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O candomblé e o tratamento dado aos animais

O candomblé e o tratamento dado aos animais

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O plenário do STF deu início ao julgamento de recurso que discute a constitucionalidade de lei estadual que autoriza o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana.

I – O FATO

O plenário do STF deu início, no dia 16 de agosto do corrente ano,  ao julgamento de recurso que discute a constitucionalidade de lei do RS que autoriza o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana.

O relator, ministro Marco Aurélio, votou pelo parcial provimento do recurso, para dar interpretação conforme à CF para assentar a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, e não apenas naquelas de matriz africana, em respeito ao princípio da isonomia, ficando vedada a prática de maus tratos no ritual, e condicionado o abate ao consumo da carne. Adiantando seu voto, o ministro Edson Fachin entendeu que o trecho questionado na lei gaúcha é integralmente constitucional e, diferentemente do relator, considerou que a proteção ao culto e à religião deve ser ainda mais forte no caso da cultura afro-brasileira, a qual é estigmatizada por preconceito estrutural. “É evidente que a proibição do sacrifício acabaria por negar a própria essência da pluralidade”, destacou.

O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.


II – O SACRIFÍCIO DE ANIMAIS EM CULTOS RELIGIOSOS

A Corte discute a constitucionalidade da lei estadual 12.131/04, do Rio Grande do Sul, que autoriza o sacrifício ritual de animais aos cultos das religiões de matriz africana. A norma também acrescenta ao Código Estadual de Proteção de Animais do Estado a possibilidade de sacrifícios de animais, destinados à alimentação humana, dentro dos cultos religiosos africanos.

O recurso foi interposto pelo MP/RS contra decisão do TJ/RS, que declarou a constitucionalidade da referida lei. Para o TJ, a prática não infringe o código de proteção aos animais, desde que sem excessos ou crueldade. Considerou-se que não há norma que proíba a morte de animais e, no caso, a liberdade de culto permite a prática.

Para o MP/RS, a lei invade a competência da União para legislar sobre matéria penal e privilegia os cultos das religiões de matriz africana para o sacrifício ritual de animais, ofendendo a isonomia e contrapondo-se ao caráter laico do país.

Ao votar nesta quinta-feira, o ministro relator, Marco Aurélio, excluiu da norma vício de forma. Sob o ângulo material, o ministro destacou que, pelo art. 5º, é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias. Por outro lado, em seu modo de ver, não pode haver tratamento desigual às religiões.

"A laicidade do Estado não permite menosprezo ou a supressão de rituais religiosos, especialmente no tocante a religiões minoritárias, ou revestidas de profundo sentido histórico e social, como ocorre com as de matriz africana. Mas surge inviável conferir-lhes tratamento privilegiado ou preferencial quando ausente diferenciação fática a justifica-lo. É inadequado limitar a possibilidade de sacrifício de animais às religiões de origem africana, conforme previsto na norma questionada."

Ele destacou que a proteção ao exercício da liberdade religiosa deve ser linear, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia. “No Estado laico não se pode ter proteção excessiva a uma religião em detrimento de outra."

O ministro votou por dar provimento ao RE, conferindo à lei 11.915/03, do RS, interpretação conforme a CF para assentar a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus tratos no ritual, e condicionado o abate ao consumo da carne.


III – A PROTEÇÃO

O ministro Fachin, por sua vez, entendeu que o parágrafo único do art. 2º da lei estadual gaúcha é integralmente constitucional. Trata-se, para o ministro, de pretensão que não encontra agasalho constitucional.

Para o ministro, a dimensão comunitária da liberdade religiosa adquire nítida feição cultural, e, nesta extensão, merece proteção constitucional porquanto ligada aos modos de ser e viver de uma comunidade.

Diferentemente do ministro Marco Aurélio, o ministro Fachin entende que as religiões afro-brasileiras merecem ainda mais proteção, já que são estigmatizadas por questão de preconceito estrutural, situação que merece especial proteção do Estado.

"Como indicou a DPU, a utilização de animais é parte intrínseca à própria essência do culto de religiões de matriz africana, por meio de processo de sacralização. Como exige o texto constitucional, entendo que a proteção deve ser ainda mais forte no caso da cultura afro-brasileira, não porque seja um primus inter pares, mas porque sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, como alias essa Corte já reconheceu (ADC 41), essa estigmatização fruto de preconceito estrutural merece especial atenção do Estado. [...] É evidente que a proibição do sacrifício acabaria por negar a própria essência da pluralidade, impondo determinada visão de mundo a uma cultura que está a merecer especial proteção constitucional."

Ausente qualquer vício formal ou material na norma impugnada, o ministro reconheceu a constitucionalidade integral do dispositivo, e votou pelo desprovimento total do recurso.


IV – A LIBERDADE DE CULTO

A liberdade de culto está consagrada na Constituição de 1988. Os sacrifícios de animais são uma prática ancestral que algumas religiões põem em destaque.

Já a lei de proteção aos animais condena os maus-tratos.

Baseando-se nas leis de proteção ambiental, que condenam o abuso, os maus-tratos e o ferimento ou a mutilação de animais, os defensores alegam que os não-humanos são capazes de sofrimento e devem ser protegidos. A questão, aqui, não é apenas se tais direitos podem limitar a liberdade constitucional de culto religioso, mas também se eles se aplicam às religiões de matriz africana.

Os estudiosos das religiões afro-diaspóricas entendem que esses maus-tratos estão longe de existir na prática do candomblé.

Como disse a professora Lucileide Costa Santos (Maus-tratos de animais e rito de comunhão?, in Jornal do Brasil, em sua edição de 20 de agosto de 2018), “somente quem vê de fora e bem distante o enxerga por um efeito de distorção da perspectiva. Afinal, quando visto de dentro, sabe-se que a sacralização ritualística de animais pressupõe que este esteja bem, saudável e que o ato seja totalmente respeitoso. Além do mais, se algumas partes são consagradas às divindades, a carne é consumida pela comunidade litúrgica em comunhão. Não há qualquer leviandade e crueldade, pois há um sistema de valores sem traços de desrespeito aos animais. Diga-se de passagem que tais atos não são diferentes da atividade em qualquer localidade rural ou cidade interiorana, em que se criam animais para o consumo e onde as próprias pessoas os matam para sua alimentação. Contudo, como nas metrópoles a aquisição de carnes é dividida em partes, higienizadas, embaladas e congeladas, o consumo carnívoro é tão abstrato que se perde de vista que houve o sacrifício de animais. É de se perguntar, inclusive, o porquê de o sacrifício ritual adquirir tal atenção quando, de seu lado, a criação industrial de animais de abate para consumo humano adquire, em certos casos, feições de uma crueldade sobre toda a vida do animal.”

Atente-se para as conclusões do ministro Marco Aurélio para o caso, considerando que a laicidade do Estado não suprime a proteção a religiões minoritárias; e, em atenção ao princípio da isonomia, há a admissão de imolação em rituais religiosos de todas as crenças. Mas essa permissão constitucional não afasta a tutela dos animais, pois o sacrifício é aceitável desde que sem maus-tratos no abate e se a carne for direcionada ao consumo humano.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O candomblé e o tratamento dado aos animais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5559, 20 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68571. Acesso em: 17 abr. 2024.