerial para tutelar interesses individuais homogêneos. Pelo contrário, mostra-se em conformidade com o Texto Maior interpretar extensivamente a expressão "interesses coletivos", prevista no art. 83, III, da LOMPU, como interesses coletivos lato sensu, ou seja, os interesses metaindividuais que, não é demasiado repetir, por força do art. 81 do CDC, abrangem os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. [13]

Assim, já é possível concluir que o art. 83, III, da LOMPU c.c. o art. 21 da LACP e 82 do CDC, por estarem conforme a Constituição, desautorizam a teoria restritiva no tocante à legitimação do MPT para a ACP na defesa dos interesses individuais homogêneos.

Ademais, no plano infraconstitucional, não se pode ignorar o fato de o art. 84 da LOMPU mandar aplicar ao MPT os instrumentos de atuação de todos os órgãos do MPU previstos no seu art. 6º, VII, d, da LOMPU, inter alia, o de promover a ACP visando à proteção de "outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos." [14] (grifos nossos)


3. TEORIA ECLÉTICA

A teoria eclética, atualmente majoritária, admite a legitimação ativa do MP para promover a ACP na defesa de interesses individuais homogêneos:

a)quando forem indisponíveis, ante a imposição do art. 127, caput, da CF, que define as funções essenciais do MP;

b)quando forem disponíveis, desde que, em função da natureza da lide ou do elevado número de seus titulares, haja repercussão social a exigir a iniciativa ministerial.

Diz-se, por isso mesmo, que essa teoria é eclética, uma vez que admite condicionalmente a legitimação ministerial para defender interesses individuais homogêneos, ou seja, com algumas restrições.

A teoria eclética foi adotada pelo Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo [15] e a jurisprudência majoritária do STJ [16] caminha na mesma direção, se bem que, recentemente, decisões há daquela Corte no sentido de que somente os interesses individuais homogêneos dos consumidores podem ser tutelados pela ação civil pública promovida pelo Ministério Público. [17]

Verifica-se que a teoria eclética não deixa de ser, em certa medida, um desdobramento da teoria restritiva, na medida em que reduz, de forma casuística, a legitimidade do MP à defesa de alguns interesses individuais homogêneos quando isso implicar, de algum modo, relevância social.

Importa salientar que o grande equívoco dessa teoria, ao que nos parece, é que ela não examina o problema da atuação ministerial, quando age em defesa dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), sob o enfoque do princípio da universalidade do acesso à jurisdição e da natureza de ordem pública das normas geradoras de direitos fundamentais.

De toda a sorte, ainda que se adote a teoria eclética no âmbito do processo do trabalho, ressalvadas algumas posições restritivas já mencionadas, o Ministério Público do Trabalho estará, em linha de princípio, legitimado à defesa dos direitos ou interesses individuais homogêneos dos trabalhadores.

Afinal, se os direitos assegurados aos trabalhadores rurais e urbanos são direitos sociais fundamentais, porquanto a norma de encerramento do art. 7º, caput, da CF, considera fundamentais não apenas os direitos sociais constitucionalmente garantidos aos trabalhadores, mas também "outros que visem a melhoria de sua condição social", salta aos olhos que estará aí presente a relevância social a justificar a legitimação do Ministério Público do Trabalho para promover a ACP em defesa dos interesses ou direitos sociais dos trabalhadores.

Vale dizer, em se tratando de direitos ou interesses individuais homogêneos trabalhistas, que são autênticos direitos sociais dos trabalhadores, haverá sempre interesse social em função da própria natureza desses direitos, razão pela qual o Ministério Público do Trabalho estará sempre legitimado a defendê-los, ante a sua função permanente de tutelar os "interesses sociais", ex vi do art. 127 da CF.

Ademais, se uma das características dos direitos individuais homogêneos dos trabalhadores é a indisponibilidade, [18] dificilmente haverá um caso em que o Ministério Público do Trabalho não terá legitimatio ad causam na ação civil pública que tenha por objeto a defesa de tais direitos ou interesses.


4. TEORIA AMPLIATIVA

A teoria ampliativa proclama a legitimação ampla e irrestrita do MP para ajuizar ação civil pública em defesa dos interesses homogêneos.

Entre os defensores dessa teoria destacam-se Nelson Nery Junior, [19] Ada Pellegrini Grinover, [20] Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues e Rosa Maria Andrade Nery [21] e Francisco Antônio de Oliveira. [22]

Os principais argumentos dessa teoria podem ser assim sintetizados:

a)é fato que o art. 129, III, da CF menciona apenas os interesses difusos e coletivos;

b)mas o inciso IX, do mesmo artigo, abre a possibilidade para o legislador ordinário alargar o espectro da legitimação do MP, desde que isso seja compatível com o seu perfil constitucional;

c)os direitos ou interesses individuais homogêneos, como uma das espécies de interesses metaindividuais, só surgiram com o CDC, em 1990, portanto, após a Constituição Federal de 1988;

d)o art. 127, caput, da CF permite que o MPT defenda não apenas os interesses individuais indisponíveis, mas, também, os "interesses sociais";

e)o art. 1º do CDC [23] dispõe que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e de interesse social. Logo, o art. 82, I, do mesmo Código, que confere ao MP a legitimação para defender qualquer interesse individual homogêneo, caracteriza-se como "norma de interesse social", estando, portanto, em perfeita sintonia com o sistema constitucional brasileiro;

f)a própria propositura da ACP em defesa dos interesses individuais homogêneos já configura questão de interesse social, [24] pois com ela desestimula-se a proliferação de demandas individuais, prestigia-se a atividade jurisdicional, democratiza-se o acesso ao Judiciário e evitam-se decisões conflitantes sobre matérias decorrentes de origem comum.

Além dessas pontuações, nós acrescentaríamos dois outros dados que, a nosso sentir, também justificam a legitimação do Parquet para defender interesses ou direitos individuais homogêneos.

O primeiro decorre da previsão explícita no art. 5º, § 1º, da LACP, repetida no art. 82 do CDC, que prescreve a obrigatoriedade de atuação do MP, como custos legis, nas ações coletivas que forem ajuizadas pelos demais co-legitimados em defesa de qualquer interesse metaindividual. A intervenção obrigatória do MP, nessa qualidade, constitui inegavelmente um dos critérios objetivos de se aferir a existência do interesse público ou relevância social em toda ação coletiva que tenha por objeto a defesa de qualquer interesse metaindividual, seja difuso, coletivo ou individual homogêneo.

O segundo dado emerge da determinação expressa no § 3º do art. 5º da LACP, [25] segundo o qual em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro co-legitimado assumirá a titularidade ativa da ação civil pública. Ora, se a lei utiliza a expressão "assumirá", deixa clara a obrigatoriedade da atuação do MP (ou demais co-legitimados) no pólo ativo da demanda coletiva quando a associação desistir (infundadamente) ou abandonar a ACP, perguntar-se-ia: e se o objeto da ação desistida ou abandonada pela associação for a defesa de interesses individuais homogêneos disponíveis, o Parquet estará impedido de atuar judicialmente em defesa de tais interesses? Certamente que se a resposta for sim, estar-se-á diante de autêntica negativa de vigência do preceptivo em causa. Se a resposta for negativa, o que nos parece correto, extrair-se-á da norma em questão a existência do interesse público em toda ação coletiva destinada à defesa dos interesses individuais homogêneos, ainda que disponíveis. Ademais, se se aceita doutrinariamente que a legitimação na ação civil pública é concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público, o Estado (e suas descentralizações) e as associações civis não teria sentido estabelecer uma regra casuística em favor de um do co-legitimado em detrimento de outro, como, por exemplo, permitir que a associação defenda interesses individuais homogêneos disponíveis e indisponíveis e o Ministério Público, apenas estes últimos. [26]

A teoria ampliativa utiliza, portanto, os métodos de interpretação sistemática e teleológica dos arts. 127 e 129, IX, da CF e do art. 82 do CDC, os quais permitem ao legislador infraconstitucional alargar a legitimação ministerial para propor ação civil pública (ou coletiva), objetivando a defesa de interesses sociais.

Nesse passo, a defesa coletiva dos interesses individuais homogêneos dos consumidores encerra, por força dos arts. 1º, 81, par. único, III, e 82 do CDC, hipótese de interesse social e de ordem pública, cuja proteção insere-se perfeitamente no elenco das finalidades institucionais do MP. [27]

A legitimação do Ministério Público para promover ação civil pública em defesa dos interesses individuais homogêneos dos consumidores tem sido admitida pela jurisprudência do STF. [28] Essa mesma Corte, no entanto, não reconhece a legitimação ministerial em se tratando de interesses individuais homogêneos dos contribuintes. [29]

O STJ, em certa oportunidade, reconheceu a legitimação do MP para defender interesses individuais homogêneos, desconsiderando a questão da disponibilidade ou não desses interesses. [30] Mas o entendimento majoritário da Corte Especial aponta no sentido de que apenas quando os interesses ou direitos individuais homogêneos são direitos sociais ou de relevância social estará o MP legitimado a defendê-los. É o que acontece, por exemplo, com a ação civil pública que tenha por objeto a reparação de danos causados à saúde dos trabalhadores submetidos a condições insalubres; [31] o reajustamento dos valores dos benefícios de prestação continuada dos aposentados; [32] a proteção do direito dos servidores perceberem o salário mínimo constitucional. [33]

Não obstante os aspectos acima mencionados, ainda há uma certa resistência por parte de alguns magistrados trabalhistas quando à adoção da teoria ampliativa.


5. A NOSSA POSIÇÃO

Em escrito anterior [34] chegamos a adotar a teoria eclética, na medida em que destacávamos que a legitimação do MPT na ACP promovida na Justiça do Trabalho só seria válida: (a) se os interesses individuais homogêneos fossem indisponíveis ou (b), se disponíveis, apenas os que, pela sua natureza ou abrangência, pudessem trazer reflexos negativos para a sociedade como um todo.

Além disso, dizíamos que o MPT não reunia, por deficiência do número de membros, servidores, material etc., condições operacionais para atuar em defesa dos interesses individuais homogêneos que não fossem socialmente relevantes. [35]

O aprofundamento da investigação científica, no entanto, guiou-nos a caminho diverso, qual seja o de reconhecer que os direitos sociais dos trabalhadores e a respectiva proteção judicial integram o elenco dos direitos humanos de segunda dimensão, estando, desse modo, compreendidos no moderno conceito de cidadania [36] que, por sua vez, guarda estreita relação com o problema do direito ao acesso – individual e coletivo – dos trabalhadores ao Poder Judiciário.

Tais reflexões axiológicas, além, é claro, das considerações dogmáticas já expendidas nos tópicos anteriores, levaram-nos à conclusão de que as questões atinentes à legitimação ministerial para defender interesses individuais homogêneos trabalhistas encontram-se indissoluvelmente ligadas à temática da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, isto é, a questões que decorrem da principiologia que fundamenta o próprio Estado democrático de direito brasileiro, cuja guarda foi confiada ao MP, como um todo, e ao MPT, em particular, pois este, no exercício específico da sua função promocional, tem a missão institucional e permanente de zelar pela defesa ordem jurídica trabalhista e dos direitos ou interesses sociais e individuais indisponíveis dos trabalhadores (CF, art. 127, caput).

É nesse contexto que se situa a ação civil pública, que também passa a ser, a partir da Carta democrática de 1988, uma garantia constitucional dos direitos humanos do cidadão-trabalhador e um dos principais instrumentos de atuação do Ministério Público do Trabalho para tornar realidade objetivos fundamentais da República, entre eles o de "reduzir as desigualdades sociais e regionais" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (CF, art. 3º, III e IV), no campo das relações de trabalho.

Reconhecemos, assim, que a teoria ampliativa é a que melhor se sintoniza com a função promocional do Parquet Laboral.

Afinal, não podemos olvidar que numa sociedade contemporânea inquestionavelmente desigual e contraditória como a nossa, marcada pela intensificação dos conflitos entre o capital e o trabalho, pelo desemprego estrutural e crescente, pela existência de trabalho em condições de escravidão, pela discriminação contra mulheres, negros, idosos, da exploração do trabalho infanto-juvenil, do aviltamento da massa salarial, enfim, das injustiças sócio-econômicas de toda a ordem, as lesões perpetradas aos direitos ou interesses de alguns empregados tendem a se expandir, rápida e uniformemente, geralmente atingindo a massa de trabalhadores de uma ou mais empresas, às vezes espalhadas por diversas cidades e Estados do território nacional.

Nesse passo, é de se indagar: a ACP promovida pelo MPT em defesa dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores não seria utilíssima, em tais casos, para evitar a avalanche de dissídios (rectius, processos) individuais [37] que abarrotam os escaninhos da Justiça do Trabalho, permitindo que ela se torne mais ágil e menos dispendiosa aos cofres públicos e ao contribuinte? O reconhecimento da legitimatio ad causam do MPT também para a defesa dos interesses individuais homogêneos trabalhistas não seria, enfim, uma forma de democratizar o acesso dos trabalhadores à Justiça, mormente num país em que apenas parcela dos desempregados – os empregados, com raras exceções, não o fazem por fundado receio de perderem o emprego – batem à porta do Judiciário Trabalhista? Também não teria um cunho preventivo e educativo para inibir futuras repetições de lesões idênticas aos interesses de massa dos trabalhadores?


6. A TEORIA AMPLIATIVA E A FUNÇÃO SOCIAL DO PROCESSO DO TRABALHO

A teoria ampliativa, portanto, ao que nos parece, identifica-se com a gênese do direito processual do trabalho, porque:

a)a finalidade ontológica do processo trabalhista é servir de instrumento para a realização e fruição dos direitos sociais (individuais ou coletivos lato sensu) dos trabalhadores;

b)esses direitos sociais são considerados direitos humanos de segunda dimensão, o que bem demonstra a relevância social de todas as ações coletivas que versem sobre os mesmos; [38]

c)as normas de proteção aos trabalhadores são, em regra, de ordem pública, [39] na medida em que o Direito do Trabalho pátrio fundamenta-se no princípio da indisponibilidade ou irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. [40]

É, pois, sob a perspectiva da fundamentalidade dos direitos ou interesse individuais homogêneos dos cidadãos-trabalhadores como direitos humanos de segunda dimensão e da função promocional do Ministério Público no campo das relações trabalhistas que se há de ser examinado o problema da legitimatio ad causam na ação civil pública, no âmbito da Justiça Laboral. [41]


7. A POSIÇÃO DO STF

Cabe sublinhar, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, [42] ao enfrentar pela primeira vez a matéria, decidiu, em sede de recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que:

"Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (...) constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas".

Parece-nos, data venia, equivocada a fundamentação do decisório supra acerca do enquadramento conceitual dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, porquanto não se levou em conta, como já explicitado nas páginas anteriores, que os dois primeiros são transindividuais, portanto seus titulares são indeterminados ou de difícil determinação, e indivisíveis por natureza; enquanto os últimos são divisíveis, sendo os seus titulares perfeitamente identificáveis, já que podem, se assim o desejarem, ajuizar ações individuais.

De toda a sorte, a referida decisão considera os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos como coletivos lato sensu, ou seja, interesses metaindividuais, e isso é o bastante para descortinar o alcance da legitimação ministerial para defender, via ação civil pública, interesses individuais homogêneos, mormente quando esta versar direitos sociais, como é o caso dos direitos trabalhistas.

Nesse passo, cumpre destacar que o STF, em julgado mais recente, tornou a dizer que

"Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais ou individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se à defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa". [43] (grifos nossos)

Nesse mesmo acórdão, porém, não se admitiu a legitimação ad causam do MP para defender interesses individuais homogêneos dos contribuintes,

"dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo... nem seria possível identificar o direito do contribuinte como ‘interesses sociais e individuais indisponíveis’ (CF, art. 127, caput)". (grifos nossos)


8. OS DIREITOS TRABALHISTAS SÃO DIREITOS HUMANOS DE SEGUNDA DIMENSÃO

Sem embargo da estreita correlação axiológica entre trabalhadores e consumidores, [44] todas as considerações até aqui expendidas estão a revelar que a defesa dos direitos individuais homogêneos dos trabalhadores encaixa-se como uma luva na letra do art. 127 caput da CF, seja porque são interesses (ou direitos) sociais, [45] seja porque são, via de regra, individuais indisponíveis.

Compreende-se, assim, o verdadeiro sentido e alcance da norma de encerramento contida no art. 6º, inciso VII, alínea d, da LOMPU, que inclui a ação civil pública entre os instrumentos de atuação do MPU (que abrange o MPF, o MPT, o MPM e o MPDFT) para a proteção de "outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos". [46]

Recuperando, a legitimação ad causam do Ministério Público do Trabalho para promover ação civil pública que tenha por objeto a defesa de quaisquer interesses individuais homogêneos dos trabalhadores encontra abrigo na interpretação sistemática e teleológica das normas previstas na Constituição Federal (arts. 129, III e IX, e 127, caput), bem como na legislação infraconstitucional (LOMPU, arts. 83, III, 84, caput, e 6º, VII, d; LACP, art. 5º, caput, e 21; CDC, arts. 81, par. único, III, 82, I, 91 e 92).

Na esfera trabalhista, colhe-se um dos raros julgados que, a nosso ver, enfrentou adequadamente a questão. Trata-se de decisão proferida pelo TRT de Santa Catarina, cuja ementa está assim redigida:

"AÇÃO CIVIL COLETIVA. NATUREZA. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA AJUIZÁ-LA. NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE REGULAM A MATÉRIA. Nos últimos quinze anos, o Brasil conheceu importantes inovações legislativas a respeito dos chamados direitos e interesses difusos e coletivos e dos mecanismos de tutela coletiva desses direitos, destacando-se a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a conhecida ação civil pública, e a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Este, entre outras novidades, introduziu um importante mecanismo de defesa coletiva para direitos individuais homogêneos: a ação civil coletiva (arts. 91 a 100). São características dessa última categoria de direitos ou interesses a possibilidade de perfeita identificação do sujeito, assim como da relação dele com o objeto do seu direito, sendo que a ligação com os demais sujeitos decorre da circunstância de serem todos titulares individuais de direitos com ‘origem comum’ e são divisíveis, pois podem ser lesados e satisfeitos de forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns titulares sem afetar os demais. Portanto, por serem individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio individual do seu titular e, por isso, são passíveis de transmissão por ato inter vivos ou mortis causa e, regra geral, suscetíveis de renúncia e transação. Quanto a sua defesa em juízo, geralmente, são defendidos pelo próprio sujeito detentor do direito material, sendo que a defesa por terceiros será sob a forma de representação ou, quando houver previsão legal, sob a forma de substituição processual. Assim sendo, no que concerne à legitimidade do parquet laboral para a propositura da ação civil coletiva, mostra-se mais coerente com o direito hodierno o entendimento de que o artigo 83, inciso III, da Lei Complementar nº 75/93, ao dispor, entre outras atribuições, que é incumbência do Ministério Público do Trabalho ‘propor ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos’ (grifei), utilizou a expressão ‘interesses coletivos’ na sua acepção lato, abrangendo, outrossim, tanto os interesses coletivos stricto sensu, quanto os difusos e os individuais homogêneos, uma vez não se poder restringir a legitimidade que foi amplamente concedida pelo art. 129, inciso III, do Texto Ápice, sem qualquer discriminação entre os diversos ramos do Parquet. À mesma conclusão chega-se após o exame do art. 6º, inciso VII, alínea d, da Lei Complementar nº 75/93, que, ao disciplinar os instrumentos de atuação do Ministério Público da União, em todos os seus ramos, aponta a ação civil pública para a defesa de ‘outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos". Ademais, não há olvidar que, após a promulgação da Lex Fundamentalis de 1988, o Ministério Público foi guindado à ‘instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’. Vale dizer, portanto, que, ao tutelar os direitos elencados ao trabalhador no art. 7º da Constituição Federal vigente, ele atua, sem dúvida alguma, na defesa dos direitos sociais e, por conseguinte, também na defesa dos direitos e garantias fundamentais conferidos aos cidadãos, bem assim na concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no art. 3º" (TRT 12ª R., RO 5786/97, Ac. un. 1ª T. 03121/98, rel. Juiz Dilnei Ângelo Biléssimo, DJSC 23.4.98, 03.03.98). [47]

É importante ressaltar que o pedido constante da ação coletiva sobre que versa o referido acórdão objetivou a condenação da recorrida "ao integral pagamento das verbas rescisórias (saldo de salários, aviso prévio, décimo terceiro salário, férias vencidas e proporcionais, acrescidas de um terço, multa de 40% sobre o saldo do FGTS, multa prevista no art. 477, § 8º, da CLT, pagamento direto aos empregados dos valores concernentes ao FGTS, não efetivados em época própria - art. 18 da Lei nº 8.036/90), devidos a todos os seus empregados que, prestando serviços junto a agências do Banco do Brasil, neste Estado, tiveram seus contratos de trabalho rescindidos", bem assim " o salário referente ao mês de novembro de 1996 e a gratificação natalina, relativa ao mesmo ano, àqueles empregados que, continuando a prestar serviços à demandada, com atividade junto ao Banco do Brasil, não receberam tais verbas. .."

Sem sombra de dúvida que o Ministério Público do Trabalho atuou, naquele feito, em defesa de interesses individuais homogêneos dos trabalhadores.

É interessante notar, por outro lado, que a fundamentação do acórdão invoca dispositivos aplicáveis à ação civil pública.

De toda a sorte, trata-se de autêntica ação coletiva – pouco importando o nomen iuris – em defesa dos interesses individuais homogêneos trabalhistas. [48]

Um quadro sinóptico sintetiza a nossa posição a respeito da legitimação do Ministério Público do Trabalho em tema de interesses ou direitos individuais trabalhistas:

Interesses ou Direitos Individuais dos Trabalhadores

Legitimação do MPT

Não-homogêneos disponíveis, "interesses individuais puros" ou heterogêneos disponíveis

Não detém legitimação ad causam

Não-homogêneos indisponíveis ou heterogêneos indisponíveis

Legitimação ativa permitida em alguns casos, desde que expressamente previstos em lei (v. g., LACP, art. 21 c/c ECA, art. 201, V).

Homogêneos disponíveis

Legitimação ativa permitida quando se tratar de direitos sociais, como é o caso dos direitos dos trabalhadores (CF, arts. 129, III e 127 caput; LOMPU, art. 83, III, 6º, VII, d; LACP, arts. 5º e 21; CDC, arts. 81, par. único, III, 82, I, 91 e 92) ou houver relevância social.

Homogêneos indisponíveis

Legitimação ativa permitida sem qualquer restrição (CF, art. 129, III, 127, caput; LOMPU, art. 83, III, 6º, VII, d; LACP, arts. 5º e 21; CDC, arts. 81, par. único, III, 82, I, 91 e 92)

Não é missão do Ministério Público do Trabalho defender interesses individuais não-homogêneos disponíveis, também chamados de direitos subjetivos puros, seja por ausência de permissão legal, seja pela sua finalidade institucional, que é a defender interesses sociais ou individuais indisponíveis. [49]

O mesmo não se pode dizer no tocante aos interesses individuais não-homogêneos indisponíveis, na medida em que há alguns casos, especialmente previstos em lei, que permitem a legitimação ministerial para defender, via ação civil pública, interesses individuais não-homogêneos. O art. 201, V, do ECA, por exemplo, está a demonstrar essa possibilidade. [50] Vale dizer, esta norma, aplicada em conjunto com o art. 21 da LACP, alarga o espectro da ação civil pública, no que couber, para os interesses individuais, posto que não-homogêneos. É preciso, contudo, que haja previsão legal expressa em tal sentido.

Na seara trabalhista, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho estará legitimado a promover a ação civil pública em defesa dos interesses ou direitos individuais dos adolescentes que, na mesma empresa, estejam realizando ora trabalho noturno, ora insalubre, ora perigoso (CF, art. 7º, XXXIII). Tais interesses são individuais e indisponíveis, mas não são homogêneos, pois são, fática e juridicamente, inconfundíveis os trabalhos noturno, insalubre ou perigoso, o que lhes retira a nota característica da origem comum. Mas a legitimação do Ministério Público do Trabalho, in casu, decorre da aplicação conjunta dos arts. 129, III e 127 da CF; dos arts. 83, III e V, e 6º, VII, a, c e d da LOMPU; do art. 201, V, do ECA e arts. 5º e 21 da LACP. Numa palavra, o Ministério Público do Trabalho pode, especificamente nesses casos, ajuizar ação civil pública em defesa dos interesses individuais não-homogêneos indisponíveis, em virtude da expressa autorização legal para tal mister.

Quanto aos interesses ou direitos individuais homogêneos disponíveis dos trabalhadores, [51] a legitimação ativa do Ministério Público do Trabalho, a nosso ver, também é permitida, uma vez que esses interesses ou direitos são autênticos direitos humanos, por força da norma de encerramento contida no art. 7º, caput, da Constituição Federal, que, a seu turno, considera sociais não apenas os direitos trabalhistas nela previstos, mas, igualmente, "outros que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores". Plagiando Barbosa Moreira, houve, aqui, uma "recepção qualificada" [52] da CLT e de outras normas que dispõem sobre direitos sociais dos trabalhadores.

A validade da legitimação do Ministério Público do Trabalho para promover ação civil pública, no particular, é extraída da interpretação sistemática e teleológica dos arts. 129, III, IX e 127, caput, da CF; dos arts. 83, III, e 6º, VII, d da LOMPU; dos arts. 5º e 21 da LACP e dos arts. 81, par. único, III, 82, I, 91 e 92 do CDC.


9. A ACP E O TRABALHO ESCRAVO

O Brasil, como é sabido, foi um dos últimos países a abolir dogmaticamente a escravidão. [53]

A nenhum ser humano é dado desconhecer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos-DUDH que, em seu art. 4º, proclama solenemente:

"Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos."

No mesmo sentido é a Declaração Americana dos Direitos Humanos, cujo art. 6º prescreve:

"1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as formas.

2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório."

Mas, o que é trabalho escravo?

O fator determinante para caracterizar trabalho análogo ao de escravo é o cerceamento da liberdade. O trabalhador fica sem condições de sair do local onde está sendo explorado, sofrendo, a rigor, três tipos de coação:

a) coação econômica – dívida contraída com o transporte para fazenda e compra de alimento. O empregado tenta saldar a dívida, mas não consegue devido aos elevados valores cobrados;

b) coação moral/psicológica – ameaças físicas, e até de morte, por parte do responsável pela fazenda e constante presença de capataz, armado, em meio aos trabalhadores;

c) coação física – agressão aos trabalhadores como forma de intimidação.

O trabalho realizado em tais condições revela, por si só, que estamos diante de uma das piores formas de desrespeito aos princípios que fundamentam o Estado Democrático de Direito, quais sejam: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho.

Dessa forma, o combate a todas as formas de trabalho em condições de escravidão constitui dever do Estado e de toda a sociedade.

Do Ministério Público e da Magistratura, como instituições estatais, esperam-se providências enérgicas que possibilitem o amplo acesso à Justiça dos trabalhadores em condições de escravidão, uma vez que a situação de indigência social desses trabalhadores, ocasionada pelo analfabetismo, fadiga física e psíquica, o fundado temor em virtude da tríplice coação que recebem acima referida etc., revela que eles não têm condições materiais ou morais de demandarem individualmente em face do tomador de seus serviços.

A ação civil pública em defesa dos individuais homogêneos dos trabalhadores que se encontram em tais condições é o principal instrumento judicial para reverter essa chaga social, na medida em que:

a) permite a aglutinação de diversos litígios numa única demanda, prestigiando-se a economia e celeridade processuais e evitando-se decisões conflitantes tão caras ao Judiciário e à sociedade;

b) ameniza algumas barreiras psicológicas e técnicas que impedem ou dificultam o acesso judicial da parte fraca, como os trabalhadores, os consumidores, os contribuintes, os idosos, as crianças, os idosos, os excluídos, os vulneráveis;

c) desestimula condutas sociais indesejáveis dos exploradores de trabalho escravo, mediante aplicação de multas elevada, o que acaba prevenindo a repetição de futuras lesões aos trabalhadoes;

d) estimula a criação de uma nova mentalidade que prestigia a solidariedade e o acesso universal a uma ordem justa, cumprindo os objetivos fundamentais da República no tocante à promoção do bem comum e à correção das desigualdades sociais.


10. CONCLUSÃO

Finalmente, e até por decorrência lógica da posição até aqui adotada, afigura-se-nos ilimitada a legitimação do Ministério Público do Trabalho no que concerne à defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos indisponíveis dos trabalhadores em condições de escravidão, pois, se em nosso ordenamento jurídico a indisponibilidade é o traço característico da quase totalidade dos direitos trabalhistas, conclui-se que é exatamente aí que reside uma das mais importantes missões institucionais do Parquet Laboral para tornar realidade o projeto constitucional.

Do ponto de vista dogmático, as normas que autorizam a legitimação do Parquet Laboral para defender os interesses individuais homogêneos indisponíveis são as já mencionadas no quadro sinóptico supra, acrescentando-se, apenas, que a indisponibilidade emerge da aplicação direta do art. 127, caput, combinado com o inciso III do art. 129 da CF.


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NOTAS

1 Norberto Bobbio, Teoría general del derecho, p. 10-11.

2 Para se ter uma idéia dessas barreiras, Dárcio Guimarães de Andrade (A ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho, p. 1329), chega a afirmar solenemente: "Não tenho, como Mestre e Magistrado, a menor simpatia pela Ação Civil Pública, reputando-a mais lesiva do que benéfica".

3 É bem verdade que a Lei n. 7.913/89 já consagrava a defesa dos interesses individuais homogêneos (disponíveis, ressaltamos), embora sem mencioná-los expressamente, dos investidores do mercado ou titulares de valores mobiliários, constituindo, assim, a primeira class action for damages do direito brasileiro.

4 Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 675.

5 José Carlos Barbosa Moreira, Ações coletivas na constituição federal de 1988, p. 188-189.

6 Lúcia Valle Figueiredo, Ação civil pública. A defesa dos interesses difusos e coletivos. Posição do Ministério Público, p. 161-162. Segundo essa autora, "na defesa de direitos individuais, ainda que homogêneos, tem o Ministério Público legitimidade ativa, quando se tratar de direitos, de tal ordem, de tal relevância, que integram o patrimônio social. Assim, esses direitos serão, na verdade, também indisponíveis".

7 Importa observar que o art. 92 do CDC não faz qualquer ressalva quanto à disponibilidade ou indisponibilidade dessa espécie de interesse metaindividual.

8 Cf. Carlos Henrique Bezerra Leite, Ação civil pública, p. 78-87.

9 Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da constituição, p. 104-105.

10 Ibid., p. 98.

11 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, p. 260. No mesmo sentido, Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito, p. 513-514) leciona: "... não vejo fundamento bastante para não se aplicarem, pelo menos em princípio, os princípios interpretativos gerais também à interpretação da Constituição, pois que a Constituição é – enquanto lei – tal como todas as outras leis (redigidas na maior parte em linguagem corrente) – uma obra de linguagem, que, como tal, carece de interpretação, tal como as proposições nela contidas têm o caracter de normas; seu efeito vinculativo não é certamente menor, mas mais vigoroso do que o das demais leis."

12 O STF não considera os interesses individuais homogêneos um tercium genus dos interesses metaindividuais, mas uma subespécie dos interesses coletivos (RE 163.231-SP, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 12.3.97, in Informativo SFT n. 62, Brasília, 3 a 7 de março de 1997, páginas internas). Colhe-se do voto condutor: "Quer se afirme na espécie interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão nitidamente cingidos a uma mesma relação jurídica-base e nascidos de uma mesma origem comum, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque incluem grupos, que conquanto atinjam as pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais, no sentido do alcance da ação civil pública, posto que sua concepção finalística destina-se à proteção do grupo. Não está, como visto, defendendo o Ministério Público subjetivamente o indivíduo como tal, mas sim a pessoa enquanto integrante desse grupo. Vejo, dessa forma, que me permita o acórdão impugnado, gritante equívoco ao recusar a legitimidade do postulante, porque estaria a defender interesses fora da ação definidora de sua competência. No caso agiu o Parquet em defesa do grupo, tal como definido no Código Nacional do Consumidor (artigo 81, incisos II e III) e pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625, de 12 de fevereiro de 1993), cujo artigo 25, inciso IV, letra a, o autoriza como titular da ação, dentre muitos, para a proteção de outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos..."

13 A interpretação conforme a Constituição permite, segundo Celso Ribeiro Bastos (As modernas formas de interpretação constitucional, passim), "que o intérprete depois de esgotar todas as interpretações convencionais possíveis e não encontrando uma interpretação constitucional da mesma, mas também não contendo a norma interpretada nenhuma violência à Constituição Federal, vai verificar-se se é possível pelo influxo da norma constitucional levar-se a efeito algum alargamento ou restrição da norma que a compatibilize com a Carta Maior. Todavia, tal alargamento ou restrição da lei não deve ser revestida de uma afronta à literalidade da norma ou à vontade do legislador. Pode-se dizer que graças a sua flexibilidade, o princípio da interpretação conforme à Constituição permite uma renúncia ao formalismo jurídico e às interpretações convencionais em nome da idéia de justiça material e da segurança jurídica, elementos tão necessários para um Estado democrático de direito." É o que ocorre na espécie, uma vez que a interpretação extensiva da norma do art. 129, III, da CF não afronta a sua literalidade ou à mens legislatoris. Mesmo porque, a própria Constituição autoriza, em alguns casos, a defesa coletiva de direitos individuais, como no caso do mandado de segurança coletivo promovido por associações ou sindicato (art. 5º, LXX, b), a substituição processual nas demandas trabalhistas (art. 8ºª, III) etc.

14 A intercalação da vírgula entre os vocábulos "indisponíveis" e "homogêneos", autoriza a ilação de que a ACP se presta à tutela: a) dos interesses individuais indisponíveis; b) dos interesses individuais homogêneos (disponíveis e indisponíveis). Quanto a estes últimos, aliás, o art. 6º, XII, da LOMPU, prevê a legitimação do MPU para propor a ação civil coletiva para a defesa dos interesses individuais homogêneos, sem fazer qualquer alusão à disponibilidade ou indisponibilidade.

15 Diz a Súmula n. 7 do CSMP de São Paulo: "O Ministério Público está legitimado à defesa dos interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como: a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico".

16 "Ação civil pública. Ação coletiva. Ministério Público. Legitimidade. Interesses individuais homogêneos. Plano de Saúde. Reajuste da mensalidade. UNIMED. O Ministério Público tem legitimidade para promover ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos quando existente interesse social compatível com a finalidade da instituição. Reajuste de prestações de Plano de Saúde (UNIMED). Art. 82, I, da Lei 8.078190 (CDC). Precedentes. Recurso conhecido e provido" (STJ, Rec. Esp. 177.965-PR, 4ª T., rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 23.08.99). No mesmo sentido: "Ação civil pública. Ação coletiva. Ministério Público. Legitimidade. Interesses individuais homogêneos. Cláusulas abusivas. O Ministério Público tem legitimidade para promover ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos quando existente interesse social compatível com a finalidade da instituição. Nulidade de cláusulas constantes de contratos de adesão sobre correção monetária de prestações para a aquisição de imóveis, que seriam contrárias à legislação em vigor. Art. 81, parágrafo único, III e art. 82, 1, da Lei 8.07.9190 (CDC). Precedentes. Recurso conhecido e provido" (STJ, Rec. Esp. 168.859/RJ, 4ª T., rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 23.08.99, p. 129); "Processual civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Interesse público. Ministério Público Federal. O Ministério Público possui legitimidade para propor ação coletiva visando proteger o interesse, de todos os segurados que recebiam benefício de prestação continuada do INSS, pertinente ao pagamento dos benefícios sem a devida atualização, o que estaria causando prejuízo grave a todos os beneficiários. Sobre as atribuições dos integrantes do Ministério Público, cumpre asseverar que a norma legal abrange toda a amplitude de seus conceitos e interpretá-la com restrições seria contrariar os princípios institucionais que regem esse órgão. Recurso provido" (STJ-RESP 211019/SP, Ac. unân. 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 11.4.2000, DJ 8.5.2000, p. 112); "Processual Civil – Ação Civil Pública – Direitos e Interesses Individuais Homogêneos – Ministério Público – Legitimidade – Recurso Especial – 1. Há certos direitos e interesses individuais homogêneos que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal, passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação civil pública. 2. É o Ministério Público ente legitimado a postular, via ação civil pública, a proteção do direito ao salário mínimo dos servidores municipais, tendo em vista sua relevância social, o número de pessoas que envolvem a economia processual. 3. Recurso conhecido e provido" (STJ – REsp 95347 – SE – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 01.02.1999 – p. 221).

17 "Não aplicabilidade, no caso da lei 7.347/85, posto que a referida ação presta-se à proteção dos interesses e direitos individuais homogêneos, quando seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores. Ilegitimidade ativa do Ministério Público reconhecida. Precedentes do STJ. A jurisprudência do STJ vem se firmando no sentido de não ser cabível o uso da Ação Civil Pública para fins de amparar direitos individuais, nem se prestar à reparação de prejuízos causados por particulares pela conduta comissiva ou omissiva da parte ré, não revestindo o caso em apreço no conceito constante da lei 7.347/85. A Ação Civil Pública não se presta como meio adequado a indenizar cidadãos que tenham sido contaminados pelo Vírus HIV em transfusões sangüíneas realizadas em quaisquer estabelecimentos do país. Os interesses e direitos individuais homogêneos, de que trata o art. 21, da lei 7.347/85, somente poderão ser tutelados, pela via da ação coletiva, quando os seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores. Ilegitimidade ativa do MP reconhecida. Precedentes desta Casa Julgadora" (STJ-Rec. Esp. 220.256 - SP – rel. Min. José Delgado, j. em 14.09.99, DJ 18.10.99). No mesmo sentido: "Legitimidade do Ministério Público. A legitimidade do Ministério Público é para cuidar de interesses sociais difusos ou coletivos e não para patrocinar direitos individuais privados e disponíveis. O Ministério Público não tem legitimidade para promover a ação civil pública na defesa de contribuintes, que não são considerados consumidores. A ação civil pública não se presta à obtenção de declaração de inconstitucionalidade de lei, eis que possui eficácia erga omnes" (STJ - Rec. Esp. 234.241 - MG - Rei.: Min. Garcia Vieira, j. em 02.12.99, DJ 28.02.00). Ver tb. STJ-MC 1853/SP, Ac. 1ª T., j. 18.11.1999, rel. Min. José Delgado, DJ 27.3.2000.

18 Antônio Cláudio da Costa Machado (A intervenção do ministério público no processo civil, p. 51) salienta que "o que justifica a atuação do parquet perante a Justiça do Trabalho é o fenômeno da indisponibilidade de direitos, resultado da exacerbada relevância social destes."

19 O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos – um estudo sobre a ação civil pública trabalhista, p. 157-158. Idem, Código de processo civil comentado, p. 1798-1799.

20 A ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho: pedido, efeitos da sentença e coisa julgada, p. 49-51.

21 Direito processual ambiental brasileiro, p. 116.

22 Da ação civil pública: instrumento de cidadania, p. 887. Esse processualista laboral não faz distinção entre interesse individual homogêneo disponível e indisponível, mas exalta a interpretação sistemática da LOMPU, nos seguintes termos: "De conformidade com o art. 83, inciso III, da Lei Complementar n. 75, de 20.5.93, compete ao Ministério Público do Trabalho promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa dos interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; bem assim lhe compete a instauração de inquérito civil e outros procedimentos administrativos sempre que cabíveis, para assegurar a observância dos direitos sociais dos trabalhadores (art. 84, II); e o art. 6º, inciso VII, letra d deixou claro que compete ao Ministério Público da União, do qual é participante o Ministério Público do Trabalho, ‘promover o inquérito civil e a ação civil pública para: outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos’. Pode-se, assim, afirmar que o Ministério Público do Trabalho estará legitimado para promover a abertura de inquérito civil e bem assim para ajuizar ação civil pública para a defesa de interesses difusos, coletivos, individuais homogêneos desde que ligados de alguma forma ao Direito do Trabalho, v. g., a defesa do meio ambiente envolvendo empregados e empregadores; trabalhadores deficientes; depósito de FGTS cuja ausência reflete diretamente na falta de moradias para os trabalhadores de baixa renda; preconceito racial na contratação de negros, amarelos, mulheres; diferenças isonômicas entre trabalhadores de sexos diversos, etc."

23 Diz o art. 1º do CDC, in verbis: "O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos do art. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal, e art. 48 de suas Disposições Transitórias."

24 Nesse sentido, Ada Pellegrini (A ação civil pública e a defesa dos interesses individuais homogêneos, p. 213) observa: "Muito embora a Constituição atribua ao MP apenas a defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127), além dos difusos e coletivos (art. 129, III), a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos levou o legislador ordinário a conferir ao MP a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX). A dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja o seu objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127 da CF." Em artigo publicado na Revista do MPT de São Paulo, essa mesma processualista, invocando a doutrina estrangeira, a partir de Mauro Cappelletti e Andrea Proto Pisani, reiterou que "a própria condução coletiva de interesses individuais homogêneos perante os tribunais representa verdadeiro exercício de interesse social. Ou seja, o interesse social surge do fato de a controvérsia não ser tratada a título individual, de acordo com as categorias processuais clássicas, mas ser vista, no âmbito coletivo, não mais pela soma de interesses individuais homogêneos, mas frente a um feixe de interesses de massa (...) estamos conferindo dimensão política ao tratamento coletivo dos interesses, que deixam, portanto, de pertencer ao plano meramente individual, para serem transportados ao plano social". E arremata: "Mas, ainda que se queira ser mais restritivo, não aceitando-se a idéia de um interesse social configurado pelo próprio instrumento do processo coletivo, certamente se poderá reconhecer, em alguns casos, de acordo com o caso concreto, inquestionável interesse social subjacente à defesa de certos interesses individuais homogêneos. Assim, por exemplo, quando se trate de ambiente do trabalho..." (A ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho..., p. 50-51).

25 A redação do § 3º do art. 5º da LACP foi dada pelo art. 112 do CDC.

26 Em sentido contrário, Rodolfo de Camargo Mancuso (Sobre a legitimação do ministério público em matéria de interesses individuais homogêneos, p. 446) afirma: "Em que pese a legitimação ativa para a tutela judicial de interesses metaindividuais ser do tipo ‘concorrente-disjuntivo’, nem por isso deixam de ter relevância certas peculiaridades processuais que se aplicam a uns e não a outros desses co-legitimados."

27 Segundo Nelson Nery Junior (Código de processo civil comentado, p. 1521): "O que legitima o MP a ajuizar a ação na defesa de direitos individuais homogêneos não é a natureza desses mesmos direitos, mas a circunstância da sua defesa ser feita por meio de ação coletiva. A propositura de ação coletiva é de interesse social, cuja defesa é mister institucional do MP". Concordamos com tal entendimento. Acrescentamos apenas que, em se tratando de direitos sociais individuais homogêneos dos trabalhadores, a Constituição diz que eles são direitos sociais fundamentais (Título II, Capítulo II, da CF). Vale dizer, os direitos trabalhistas são substancialmente sociais, razão pela qual pode-se dizer que tanto no plano material como no plano processual, a proteção e a defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos trabalhistas é de interesse social.

28 No RE 163.231/SP, rel. Min. Maurício Corrêa (in DJ-05/03/97, Seção I, p. 4.930), versando ação sobre mensalidade escolar, portanto, relação de consumo, o STF entendeu que a defesa dos interesses individuais homogêneos, por constituírem subespécie de interesses coletivos, pode ser feita pelo MP em sede de ACP. No RE 185.360/SP, o mesmo tribunal, em acórdão datado de 20.2.98, da lavra do Min. Carlos Velloso, assim decidiu: "Constitucional. Ação civil pública. Mensalidades escolares. Ministério Público. Legitimidade. Lei 8.078/90, art. 21, parágrafo único. Lei 8.625193, art. 25. CF/88, art. 129, III. I - Ação civil pública que tem por objeto a fixação o pagamento de mensalidades escolares: os interesses ou direitos daí decorrentes podem ser classificados como coletivos: legitimidade do Ministério Público para propor a ação civil pública, mesmo porque, considerados esses direitos como individuais homogêneos, têm vinculação com o consumo, ou podem os titulares do direito ser considerados como consumidores: Lei 8.078/90, art. 21 e seu parágrafo único. II - R.E. conhecido e provido" (Jurisprudência Civil do STF, organizada por Gracindo Filho, Zeidier e Cieto, p. 82).

29 "MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIO NOVO-MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO PÚBLICA, SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELO SEU NÃO-CABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS. 102, I, a, E 125, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO. Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por não configurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais considerados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros das sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Recurso não conhecido" (STF – RE 213.631/MG, 1ª T., rel. Min. Ilmar Galvão, j. 9.12.1999, in Informativo STF n. 174, p. 1-2, Brasília, 6 a 10, 1999). Essa decisão foi criticada, a nosso ver com razão, por alguns autores, entre os quais: Douglas Guimarães Leite. Ação civil pública e a defesa dos interesses sociais na Constituição Federal de 1988 – uma questão de legitimidade, passim.

30 "Há certos interesses individuais – de pessoas privadas e de pessoas públicas – que quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm força de transcender a esfera de interesses puramente individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade como um todo. É o que ocorre com os direitos individuais homogêneos antes mencionados, dos consumidores e dos poupadores, cuja defesa pelo Ministério Público tem expressa chancela em lei ordinária" (STJ-REsp. 49.272-6 - RS - 1ª T. j. 21.9.94, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ 17.10.94).

31 "Recurso Especial. Ação civil pública. legitimidade ativa do Ministério Público. Danos causados aos trabalhadores nas minas de Morro Velho. Interesse social relevante. Direitos individuais homogêneos. 1 - O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos, desde que esteja configurado interesse social relevante. 2 - A situação dos trabalhadores submetidos a condições insalubres, acarretando danos a saúde, configura direito individual homogêneo revestido de interesse social relevante a justificar o ajuizamento da ação civil pública pelo Ministério Público. 3 - Recurso Especial conhecido e provido" (REsp. 58.682-MG, rel. em. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 16/12196). 

32 "Processual civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Interesse público. Ministério Público Federal. O Ministério Público possui legitimidade para propor ação coletiva visando proteger o interesse, de todos os segurados que recebiam benefício de prestação continuada do INSS, pertinente ao pagamento dos benefícios sem a devida atualização, o que estaria causando prejuízo grave a todos os beneficiários. Sobre as atribuições dos integrantes do Ministério Público, cumpre asseverar que a norma legal abrange toda a amplitude de seus conceitos e interpretá-la com restrições seria contrariar os princípios institucionais que regem esse órgão. Recurso provido" (REsp. 211.019/SP, Ac. unân. 5ª T. rel. Felix Fischer, j. 11.4.2000, DJ 8.5.2000, p. 112).

33 "Há certos direitos e interesses individuais homogêneos que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal, passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo cabível a sua proteção pela ação civil pública. É o Ministério Público ente legitimado a postular, via ação civil pública, a proteção do direito ao salário mínimo dos servidores municipais, tendo em vista a relevância social, o número de pessoas que envolvem a economia processual" (STJ, Resp 95347-SE, rel. Min. Edson Vidigal, DJ 1º.2.99, p. 221).

34 Carlos Henrique Bezerra Leite, Ministério público do trabalho, 1ª edição, p. 126.

35 Idem, Legitimação do ministério público do trabalho para promover a ação civil pública, p. 63-71. Reconhecemos que este obstáculo não encontra base científica; ao revés, decorre de equivocada política institucional que, prestigia a função de órgão interveniente, em detrimento da função de órgão agente imprescindível à promoção do acesso à justiça, notadamente no campo das relações de trabalho. É que, lamentavelmente, o MPT só oficia obrigatoriamente junto aos tribunais, quando o ideal seria a sua atuação preponderante na primeira instância, pois é aí que, via de regra, vêm à lume os multifários problemas sociais derivantes dos conflitos trabalhistas. É preciso ter em mente que quando o MP atua como órgão interveniente, ou seja, quando emite parecer, o direito ao acesso à jurisdição já foi exercitado. Não se está aqui a defender a abolição da função de custos legis, mesmo porque há inúmeros casos em que ela é mesmo imprescindível, mas, tão-somente, a de chamar a atenção para a necessidade de adoção de uma política institucional que prestigie a função promocional do MPT. No mesmo sentido, consultar Antônio Cláudio da Costa Machado, A intervenção do ministério público no processo civil brasileiro, p. 49-51.

36 Sobre o tema, consultar José Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria geral da cidadania, passim.

37 Segundo relatório do TST (http://www.tst.gov.br/ASCS/JCJ-1990-98.htm): em 1998, foram recebidos 1.958.594 processos; em 1999, 1.876.874. Em 2002, foram mais de 2 milhões de processos.

38 Apreciando RR interposto pelo MPT, o TST deixou assentado que o FGTS constitui interesse social e reconheceu a legitimação do Parquet Laboral para defender, via ACP, os interesses individuais homogêneos dos trabalhadores. Eis a respectiva ementa: "DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA PROPOR AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA FINS DE RECOLHIMENTO DO FGTS. A Lei Complementar nº 75/93 estabelece expressamente no art. 83, inciso III, a competência do Ministério Público do Trabalho para propor ‘ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos’ (grifo nosso). Em razão desse preceito não conter manifestação no que pertine à defesa dos interesses individuais homogêneos, surgem algumas discussões no sentido de ter ou não o parquet da União legitimidade para a propositura de ação civil pública para a defesa de interesses homogêneos. Entendo que sendo o FGTS um direito constitucional garantido aos trabalhadores, o seu não recolhimento importa em lesão à ordem jurídica e aos interesses sociais daqueles que com o seu trabalho contribuem para a sua formação, pois o fundo de garantia tem finalidade de financiar projetos de interesse social, como habitação, obras de saneamento e outros, e principalmente por constituir um patrimônio de todos os trabalhadores brasileiros" (TST-RR-341038/97.7, Ac. unân. 3ª T. 8534/97, rel. Min. José Zito Calasãs Rodrigues, DJ 7.11.1997, p. 57.514).

39 Os arts. 9º, 444 e 468 da CLT declaram que são nulos de pleno direito os atos praticados com o fim de desvirtuar, fraudar ou impedir a aplicação das normas de proteção aos trabalhadores, consagrando, desse modo, a positivação do princípio da indisponibilidade ou irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas em nosso ordenamento jurídico. Igualmente, o art. 1º do CDC, ao declarar que normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e de interesse social.

40 No mesmo sentido: Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, A tutela dos direitos individuais homogêneos pelo ministério público do trabalho na ação civil pública, p. 79. Diz esse autor: "Não nos parece haver dúvida de que o Ministério Público do Trabalho está legitimado para a defesa dos interesses individuais homogêneos trabalhistas, defluindo esta legitimação da dicção do artigo 127, da Constituição Federal. Os direitos trabalhistas possuem natureza de direitos indisponíveis, em razão do que dispõem os artigos 9º, 444 e 468 da CLT, mormente na vigência do contrato de trabalho. Não se pode questionar o cabimento de Ações promovidas pelo Ministério Público, por exemplo, para cobrança de salários em atraso, ou regulamentação de intervalos intra e inter jornadas etc."

41 Embora sem mencionar expressamente a função promocional do MP, Manoel Antonio Teixeira Filho (Curso de processo do trabalho : perguntas e respostas sobre assuntos polêmicos em opúsculos específicos, p.19-20) não deixa de reconhecê-la, quando ressalta a importância da ação civil pública sob o enfoque institucional do órgão, nos seguintes termos: "Entrementes, se examinarmos a matéria sob a perspectiva institucional, que nos parece ser a recomendável, não teremos dificuldade em concluir que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para ajuizar ação civil pública também com o objetivo de promover a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos. Com efeito, segundo pudemos deixar exarado, em página anterior, a Constituição Federal de 1988 exaltou, sobremaneira, o Ministério Público, cometendo-lhe a atribuição de promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É evidente que a Constituição não aludiu, de maneira expressa, aos direitos individuais homogêneos, porque o conceito destes foi introduzido pela Lei n. 8.078, de 1990 (art. 81, inciso III). A propósito, a singularidade de o art. 91, dessa norma legal, haver previsto a ação civil coletiva para a defesa dessa classe de direitos não significa que o Ministério Público do Trabalho deva se submeter a essa regra, de tal maneira que Ihe caberia ajuizar: a) ação civil pública, quanto aos interesses e direitos difusos ou coletivos; b) ação civil coletiva, no que tange aos interesses ou direitos individuais homogêneos. Além de essa esdrúxula dicotomia implicar graves perturbações do sistema, traz, em si, uma injustificável restrição à plenitude do exercício das atribuições institucionais que a Suprema Carta Política do País cometeu ao Ministério Público. O critério da indivisibilidade dos interesses ou direitos, permissa venia, não é suficiente para subtrair do Ministério Público a legitimidade para o exercício da ação civil pública versando sobre interesses ou direitos individuais homogêneos, até porque eventuais transgressões simultâneas destes, não raro, Ihes atribui sentido coletivo. Entendemos, portanto, que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para exercer ação civil pública devotada à defesa de interesses e direitos: a) difusos; b) coletivos; c) individuais homogêneos. Devemos reiterar a nossa advertência quanto à possibilidade de estes últimos, a despeito de serem individuais, assumirem, no seu conjunto, feição coletiva, cuja violação poderá acarretar graves perturbações à ordem jurídica estabelecida (Constituição Federal, art. 127). De qualquer forma, o precitado dispositivo constitucional atribui ao Ministério Público, também, a incumbência de empreender a defesa dos interesses individuais. No plano da realidade prática, aliás, confundem-se com certa freqüência as linhas fronteiriças entre os direitos coletivos e os individuais homogêneos, circunstância que, a prevalecer o ponto de vista contrário ao nosso, criaria sérios embaraços à atuação institucional do Ministério Público quando não se pudesse precisar a precitada linha divisória."

42 Processo RE n.º 163231-3-Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 05.03.1997, Seção I, p. 4930.

43 STF, Pleno, RE 195.056-PR, rel. Min. Carlos Velloso, j. 23.9.1998, in Nelson Nery Junior, Código de processo civil comentado, p. 1521.

44 Sobre os pontos de afinidade entre trabalhador e consumidor, ver Marilena Indira Winter, Proteção jurídica do hipossuficiente no direito do trabalho e no direito do consumidor, p. 460-471.

45 E aqui não é lícito ao intérprete distinguir direitos e interesses, já que o texto constitucional utiliza as expressões como sinônimas.

46 No mesmo sentido: Emmerson Gazda, Ação civil pública: atuação do ministério público do trabalho, p. 757 ss.

47 No mesmo sentido: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEGITIMACAO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. O Ministério Público do Trabalho é parte legitima para ajuizar ação civil pública para a defesa de interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos. Desta forma, compete a Justiça do Trabalho a averiguação dos fatos e, em se constatando o descumprimento da lei pela reclamada, condená-la nas obrigações de fazer pleiteadas, posto que a Delegacia Regional do Trabalho é apenas um órgão fiscalizador, o qual, verificando a existência de irregularidades, impõe multas administrativas para as empresas, não podendo, contudo, determinar o efetivo cumprimento destas obrigações" (TRT 24ª R., RO 1364/98, Ac. 287/99, DJ 12.4.1999, p. 25); "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. CABIMENTO. A ação civil pública no Direito do Trabalho, por disposição expressa do artigo 6º, inciso VII, letra "d", da Lei Complementar nº 75/93, se destina também a defesa de direitos individuais homogêneos. A tutela de tais direitos, porém, não prescinde da existência de interesse público, representado pela violação do direito individual, mas coletivamente considerado. Sendo assim, a determinação para anotação dos contratos clandestinos assim como para o recolhimento dos depósitos fundiários estão abrangidos por este tipo de ação, face à relevância para a previdência social e para os programas sociais implementados com os recursos do FGTS" (TRT 13ª R., RO - 5.300/ 99, rel. Juiz Francisco de Assis Carvalho e Silva, DJ 11.5.1999, p. 28).

48 Ver cap. III, subitem 5.5, onde fazemos distinção entre ACP e ACC e ressaltamos a permissão para que o juiz, em homenagem ao princípio da instrumentalidade, possa receber uma em lugar da outra e vice-versa, desde que observado o princípio do devido processo legal.

49 É preciso advertir, contudo, que, como já foi dito alhures, dificilmente haverá, na seara trabalhista, um caso de interesse individual não-homogêneo disponível.

50 Hugo Nigro Mazzilli (A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 396-397) ressalta: "Tratando-se de interesses indisponíveis de crianças ou adolescentes, de interesses difusos ou coletivos – sua defesa sempre convirá à sociedade como um todo", de maneira que o MP "poderá até mesmo ingressar com ação civil pública para assegurar vaga em escola tanto para uma única criança, como para dezenas, centenas ou milhares delas; tanto para se dar escolarização ou profissionalização a um, como a diversos adolescentes privados de liberdade."

51 Em virtude do princípio da indisponibilidade que informa o Direito do Trabalho, dificilmente haverá um caso que tipifique interesse individual (homogêneo) disponível. E ainda que seja possível identificá-lo, a sua defesa, por meio da ACP, se enquadra na moldura do art. 127 da CF, pois todos os direitos dos trabalhadores são direitos (ou interesses) sociais.

52 José Carlos Barbosa Moreira (Temas de direito processual, sexta séria, p. 244-245) leciona que, com relação à ACP, houve uma "recepção qualificada" da Lei n. 7.347/85.

53 A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1988. A lei marcou a extinção da escravidão no Brasil, o que levou à libertação de 750 mil escravos, a maioria deles trazidos da África pelos portugueses.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 696, 1 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6810. Acesso em: 23 abr. 2024.