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A controvérsia da recusa terapêutica

A controvérsia da recusa terapêutica

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A lei permite (e até obriga, a depender da interpretação do artigo 135 do CP) ao médico agir contra a decisão de recusa terapêutica, apenas nos casos de risco iminente de vida do paciente. Não há lei que proíba esse modo de agir.

1. INTRODUÇÃO

Em sua sétima edição, o Congresso Brasileiro de Direito Médico, promovido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em Brasília, nos dias 3 e 4 de agosto de 2017, reuniu médicos e advogados para debater diversos temas, entre eles o da recusa terapêutica, da responsabilidade civil do médico e da judicialização da saúde.

Em 03.08.2017, a primeira conferência foi proferida pelo advogado e professor de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Nelson Nery Júnior, que falou sobre a “RECUSA TERAPÊUTICA”. No entender do militante do direito, a Constituição Federal, o Código de Processo Civil, diversas Leis e a Resolução do CFM 1.995/12 (que trata das Diretivas Antecipadas de Vontade), validam o direito do paciente de recusar qualquer tratamento. Ele, assim se expressou:

"Entendo a posição do médico, que fez o juramento de Hipócrates para salvar vidas e teme ser processado por omissão de socorro, mas nas situações em que o paciente se recusar, conscientemente, a não se submeter a determinado tratamento, o profissional estará apenas respeitando a vontade daquele a quem assiste"[1].

Nelson Nery salientou ainda que, no caso de crianças não se deve aceitar a vontade dos pais, visto que nesses casos o direito da criança à vida deve ser assegurado. Em todos os demais casos, ele defende que a vontade do paciente deve ser respeitada.

Na ocasião o professor Nelson Nery comentou que o Conselho Federal de Medicina deverá revisar a Resolução CFM nº 1.021/80 que normatiza, no âmbito ético, como o médico deve proceder diante da recusa de pacientes testemunhas de Jeová à transfusão de sangue.

Entretanto, salientou que o CFM deverá editar uma norma ética mais abrangente, que contemple não apenas a recusa de transfusão de sangue, mas a recusa de qualquer procedimento terapêutico em pacientes com ou sem risco de vida.

O assunto, portanto, se reveste de grande complexidade e controvérsia, eis que envolve análise no plano constitucional e infraconstitucional e ainda, questões de índole ética, moral e religiosa. Nota-se, através de artigos e jurisprudências publicadas, que a polêmica acerca da recusa do paciente em sujeitar-se a determinado tratamento tem ganhado cada vez mais destaque. No entanto, observa-se que não tem obtido respostas isonômicas.

Sendo o paciente, pessoa adulta, capaz e esclarecida dos riscos de sua decisão, e NÃO ESTANDO EM RISCO IMINENTE DE VIDA, parece não haver maior dúvida de que a sua vontade deva ser sempre respeitada.

A CONTROVÉRSIA cinge-se às situações nas quais o PACIENTE ESTANDO EM RISCO IMINENTE DE VIDA, manifesta sua vontade de recusa terapêutica ou, na impossibilidade de expressá-la, esta é manifestada por familiares ou representantes legais no mesmo sentido de recusa, sendo o procedimento (por exemplo, a transfusão de sangue) o único meio para lhe salvar a vida.


2. OS LADOS DA CONTROVERSIA E SEUS FUNDAMENTOS

2.1.  NÃO DEVE SE RESPEITAR A VONTADE DO PACIENTE.

Parte da doutrina e jurisprudência defende que em situações de risco iminente de vida do paciente, o médico tem o dever/obrigação de intervir, mesmo sem o consentimento do mesmo ou contrariando sua recusa, e realizar o procedimento médico e/ou cirúrgico necessário para que o enfermo não venha a óbito, alegando que a proteção à vida prevalece sobre a liberdade religiosa, quando há possível conflito entre os mesmos.

Um dos argumentos levantados para justificar a recusa terapêutica por parte de pacientes é o de que “não existiria lei que os obrigue a aceitar e consentir tratamento médico e/ou cirúrgico”. Assim, referido argumento, sustenta-se no artigo 5º, II da Constituição Federal[2]:

II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (grifei)

Trata-se do Princípio Constitucional da Legalidade, sob cuja égide devem ser criadas Leis que “obriguem alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. O princípio da legalidade apresenta um perfil diverso no campo do Direito Público e no campo do Direito Privado.

No Direito Privado, tendo em vista seus interesses, as partes poderão fazer tudo o que a lei não proíbe; no Direito Público, diferentemente, existe uma relação de subordinação perante a lei, ou seja, só se pode fazer o que a lei expressamente autorizar ou determinar.

Ensina HELY LOPES MEIRELLES que:

A Legalidade é intrínseca a ideia de Estado de Direito, pensamento este que faz que ele próprio se submeta ao direito, fruto de sua criação, portanto esse é o motivo desse princípio ser tão importante, um dos pilares do ordenamento. É na legalidade que cada indivíduo encontra o fundamento das suas prerrogativas, assim como a fonte de seus deveres. A administração não tem fins próprios, mas busca na lei, assim como, em regra não tem liberdade, escrava que é do ordenamento.     

Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza [3].

No mesmo sentido, o professor PEDRO LENZA aponta que no âmbito das relações particulares pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da autonomia de vontade[4]. O particular tem então autonomia para tomar as suas decisões da forma como melhor lhe convier, ficando apenas restrito às proibições expressamente indicadas pela lei. O princípio da legalidade não se refere somente à lei em sentido estrito ou formal (salvo nos casos de reserva legal), mas em sentido amplo ou material, a todo e qualquer ato normativo que inove o ordenamento jurídico, criando direitos e deveres, e que formam os chamados blocos de legalidade.

Destarte, já resta claro que constitucionalmente tanto o médico quanto o paciente podem fazer o que a lei permite (deve, quando a lei obrigue) ou aquilo que não proíbe.

Caberia se perguntar então:

  • Existe lei que permita ou proíba ao paciente exercer a recusa terapêutica?

  • Existe lei que permita ou proíba ao médico agir contra a vontade do paciente quando este manifesta sua recusa terapêutica?

Versa o artigo 15 do CÓDIGO CIVIL (Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002) em vigor, “in verbis”:

Art.15 - ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. (grifei)

De acordo com o teor do artigo supracitado, surgem duas possíveis interpretações:

a) A condição de “risco de vida” ser do paciente. Neste caso uma redação mais apropriada do referido artigo seria: “ninguém que esteja em risco de vida pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Aqui certamente caberia a interpretação de que mesmo nos casos em que o paciente se encontrasse em situação de risco de vida, não poderia ser submetido a tratamento médico ou cirúrgico sem o seu consentimento.

b) A condição de “risco de vida” ser do procedimento médico ou cirúrgico ao qual o paciente deveria se submeter. Talvez neste caso uma redação mais apropriada seria: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica que envolva risco de vida”. Aqui então, a interpretação seria de que ninguém poderia ser obrigado a ser submetido a tratamento médico ou cirúrgico que provoque risco a sua vida.

Apesar das possíveis interpretações citadas, fica clara que a intenção do legislador ao redigir o teor do artigo 15 do C.C. era atribuir a condição de risco de vida ao procedimento médico ou cirúrgico. É assim que a doutrina entende.

O douto consultor jurídico NELSON NERY JUNIOR ensina sobre o art. 15 do CC:

(....) a disposição legal nos convida, imediatamente, a duas reflexões:

a)no choque entre direitos fundamentais (vida x liberdade), a opção do legislador é a de prestigiar a vida que corre perigo. A predominância do valor vida norteia a ação de quem se encontra, v.g., por dever legal, na contingência de proceder manobras médicas para salvar o que carece de tratamento médico ou de intervenção cirúrgica imediata.

b)A escolha de tratamento médico ou cirúrgico que imponha risco de vida ao paciente deve ser a ele comunicada pelo médico responsável, com minuciosa descrição das consequências danosas, especialmente daquelas que possam impor ao paciente risco de vida. Ainda que o diagnóstico médico da doença aponte para tratamento ou intervenção cirúrgica arriscada, não pode ser o paciente constrangido a suportá-los. É o dever legal de informação que se impõe aos médicos com relação a seus pacientes.

Mais adiante afirma:

5.- Risco de vida. A expressão “risco de vida” do CC 15 deve ser entendida como sendo relativa ao “risco que será criado ou agravado” pelo tratamento ou intervenção cirúrgica que se pretende empregar. Em suma: o doente não pode ser constrangido a se submeter a tratamento ou cirurgia arriscada, nem o médico pode depender da autorização de quem não pode dá-la para realizar as manobras técnicas e cientificamente necessárias para tirar o paciente do iminente perigo de vida em que se encontra[5].

No mesmo sentido, o ilustre médico e advogado NERI TADEU CAMARA SOUZA:

Já o artigo 15, do mesmo Código Civil determina: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica”. Serve este artigo como um reforço na determinação de se obter um consentimento informado, obviamente esclarecido (senão estaria com o vício da ignorância sobre o assunto por parte do paciente), já que exige o consentimento do mesmo para a execução de tratamentos e medidas que atuem, com risco de vida, no corpo humano. Como se vê, as leis em nosso direito se direcionam no sentido de exigir o consentimento informado dos pacientes quando em tratamento médico[6]. (grifei)

Ainda, na lição do professor CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

A regra desse artigo 15 [do Código Civil de 2015] obriga os médicos, nos casos mais graves, a não atuarem sem prévia autorização do paciente, que tem a prerrogativa de se recusar a se submeter a um tratamento perigoso. A sua finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano[7]. (grifei)

O atual Min. do STF, LUÍS ROBERTO BARROSO, em 2010, ainda como procurador do Estado do Rio de Janeiro, exarou parecer sobre a legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová[8]. Daquele parecer, extrai-se:

O art. 15, por sua vez, não diz nada a respeito das situações em que a recusa de tratamento médico possa ocasionar ou agravar um risco para a vida do paciente. Ao contrário, ele permite a recusa de tratamento que seja, em si mesmo, arriscado. (grifei)

Como visto, a correta interpretação do artigo 15 do CC, leva a inequívoca conclusão de que ele se refere apenas aos procedimentos médicos e/ou cirúrgicos que envolvam risco de vida e não à condição do paciente. Sendo assim, o C.C., ao vedar a imposição de tratamento médico e/ou cirúrgico que envolva risco de vida, limita o direito de recusa do paciente apenas para esse tipo de situações. Em consequência, a lei civil não proíbe que o paciente possa ser compelido a se submeter a procedimentos médicos e/ou cirúrgicos que não envolvam risco de vida. Menos ainda garante o direito de recusa terapêutica em pacientes que se encontrem, pela sua doença, em risco iminente de vida.

Esta interpretação mostra-se harmônica com outros dispositivos legais em vigor que, no plano infraconstitucional permitem ao médico desconsiderar a opção de recusa de pacientes a tratamentos médicos e/ou cirúrgicos.

Veja-se ainda na esfera do Código Civil:

Art. 11: Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Na sua interpretação literal, o art. 11 parece consagrar a tese de que os direitos da personalidade – entre os quais se incluem os direitos à vida e à integridade física – seriam insuscetíveis de qualquer limitação, inclusive voluntária.

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Do teor do artigo 13, poder-se-ia entender que, o paciente que se nega a receber um tratamento médico e/ou cirúrgico seguro (que não envolva risco de vida) e que possam salvar-lhe a vida, estaria dispondo não apenas do seu próprio corpo, mas da sua própria vida.

Resta saber, portanto, se em virtude da Lei (conforme o art. 5º inc. II da C.F.) o paciente pode ser obrigado a se submeter SEMPRE a procedimentos que NÃO envolvam risco de vida.

A resposta é obtida a partir do CÓDIGO PENAL (Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940) que de forma harmônica define quais são os casos em que o paciente pode ser obrigado a se submeter a procedimentos que NÃO envolvam risco de vida. Esta conclusão pode ser extraída a partir do disposto nos artigos 135 e 146 que consideram crime:

Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

[...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio. (grifei)

Da interpretação dos dispositivos supracitados, desprende-se que o paciente pode ser obrigado a se submeter a procedimentos que não envolvam risco de vida, apenas quando sua própria condição seja de IMINENTE PERIGO DE VIDA. Não fazê-lo, poderá levar esse paciente à inevitável morte e o médico responder por omissão de socorro (art. 135), caso assim seja entendido. Percebe-se que pela exceção posta pelo inc. I, &3º do art. 146, a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, não constitui constrangimento ilegal.

Para muitos, o médico vive um constante dilema que envolve o risco latente de ser processado ao se deparar com pacientes em iminente risco de vida que recusam tratamento médico e/ou cirúrgico que possa evitar sua morte. É como se em qualquer cenário o profissional de saúde corresse o risco de processo: pelo paciente, se sua vontade for violada ao receber um tratamento que não desejava; pelo Ministério Público, acusando o médico por omissão de socorro; pelos familiares, acusando o médico de matar um ente querido; ou até pelo Conselho de Medicina, submetendo o profissional a processo ético-disciplinar por ato negligente ao não cumprir com seu dever ético de agir para salva a vida.

Ao profissional médico, sempre lhe foi ensinado que, pelas normas legais e éticas em vigor, era seu dever/obrigação prestar assistência a paciente em risco iminente de vida, mesmo contra vontade do mesmo, e que não fazê-lo significaria uma omissão passível de ser penalizada na esfera penal por eventual crime de omissão de socorro (art. 135 do C.P.) em razão de negligencia (art. 18, inc. II)[9], e ainda incorrer nas disposições do artigo 951 do Código Civil (que trata sobre indenização na esfera cível), que assim dispõe:

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. (grifei)

Ora, deixar de proceder ao tratamento médico adequado nesses casos de emergência, seja clínico ou cirúrgico, poderá configurar negligência médica, que implicará em sanções civis e até mesmo penais.

Ainda, em que pese a não serem normas legais em sentido estrito, as normas éticas em vigor insculpidas no CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA de 2010 que norteiam o correto exercício da profissão médica também são consoantes em obrigar ao médico a respeitar a vontade do paciente, mas ao mesmo tempo intervir contra sua vontade, nos casos de RISCO IMINENTE DE VIDA. Isto já é colocado desde os Princípios Fundamentais contidos nos referido Código:

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

[...] VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

[...] XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente. (grifei)

Essa obrigação ética é ainda reforçada no teor de diferentes artigos do mesmo Código de Ética:

É vedado ao médico:

[...] Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

[...] Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

[...] Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.

[...] Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte[10]. (grifei)

Percebe-se que na esfera ética a atuação do médico pauta-se pelo equilíbrio entre os princípios de autonomia e beneficência. Entretanto, consoante com a Lei, a autonomia do paciente tem seu limite nas situações de RISCO IMINENTE DE VIDA, nas quais o médico estará também eticamente autorizado a intervir contra a vontade do paciente.

É assim o entendimento da RESOLUÇÃO CFM Nº 1.021/80 que versa:

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis[11]. (grifei)

Nessa mesma ceara ética, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) editou a Resolução nº 136/1999, cujo art. 3º reza[12]:

Art.  3º  O  médico,  verificando  a  existência  de  risco  de  vida  para  o  paciente,  em  qualquer  circunstância, deverá fazer uso de todos os meios ao seu alcance para garantir a saúde do mesmo, inclusive efetuando a transfusão  de  sangue  e/ou  seus  derivados,  comunicando,  se  necessário,  à  Autoridade  Policial  competente sobre sua decisão, caso os recursos utilizados sejam contrários ao desejo do paciente ou de seus familiares.

Trata-se, portanto, da supremacia do direito à vida defendida por alguns doutrinadores.

MARIA HELENA DINIZ, defende que o direito à vida, diante de sua essencialidade ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. Por ser objeto de direito personalíssimo e decorrente de norma de direito natural deve ser salvaguardado contra tudo e todos, inclusive contra seu próprio titular, ainda que não houvesse proteção constitucional ao direito à vida:

A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele de liberdade religiosa, de integridade física ou mental, etc. Havendo conflito ente dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito nem responsabilidade penal médica[13].

Desse modo, Maria Helena Diniz pontua que a vida é superior à liberdade, pois esta só pode subsistir se houver observância daquela. Sobre isso afirma:

A liberdade pessoal não pode ser tolerada quando implica retirada da própria vida, por não ser absoluta, visto que está juridicamente limitada por princípios de ordem pública, como os de não matar, não induzir ao suicídio, não omitir socorro e o ajudar a quem está prestes a falecer.

[...] As normas constitucionais que resguardam os direitos à vida e à crença religiosa têm eficácia absoluta e geram uma antinomia real ou lacuna de conflito, que só pode ser solucionada pelo critério do justum, aplicando-se os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Por meio de uma interpretação corretiva percebe-se que o direito à vida tem posição privilegiada, antecedendo a todos os demais direitos da personalidade, pois sem ele de nada valem os demais. Para que o ser humano possa exercer as liberdades que lhe são outorgadas constitucionalmente, a vida ser-lhe-á imprescindível. O Estado é o guardião da vida, pois o seu titular sobre ela não tem poder decisório[14].

[...] Entende, assim, que, embora o direito à liberdade de crença seja um direito humano fundamental, reconhecido constitucionalmente, não pode se sobrepor à vida, visto que esta é anterior àquela. Nesse caso, havendo uma situação que coloca ambos os direitos em colisão, de forma que apenas um deles possa ser atendido, deve incidir o princípio do primado do direito mais relevante, na hipótese, o direito à vida[15].

Por essa razão, segundo a autora, a ofensa à liberdade religiosa, ainda que contrária à manifestação expressa de vontade do paciente ou de familiares, como é o caso de transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová, não pode ser considerada ato ilícito. Nessa hipótese, Diniz comunga com as disposições da Resolução do Conselho Federal de Medicina 1021/80 de 26 de setembro de 1980, citada anteriormente.

Portanto, na concepção da autora, estando o paciente em iminente risco de vida, a recusa à transfusão de sangue como medida salvadora de vida, tratar-se-á de um caso de colisão entre o direito à vida e à liberdade de crença, onde aquele se sobrepõe a este devido ao seu caráter superior.

PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, ao discorrerem sobre o dever de prestar socorro dentro do tema responsabilidade civil do médico, argumentam que para entender a questão é necessário ter em mente três premissas básicas:

O direito de disposição sobre o próprio corpo pertencente ao paciente, de modo que o médico não pode ministrar-lhe qualquer tratamento sem o seu consentimento, salvo em caso de iminente perigo de vida;

O direito à liberdade religiosa tanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto pela Constituição (art. 5º, VI), o que significa que ninguém pode ser compelido a realizar prática condenada por sua fé e consciência;

O reconhecimento de um direito à vida, também assegurado constitucionalmente (art. 5º, caput), determina que todos têm direito à vida, mas não sobre a vida, o que implica a não-aceitação pelo nosso sistema jurídico de práticas como aborto e a eutanásia, pois a pessoa não teria direito sobre a própria vida. Entende-se, inclusive, que o Estado tem interesse em prolongar a vida das pessoas, pois cada uma representa um papel social relevante[16]. (grifei)

Os autores, assim como Diniz, entendem o assunto como um caso de colisão entre direitos fundamentais (direito à vida versus direito à liberdade religiosa) que, por sua vez, classificam-se como princípios jurídicos. Assim, entendem que o choque não implica a declaração de invalidade ou exclusão de um deles, mas a busca pela sua compatibilização em cada caso concreto.

Afirmam ainda estarem convictos da sobreposição do direito à vida em face do direito à liberdade religiosa, uma vez que a vida é o pressuposto da aquisição de todos os demais direitos. Argumentam que a manutenção da vida é interesse da sociedade e não do indivíduo; portanto, mesmo que, por força de seu fervor, o transfundido sinta-se violado em sua dignidade, o interesse social na manutenção de sua vida justificaria a conduta cerceadora de sua opção religiosa.

Ainda expõem que, no caso de pacientes maiores e capazes, estando ausente o risco de morte, e, somente nessa hipótese, o médico não deve ministrar sangue se não houver o consentimento do paciente, sob pena de estar constrangendo-o ilegalmente. Assim, caso não observe essa determinação, o médico corre o risco de ser responsabilizado.

Argumentam, por fim, que em uma situação de perigo de morte quando da realização do procedimento transfusional, ainda que sem êxito, com o eventual falecimento do enfermo, não deve ser imposta uma responsabilização civil do médico, pois este estaria cumprindo o seu dever por força da interpretação dos artigos 56 e 59 do Código de Ética Médica[17].

A JURISPRUDÊNCIA, no caso específico de recusa de transfusão de sangue por parte de testemunhas de Jeová, andou sempre alinhada com a doutrina e legislação supracitada, adotando também entendimento da supremacia do direito à vida sobre os outros direitos fundamentais, inclusive o de crença religiosa. Para alguns julgadores inclusive não haveria necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever, havendo iminente perigo de vida, de empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares.

Esse posicionamento fica evidente nos julgados:

EMENTA: Indenizatória - Reparação de danos - Testemunha de Jeová - Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado peta Constituição federal que é a vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos - Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora — Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso improvido.

Do voto do relator, desprende-se:

[...] Entretanto, em que pesem as convicções religiosas da apelante que, frise-se, lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que o que deve prevalecer, acima de qualquer credo, religião, é o bem maior tutelado pela Constituição Federal, a vida.

Ora, sendo o direito à vida o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, à evidência que os demais direitos individuais dependem de sua existência.

De que valeria a Constituição Federal tutelar direitos como a liberdade, igualdade, integridade moral, entre outros, sem que fosse assegurado o direito à vida?

Como ensina JOSÉ AFONSA DA SILVA, o direito à vida deve ser compreendido de forma extremamente abrangente, incluindo o direito de nascer, de permanecer vivo, de defender a própria vida, enfim, de não ter o processo vital interrompido senão pela morte espontânea e inevitável. (TJSP. Terceira Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 123.430-4/400. V.U. 07.05.2002) (grifei)

EMENTA: Testemunhas de Jeová. Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo conclusão do médico que atende o paciente. Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença. Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos. Sentença autorizando a terapêutica recusada. Recurso desprovido.

Do voto do Relator:

[...] não se pode negar, todavia, que os vários direitos previstos nos incisos do art. 5o da Constituição Federal ostentam uma certa gradação em relação a outro direito, este estabelecido no caput do referido artigo: o direito à vida. Assim, se com base em sólido entendimento médico-cientifico, ainda que divergências existam a respeito, para a preservação daquele direito seja necessária a realização de terapias que envolvam transfusão de sangue, mesmo que atinjam a crença religiosa do paciente, estas terão de ser ministradas, pois o direito à vida antecede o direito à liberdade de crença religiosa (TJSP. Quinta Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 132.720-4/9-00. V.U. 26.06.2003) (grifei)

PROCESSO CAUTELAR. Ação cautelar inominada. Embora a regra seja a de que a cautelar seja preparatória, admite-se, excepcionalmente, tenha natureza satisfativa quando a liminar, necessária diante do risco de dano irreparável, esgota o objeto da ação principal. Preliminar rejeitada.

Ação cautelar inominada. Hospital que solicita autorização judicial para realizar transfusão de sangue em paciente que se encontra na UTI, com risco de morte, e que se recusa a autorizá-la por motivos religiosos. Liminar bem concedida porque a Constituição Federal preserva, antes de tudo, como bem primeiro, inviolável e preponderante, a vida dos cidadãos. Jurisprudência deste TJSP. Recurso improvido. (TJSP. Sétima Câmara Cível de Direito Privado. AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 307.693-4/4. V.U. 22.10.2003) (grifei)

PLANO DE SAÚDE. Cirurgia autorizada. Recusa da ré em garantir a restrição de transfusão de sangue. Convicção religiosa do paciente. Dano moral não configurado.

Realização fora da rede credenciada. Reembolso não previsto no contrato.

Indenização por dano material indevida. Recurso improvido. (TJSP. Oitava Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 442.163-4/1-00. V.U. 13.06.2007)

Do voto do Relator:

[...]A questão é polêmica, mas a jurisprudência tem decidido no sentido de que o direito à vida se sobrepõe à liberdade de crenças religiosas. Nesse sentido os julgados: INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil - Danos moral e material - Desrespeito a crença religiosa ~ Transfusão de sangue - Autora Testemunha de Jeová - Não cabimento - Intervenção médica procedida tão-somente após esgotados outros tratamentos alternativos - Prevalência da tutela ã vida sobre suas convicções religiosas - Recurso não provido - JTJ 256/125. Ainda: MEDIDA CAUTELAR - Autorização judicial para cirurgia e transfusão de sangue em paciente necessitada que se recusa à prática do ato por questão religiosa - Desnecessidade - Estrito cumprimento do dever legal do médico - Recurso não provido. (Ap. n. 264.210-1, 6a Câmara de Direito Privado, Rei. TESTA MARCHI, 01.08.96). E por fim: TESTEMUNHAS DE JEOVÁ - Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo conclusão de médico que atende o paciente - Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença - Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos - Sentença autorizando a terapêutica recusada - Recurso desprovido. (Ap. n. 132.720-4/9, 5ª Câmara de Direito Privado, Rei: BORIS KAUFFMANN, 26.06.03) (grifei)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. (TJRS. Apelação Cível Nº 70020868162, Quinta Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 22/08/2007) (grifei)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido. (TJRJ. AI 00098131320048190000, Décima Oitava Vara Cível, Relator: CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS, Julgado em 05/10/2004.

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL É DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART-146, PAR-3, INC-I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NAO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO E FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR ÀS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (Apelação Cível Nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Gischkow Pereira, Julgado em 28/03/1995)." (grifei)

EMENTA: DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. (TRF-4. AC 155 RS 2003.71.02.000155-6. Terceira Turma. Rel. Des. VÂNIA HACK DE ALMEIDA. DJ 01/11/2006 PÁGINA: 686. Julgamento 24 de outubro de 2006). (grifei)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO ONCOLÓGICO.LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. MEDICAMENTO DE EFICÁCIA NÃO COMPROVADA. SUBSITITUIÇÃO DE TRANSFUSÃO SANGÜINIA. IMPOSSIBILIDADE.

Em razão da demora em surtir efeito da medicação requerida como alternativa a transfusão de sangue, não se inibe o risco na fase aguda de comprometimento medular, nem se afasta a necessidade de transfusão sanguínea, não sendo recomendável a utilização de medicamento do qual a eficácia não está comprovada adotada somente como terapêutica alternativa, quando há alguma restrição clínica ao uso de hemoderivados. (TRF-4. A.I. Nº 2005.04.01.047458-2/RS. Primeira Turma Suplementar. Rel. Des. LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON. Julgamento 25 de abril de 2006).

Conclui-se, portanto, do anteriormente exposto, que a lei permite (e até obriga, a depender da interpretação do artigo 135 do C.P.) ao médico agir contra a decisão de recusa terapêutica, apenas nos casos de risco iminente de vida do paciente. No ordenamento jurídico em vigor, não há lei que proíba esse modo de agir.

2.2. DEVE SE RESPEITAR A VONTADE DO PACIENTE.

Entretanto, outra parte da doutrina e jurisprudência defende que mesmo nas situações de iminente risco de vida deve haver respeito por parte do médico à escolha do indivíduo adulto, com capacidade civil plena, com capacidade normal de discernimento e ciente dos riscos de sua decisão, pautado nos princípios de autonomia, autodeterminação e da dignidade humana.

Inequivocamente a lei garante ao paciente não somente o direito do consentimento esclarecido (devidamente informado), mas também o de recusa terapêutica. A Lei nº 8.080/90 (Lei do SUS), artigo 7º, II, IV e V, garante a preservação da autonomia do paciente na defesa de sua integridade física e moral, o atendimento sem preconceitos e o direito à informação adequada.

No mesmo sentido, é de se observar que o artigo 17 do Estatuto do Idoso (lei nº 10.741/2003) assegura àqueles que estiverem no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

A Portaria n.º 1.820/09 do Ministério da Saúde, com texto atual e bem elaborado, também sedimenta o direito ao consentimento informado e prevê uma série de direitos ao paciente. Por exemplo, nos artigos 4 e 5, inclui o direito a recusa de tratamento a qualquer tempo durante a internação e a obrigatoriedade de adaptação da terapêutica aos valores e limites pessoais do paciente.

O Código de Defesa do Consumidor (lei nº 8.078/1990) garante no artigo 8.º o direito a informações adequadas a respeito da prestação de serviços, o que pode ser traduzido no campo da saúde como o exercício do consentimento informado. Também veda no artigo 39, III e IV o fornecimento de serviços sem solicitação, bem como o ato de prevalecer-se da fraqueza do consumidor em razão de seu estado de saúde, o que excluiria a possibilidade de tratamento médico compulsório.

É digno de nota que a Lei Estadual 10.241/99 garante ao usuário do serviço de saúde no âmbito do Estado de São Paulo o direito de consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e de optar pelo local de morte. (art. 2º, inc. VII, XXIII e XXIV). Destarte, o ordenamento jurídico garante ao paciente o direito de consentimento e de dissentimento (recusa) terapêutico.

Vejamos entendimento de renomados juristas e doutrinadores:

Na lição de NELSON NERY JUNIOR em relação à recusa de transfusão de sangue por paciente Testemunha de Jeová:

Obrigar alguém a realizar tratamento médico quando este é atentatório à sua dignidade e liberdade não possui respaldo nem na Constituição Federal nem na Legislação, assim, decisão nesse sentido será inconstitucional por violação expressa ao princípio da legalidade (CF, 5º II) [18].

O autor assevera que:

[...] em um Estado Constitucional Democrático de Direito, o direito à livre manifestação da fé não se exaure na liberdade de culto. Para ele, envolve também a impossibilidade de o Estado impor uma conduta que atente contra a dignidade e a convicção religiosa do cidadão. Tal limitação é resultado da dimensão da liberdade de religião enquanto direito subjetivo público, garantindo a todos o acesso às manifestações culturais e tradições, posto serem essenciais para a formação da identidade pessoal do indivíduo[19].

Nessa perspectiva, defende então, como legítima a possibilidade de recusa de procedimentos médicos que envolvam transfusão sanguínea por pacientes testemunhas de Jeová. Ademais, afirma:

Não obstante, não raro, encontram-se decisões judiciais em que os praticantes da religião Testemunhas de Jeová são condenados a se submeter compulsoriamente ao tratamento médico que envolva transfusão de sangue. De ordinário, verifica-se na fundamentação dessas decisões a manifestação de um pensamento que se pretende fundado em uma ponderação de interesses entre dois direitos fundamentais: liberdade religiosa versus direito à vida, optando-se em dar prevalência a este último em detrimento da liberdade de religião. Todavia, conforme passaremos a demonstrar, esse suposto conflito entre dois direitos fundamentais (liberdade religiosa vs direito à vida) apresentando-se como um falso problema, não havendo na hipótese um autêntico conflito entre o bem jurídico vida e a liberdade religiosa[20].

Destarte, não temos receio em afirmar ser ilegítima e inaplicável a invocação da teoria da ponderação de interesses para pretender respaldar decisões judiciais que obrigam praticantes de determinada religião a realizarem a transfusão de sangue. Nesse quadro, a suposta ponderação de interesses entre vida e a liberdade religiosa apresenta-se como um falso problema. [...] Decisões judiciais que imponham essas condutas carecem de fundamentação jurídica consistente, bem como de adequação social. Em geral, tais decisões se baseiam em uma suposta existência de colisão entre direitos fundamentais, a qual, todavia, conforme demonstramos, não existe, seja em sentido amplo ou estrito[21].

Ou seja, a liberdade de um cidadão não pode ser ignorada/vilipendiada sob a frágil alegação de que sua vida será salva; esse fundamento além de não consistência jurídica, camufla um preconceito em relação a uma minoria. Exemplos que ilustrem nosso ponto de vista são facilmente demonstráveis, e.g., não se cogita de submeter contra sua vontade um cidadão que se recuse a praticar uma quimioterapia para tratar câncer, ou que obrigue determinada pessoa a compulsoriamente se submeter a um transplante de órgão. Entretanto, quando se trata de respeitar a recusa de um praticante da religião Testemunhas de Jeová em realizar uma transfusão de sangue, de maneira estarrecedora, a maioria, incluindo parcela do Judiciário, não admite essa recusa como legítima, privando assim os praticantes dessa religião de seu direito fundamental de liberdade[22].

Ao defender que a problemática do caso das testemunhas de Jeová se trata de um falso conflito, Nery salienta que:

[...] a colisão de direitos fundamentais em sentido estrito somente é verificada quando a realização de um direito fundamental, no caso a liberdade religiosa, causar dano ao direito fundamental de outrem[23].

Sustenta que, quando um praticante dessa religião se recusa a aceitar uma transfusão sanguínea, de forma alguma está pondo em risco direito fundamental de outro indivíduo, mas apenas exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião.

No entender do nobre consultor, somente poderia ser desrespeitada a vontade do paciente em risco iminente de vida, quando por algum motivo, o mesmo não tiver possibilidade de manifestar sua vontade (paciente em choque, desacordado em coma ou em qualquer estado de total impossibilidade de expressar sua vontade), presumindo-se em tais casos, que o paciente deseja ser tratado.

Resta claro, que para o preclaro jurista, numa eventual situação de risco iminente de vida, em que o paciente puder manifestar sua vontade de recusa, esta prevalecerá à do médico. Assim, esta interpretação poder-se-ia estender aos casos de testemunha de Jeová, que manifestando por antecipado e por escrito ou através de um representante legal sua vontade de não ser transfundido mesmo em casos de risco iminente de vida, essa decisão deveria ser respeitada.

No mesmo sentido, ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO, por entender que cada direito fundamental contém uma expressão de dignidade, por assim dizer, de autonomia e liberdade, defende que o direito à vida garantido no artigo 5º, caput, de nossa Constituição Federal, não se resume simplesmente ao direito de existir em termos biológicos. Com base em tal raciocínio, a vida garantida constitucionalmente é a vida digna, ou seja, a vida com autonomia e liberdade. E, resguardar a vida vai além de preservar seu aspecto físico, envolvendo, também, os valores de cunho moral, espiritual e psicológicos que lhes são inerentes.

Assim, no que se refere ao caso das testemunhas de Jeová, quando um paciente de tal credo procura um médico, solicitando um tratamento de saúde e faz a opção de receber um tratamento alternativo à hemotransfusão, ocorre, na realidade, o exercício do direito à vida em seu sentido mais pleno, posto que está exercendo seu direito à vida com autonomia e liberdade.

Conforme Azevedo defende, não há que se falar em colisão entre direitos fundamentais, pois, de fato, o que ocorre é o exercício do direito à vida e da liberdade religiosa. Isso porque ao procurar um médico e buscar um tratamento de saúde que evita todos os riscos envolvidos em um procedimento de transfusão de sangue, o paciente está salvaguardando sua vida biológica e, também, está exercendo sua autonomia e liberdade na escolha de tratamento médico conforme suas motivações religiosas.

No entendimento de Azevedo, a excludente do inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 do Código[24] refere-se apenas às situações em que o consentimento é presumido, ou seja, estando o paciente em iminente perigo de vida, não podendo expressar sua vontade ou não tendo feito previamente de outra forma - como em um documento com diretrizes antecipadas sobre tratamentos de saúde - o médico deve agir presumindo a anuência do paciente, isto é, “sem” o seu consentimento. Entretanto, caso o paciente tenha manifestado sua vontade de forma expressa, a inobservância dela não significa agir sem seu consentimento, mas contra sua vontade, caracterizando, assim, mesmo nesses casos de iminente risco de vida, constrangimento ilegal.[25]

Ressalte-se que essa influência doutrinaria vem dos anos 2009 e 2010 com a publicação dos ensinamentos doutrinários dos professores Nelson Nery Junior e Álvaro Villaça de Azevedo.

O próprio CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM) através do Parecer 12/2014 o CFM da lavra do ilustre Conselheiro, Dr. Carlos Vital Tavares Correia (hoje presidente desse Conselho) reconheceu que a Resolução CFM nº 1021/80 necessitava de uma revisão e atualização à luz dos avanços técnicos, éticos morais e legais, principalmente para definir de forma mais precisa o conceito de risco iminente de vida[26]. Entretanto, até a presente data a Resolução supracitada continua em pleno vigor e não há outros pareceres similares, o que denota a complexidade e delicadeza do assunto.

Muito citado tem sido o PARECER DO HOJE MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, LUÍS ROBERTO BARROSO, quando ainda era Procurador do Estado do Rio de Janeiro (Parecer 01/2010 – LRB[27]), titulado “Legitimidade de Recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais” publicado Revista Trimestral de Direito Civil de RJ[28], para defender a tese que deve ser respeitada a recusa de transfusão de sangue de paciente testemunha de jeová, mesmo nos casos de risco iminente de vida.

Deve-se salientar que o parecer foi desenvolvido a partir de uma divergência de opiniões gerada entre dois procuradores do Estado do RJ a quem lhes foi delegada a tarefa de exarar parecer sobre recusa de transfusões de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová nesse Estado.

A hipótese do trabalho do hoje ilustre Ministro do STF assim foi colocada:

I. A HIPÓTESE

1. Trata-se de consulta formulada pela Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Lúcia Léa Guimarães Tavares, acerca da atitude a ser tomada pelos médicos do Estado em face da recusa de determinados pacientes, testemunhas de Jeová, a receber transfusão de sangue e hemoderivados, por fundamentos religiosos. Ao que noticia o processo administrativo respectivo, o problema tem se repetido com frequência no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), motivando o encaminhamento da matéria a esta Procuradoria por parte do Diretor Jurídico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Professor Maurício Mota, com pedido de elaboração de parecer normativo.

2. Distribuído o processo à Procuradoria de Serviços Públicos, foi oferecido parecer pelo Procurador Gustavo Binenbojm, que se manifestou favoravelmente ao direito de recusa de tratamento2. Submetido à aprovação superior, o parecer recebeu visto divergente do Procurador-Chefe, Flávio de Araújo Willeman, que não reconheceu o direito de recusa de transfusão de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová. A divergência de opiniões apenas confirma a complexidade do tema, que suscita debates jurídicos, morais e religiosos em diferentes partes do mundo.

Cita ainda parte das opiniões de cada procurador:

Procurador Gustavo Binenbojm: Após anotar que o paradigma do paternalismo médico vem sendo substituído pela autonomia do paciente, destacou o parecerista, em síntese, que: (i) o item nº 2 da Resolução CFM nº 1.021/80 deve ser visto como “expressão atávica do paternalismo ou beneficência médica”, na medida em que deixa de respeitar a vontade do paciente quando há risco de morte; (ii) a objeção de consciência das testemunhas de Jeová corresponde ao exercício da autonomia privada do indivíduo, materializada nos direitos fundamentais à privacidade – autodeterminação no plano das escolhas privadas –, ao próprio corpo e à liberdade religiosa; (iii) não cabe ao médico substituir-se a um paciente maior, capaz e informado para reavaliar sua escolha existencial; (iv) o direito à diferença exige do Estado que tolere e proteja posições jurídicas, ainda que consideradas exóticas pelos demais; (v) a decisão do paciente, que se recusa a receber tratamento, é auto executória em relação ao médico, na medida em que se funda diretamente nos direitos fundamentais envolvidos, de modo que não se exige a judicialização do tema; e, a despeito de a consulta não abranger o ponto, (vi) no caso de a recusa dizer respeito à saúde de menor de idade, sua manifestação de vontade poderia ser submetida ao Poder Judiciário, a fim de se aferir sua maturidade para tomar essa decisão.

Procurador-Chefe, Flávio de Araújo Willeman: não seria aceitável que alguém, “sob o fundamento de professar crença religiosa, dentro de um hospital (público ou privado) [possa] impedir o médico de cumprir com sua histórica missão de salvar vidas” (p. 6). Sustenta, em suma, que: (i) a legislação pertinente não faculta às pessoas a disposição da própria vida por razões de ordem religiosa; (ii) as diretivas éticas dos Conselhos de Medicina obrigam os médicos a proceder ao tratamento necessário para salvar a vida do paciente, sem o seu consentimento ou a despeito da sua recusa; (iii) o Código Civil de 2002, “em franca interpretação autêntica da CRFB/88” (p.14), determina a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, bem como a indisponibilidade do corpo humano; (iv) “o direito fundamental à vida humana deve ser considerado um direito universal quase que absoluto, não podendo ser relativizado e/ou flexibilizado para atender a culturas regionais, religiosas e/ou fundamentalistas” (p. 20; destacado no original); (v) o valor da dignidade humana engloba a possibilidade de o ser humano responder pelas suas decisões existenciais, mas “essa concepção não pode ser levada ao extremo, sobretudo em um país como o Brasil, dotado de quantidade imensa de seitas e religiões” (p. 23); (vi) a liberdade religiosa não pode impedir o Estado de “agir em defesa da vida humana ao ter ciência de que pessoas estão colocando em risco as próprias vidas – por fundamento religioso – e podem vir a atingir a esfera jurídica de terceiros”, já que os médicos poderiam estar sujeitos a sanções administrativas, civis e criminais (p. 25; destacado no original); (vii) a liberdade religiosa deve ser exercida de modo razoável e proporcional, e “a opção do Testemunha de Jeová viola (...) o princípio da razoabilidade (...)”, na medida em que sacrifica o seu direito à vida (p. 29; destacado no original); (viii) “a paciente, ao se dirigir ao hospital, optou pela salvação de sua vida, cabendo, portanto, o método e o tratamento final ao médico” (p. 33).

A seguir, o então procurador Luís Roberto Barroso, discorre na primeira parte, dedicada aos fundamentos teóricos relevantes para o deslinde da questão, analisando a mudança de paradigma na ética médica e explorando os sentidos possíveis da ideia de dignidade da pessoa humana, bem como o conteúdo dos dois principais direitos fundamentais que concorrem na hipótese: o direito à vida e a liberdade religiosa. Na segunda parte, fez a aplicação das categorias teóricas à situação específica em exame, para concluir que a dignidade da pessoa humana, na sua dimensão de autonomia privada do indivíduo, confere legitimidade à decisão de recusa de tratamento médico por fundamento religioso.

Ao analisar o aspecto da vida como direito fundamental e como valor objetivo ressalta que o direito à vida apesar de indisponível, não é absoluto admitindo-se sua flexibilização:

[...] Em suma: o valor objetivo da vida humana desfruta de uma posição preferencial no ordenamento jurídico, podendo o direito à vida ser considerado indisponível prima facie. Nada obstante, não se trata de um direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. A assunção do risco de morte poderá ser legítima quando se trate do exercício de outras liberdades básicas pelo titular do direito. Impõe-se, nesse ambiente, uma análise caso a caso, na qual se possam analisar os diferentes elementos em jogo, com destaque para a repercussão.

Já quanto ao aspecto da liberdade religiosa, o eminente constitucionalista assevera que se trata de um direito fundamental, expressão da dignidade humana, que a recusa terapêutica por motivos de crença religiosa como manifestação de vontade da pessoa deve, em determinadas circunstâncias, ser respeitada pelo Estado e pela sociedade, como manifestação da autonomia do paciente, mesmo nos casos de risco de vida:

[...] A liberdade de religião é um direito fundamental, uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana

[...] Em conclusão: a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. A pergunta que resta responder é a seguinte: pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? Este é um caso-limite que contrapõe o paternalismo à autonomia individual.

[...] A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV).

[...] Relembre-se, como já assinalado, que a ordem jurídica respeita até mesmo decisões pessoais de risco que não envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar esportes como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação humanitária em zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar escolhas existenciais. Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.

Entretanto, o Ministro da Suprema Corte exara entendimento de que não basta a simples manifestação de vontade para que ela seja respeitada. No seu entendimento, essa manifestação de vontade deve ser válida e inequívoca e, para tanto, deve cumprir certos critérios e requisitos:

O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento. A decisão, ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual, manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável.

Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão. Nessa linha, os elementos relevantes devem ser transmitidos em linguagem acessível ao indivíduo, conforme indicado na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria MS nº 675/2006), em seu Terceiro Princípio, item IV, e na Lei Estadual (RJ) nº 3.613/2001. (grifei)

Ainda, faz uma análise dos dispositivos infraconstitucionais (Código Civil, Código Penal e Código de Ética Médica) tecendo ponderações a respeito de sua interpretação à luz dos Princípios Constitucionais:

Código Civil.

Na sua dicção literal, o art. 11 parece consagrar a tese de que os direitos da personalidade – entre os quais se incluem os direitos à vida e à integridade física – seriam insuscetíveis de qualquer limitação, inclusive voluntária. O dispositivo requer algum esforço hermenêutico, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade, esvaziando os direitos que se destina a proteger, bem como a liberdade individual. Isso porque, como demonstrado, o exercício da autonomia pessoal envolve escolhas que, vistas por um observador externo, poderiam ser facilmente enquadradas no conceito de renúncia. Não é o caso de repisar os muitos exemplos que foram fornecidos. No momento, basta constatar que o excesso retórico do art. 11 deve ser harmonizado com o restante da ordem jurídica.

Em uma sociedade plural, é inevitável que os direitos da personalidade entrem em conflitos potenciais ou reais entre si, exigindo temperamentos e até a imposição de restrições recíprocas ou condicionadas. O ponto não é minimamente controverso, aceitando-se de forma pacífica, como já registrado, que não há direitos absolutos. Nesse sentido, um enunciado normativo que pretenda estabelecer a impossibilidade genérica de restrição aos direitos da personalidade, ainda que voluntária, acaba por evocar uma realidade não apenas contra factual, mas também incompatível com o pluralismo consagrado pela Constituição. A única leitura possível de tal dispositivo seria no sentido de entender que ele veda disposições caprichosas ou fúteis, sem prejuízo da possibilidade de que a convivência entre direitos distintos imponha escolhas e compromissos. De outra forma, o art. 11 será, mais do que inconstitucional, verdadeiramente inaplicável. Afinal, em um conflito entre direitos da personalidade, simplesmente não há como figurar uma solução em que ambos incidam sem qualquer temperamento.

O art. 15, por sua vez, não diz nada a respeito das situações em que a recusa de tratamento médico possa ocasionar ou agravar um risco para a vida do paciente. Ao contrário, ele permite a recusa de tratamento que seja, em si mesmo, arriscado. Veja-se que o dispositivo não faz nenhuma ressalva, não se cogitando da possibilidade de que o médico imponha o tratamento arriscado por considerar que a inação levaria à morte certa. Assim, o dispositivo não consagra a ideia de que a vida deva ser mantida a qualquer custo. Em vez disso, respeita a escolha pessoal, que pode ter se baseado na perspectiva de uma sobrevida ou mesmo no receio da perda da consciência e da autonomia moral. Nesse sentido, é até possível enxergar o dispositivo como – mais uma – confirmação de que o valor objetivo da vida humana não é tratado de forma absoluta na ordem jurídica brasileira, devendo ceder espaço diante de escolhas existenciais especialmente relevantes.

Essa leitura se compatibiliza com aquela que se acaba de fazer a respeito do art. 11, também do Código Civil: as recusas de tratamento – como eventuais restrições ou conformações de direitos fundamentais – são legítimas desde que não sejam caprichosas, i.e., desde que haja um fundamento consistente associado ao exercício da capacidade de autodeterminação, derivada da dignidade como autonomia. Com isso, evita-se a funcionalização dos direitos, sem recair em um individualismo exagerado. (grifei)

Código Penal.

O Código Penal também não traz nenhum dispositivo específico sobre a questão. A única menção próxima consta do art. 146, que criminaliza o constrangimento ilegal, mas ressalva a conduta do médico que realiza procedimento sem obter o consentimento do paciente em casos de iminente risco de vida.

Como é fácil perceber, o artigo não trata como crime a conduta do médico que respeite a vontade do paciente. Nesse sentido, o máximo que se poderia extrair diretamente da disposição seria a inexistência de responsabilidade penal do médico em caso de imposição do tratamento.

Na verdade, porém, é perfeitamente possível dar ao referido artigo uma interpretação conforme a Constituição, limitando sua aplicação aos casos em que, havendo iminente risco de vida, não seja possível a obtenção do consentimento. Tal leitura se harmoniza com as conclusões obtidas no presente estudo, em que se assentou a necessidade de consentimento personalíssimo, livre e informado para a recusa de tratamento por motivação religiosa. No entanto, obedecidos esses requisitos, a manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médico como homicídio ou omissão de socorro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese cogitável. (grifei)

Código de Ética Médica.

Ainda em reforço a tais afirmações, o Código proíbe o médico de “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Ao mesmo tempo, impõe ao profissional que se valha de todos os meios de diagnóstico e tratamento que estejam ao seu alcance e sejam cientificamente reconhecidos. Como é intuitivo, ambas as disposições devem ser interpretadas à luz do direito humano de decidir sobre a realização de tratamentos, estabelecido de forma taxativa e sem reservas.

Assim, a ressalva relativa ao risco iminente de morte só pode ser compreendida como uma dispensa da obtenção de consentimento nos casos em que isso seja impossível, e.g., em razão do estado de inconsciência. Aliás, tal leitura vai ao encontro da ressalva, feita no presente estudo, de que se deve realizar a transfusão de sangue nas situações em que não seja possível obter ou confirmar a recusa personalíssima, expressa e informada do paciente, mesmo contra a vontade de familiares ou amigos. Da mesma forma, a exigência de que sejam empregados todos os recursos disponíveis não autoriza que estes sejam impostos ao paciente. Em vez disso, o dispositivo parece impedir que meios disponíveis ao médico e consentidos pelo paciente deixem de ser utilizados por fatores externos, como os eventuais custos.

Finalmente, duas previsões que tratam sobre tema diverso e igualmente polêmico ilustram a prevalência da dignidade como autonomia na sistemática do Código de Ética. A primeira, incluída no capítulo dos princípios fundamentais, estabelece que, em situações de doença irreversível ou terminal, o médico se abstenha de empreender medidas obstinadas e se concentre na melhoria da qualidade de vida do paciente. Tal disposição é complementada por outra de mesmo teor, na qual se faz referência expressa ao necessário respeito à vontade do paciente. O conjunto formado por esses dois artigos corrobora a conclusão de que o novo Código de Ética do Conselho Federal de Medicina se pauta pela ideia de dignidade como valor complexo, e não pela atribuição de peso supostamente absoluto ao valor objetivo da vida humana. Basta essa constatação para que o diploma se abra a uma interpretação conforme ao sistema constitucional, permitindo que se leve em conta a dignidade, em sua dupla perspectiva. Na hipótese de que se trata – recusa de determinados tratamentos por testemunhas de Jeová – tal interpretação conduz à prevalência da autonomia em respeito à decisão existencial fundada em convicção religiosa.

Veja-se que não se está propondo qualquer distorção dos enunciados contidos no referido diploma. Ao contrário, cuida-se apenas de interpretar os dispositivos supostamente lacônicos ou dúbios de forma a realizar a diretriz explícita do artigo que enuncia, como direito humano, a prerrogativa do paciente de decidir autonomamente sobre a realização de tratamentos, ao mesmo tempo em que proíbe o médico de se valer de coação. Ademais, convém lembrar uma vez mais que a possibilidade de recusa na situação em tela foi extraída diretamente da Constituição, de modo que a eventual incompatibilidade do Código de Ética nesse particular redundaria na sua invalidade, e não no afastamento das conclusões obtidas. O que se defende, no momento, é a possibilidade de conferir a esse ato normativo um sentido conforme a Constituição.

No entanto, se é verdade que as disposições do Código de Ética do CFM comportam esse tipo de leitura, o mesmo não se pode dizer da Resolução nº 136/99, do CREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que trata especificamente da recusa em receber transfusão de sangue e hemoderivados. Esse ato determina que os médicos tentem evitar a necessidade de transfusões, mas prevê a sua realização forçada em caso de risco iminente à vida. Pelas razões expostas ao longo do estudo, verifica-se aqui uma incompatibilidade incontornável com o princípio da dignidade da pessoa humana na perspectiva da autonomia, bem como violações adicionais à liberdade de religião, à igualdade e ao pluralismo. Diante dessa constatação, sequer é necessário enveredar pela discussão da incompatibilidade entre a Resolução e o novo Código de Ética do CFM, interpretado à luz da Constituição. (grifei)

Conclui o Parecer da forma seguinte:

A. Nas últimas décadas, a ética médica evoluiu do paradigma paternalista, em que o médico decidia por seus próprios critérios e impunha terapias e procedimentos, para um modelo fundado na autonomia do paciente. A regra, no mundo contemporâneo, passou a ser a anuência do paciente em relação a qualquer intervenção que afete sua integridade.

B. A dignidade da pessoa humana é o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais. Ela tem uma dimensão ligada à autonomia do indivíduo, que expressa sua capacidade de autodeterminação, de liberdade de realizar suas escolhas existenciais e de assumir a responsabilidade por elas. A dignidade pode envolver, igualmente, a proteção de determinados valores sociais e a promoção do bem do próprio indivíduo, aferido por critérios externos a ele. Trata-se da dignidade como heteronomia. Na Constituição brasileira, é possível afirmar a predominância da ideia de dignidade como autonomia, o que significa dizer que, como regra, devem prevalecer as escolhas individuais. Para afastá-las, impõe-se um especial ônus argumentativo.

C. É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.

D. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de cautelas. Para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada. (grifei)

Pode se concluir então que para o Min. Barroso, para que a MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO PACIENTE RECUSANDO UMA TRANSFUSÃO DE SANGUE seja respeitada pelo médico, mesmo nos casos de risco iminente de vida, não basta que a pessoa seja apenas adulta, capaz e que manifestou explicitamente sua recusa, mas exige o cumprimento de todos os seguintes critérios e requisitos:

CRITÉRIOS:

a. VÁLIDA: exige do paciente os seguintes requisitos:

a.1 Capacidade civil plena (conforme dispõe o Código Civil).

a.2 Aptidão:  condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição.

b. INEQUÍVOCA.  Para tanto deve cumprir os seguintes requisitos:

b.1 Personalíssima: exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento.

b.2 Expressa: não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado.

b.3 Atual: manifestada imediatamente antes do procedimento.

b.4 Revogável.

b.5 Genuína: a recusa precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, terá também de ser informada, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai recusar acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão.

Outro fato importante a favor desta tese, foi o advento do ENUNCIADO 403 APROVADO NA V JORNADA DE DIREITO CIVIL, realizada entre os dias 8 e 10 de novembro de 2011, no Conselho de Justiça Federal (CJF)[29] que fez uma interpretação mais abrangente do disposto no artigo 15 do Código Civil, ampliando seu escopo:

403) Art. 15. O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante. (grifei)

Merecem destaque as condições sob as quais, na ótica dessa V Jornada, a decisão de recusa terapêutica deve ser respeitada independente do paciente/procedimento envolver ou não risco de vida:

a) Capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente.

b) Manifestação de vontade livre, consciente e informada.

c) Oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.

Fazendo um paralelo com o parecer do Ministro Luís Barroso, o Enunciado 403, exigiria que a manifestação se vontade seja apenas válida (capacidade civil plena e consciente), personalíssima (excluído o suprimento pelo representante ou assistente) e genuína (manifestação de vontade livre e informada). Entretanto, nada exige a respeito da manifestação ser expressa, atual e revogável.

A JURISPRUDÊNCA também tem se mostrado alinhada com esta corrente. Veja-se alguns julgados:

EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar.

[...] Aparentemente, a direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. (...) É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima.

Sim, porque não há regra legal alguma que ordene à pessoa natural a obrigação de submeter-se a tratamento clínico de qualquer natureza; a opção de tratar-se com especialista objetivando a cura ou o controle de determinada doença é ato voluntário de quem é dela portador, sendo certo que, atualmente, o recorrente encontra-se em alta hospitalar e não há preceito normativo algum que o obrigue a retornar ao tratamento quimioterápico se houver a perspectiva de ocorrer a transfusão sanguínea.

É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico, como exposto na petição recursal. (...) (TJMG. 1ª Câmara Cível. AI nº 1.0701.07.191519-6/001. Des. Relator Alberto Vilas Boas. Julgado em 14.08.2007).

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (TJRS. Agravo de Instrumento Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010)

AGRAVO DE INSTRUMENTO (Decisão Monocrática) contra r. decisão copiada as fls. 17/18 ou 80/81 (ou fls. 25/26 dos autos principais) que, em medida cautelar inominada (petição inicial as fls. 55/59) movida pela agravada contra a agravante, autorizou a agravada a realizar transfusão de sangue na agravante, contrariando a vontade desta, sob o fundamento de que a vida é um bem maior que se sobrepõe a qualquer outro direito, inclusive o de liberdade religiosa. 2) A ação foi movida contra a paciente, razão pela qual a própria agravada reconhece estar ela em sua plena capacidade civil, ou seja, consciente e em condições de manifestar a sua livre e espontânea vontade. Não se confunde, portanto, com situações onde terceira pessoa (pais, curadores etc) manifesta a sua vontade em substituição ao do enfermo e, portanto, outros aspectos devem ser considerados. 2.1) Assim, considera-se válida a declaração manuscrita da agravante copiada as fls. 26, bem como em documento impresso da própria agravada (fl. 66); ela é clara no sentido de que está ciente dos riscos a que se submete, bem como diz: "não autorizo o tratamento indicado transfusão, de acordo com meus dogmas e crenças religiosas". Veja-se, como exemplo, na legislação, o art. 10 da Lei n. 9.434/97 e o art. 15 do Código Civil. Aliás, perante psicóloga da agravada (fl. 67), confirmou-se tal posicionamento, com apoio do marido (que, pelo que consta, não tem a mesma crença religiosa). Há manifestação médica (fl. 78 ou 79) apontando como sendo a melhor terapia aquela que tem a transfusão de sangue, sem a qual o risco de morte é muito superior (100%). 3) Estando a agravante em sua plena capacidade, deve ser respeitada a sua opção de natureza religiosa (testemunha de Jeová) que importa em recusa de terapia com transfusão de sangue, mesmo que seja o último recurso para salvar a vida física da agravante. Há o consentimento informado. Não pode, é evidente, a entidade médica e hospitalar ser penalizada com eventual insucesso de terapia ministrada, quando recomenda outra, recusada pelo paciente. A vida não está limitada à vida física, em especial para pessoas com crença religiosa arraigada, onde a salvação da alma está acima da salvação de seu corpo físico. Em outras palavras: salva-se o corpo, mata-se a alma. 3.1) DEFIRO, portanto, a liminar, para suspender a r. decisão recorrida. 4) Dê-se ciência ao MM. Juiz de Direito. 5) Processe-se o agravo de instrumento, intimando-se a agravada. 6) Com as informações, à d. Procuradoria Geral de Justiça. 7) Fica autorizado o Cartório o encaminhamento desta decisão ao MM. Juiz de Direito, para o fim indicado no item 3.1. Int.(TJSP. TJ/SP. 6ª. Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento nº 0065972-63.2013.8.26.0000. Relator: Des. ALEXANDRE LAZZARINI, julgado em 09 de abril de 2013.)

AGRAVO DE INSTRUMENTO (Decisão Monocrática).

[...] Inicialmente, é necessário esclarecer que a escolha em receber transfusão de sangue está, no caso dos autos, ligada fundamentalmente à crença religiosa da paciente, ora agravante, e da dignidade decorrente destes valores religiosos nos quais acredita.

Sobre a questão, há divergência na jurisprudência, uma posição mais atual entende que a liberdade de crença deve prevalecer. Nesse caso, se fará a ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas não apenas a integridade física, a intelectual e psíquica também devem ser consideradas, ou seja, tutelar uma vida digna. Assim, admite-se o direito das minorias de não realizar a transfusão de sangue, pois se estaria violando o direito a uma vida digna de uma pessoa Testemunha de Jeová.

A respeito, destaca-se a seguinte jurisprudência:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro Gabinete Des. Paulo Roberto Sartorato momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (TJRS - Agravo de Instrumento nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Baldino Maciel, j. em 06/05/2010).

Por outro lado, há uma outra corrente, a qual entende que deve ser realizada a transfusão de sangue, mesmo contra a vontade do paciente. Nesse caso, precisa-se defender a vida física sobre a liberdade de crença religiosa. O direito brasileiro não admite o testamento vital, isto é, não admite manifestação de vontade para dispor da vida. Nesse sentido, cita-se:

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM

QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (TJRS - Apelação Cível nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira, j. em 28/03/1995).

Diante da divergência dos posicionamentos acima expostos e, considerando a informação da agravante quanto à existência de outros procedimentos alternativos que podem ser empregados para salvaguardar a integridade de sua saúde, cuja vontade manifesta a agravante, ao menos até que seja a matéria melhor analisada pela câmara colegiada competente, entendo por bem suspender a decisão que concedeu a liminar, até a análise mais detida do mérito. (TJ/SC. Agravo de Instrumento n. 2011.016822-7, de Joinville. Decisão pelo Relator: Des. PAULO ROBERTO SARTORATO, julgado em 25 de março de 2011.

Em recente decisão monocrática, ao analisar a questão, o desembargador federal do TRF-1, Kassio Nunes Marques, citou o entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, expresso no parecer alhures citado, para suspender os efeitos de uma decisão, proferida pelo Juízo Federal da 18ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais (SJMG), que autorizou a equipe médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), a realizar uma transfusão compulsória de sangue  numa paciente, então agravante no processo.

AGRAVO DE INSTRUMENTO (DECISÃO MONOCRÁTICA).

[...] Na mesma esteira, protagonizando este entendimento, o professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso quando da elaboração do parecer intitulado "Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas", analisou a colisão entre o Direito à Vida e Liberdade de Religião, fazendo as seguintes ponderações: [...] Todavia, em que pese a relevância e a riqueza do debate que se pode travar acerca do tema, verifico que, ao contrário do que alega a Agravada e aduz a decisão impugnada, há outro tratamento médico que poderá ser dispensado ao paciente – que não implique em transfusão de sangue -, como no caso do medicamento consentido pela paciente para a correção da anemia, que é a Eritropoetina (hormônio que atua na medula óssea para a produção de células sanguíneas. O medicamento referido está sendo administrado desde o dia 15/3/2015, um dia antes do ajuizamento da ação pela Agravante, conforme relatório médico acostado.

Nesta hipótese, fica diferida a aludida discussão doutrinária para outra ocasião, uma vez que não há no caso dos autos, ao meu sentir, colisão do direito invocado com o direito à vida. (TRF-1. AI Nº 0017343-82.2016.4.01.0000/MG -DECISÃO MONOCRÁTICA. Rel. Des. Fed. DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES. Julgado em 11 de abril de 2016. Data da publicação: 05/05/2016). (grifei)

Percebe-se que embora o Ilustre desembargador cite entendimento do Ministro Barroso, ele concedeu efeito suspensivo ao A.I., não por concordar com a tese levantada na sua fundamentação, mas pelo fato de não evidenciar no caso em tela, colisão com o direito à vida (risco iminente de vida).


3. OS TRIBUNAIS SUPERIORES (STJ e STF) E A RECUSA TERAPEUTICA

Os julgados até hoje existentes, quer na forma de precedentes, quer como jurisprudência, tem tido origem apenas na Justiça de Primeira Instância e em alguns Tribunais de Justiça.

Não se encontra, entretanto, jurisprudência dominante e menos pacífica sobre o assunto a nível dos Tribunais Superiores (STJ e STF). Nesse sentido, torna-se relevante a falta de manifestação, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal (STF) num assunto tão controverso e complexo cujo cerne abrange matéria constitucional.

Entretanto, um julgado que teve grande repercussão, não apenas no campo jurídico, mas na própria sociedade foi o realizado pelo STJ no caso da morte da adolescente de 13 anos Juliana Bomfim da Silva[30]. Testemunhas de Jeová, os pais de Juliana - o militar aposentado Hélio Vitória dos Santos e a dona de casa Ildelir Bonfim de Souza, moradores em São Vicente, litoral de São Paulo, internaram-na no Hospital São José na madrugada do dia 21 de julho de 1993, durante uma crise causada pela anemia falciforme.

A menina tinha os vasos sanguíneos obstruídos e só poderia ser salva mediante a realização de uma transfusão de emergência. Os médicos que atenderam Juliana explicaram a gravidade da situação e a necessidade da transfusão sanguínea, mas os pais foram irredutíveis. A mãe chegou a dizer que preferia ter a filha morta a vê-la receber a transfusão. Um médico da família, também testemunha de Jeová, chegou ainda a intervir, intimidando os médicos assistentes com ameaça de processá-los judicialmente caso realizassem o procedimento contra a vontade dos pais da paciente. A transfusão não foi feita, respeitou-se a vontade dos pais e após inúmeras tentativas frustradas de convencimento deles, a adolescente faleceu no dia 22 de julho de 1993, em consequência de assistolia ventricular, crise vaso oclusiva e anemia falciforme.

Com a morte da menor foi aberto Inquérito Policial que resultou na Denúncia oferecida pelo Ministério Público de São Paulo, que em 22 de julho de 1997 culminou na Ação Penal de Competência do Júri, (processo de nº 0000338-97.1993.8.26.0590), que tramitou na 3ª Vara Criminal da Comarca de São Vicente/São Paulo. Na Denúncia, o Ministério Público sustentava que os pais mataram a filha menor por motivos religiosos ao impedir que os médicos do Hospital São José realizassem a necessária transfusão de sangue. A Denúncia também envolvia o médico José Augusto Faleiros, amigo da família, que aconselhou os pais da menor a não autorizar a transfusão de sangue e intimidou os médicos que assistiam à paciente, ameaçando processá-los judicialmente caso efetuassem a transfusão de sangue contra a vontade dos pais. Em 25.07.1997 foi publicada a sentença de Pronúncia dos pais (Hélio Vitória da Silva e Ildelir Bonfim de Souza) e do médico, amigo da família, José Augusto Faleiros. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu em 2010 que os pais e o médico da família deveriam ir a júri popular por homicídio doloso - quando há intenção de matar.

Após uma série de recursos sucessivamente negados, em 16.04.2013, o advogado dos pais da menina Juliana protocolizou o Habeas Corpus nº 268.459-SP, distribuído por dependência à 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Como consequência do julgamento do referido HC, o STJ isentou de culpa pela morte da adolescente Juliana Bonfim da Silva, os pais dela, que alegaram motivos religiosos para negar o tratamento, mas entendeu que a responsabilidade seria dos médicos que respeitaram a vontade da família e desrespeitaram o Código de Ética Médica. A decisão mostra que a transfusão de sangue em paciente menor ou adolescente deve ser sempre feita pelos médicos mesmo contra a vontade dos pais seguidores da religião Testemunhas de Jeová sempre que houver risco de morte.

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. (1) IMPETRAÇÃO COMO SUCEDÂNEO RECURSAL, APRESENTADA DEPOIS DA INTERPOSIÇÃO DE TODOS OS RECURSOS CABÍVEIS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) QUESTÕES DIVERSAS DAQUELAS JÁ ASSENTADAS EM ARESP E RHC POR ESTA CORTE. PATENTE ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. (3) LIBERDADE RELIGIOSA. ÂMBITO DE EXERCÍCIO. BIOÉTICA E BIODIREITO: PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. RELEVÂNCIA DO CONSENTIMENTO ATINENTE À SITUAÇÃO DE RISCO DE VIDA DE ADOLESCENTE.

DEVER MÉDICO DE INTERVENÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECONHECIMENTO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem depois de interpostos todos os recursos cabíveis, no âmbito infraconstitucional, contra a pronúncia, após ter sido aqui decidido o AResp interposto na mesma causa. Impetração com feições de sucedâneo recursal inominado.

2. Não há ofensa ao quanto assentado por esta Corte, quando da apreciação de agravo em recurso especial e em recurso em habeas corpus, na medida em que são trazidos a debate aspectos distintos dos que outrora cuidados.

3. Na espécie, como já assinalado nos votos vencidos, proferidos na origem, em sede de recurso em sentido estrito e embargos infringentes, tem-se como decisivo, para o desate da responsabilização criminal, a aferição do relevo do consentimento dos pacientes para o advento do resultado tido como delitivo. Em verdade, como inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante das demais condicionantes valorativas. Desta maneira, no caso em foco, ter-se-ia que aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos, em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada, dos pacientes. No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte.

Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue - pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional.

4. Ordem não conhecida, expedido habeas corpus de ofício para, reconhecida a atipicidade do comportamento irrogado, extinguir a ação penal em razão da atipicidade do comportamento irrogado aos pacientes. (STJ. HABEAS CORPUS Nº 268.459 - SP (2013/0106116-5). Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. 6ª Turma. Julgado em 02.09.2014). (grifei)

Destaque-se, entretanto, que o julgamento não foi unânime, tendo havido empate quanto ao posicionamento dos nobres Ministros no que respeita ao julgamento dos pais por homicídio doloso. Na verdade, houve empate 2-2 no tocante ao posicionamento de trancar ou não a ação penal. Mas então foi optado pela concessão de habeas corpus de oficio com a decisão mais favorável aos réus, isto é o trancamento da ação penal em relação a eles.

Desprende-se da CERTIDÃO:

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz não conhecendo do pedido de habeas corpus, sendo acompanhado pela Sra. Ministra Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE), a Sexta Turma, por unanimidade, não conheceu do pedido de habeas corpus, e em razão de empate, prevalecendo a decisão mais favorável, concedeu ordem de ofício, com as observações feitas pela Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura na data de hoje, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.

Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior (Presidente), Rogerio Schietti Cruz (voto-vista) e Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE) votaram com a Sra. Ministra Relatora quanto ao não conhecimento da ordem.

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Presidente) votou com a Sra. Ministra Relatora quanto à concessão da ordem de ofício.

Não participou do julgamento o Sr. Ministro Nefi Cordeiro. (grifei)

Importante destacar parte da análise feita pelos eminentes Ministros julgadores.

Extrai-se do voto da Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):

O caso em testilha ser complexo e controverso, por envolver questões não apenas jurídicas, mas filosóficas, morais e religiosas:

[...] O presente caso trata de temática que suscita discussão que extravasa os lindes estritamente jurídicos, desaguando em debate de colorido filosófico, moral e religioso.

Daí, acredito que, corporificando verdadeiro hard case, por mais completa e profunda que seja a saída alcançada, sempre haverá quem da solução discorde.

Cita parte do Parecer do Ministro do STF, Luís Roberto Barrroso e registros de casos de Argentina, Uruguay e Inglaterra, em que a temática foi enfrentada, amplamente debatida, e nos quais a decisão de pacientes (um deles adolescente), foi respeitada, mesmo com desfecho fatal (morte dos mesmos). Mencionou que nesses países existe amparo legal para esse respeito. Entretanto destacou um caso em que o Poder Judiciário da Austrália, envolvendo paciente menor de idade, ordenou fosse realizada transfusão de sangue, a despeito da opção religiosa.

A seguir, analisa numa perspectiva jurídico-sistemática, desvestindo-se de crenças pessoais e preconceitos, os acórdãos do recurso em sentido estrito e dos subsequentes embargos infringentes perante a Corte Estadual Paulista impetrados pelos pais da adolescente, se alinhando com os votos vencidos e adotando-os como razão para concessão da ordem de oficio.

Cita para tanto, o voto divergente do Desembargador Nuevo Campos (TJSP) na qual sustenta-se a atipicidade penal da conduta dos genitores e a responsabilidade dos médicos que tinham o dever de agir:

 [...] A controvérsia, como se vê, versa, tão somente, sobre os efeitos do dissenso dos genitores e do médico, que, por professar a mesma religião daqueles, sem integrar a equipe que atendeu a ofendida, também se manifestou contrário à realização da necessária transfusão de sangue.

[...] Respeitado entendimento diverso, a conduta dos réus não possui tipicidade penal, na medida em que, em se tratando de hipótese de iminente risco de vida para a ofendida, o dissenso dos réus não possuía qualquer efeito inibitório da adoção do indispensável procedimento terapêutico a ser adotado, qual seja, a transfusão de sangue.

Os integrantes da equipe médica, que a atendiam, tinham o dever legal de agir.

[...] É preciso anotar, ainda, que a questão de natureza religiosa, que permeia a análise do fato gerador da presente persecução penal, não é nova e foi objeto, inclusive da Resolução nº 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina, cujo enunciado, em seu artigo 2º, dispõe: "Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis".

Ante o exposto, considerando-se que, segundo os termos da inicial, o impedimento à realização da transfusão de sangue limitou-se ao dissenso dos genitores da ofendida, referendado pelo corréu, a conduta atribuída aos acusados, ora recorrentes, deve ser tida como atípica.

Face ao exposto, meu voto, respeitosamente, é no sentido da absolvição dos recorrentes José Augusto Faleiros Diniz, Hélio Vitória da Silva e Ildelir Bonfim de Souza, da imputação de se acharem incursos, o primeiro no art. 121, caput, do Cód. Penal, e, os demais, como incursos no art. 121, caput, combinado com o art. 61, II, e, ambos do Cód. Penal, com fundamento no art. 415, III, do Cód. de Proc. Penal. (fls. 58-61). (grifei)

Cita, no mesmo sentido, parte do voto divergente do Desembargador Souza Nery (TJSP):

 [...] É que a recusa dos pais da infeliz vítima era absolutamente irrelevante para o atendimento médico que lhe devia ter sido prestado.

O Código de Ética Médica (Resolução nº CFM 1.246/88, de 8 de janeiro), em seu artigo 46, proíbe o médico de "[e]fetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu representante legal, salvo iminente perigo de vida".

O mesmo diploma legal, em outros dois dispositivos isenta de responsabilidade ética o profissional médico que, diante de pessoa entregue a greve de fome, intervenha para afastar o risco iminente da vida (artigo 51), e pune aquele que "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida" (artigo 56).

O próprio Código Penal Brasileiro estabelece ser atípica a conduta do médico que realize intervenção, mesmo que cirúrgica, "sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida (artigo 146, § 3º, inciso I).

Assim, admitir a responsabilidade penal dos embargantes corresponde a desobedecer o mandamento constitucional antes transcrito, por isso que seu ato limitou-se ao exercício de sua liberdade de crença, e no comportamento dela decorrente.

Ainda uma vez destaco ser a "proibição" da transfusão de sangue oposta pelos embargantes ao tratamento de sua filha absolutamente irrelevante sob o ponto de vista legal para os médicos encarregados de atendê-la, que tinham o dever de prestar-lhe toda a assistência necessária, agindo sob o manto protetor tanto de seu próprio Código de Ética, quanto, e mais importantemente, do Código Penal Brasileiro, como demonstrei.

Imperioso, no meu entendimento, portanto, aplicar ao caso dos autos o que determina o inciso III do artigo 415 do Código de Processo Penal, decretando desde logo a absolvição dos embargantes, por isso que sua conduta não constitui infração penal.

Demais disso, por meu voto, e nos termos do artigo 417 do mesmo estatuto adjetivo, determinava a devolução dos autos ao representante local da sociedade, diante da clara existência de indícios de responsabilidade "de outras pessoas não incluídas na acusação".

A douta maioria, no entanto, e como de costume, decidiu superiormente a questão. (fls. 114-118). (grifei)

Incursiona em conceitos de bioética e cita artigos do Código de Ética Médica em vigor que garantem ao médico agir contra a vontade de pacientes em caso de risco iminente de vida, para concluir que tendo sido a transfusão de sangue o único e último meio de salvar a vida da adolescente, os médicos ao proceder à transfusão compulsória teriam realizado um correto exercício profissional e respeitado, na medida do possível, o direito de autonomia dos pais:

[...] Nesse panorama, ausente alternativa que pudesse tempestivamente colocar a vida da filha dos pacientes a salvo, impenderia aos médicos do hospital, passando por cima de qualquer obstáculo, materializar a intervenção que restasse.

Caso assim agissem, de uma só vez, estariam dando concreção ao exercício profissional que abraçaram, ao princípio da beneficência, e, justificando a impossibilidade de aplicação tratamento alternativo, no contexto, teriam respeitado, na medida do possível, o primado da autonomia (em relação à concepção religiosa dos pais). (grifei)

Salienta ainda que no caso especifico, deve se levar em consideração que se trata de paciente adolescente, na qual inquestionável resta a supremacia do direito à vida da titular se sobrepondo ao direito de crença religiosa dos pais, sendo mandatório o dever de agir dos médicos:

[...] Soma-se a este primeiro ponto, um outro que, naquele panorama, afigura-se-me de supina importância. Cuida-se do superior interesse do adolescente.

Extrai-se do artigo 227 do Texto Maior, que é "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas" (destaquei).

No artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, estatui-se que a "criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência".

[...] Desta maneira, não obstante tratar-se dos pais ou responsáveis, a ausência de consentimento para a única saída para a preservação da vida de um adolescente, como na espécie, não representava, penso, óbice à transfusão de sangue, no horizonte descrito na denúncia.

Exsurgiu, portanto, uma plêiade de fatores no período de internação retratado nos autos, a rechaçar a magnitude penal da atuação dos pacientes. Logo, se falha houve, teria sido, penso, dos médicos responsáveis pela internação, que, ausente a possibilidade de profícuo tratamento alternativo, não cumpriram com o seu dever de salvar a adolescente, com a única terapia de que dispunham.

Cumpre lembrar que o próprio Código Penal afasta a responsabilidade pelo emprego de violência ou grave ameaça, a fim de viabilizar intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida - inciso I do § 3º do artigo 146 do Código Penal.(grifei)

Fundamenta ainda sua decisão com base no viés humanitário, decorrente do sofrimento dos pais não apenas pela perda da filha, mas pelo tempo prolongado que leva o processo judicial:

[...] Por fim, ademais de não identificar responsabilidade por parte dos pais, dadas todas essas peculiaridades, há uma faceta que muito me toca. Um viés humanitário, concernente ao sofrimento que esses pais já passaram, não só pela perda da filha (o que já não é pouco), mas, também, pelo tempo que este processo se arrasta.

De pronto, verifico a impossibilidade do reconhecimento do perdão judicial, que demanda a prévia condenação. Todavia, dadas as feridas que não puderam ser cicatrizadas pelo transcurso do tempo, mas, pelo contrário, eram, frequentemente, reabertas pelo evolver processual, acredito que o atroz sofrimento amargado por toda essa via crucis já representou reprimenda mais intensa que qualquer privação de liberdade possa infligir.

O e. MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, acompanhou o voto da Relatora, por se tratar de menor adolescente:

[...] Estou de acordo com a Ministra Maria Thereza. Não vou me prolongar até porque tanto o voto que acompanho como os votos vencidos na origem esgotam o assunto. A vítima é menor, não podendo a vontade dos pais, portanto, prevalecer. Aqui, o direito à vida se impõe ao direito à crença religiosa dos pais. Logo, não havendo como se impor a vontade dos pais, deveriam os médicos responsáveis pelo atendimento da menor atuar como devido, até em razão de imposição legal e de ausência de responsabilização penal caso assim agissem.

A omissão destes, sim, é que deu causa ao falecimento da filha dos pacientes, e não a não autorização dos pais para a necessária e essencial transfusão de sangue. Poderia haver, penso eu, responsabilidade dos pais se estes se recusassem a levar a filha a um hospital ou, de outro modo, impedissem efetivamente que esta fosse tratada (tirassem a criança do hospital, por exemplo). A simples manifestação de vontade contrária ao tratamento, sem qualquer ação que efetivamente o impedisse, não os torna responsáveis pelo falecimento da filha.

Esta – a autorização – era, e é em casos como este, que envolve interesse de menor, desnecessária.

[...] Esclareço, por fim, que me reservo para um exame mais detalhado quando a hipótese cuidar de falecimento de adulto decorrente da não aplicação do tratamento médico adequado em razão de crença religiosa própria. (grifei)

Divergindo do voto dos anteriores, o MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ fundamenta convicção pela responsabilidade dos pais, destacando:

Existência de eventual conflito de direitos fundamentais (direito a vida e direito à liberdade religiosa), comungando do entendimento de que o direito à vida, não é absoluto e que não há hierarquia entre direitos fundamentais. Entretanto, claramente faz a ressalva quando se trata de criança e adolescente.

[...]  Os estudos sobre a postura dos operadores do Direito perante os casos de Testemunhas de Jeová, que recusam a transfusão sanguínea, cingem-se, essencialmente, à ponderação de direitos fundamentais, com destaque ao confronto entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa.

O que se discute, sempre, nessas hipóteses, é como deve agir o magistrado diante de um (aparente) conflito de direitos, os quais, alerto, estão situados no campo dos valores.

O fato de estarem insertos no campo dos valores não permite ao magistrado agir com total discricionariedade na escolha entre os princípios concorrentes, devendo ser eleito aquele que mais se aproxima da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III da Constituição Federal), essa sim com valor absoluto.

[...]  O direito à vida, o mais fundamental de todos os direitos, não é absoluto, disso não me olvido. Sem, também, perder de vista que não há hierarquia entre direitos fundamentais, entendo que a hipótese dos autos não deixa espaço para mitigação do direito à vida, pois o embate enredava a vida de uma adolescente, cuja obrigatoriedade de proteção pelos pais encontrava-se constitucionalmente resguardada, moralmente desejada e naturalmente imposta. (grifei)

A supremacia do dever de proteger de forma absoluta à criança e ao adolescente com base no disposto no artigo 227 da Constituição Federal:

[...] Sem embargo, a minha conclusão tem como guia o princípio da proteção prioritária, absoluta e integral da criança e do adolescente, tratado no art. 227 da Constituição Federal, bem como a prevalência do bem vida sobre o bem liberdade religiosa.

[...] É sabido que existem inúmeras opções de procedimentos terapêuticos diversos daquele repudiado pelos fiéis Testemunhas de Jeová. No entanto, esses são utilizados quando o paciente não se encontra em colapso ou em risco iminente de morte, de modo que não há de se invocar o direito fundamental à liberdade de crença quando não há alternativas para salvar a vida de uma pessoa natural ou legalmente incapaz de exercer plenamente sua própria individualidade e autodeterminação.

O texto constitucional vigente elegeu a família, entre outros sujeitos ativos dos direitos das crianças e dos adolescentes, para assegurar, com absoluta prioridade, os direitos lá elencados, dentre eles o direito à vida. (grifei)

Salienta que no caso em testilha, por se tratar de adolescente, civilmente incapaz para exercer sua autodeterminação e ainda pelos dispositivos legais em vigor que defendem a supremacia do direito à vida de criança e adolescente, não pode se falar em respeito à autonomia e pelos mesmos motivos, não se aplicaria ao caso o inteligente raciocínio do Ministro Barroso:

[...]  Eis o ponto nodal da questão, prezados pares, que destaquei na citação da obra coletiva referida no voto em apreço: as opções individuais, inclusive relativas à própria saúde ou mesmo à própria vida, hão de ser respeitadas, mormente quando abrigadas em direito ao livre exercício de crença religiosa. O princípio da autonomia, entretanto, não permite, como o próprio ensaio explicita, que as escolhas individuais interfiram na saúde ou na vida de terceiros, máxime – acrescento – quando o terceiro é uma adolescente incapaz, por lei e por natural imaturidade psíquica, a tomar decisão tão vital.

[...] Pelas mesmas razões também não considero possível estender ao caso vertente o escólio, sempre lúcido e aprofundado, de Luiz Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, que assere – após ressaltar o dever de respeito à crença religiosa como uma “escolha existencial a ser protegida” – que “a transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República brasileira”. Digo que tal ensinamento não se estende ao presente caso porque me parece estar Sua Excelência referindo-se à opção individual de quem, plenamente capaz de se autodeterminar, manifesta o desejo de não receber, em seu corpo – e não no corpo de terceira pessoa, menor de idade – o sangue de outrem. (grifei)

Entende, no entanto, que a conduta dos pais ao recusar a transfusão, teria sido sim um fator impeditivo para que fosse levado a cabo o procedimento salvador, pelo que tal conduta seria típica, ilícita com evidente culpa:

[...] Em assim sendo, reputo típica, ilícita e culpável a conduta dos pacientes, porquanto, não fosse a ação por eles empreendida, os médicos responsáveis pelo pronto atendimento teriam levado a efeito a transfusão sanguínea na adolescente e muito provavelmente salvado sua vida. E assim não o fizeram, única e exclusivamente, por força do incisivo comportamento dos pais da menina, que, além de recusar o tratamento, anuíram à intervenção do médico da família, que constrangeu e ameaçou processar os profissionais da saúde que ousassem salvar a vida da menor com o procedimento recomendado para a situação emergencial daquele momento.

A propósito, refuto a tese da assunção do domínio, trazida pela defesa, pois aos médicos não foi cedida a vida da menor, de modo que não se encontravam na posição de garantes, uma vez que não adquiriram o domínio da confiança para realizar o que julgavam necessário. Houve, em verdade, choque de interesses, não havendo que se falar em responsabilidade exclusiva, mas concorrente, dos médicos. (grifei)

Comenta e questiona argumento de caráter humanitário elencado pela Relatora para fundamentar seu voto:

[...] A argumentação para a exclusão dos pacientes da ação penal também é assentada, em viés humanitário – sempre louvável, registro –, na amargura em que se encontram, na qualidade de pais da vítima. No entanto, pergunto-me se esse sentimento de pesar em relação à vítima afasta a conduta humana responsável por seu óbito. Aqueles que tinham o dever natural, legal (no nível constitucional) e moral de protegê-la abstiveram-se de agir, em nome da crença religiosa professada. O viés humanitário, neste caso, deve se voltar integralmente ao sofrimento vivido pela criança que, nos instantes finais de sua vida, padeceu desprotegida, objeto de disputa entre a ciência e a religião, entre a razão e a fé. (grifei)

A despeito de concordar com a responsabilidade dos médicos que deveriam ter cumprido seu dever legal de transfundir, discorda doutro lado e defende a responsabilidade criminal também dos pais por dolo eventual.

[...] Com todo o respeito às teses anteriormente lançadas, dizer que a ação dos pacientes não impediu efetivamente o tratamento recomendado, ou que não interferiu na omissão dos médicos que a atenderam, não me parece razoável.

[...] É certo que o artigo 146, § 3º, inciso I do Código Penal torna atípica a conduta do médico que realiza procedimento terapêutico ou cirúrgico, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada pelo iminente risco de morte. Mas, daí a deslocar a integral responsabilidade pela morte da menina para os profissionais envolvidos no seu tratamento não se afigura correto, pois a ação dos ora pacientes teve relevância no desdobramento da cadeia de condutas concorrentes para a produção do resultado do evento criminoso. Assevero que os médicos não apenas tiveram de lidar com a recusa do tratamento, mas também com as ameaças de serem processados judicialmente, se levassem o procedimento a efeito.

Diante da situação fática vivida pelos envolvidos, julgo relevante a conduta dos acusados para a concretização do evento morte, pois os médicos não hesitariam em aplicar a única alternativa restante para salvar a adolescente, houvessem os pais consentido no tratamento indicado. [...] Sob outra angulação – e fazendo a ressalva de que o tema haveria de ser enfrentado, com a necessária verticalidade, pelo juiz natural da causa – considero, em face do que consta dos autos, haver indicativos da presença de dolo eventual na conduta dos pais da adolescente vitimada. (grifei)

Sustenta que eximir as testemunhas de Jeová de responsabilidade penal em casos como o ora julgado significaria conceder-lhes uma blindagem penal que o Estado, por ser laico e sedimentado no Direito, não permite.

IV. [...]

Por fim, uma reflexão.

Eximir os Testemunhas de Jeová de responsabilidade penal em casos como o ora julgado significa conceder-lhes uma blindagem penal que o Estado, por ser laico e sedimentado no Direito, não permite.

Em verdade, é de indagar-se: como a Justiça distribuiria tratamento igualitário, se membros de religiões distintas buscassem por direitos das mais diversas naturezas, incluindo, por que não, a descriminalização de uma conduta que, não fosse o embasamento religioso, típica seria? Como seria lidar com as crenças individuais, legitimamente fundadas em seus respectivos textos sagrados, perante um caso concreto em que um direito fundamental haja sido violado?

Conquanto as religiões disponham cada qual de caminhos para a alcançar a vida após a morte, por meio de cultos, hábitos e práticas, a nenhuma delas é dado, sem a respectiva responsabilização, impor sua fé em detrimento da saúde ou integridade física de terceiros. Na hipótese dos autos, o referido fundamento foi ultrajado, na medida em que uma adolescente ficou descoberta da proteção legal que lhe era devida pelos pais, e teve a vida ceifada em decorrência, sim, de embate causado entre os ora pacientes e os médicos que lhe assistiram no momento da internação. Tudo, repito, em nome da convicção religiosa.

Dentro desse pensamento, indago: não fossem os pacientes seguidores da religião Testemunha de Jeová, e, por qualquer outra convicção íntima (que não a religiosa), houvessem recusado determinado procedimento médico que implicasse a morte de sua filha, qual seria o tratamento dado pelo Direito Penal? Penso eu que dúvidas não haveria em responsabilizá-los. O debate não seria, creio, tão profundo e delicado.

A laicidade do Estado não permite esse tratamento desigual. (grifei)

Finalmente conclui o voto pelo não conheço do habeas corpus e, examinando seu conteúdo, pela inexistência de constrangimento ilegal que pudesse me levar a, ex officio, conceder a ordem postulada.

VI. [...]

À vista do exposto, com a vênia dos eminentes pares que me antecederam, não conheço do habeas corpus e, examinando seu conteúdo, não identifico constrangimento ilegal que pudesse me levar a, ex officio, conceder a ordem postulada.

Infelizmente, como visto, os únicos prejudicados nesse longo processo judicial foram os médicos assistentes da adolescente que diante de tanta pressão e ameaça cederam à vontade dos pais e do médico da família. Destaque-se que muito embora os médicos que assistiram à adolescente não foram processados (já que não eram réus na Denúncia do Ministério Público e, portanto, na sentencia de Pronuncia) exarou-se entendimento de uma parte da Corte Superior de Justiça no sentido de que a existe responsabilidade criminal do médico caso não transfunda menor ou adolescente em risco de vida, mesmo contra vontade dos pais.


4. A RECUSA NÃO APENAS DE TRANSFUSÃO DE SANGUE

A questão da RECUSA TERAPÊUTICA tem sido geralmente vinculada aos casos de recusa a transfusão de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová. Entretanto, certamente não se limita apenas a esse tipo de terapêutica, mas a qualquer procedimento médico e/ou cirúrgico. Outra situação que também tem ganhado espaço no Judiciário tem sido a RECUSA A TRATAMENTO DE HEMODIÁLISE.

Cite-se o caso de um jovem de 22 anos que, recusando fazer o tratamento dialítico teve sua interdição decretada judicialmente, a pedido da própria mãe do paciente que buscou guarida judicial para permitir aos médicos fazer o tratamento dialítico contra vontade dele. Entretanto, a ordem Judicial proibia o uso de coação e/ou sedação para que isso fosse feito. Apesar de tramitar em segredo de justiça[31], o caso ganhou notoriedade na mídia. Veja-se matéria jornalística:

O juiz Éder Jorge, da 2ª Vara Cível de Trindade, nomeou mãe de jovem, com doença renal, como sua curadora, para que adote as providências necessárias para o cumprimento das prescrições médicas e cuidados com a saúde. O filho já manifestou desejo de parar de tomar a medição e cessar com as sessões periódicas de hemodiálise devido à dor que sofre com o procedimento. O magistrado recomendou, ainda, que o rapaz passe por acompanhamento psicoterapêutico.

O magistrado determinou a interdição parcial e provisória do jovem, pelo prazo de 1 ano, unicamente no que se refere à sua autonomia para submeter-se a tratamento médico, especialmente as sessões de hemodiálise, autorizando a mãe a adotar todas providências necessárias para o cumprimento das prescrições médicas e cuidado da saúde, vedando a utilização de qualquer forma de coerção física, inclusive sedação.

A mãe do jovem ajuizou ação de interdição com pedido de antecipação de tutela alegando que seu filho, por vontade própria, abandonou o tratamento médico, parando de utilizar as medicações prescritas e faltando às sessões de hemodiálise. Ela disse que o filho apresenta hipogonadismo, em virtude de criptorquidia, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e transtorno psiquiátrico grave – transtorno de personalidade/ajustamento e Transtorno de Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

O jovem se manifestou na ação judicial, apontando que é adulto lúcido, consciente do tratamento e das suas consequências, além de se considerar inteligente, argumentando que logrou êxito na conclusão do ensino médio através do ENEM 2016, mesmo tendo passado anos no exterior. Defendeu que seu tratamento não apresenta chances reais de cura, sendo um processo árduo e penoso sem perspectivas, requerendo a improcedência da ação.

Sentença

Em fevereiro deste ano, o juiz Éder Jorge já havia decidido neste mesmo sentido. Agora, nesta nova ação, o magistrado levou em consideração os relatórios médicos, que sugeriram a imposição da interdição do jovem, uma vez que envolve ricos de vida iminente. Citou, também, as avaliações psicológicas e psiquiátricas, todas opinando, de maneira similar, que o estado do jovem o faz tomar decisões sem reflexão e com pouco investimento emocional, impedindo-o de captar e processar as situações na complexidade requerida.

Éder Jorge explicou que o desenvolvimento cognitivo e a consciência do paciente não estão comprometidos. Contudo, disse que ele não conta com a higidez necessária para corroborar uma vontade efetivamente livre e descolada de qualquer interferência com potencial afetação ao seu entendimento e determinação.

“A renúncia a tratamento doloroso e a aceitação da morte natural como consequência da doença seriam perfeitamente possíveis no nosso sistema constitucional, se não houvessem elementos psicológicos e psiquiátricos a afetarem a capacidade de entendimento e determinação de J.H.P.C.F., já que a medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido. Estar-se-ia diante da ortotanásia”, afirmou o juiz.

No caso do jovem, de acordo com o juiz, conflitos internos e perda de perspectivas contribuíram para que ele negligenciasse os aspectos emocionais da existência humana, desgostando da vida e tornando seu processo de decisão parcialmente prejudicado. Disse, ainda, que o rapaz possui capacidade cognitiva compatível com sua idade e grau de instrução, podendo alcançar o adequado desenvolvimento emocional, através do acompanhamento profissional.

“A propósito, por ocasião da audiência, tive a impressão de um rapaz muito inteligente e simpático. No entanto, até que esteja devidamente fortalecido e livre das limitações abordadas nos laudos médicos, a nomeação de curador é necessária”, concluiu Éder Jorge[32].

Conforme outra reportagem:

O juiz Éder Jorge determinou novamente a interdição parcial e provisória por um ano do jovem José Humberto Pires de Campos Filho, de 22 anos, que sofre de problemas renais, mas quer ter o direito de não passar por sessões de hemodiálise, o que pode levá-lo à morte. A sentença torna a mãe dele, a microempresária Edina Maria Alves Borges, sua curadora e responsável por zelar da questão.

Apesar de decisão, o sentimento de Edina, que mora com o filho em Trindade, na Região Metropolitana de Goiânia, é de extremo pessimismo. Em fevereiro deste ano, ela já havia obtido liminar no mesmo sentido. Porém, em ambos os casos, o magistrado ordenou que o jovem não poder ser coagido fisicamente ou até mesmo sedado para realizar o tratamento.

(...)

Após a liminar que já tinha interditado o jovem por seis meses, o juiz determinou que ele passasse por uma avaliação psicológica feita pela Junta Médica do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO). O juiz explicou ao G1 que o laudo desse estudo foi fundamental para sua decisão.

"Essa avaliação teve um peso muito grande. Por se tratar de um caso de interdição, depende muito do laudo médico. Só um especialista pode definir o nível de higidez mental dele para abdicar do tratamento", pontua.

No relatório em questão, a equipe chegou à conclusão que "o paciente possui capacidade de discernimento prejudicada". Por isso, conforme transcrição feita pelo juiz do relatório médico, o jovem "encontra-se diante de uma decisão importante que envolve risco de morte e, diante do verificado, não está em condições de tomá-la na plenitude e complexidade que a situação requer".

Questionado sobre a deliberação de não permitir coerção ou força física no cumprimento da ordem, ele se justificou. "Ela [a mãe] terá que usa outros mecanismos para cumprir a decisão. Não me vi na condição de determina coerção. A falta de discernimento dele é muito pequena. Ele é praticamente consciente na plenitude de sua vontade, exceto por alguns detalhes", avalia.

Em 20 anos de magistratura, Jorge disse que nunca analisou questão semelhante. "A gente se espanta muito, fica triste e, ao mesmo tempo, bastante pensativo sobre a convicção dele em não seguir com o tratamento", opina[33].

Como visto, a recusa terapêutica não se limita apenas a casos de pacientes testemunhas de Jeová recusando transfusão, mas a outros procedimentos médicos e/ou cirúrgicos.


5. O CONGRESSO NACIONAL E A RECUSA TERAPEUTICA

O CONGRESSO DA REPÚBLICA, também não tem permanecido inerte diante a complexidade e controvérsia do assunto.

Em 16/08/2017, foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o parecer favorável (com complementação de votos) ao PROJETO DE LEI Nº 5559/16[34] de autoria dos deputados Pepe Vargas (PT/RS), Chico D'Angelo (PT/RJ) e Henrique Fontana (PT/RS), protocolado em 14.06.2016 e que dispõe sobre os direitos dos pacientes e dá outras providências.

Segundo a relatora, Dep. Erika Kokay (PT-DF), o projeto traz para o texto da lei questões fundamentais para o cidadão que necessita de acompanhamento de saúde. Pretende assegurar a dignidade e a autonomia dos pacientes em quaisquer situações, assegurando-lhes direitos básicos. A relatora afirma ainda que a intenção é tornar tais regras mais claras e conferir-lhes o status de normas legais. Em 29/08/2017 foi recebido na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Referido PL, traz no seu bojo artigos importantes como:

Art. 14. O paciente tem direito ao consentimento informado sem coerção ou influência indevida, salvo em situações de risco de morte em que esteja inconsciente. (grifei)

Da justificativa do referido PL extrai-se:

No Brasil, embora haja leis estaduais e normas infra legais sobre os direitos dos usuários, não há nenhuma norma que atribua titularidade de direitos aos pacientes, merece ser aprofundada em estudo específico destinado a tal fim. Assim, no país, não se têm leis de direitos dos pacientes, mas sim, dos usuários, indo na contramão da maior parte dos países que possuem leis sobre direitos dos pacientes e, no plano internacional, das declarações sobre direitos dos pacientes. Desse modo, constata-se a fragilização jurídica do paciente no Brasil. Com efeito, ao se atribuir a titularidade de direitos na esfera dos cuidados em saúde ao usuário, esvaziou-se a relação profissional de saúde-paciente do ponto de vista jurídico, deixando-a à margem da regulação do Estado, no que tange aos direitos dos pacientes; pois, quanto à atuação dos profissionais, os conselhos profissionais cumprem adequadamente seu papel. Dessa forma, questões como o direito à recusa de tratamento em situações de terminalidade de vida, o direito à medicação analgésica nos cuidados paliativos; o direito ao consentimento informado e o direito a cuidados em saúde seguros, não se encontram previstos em lei nacional, e são insuficientemente disciplinados em instrumentos normativos vigentes. Ademais, em razão de inexistir um arcabouço normativo-teórico no Brasil, sobre os direitos humanos dos pacientes, há uma lacuna em termos de estruturação do Estado brasileiro quanto à institucionalização de políticas e programas públicos sobre os direitos dos pacientes. Com efeito, a ausência de lei torna quase impeditiva a existência de políticas públicas, porquanto a sua consecução implica recursos orçamentários, humanos e físicos. Sendo assim, os direitos dos pacientes ainda não fazem parte de modo sistemático da agenda do Estado brasileiro, logo, não há políticas governamentais voltadas para a concretização de tais direitos.

Portanto, conclui-se pela necessidade de se ter parâmetros legais assentados no direito do paciente quanto à aceitação e à recusa de procedimentos e tratamentos, independentemente de ser uma pessoa com idade avançada, com transtorno mental ou com deficiência intelectual, sendo a premissa o dever de qualquer autoridade estatal de respeitar as escolhas pessoais do paciente. Dessa forma, diante da falta de institucionalização da promoção e da defesa dos direitos dos pacientes e do vazio legislativo que concorre para a propagação de ações judiciais violadoras dos direitos humanos dos pacientes, advoga-se a regulamentação legal do tema no Brasil.

Ainda, a PROPOSTA DO NOVO CÓDIGO PENAL[35], na sua parte especial, traz uma mudança no teor do artigo que trata do crime de constrangimento ilegal. Na nova redação, se aprovada, médicos não poderão obrigar pessoas maiores e capazes a se submeter a tratamento de saúde, como transplante de órgãos e transfusão de sangue. Caso o paciente seja capaz de manifestar sua vontade, a conduta configurará constrangimento ilegal. A mudança privilegia a liberdade religiosa e a autonomia da vontade. O novo artigo que trata do crime de constrangimento ilegal estaria redigido assim:

Constrangimento ilegal

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

[...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida, exceto se, maior de idade e capaz, o paciente puder manifestar sua vontade de não se submeter ao tratamento, ou

II - a coação exercida para impedir suicídio. (grifei)

Entretanto, a proposta apresentada em 2012 e que hoje tramita na Câmara de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) tem sido alvo de críticas e questionamentos, estando ainda na fase de discussão da sua parte geral[36].

Assim sendo, a questão da recusa terapêutica também vem sendo matéria de debate no Poder Legislativo.


6. O MINISTERIO PÚBLICO FEDERAL E A RECUSA TERAPEUTICA

Em 2015, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot decidiu pelo arquivamento da representação proposta pela Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová questionando a Portaria n.º 92/98 da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF). A referida Portaria permite a transfusão de sangue sem autorização prévia do paciente ou de seu representante legal em caso de perigo de vida iminente. Nas palavras do Procurador-Geral:

[...] Caso configurada situação de risco iminente de morte, ou seja, de situação na qual a vida, direito indisponível constitucionalmente assegurado, está prestes a ser lesada, não mais será possível falar-se em direito à liberdade de religião e na necessidade de consentimento do cidadão para ser submetido à transfusão de sangue ou [de] derivados[37].

Mais recentemente, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) requereu através de representação, em junho de 2017, ao também então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, a propositura perante o STF de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com o objetivo de que o STF confira interpretação conforme à Constituição de 1988: a) à Resolução nº 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina, a fim de que sua aplicação somente ocorra quando se tratar de criança, adolescente, ou pessoa incapaz, por qualquer motivo, de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou qualquer outro meio idôneo; b) ao art. 146, § 3º, I, do Código Penal, no sentido de que tal dispositivo não autoriza a intervenção cirúrgica quando houver manifestação expressa em contrário do paciente adulto e capaz, permitindo somente a intervenção sem consentimento quando se tratar de criança, adolescente, ou pessoa incapaz, por qualquer motivo, de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou qualquer outro meio idôneo.

Para a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, a obrigatoriedade do procedimento só pode ser aplicada quando se tratar de criança, adolescente ou pessoa incapaz de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou outro meio idôneo. No caso de pacientes adultos e capazes, deve prevalecer a decisão do indivíduo – tendo como base os princípios constitucionais da liberdade de consciência e crença, a autonomia privada individual e os direitos à intimidade, privacidade, integridade física e psíquica, além da proibição da tortura.

A douta Procuradora Federal, na sua peça de representação, defende que:

[...] Obrigar qualquer cidadão plenamente capaz a receber transfusão de sangue contra sua vontade, ainda que em caso de iminente risco de vida, implica em violação a diversos princípios constitucionais e do direito internacional dos direitos humanos. Não há norma que obrigue o indivíduo a aceitar determinado tratamento médico, o que consiste em mera manifestação de autonomia da vontade do paciente, que inclusive pode não ter fundamento em imperativos de consciência ou religião[38].

Entretanto, até a presente data, não há notícia sobre a propositura de qualquer ação por parte da Procuradoria Geral da República perante o STF.


7. COMENTÁRIOS

Quando um paciente procura um atendimento médico, estabelece voluntariamente uma relação médico-paciente, que implica num contrato tácito de respeito mútuo à dignidade, autonomia e convicções de cada um. Os direitos e liberdades de um certamente encontrarão limites nos direitos e liberdades do outro. Ainda essa relação médico-paciente é regida por princípios e normas legais que deverão ser respeitadas por ambos, independentes de sua própria vontade ou convicção. É assim como funciona uma sociedade democrática regida por leis.

Do marco jurídico, doutrinário e jurisprudencial, acima amplamente exposto, resta claro, que a denominada RECUSA TERAPÊUTICA, que envolve todo e qualquer procedimento médico e/ou cirúrgico (e não apenas as transfusões de sangue), é assunto extremamente complexo e controverso quando envolve PACIENTE EM RISCO IMINENTE DE VIDA.

Isto porque não se discute o direito de o paciente decidir RECUSAR OU DISSENTIR (NÃO CONSENTIR) tratamento. De fato, é um direito que ele tem, mesmo que essa decisão implique em risco de morrer por não se tratar. Nenhum paciente poderia ser julgado e condenado à luz da lei penal por escolher não se submeter a tratamento médico e/ou cirúrgico, independente dos motivos que tenham lhe levado a essa decisão. Basta ver que, até mesmo a tentativa de suicídio não é considerada crime pelo atual C.P. e, por obvio, menos o suicídio. Assim, o paciente para ter livre escolha e recusa, não precisaria necessariamente externar um motivo especifico (convicção religiosa, medo, etc). Bastaria apenas, expressar que não seria do seu desejo receber este ou aquele tratamento, recusando-o. Entretanto, mister se faz afastar qualquer motivação suicida.

Não há maior controvérsia, que o médico deveria respeitar a decisão de recusa terapêutica quando o PACIENTE NÃO ESTÁ EM RISCO IMINENTE DE VIDA. Neste caso, haverá tempo hábil para buscar alternativas de tratamento e para que o paciente possa refletir adequadamente acerca de sua decisão.

Entretanto a recusa terapêutica em PACIENTE EM RISCO IMINENTE DE VIDA, na qual determinado tratamento (transfusão de sangue, hemodiálise, administração de um medicamento, etc.) representa a única chance de salvar-lhe a vida, tem que ser encarada com a máxima cautela e rigor possível.

O conceito de “risco iminente de vida” ou “risco iminente de morte” (ambas expressões são corretas e representam o perigo de perder a vida[39]) constitui a base do conceito de emergência médica conforme já definido pelo paragrafo segundo do artigo 1º da Resolução do CFM nº 1451/1995[40]:

Parágrafo Segundo- Define-se por EMERGÊNCIA a constatação médica de condições de agravo à saúde  que  impliquem  em  risco  iminente  de  vida  ou  sofrimento  intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato (griei).

O “risco de vida” representa qualquer situação ou estado que envolva perigo que ameace a manutenção das funções vitais do organismo e que consequentemente provoque a morte. Em se tratando de emergência esse risco será “iminente”, ou seja, imediato, próximo, prestes a acontecer e, portanto, requer tratamento imediato[41]. Assim, reflete o risco de dano a órgãos indispensáveis para manutenção da vida. Tais órgãos cumprem funções críticas para o organismo, sendo que sua ausência ou falta de funcionamento não é compatível com a vida. Estes órgãos vitais incluem o cérebro, o coração, os pulmões, o fígado, o pâncreas e os rins[42]. O risco iminente de vida, representa o momento crítico que impõe ao médico o dever de agir imediatamente para empregar todo os meios para salvar uma vida, desde que a doença seja reversível, cabendo ao médico, com base no seu conhecimento técnico, estabelecer quando se dá esse momento crítico. Trata-se do momento em que se o médico não aplicar determinado tratamento, podendo fazê-lo, seu paciente morrerá. Se deparar, nesse momento, com a recusa ao único tratamento possível, por escolha do seu paciente, significará que “deva se cruzar de braços” e deixa-lo morrer. Sendo assim, se caraterizado o risco iminente de vida, o médico deverá proceder a realizar o tratamento (transfusão de sangue, por exemplo), independentemente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis, recorrendo inclusive ao poder judiciário, para garantir que isso seja feito. Em que pese a, pelo disposto no art. 143, §3º, I do atual Código Penal, ser possível o uso de medidas de força para impor um tratamento em caso de risco iminente de vida, não se constituindo constrangimento ilegal, o uso de violência ou força, certamente não é de todo desejável. Assim, o médico deverá exaurir todas as formas pacificas para aplicar o tratamento. Geralmente o paciente em risco iminente de vida, em razão do seu estado de gravidade, terá sua capacidade de discernimento e volitiva prejudicada, assim como qualquer forma de resistência. Neste momento o médico poderá, sem uso de medidas violentas, proceder a realizar o tratamento. Desta feita, é de todo recomendável que as instituições de saúde estabeleçam protocolos que orientem os profissionais médicos a como proceder diante de casos de recusa terapêutica, principalmente em pacientes com risco iminente de vida. Tais protocolos deverão estar devidamente aprovados pela direção do hospital, setor jurídico, assim como pela respectiva Comissão de Ética Médica e de Bioética caso ela existir. Ainda, se as circunstancias exigirem, e havendo tempo hábil, o setor jurídico da instituição poderá recorrer ao poder judiciário para que em caráter liminar garanta a realização do tratamento.

Não basta dizer, por exemplo, que uma transfusão envolve riscos para ela ser recusada. Todo procedimento médico, desde a administração de uma simples dipirona até um transplante de fígado ou coração, envolve riscos que poderiam ser fatais (a exemplo de uma reação anafilática fatal pela ingesta de dipirona em paciente não sabidamente alérgico). Um procedimento médico sempre será feito porque os benefícios superarão os eventuais riscos e, os casos de transfusão não fogem a essa regra geral. A transfusão de sangue deverá ser sempre feita com base numa indicação e momento preciso, à luz do conhecimento científico e considerando que o benefício superará o risco.

Tampouco, o argumento da existência de medidas alternativas à transfusão tornar-se-á relevante se tais medidas não estão disponíveis ou ao alcance, mormente no sistema único de saúde (SUS). Em que pese a ser de todo desejável que o Estado disponibilize de forma universal todas as opções de tratamento alternativo para a transfusão de sangue, essa infelizmente não é a realidade da grande maioria dos hospitais do país. Há que se considerar ainda, que tais tratamentos alternativos podem não ter a eficácia almejada ou podem ser não ser uteis nas situações de risco iminente de vida, em razão de necessitar de tempo demasiado longo, diante da situação de urgência, para exercer seus efeitos.

Ainda, não pode apenas ser levada em consideração a convicção do paciente, mas também a convicção do médico. Um profissional médico cuja convicção lhe impõe a crença que a vida pertence a Deus (portanto, um bem religiosamente indisponível) e que for impedido de salvar a vida de alguém que voluntariamente se colocou aos seus cuidados, certamente carregará para sempre o ônus de ter violado seus próprios princípios e crenças.

A alegação de que a Constituição Federal garante o direito a viver, mas não uma obrigação de viver (art. 5º, caput), com base no consagrado Princípio da Dignidade Humana (art. 1º, III); e que a mesma Lei Maior, proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), para assim garantir o direito de recusa terapêutica mesmo nos casos de risco vida, também não parece suficiente para arguir alguma inconstitucionalidade dos dispositivos esculpidos nas normas infraconstitucionais ética, civil e penal, que permitiriam ao médico, nos casos de risco iminente de vida, agir contra a vontade do paciente e seus familiares.  Fosse assim, também seria o bastante para arguir a inconstitucionalidade do art. 212, §1º do Código Penal (tipifica o homicídio privilegiado)[43] e permitir a pratica da eutanásia no Brasil, considerada na sua essência, uma forma de “morte digna” (portanto, fulcrada no Princípio da Dignidade Humana). A proibição da eutanásia decorre de vedação infraconstitucional no Brasil. Como alhures já exposto, a atuação do médico contra a manifestação de recusa terapêutica do paciente ou responsável legal nos casos de risco iminente de vida, tem o devido respaldo legal no Código Civil, Código Penal, Código de Ética Médica e Resolução do Conselho Federal de Medicina. Bom lembrar que a própria Constituição Federal estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei (art. 5º, II). Trata-se do Princípio da Legalidade, pelo qual o médico pode fazer apenas o que a Lei permite (âmbito público) e aquilo que a lei não proíbe (âmbito privado) e certamente não fazer aquilo que a lei proíbe. A declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tais dispositivos em sentido abstrato é de competência do Supremos Tribunal Federal que até a presente data não se manifestou sobre o assunto. Pacificar mudança de entendimento ou interpretação de normas infraconstitucionais com base em princípios esculpidos na Carta Magna, não cabe dúvida que requer a provocação do guardião e interprete da Constituição Federal, isto é, o Supremo Tribunal Federal, como foi feito, por exemplo, para pacificar as controvérsias que aconteciam com a prática do aborto de feto anencefálico. Ocorre que sem a manifestação do Pleno do STF, toda e qualquer interpretação, por mais respeitável que seja, vinda de notáveis doutrinadores ou juristas, não trará a necessária segurança jurídica. Nem mesmo uma lei formal emanada do Poder Legislativo poderá dirimir a controvérsia sem antes o STF esgotar a discussão no seu Pleno, já que envolve conflito de direitos fundamentais e princípios constitucionais. Mister se faz então pacificar essa questão, o que sem dúvida nenhuma cabe ao STF fazer. Até então, caberá ao Poder Judiciário, analisar caso a caso, tentando sentar jurisprudência nos Tribunais. Entretanto, dada a complexidade do assunto envolvendo matéria constitucional muito provavelmente a divergência de entendimento ainda prevalecerá.

Nessa esteira jurídica, vale a pena frisar que no Parecer do hoje Ministro do STF Luís Roberto Barroso, a RECUSA TERAPÊUTICA MESMO NOS CASOS DE RISCO IMINENTE DE VIDA, como expressão de vontade do paciente, não é irrestrita, visto que exige que essa decisão expressa pelo paciente cumpra rigorosamente os critérios de ser VÁLIDA E INEQUÍVOCA, limitando exclusivamente àqueles pacientes que cumpram TODOS os CRITÉRIOS E REQUISITOS a seguir:

CRITÉRIOS:

a. VÁLIDA: exige do paciente os seguintes REQUISITOS:

a.1 Capacidade civil plena (conforme dispõe o Código Civil).

a.2 Aptidão:  condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. A aptidão, portanto, requer de fato exame médico-pericial do paciente, para avaliar as condições adequadas de discernimento, isto é, seu estado mental e psicológico, até mesmo para afastar uma motivação suicida. A verificação da motivação para a recusa resta imprescindível. Certamente, não está a se questionar a crença do paciente e suas convicções religiosas, mas a verificação de, se as mesmas guardam a devida proporcionalidade, razoabilidade e, sobretudo, não mascaram uma ideação suicida. Imagine-se, por exemplo, que a recusa terapêutica faça parte de uma penalidade imposta por uma seita religiosa aceita pelo próprio paciente. Neste caso, mesmo decorrente de uma convicção, a decisão se mostrará totalmente desproporcional e desarrazoada. Sabe-se ainda, que pacientes com ideação suicida podem perfeitamente dissimular a verdadeira intenção de tirar a própria vida usando a recusa terapêutica.

Essa avaliação médico-pericial não poderá ser feita pelo médico assistente que indicou a transfusão ou qualquer outro procedimento médico objeto da recusa, toda vez que ao médico é vedado ser perito do próprio paciente, conforme proibição expressa do art. 93 do Código de Ética Médica em vigor[44].

Veja-se que, no caso acima citado do adolescente que recusou a hemodiálise o juiz da causa para decidir liminarmente requereu avaliações psicológicas e psiquiátricas e para decidir o mérito da interdição, determinou que ele passasse por uma avaliação psicológica feita pela Junta Médica do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO).

b. INEQUÍVOCA.  Para tanto deve cumprir os seguintes REQUISITOS:

b.1 Personalíssima: exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento.

São várias as situações na prática médica, seja para fins de diagnóstico, prognóstico e tratamento, em que a pessoa, objeto da atenção, não se encontra em condições de expressar sua vontade. Este impedimento pode ser por motivo de menoridade ou por causa de transtornos mentais. Estes últimos podem ser de caráter transitório ou permanente. Dentre as causas transitórias temos os casos de estados confusionais (distúrbios metabólicos, traumas cranianos, etc.), ou de inconsciência (em estado de coma ou não) e, nos duradouros os transtornos mentais (permanentes) e os estados de coma definitivo. O profissional médico, quando perante a um paciente nesta situação, procura definir uma pessoa que seja o “responsável legal ou o representante legal” e com ela decidir pela realização ou não de um procedimento. A exigência de um “representante legal” é feita pelas normas do Código de Ética Médica[45] e até pela legislação em vigor[46]. A rigor o poder para exercer essa responsabilidade ou representação deve decorrer do disposto em lei (legal). Entretanto, raramente aquele que acompanha o paciente é de fato seu representante legal. Ou seja, detentor do poder familiar, tutor ou curador, figuras jurídicas que são reconhecidas legalmente como aquelas que assumem a responsabilidade de alguém para com o outro. Nas situações em que o paciente não pode discernir, o médico, comumente, busca apoio nas pessoas próximas ao paciente, naqueles que frequentemente acompanham sua evolução, pois ele entende que as decisões não devem ser unicamente dele, pois estas poderiam ser interpretadas como uma forma de constrangimento. No entanto, observa-se que não há nenhum código ou norma que estabeleça critérios para a escolha desta pessoa. No caso de paciente maior, não interdito, a escolha desta pessoa vai atender apenas uma exigência ética, para conferir ao profissional este apoio nas decisões. Este seria apenas um acompanhante com diferentes graus de relação com o paciente e na dependência deste vínculo com maiores ou menores condições de opinar. Meramente, opinar, e não, decidir. Pode-se inferir que esta pessoa, por ideal, seria o familiar mais próximo do paciente. Exemplificando, o cônjuge, companheiro, filhos, pais e colaterais. No entanto, surge a necessidade de estabelecer uma graduação de preferência sobre quem deve opinar. No caso de opiniões divergentes entre, por exemplo, os filhos, qual seria o mais apto a ser escolhido? O mais velho, o mais próximo, o mais esclarecido?[47]. A exceção seria nos casos de pacientes idosos (≥ 60 anos), nos quais pela lei em vigor (Lei nº 10.741/2003), não estando no domínio de suas faculdades mentais, a opção pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável passa a ser dos “familiares”, quando o idoso não tiver curador ou quando este não puder ser contatado em tempo hábil. Entretanto, a própria lei usa o termo “familiar” e não parente, sem defini-lo e sem especificar ainda qualquer rol hierárquico entre “familiares” para a tomada dessa decisão, rol que seria de todo modo necessário para resolver eventuais conflitos de opinião entre os próprios familiares. Nesta situação ainda de eventual conflito ou divergência de opinião entre familiares, o médico decidindo em consonância com um dos familiares, poderá ser alvo de processo judicial do familiar que discorde, muito mais se da decisão tomada, o paciente que tinha absoluta chance de sobreviver, vem a falecer. É o caso, por exemplo, de famílias em que nem todos os membros são testemunhas de jeová e o médico fica numa posição extremamente difícil de decidir quando se vê pressionado e até ameaçado simultaneamente para fazer e não fazer.

Em que pese a figura do responsável legal ser de extrema relevância para a tomadas de decisões médicas, a mesma não se aplicaria ao caso de recusa terapêutica de paciente, principalmente naquele com risco iminente de vida, no qual o procedimento recusado seja a única opção para lhe salva a vida. Assim, não sendo possível obter a decisão do próprio paciente, o médico deverá proceder a realizar o procedimento objeto da recusa.

b.2 Expressa: não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta no sentido de ser por escrito, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Alternativamente, o cumprimento deste requisito poderia ser suprido pelo registro em prontuário da manifestação do paciente feita diante da presença de familiares e testemunhas que assinem o referido relatório.

b.3 Atual: manifestada imediatamente antes do procedimento. Nessa esteira, diretivas antecipadas de vontade contendo recusa terapêutica, principalmente em pacientes com risco iminente de vida, que não possam ser ratificadas imediatamente antes do procedimento, não serão aceitas pelo médico. Em se tratando do bem maior, a VIDA, deve se extremar o cuidado para validar uma decisão que foi tomada pelo paciente de forma antecipada, num momento diferente de sua vida, talvez influenciado por uma série de fatores externos. Há necessariamente que se verificar se o paciente no momento em que lhe for proposto um tratamento que pode lhe salvar a vida, continua decidindo pela recusa ou ele mudou de opinião. Quando se trata do risco de perder a vida em decorrência de uma decisão antecipada, não poder-se-ia apenas presumir que o paciente continua a pensar da mesma forma. Imprescindível, portanto, que se verifique a atualidade da decisão antecipada.

b.4 Revogável. Opção que decorre naturalmente de uma decisão antecipada e que deve ser perguntada sempre ao paciente.

b.5 Genuína: a recusa precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, terá também de ser informada, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai recusar acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão.

Na esteira do entendimento do Ministro Barroso, as mudanças legislativas que tramitam no Congresso Nacional não satisfazem completamente os requisitos acima.

A proposta de novo Código Penal, propõe mudar o teor do inc. I do § 3º do art. 146 que trata do crime de constrangimento ilegal nos seguintes termos:

 Art.146:...........

[...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida, exceto se, maior de idade e capaz, o paciente puder manifestar sua vontade de não se submeter ao tratamento, ...(grifei)

Percebe-se que certamente pretende-se garantir o respeito à recusa terapêutica de paciente que possa manifestar sua vontade mesmo nas situações de risco de vida. Entretanto, de acordo com a proposta e analisada, à luz do parecer do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, a lei apenas está exigindo uma manifestação de vontade (recusa) válida (capacidade civil plena e aptidão), mas não  inequívoca (personalíssima, expressa, atual, revogável e genuína).

Com relação ao P.L. nº 5559/16 que tramita no Congresso e que dispõe sobre os direitos dos pacientes e dá outras providências, dispõe no seu artigo 14:

Art. 14. O paciente tem direito ao consentimento informado sem coerção ou influência indevida, salvo em situações de risco de morte em que esteja inconsciente. (grifei).

Poder-se-ia então interpretar que, o direto ao consentimento informado sem coerção ou influência indevida deverá ser respeitado nas situações de risco de morte em que o paciente esteja “consciente”. Dito de outra forma, o paciente poderá apenas ser coagido a receber tratamento quando em razão de estar “inconsciente” não puder expressar ou manifestar sua recusa.

A situação aqui é ainda pior, visto que a citada proposta de dispositivo legal não teve a necessária cautela de esclarecer no bojo do seu teor ou em parágrafos anexos que esse direito ao consentimento ou ao dissentimento somente poderá ser exercido através de uma manifestação de vontade válida e inequívoca.

Não poder-se-ia assumir e menos presumir que “estar consciente” garante que a manifestação de vontade cumpre os critérios e requisitos para ser válida e inequívoca. Tais critérios e requisitos devem ser claros, objetivos e estar expressos na lei ou em norma regulamentar. Só assim haverá segurança jurídica.

Destaque-se que o “estado de consciência (consciente) ou de inconsciência (inconsciente)” não são conceitos jurídicos, mas situações clínicas referentes ao “status neurológico” de um paciente ou a uma condição de saúde, cuja definição varia a depender da literatura científica consultada no campo da ciência médica.

Não resta dúvida que quando a proposta de dispositivo legal usa o termo “inconsciente” o está fazendo para se referir ao NÍVEL DE CONSCIENCIA DO PACIENTE. Ora, inserido num texto legal, o termo “inconsciente” exige um claro e inequívoco significado técnico para ser usado no campo jurídico doutrinário ou judicial.

A definição do nível de consciência do indivíduo tem na literatura científica diversas interpretações. O psicanalista Sigmund Freud, por exemplo, fala de níveis da mente do cérebro:

Freud inicia seu pensamento teórico assumindo que não há nenhuma descontinuidade na vida mental. Ele afirmou que nada ocorre ao acaso, e muito menos os processos mentais. Há uma causa para cada pensamento, para cada memória revivida, sentimento ou ação. Cada evento mental é causado pela intenção consciente ou inconsciente e é determinado pelos fatos que o precederam. Uma vez que alguns eventos mentais “parecem” ocorrer espontaneamente, Freud começou a procurar e descrever os elos ocultos que ligavam um evento consciente a outro. Com isso, Freud distinguiu três níveis classificatórios para a mente: Consciente, Inconsciente e Pré-consciente.

Segundo Freud, o consciente é somente uma pequena parte da mente, incluindo tudo do que estamos cientes num dado momento. O interesse de Freud era muito maior com relação às áreas da consciência menos expostas e exploradas, que ele denominava Pré-Consciente e Inconsciente. O nível consciente refere-se às experiências que a pessoa percebe, incluindo lembranças e ações intencionais. A consciência funciona de modo realista, de acordo com as regras do tempo e do espaço. Percebemos a consciência como nossa e identificamo-nos com ela. Parte do material que não está consciente num determinado momento pode ser facilmente trazida para a consciência; esse material é chamado pré-consciente.

Estritamente falando, o Pré-Consciente é uma parte do Inconsciente, uma parte que pode tornar-se consciente com facilidade. As porções da memória que nos são facilmente acessíveis fazem parte do Pré-Consciente. Estas podem incluir lembranças de ontem, o segundo nome, as ruas onde moramos, certas datas comemorativas, nossos alimentos prediletos, o cheiro de certos perfumes e uma grande quantidade de outras experiências passadas. O Pré-Consciente é como uma vasta área de posse das lembranças de que a consciência precisa para desempenhar suas funções.

Por fim, temos também o inconsciente onde, partindo da premissa inicial de Freud era de que há conexões entre todos os eventos mentais e quando um pensamento ou sentimento parece não estar relacionado aos pensamentos e sentimentos que o precedem, as conexões estariam no inconsciente. Uma vez que estes elos inconscientes são descobertos, a aparente descontinuidade está resolvida. “Denominamos um processo psíquico inconsciente, cuja existência somos obrigados a supor – devido a um motivo tal que inferimos a partir de seus efeitos – mas do qual nada sabemos”[48].

Por outro lado, a literatura médica aborda a questão de maneira diferente. Para definir o significado de “inconsciente”, é necessário antes entender o significado de “consciência e suas alterações ou distúrbios”.

A definição de consciência é resumida como a percepção de si mesmo e do meio ambiente[49].  John Searle inicia seu livro intitulado Consciência e Linguagem demonstrando que o termo consciência não admite definição em razão de gênero ou condições necessárias e suficientes. Para Searle, a consciência é simplesmente o conjunto de estados subjetivos de sensibilidade (sentience) ou ciência (awareness), que se iniciam quando uma pessoa acorda na parte da manhã, e que se estende ao longo do dia. Para Searle, a consciência é um fenômeno biológico e devemos conceber como parte de nossa história biológica, assim como a digestão, o crescimento, a mitose e a meiose[50].

A Profa. Dra. Regina Maria França Fernandes e o Prof. Dr. Osvaldo Massaiti Takayanagui do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, num trabalho titulado “Coma e Morte Encefálica”, destacam que a consciência possui:

a) Componente quantitativo (Nível de consciência): representa o grau de alerta ou vigília.

b) Componente qualitativo (Conteúdo de consciência): representa o conteúdo e curso do pensamento, percepção do meio interno e externo. Seria a soma de todas as funções cognitivas e afetivas do ser humano (memória, crítica, linguagem e humor) [51].

Nesse escopo, considera existirem diversas formas de estados alterados de consciência conforme se alterem um ou os dois componentes. Por exemplo no paciente em coma o indivíduo apresenta comprometimento acentuado da percepção de si e do meio ambiente (componente qualitativo de consciência), acompanhado de redução do nível de alerta ou despertar (componente quantitativo de consciência), com baixa ou nenhuma reatividade a estímulos auditivos, visuais, tácteis e dolorosos. O paciente em coma mantém-se com olhos fechados, exceto em situações particulares de comprometimento da musculatura palpebral, podendo ter abertura ocular somente a estímulos, ou durante crises epilépticas. Para a caracterização do coma, é fundamental que ambos os componentes da consciência estejam envolvidos no quadro disfuncional uma vez que o comprometimento exclusivo da percepção de si e do meio (componente qualitativo de consciência), sem alterações no nível de vigilância ou alerta (componente quantitativo de consciência), pode ocorrer em outros estados alterados de consciência, como em certos quadros demenciais e psicóticos. Ai invés, a hiper-sonolência (alteração do componente quantitativo), sem confusão mental (alteração do componente qualitativo) pode ser um distúrbio do sono, sem caracterizar coma.

Estes autores definem com ALTERAÇÕES DO COMPONENTE QUANTITATIVO (estados gradativos de comprometimento do alerta) antes de chegar no coma:

1) Sonolência: dificuldade de manutenção da vigília, ou grande propensão para o sono, com preservação da capacidade de despertar em vigência de estimulação táctil, visual, auditiva ou nociceptiva, havendo clareza no conteúdo de consciência (percepção de si e do meio) quando o indivíduo é despertado. Intoxicações por tranqüilizantes, sedativos e depressores do SNC, em estado inicial, ou alterações metabólicas diversas, com potencial de evolução para o coma, podem causar inicialmente sonolência excessiva. A característica fundamental do estado de sono fisiológico, ou das hiper-sonolências secundárias a distúrbios do sono, em oposição ao coma, é seu caráter cíclico, reversível e não progressivo.

2) Turvação da consciência: estado de comprometimento da qualidade da consciência, geralmente com distúrbios de percepção do ambiente e alteração no conteúdo e curso do pensamento, levando a alucinações ou ilusões (delírio), com ou sem disforia e descontrole emocional, que, com o tempo, combina-se com flutuações do nível de alerta e atenção, tendendo a redução da vigilância e a sonolência. A estimulação do indivíduo pode aumentar o nível de confusão mental e percepção distorcida do ambiente, com reações de agressividade ou inapropriadas para o contexto. São estados mais sugestivos de encefalopatias tóxicas e metabólicas, embora também possam ocorrer em processos infecciosos do SNC e lesões estruturais com efeito de massa em progressão.

3) Estupor ou Torpor: ocorre nos mesmos contextos clínicos da turvação de consciência, denotando um estado em que o nível de alerta é nitidamente mais comprometido em relação ao anterior, associado a confusão mental em diversos graus. Há tendência do indivíduo a retornar a um estado de sonolência aparente, quando não estimulado, com flutuações na clareza de consciência, redução progressiva da resposta aos estímulos e da compreensão do mundo interno e externo. Tal estado pode variar em intensidade e ser considerado um coma superficial, contudo, sendo possível “trazer” o paciente para um estado de alerta sob estimulação, momento em que o mesmo pode aparentar recuperação qualitativa da consciência, embora com constantes flutuações, associadas a respostas verbais inadequadas. O estupor de encefalopatias hepática e renal, bem como, de outros transtornos clínicos (pneumonia com hipóxia ou infecção urinária, em idosos), pode se associar com distúrbios do movimento (mioclono negativo ou positivo, flapping, asterix, tremores), guiando o médico para prováveis encefalopatias específicas. Isto se deve a alterações no sistema nervoso em centros de controle motor, no córtex e/ou gânglios da base. Um estupor intermitente pode ser visto no curso de quadros demenciais degenerativos, especialmente com variações circadianas (piora no período vespertino e noturno), ou intoxicações medicamentosas, durante picos sanguíneos de absorção das drogas.           

Também distinguem certos ESTADOS ALTERADOS DO COMPONENTE QUALITATIVO, comumente encontrados na evolução após o coma, ou após encefalopatias agudas, excluindo-se alterações de consciência secundárias a quadros demenciais degenerativos, ou psicopatias graves (depressão, catatonia):

1) Estado Vegetativo Persistente (EVP): também conhecido como Coma Vigil, ou Síndrome Apálica, é provocado por lesões encefálicas extensas e irreversíveis em nível supra-tentorial, envolvendo principalmente o córtex cerebral, com relativa preservação das estruturas do tronco encefálico, sendo o paciente capaz de manter funções vitais, na dependência de suporte ventilatório e nutricional, por métodos artificiais. Tais pacientes têm também relativa preservação de estruturas diencefálicas e hipotalâmicas, que previnem descontroles hidroeletrolítico e neurovegetativo maiores (como diabetes insipidus, encefalopatia perdedora de sal, descontrole térmico e cardiopressórico). Acabam por apresentar abertura ocular, geralmente, em até 30 dias da instalação do coma, porém, permanecem sem qualquer evidência de percepção de si e do ambiente, em geral, com tetraplegia espástica, podendo manter posturas crônicas de descerebração ou decorticação. Alguns exibem movimentos respiratórios espontâneos, porém, em ritmo insatisfatório para adequada ventilação, enquanto outros são capazes de se manter fora do ventilador. Exibem bocejo, olhar vago, sem fixação no ambiente, e seu eletroencefalograma (EEG) mostra acentuada depressão dos ritmos cerebrais, sendo impossível a distinção correta entre estados de vigília ou sono nestes casos. O estado vegetativo pode ser visto transitoriamente na recuperação de um coma, sendo considerado persistente, por definição, quando se mantém por mais de um mês. A despeito de citações de melhora na expressão qualitativa de consciência e recuperação do contato com o meio, em graus variáveis, em pacientes com estado vegetativo persistente, esta condição costuma ser crônica e imutável, sendo a sobrevida dependente do controle de complicações clínicas secundárias, como quadros infecciosos pulmonares.

2) Estado de Consciência Mínima: definido mais recentemente por um consenso de neurologistas, neurocirurgiões, neuropsicólogos e especialistas em reabilitação1, esta condição aplica-se a pacientes em estado vegetativo que manifestam um mínimo conteúdo de percepção de si e do meio ambiente, a despeito da qualidade de consciência muito comprometida. Tal percepção só pode ser evidenciada por expressões verbais emitidas pelo paciente sob estimulação, que podem ser palavras soltas, ou a obediência inconstante a comandos. Os estudos com ressonância magnética funcional mostram maior preservação cortical neste pacientes em relação àqueles em estado vegetativo, com sinais de ativação do córtex temporal dominante na aplicação de paradigmas de linguagem verbal falada. Esta condição pode ser crônica e persistente, assim como o estado vegetativo, ou transitória, no curso de melhora ou de piora de encefalopatias.

3) Mutismo Acinético: condição em que o paciente se mantém em total quietude, embora alerta, sem evidências demonstráveis de percepção de si e do meio ambiente, com pouca ou nenhuma movimentação espontânea, tendo, contudo, o retorno de um ciclo vigília-sono. Ocorre por lesões envolvendo o hipotálamo e o diencéfalo basal adjacente.

4) Síndrome do Encarceramento ou Locked-In Syndrome: é um estado de ampla de-eferentação, devido a lesões maciças na base da ponte, por onde trafegam os tratos motores piramidal e córtico-nuclear, que se destinam, respectivamente, aos neurônios motores espinhais e aos núcleos motores dos nervos cranianos. Sendo lesão pontina, ocorre em nível abaixo do nervo oculomotor, cujas funções mantêm-se preservadas. Tal comprometimento situa-se mais anteriormente na estrutura pontina, preservando os tratos reticulares e a substância cinzenta periarquedutal, e resultando em preservação da consciência. O único repertório motor possível para tais pacientes, embora conscientes, é a movimentação ocular vertical e a elevação da pálpebra superior, que são mediadas pelo III nervo craniano, de origem mesencefálica. Os movimentos oculares horizontais e do músculo oblíquo superior estão prejudicados pelo acometimento das eferências para os nervos abducente e troclear. Tais pacientes têm preservação do ciclo vigília-sono e EEG normal, ou quase normal, com ritmo alfa reativo, sendo mandatória a distinção entre este estado e o coma. A percepção do ambiente pode ser manifesta por uma comunicação desenvolvida com o examinador, em código que utiliza apenas movimentos de abertura ocular (músculo elevador da pálpebra, controlado pelo oculomotor) e movimentos oculares verticais. O médico nesta situação deve falar à beira do leito “ao” paciente e, não, “sobre” o paciente. Raramente, um estado semelhante à síndrome do encarceramento pode ser visto em pacientes com neuropatia motora subaguda, como a Síndrome de Guillain-Barré.

Como visto, existem várias gradações de comprometimento da consciência (inconsciência parcial) que podem preceder a instalação do estado de coma (inconsciência total), cuja forma insidiosa ou abrupta direciona o médico para o mecanismo fisiopatológico e as prováveis etiologias envolvidas na sua gênese. Estas gradações podem envolver mais ou menos os componentes qualitativo ou quantitativo da consciência, até que os dois elementos se associem em intensidade suficiente para determinar o coma.

Assim, certas encefalopatias podem provocar inicialmente um estado de euforia, ou de confusão mental e delírio, sem que haja alteração no nível de alerta ou despertar do indivíduo, com posterior surgimento de sonolência, torpor e, finalmente, o coma, caso um tratamento eficaz não seja instituído, interrompendo a sequência de aprofundamento do nível de vigilância.

Por outro lado, em alguns contextos, o indivíduo pode manifestar dificuldade para se manter alerta, num estado de sonolência patológica, sendo, contudo, capaz de responder adequadamente a estímulos e a manifestar noção clara de si e do meio, quando desperto sob estimulação. Isto ocorre principalmente em afecções específicas, como síndromes de hiper-sonolência patológica, ou em estados iniciais de encefalopatias, sem acometimento primário do córtex cerebral, que é mais envolvido na elaboração do componente qualitativo da consciência.


8. CONCLUSÃO

Do anteriormente exposto pode se concluir que diante da RECUSA TERAPÊUTICA:

1. Se não houver risco iminente de vida, o médico respeitará a decisão do paciente ou do seu responsável legal.

2. Se houver risco iminente de vida, o médico deverá realizar o tratamento que se apresenta como a única forma de evitar a morte do paciente, independentemente da existência de recusa do paciente ou do seu responsável legal.

3. As decisões do médico deverão estar embasadas em protocolos institucionais devidamente aprovados pela direção do hospital, setor jurídico, assim como pela respectiva Comissão de Ética Médica e de Bioética caso ela existir. Ainda, se as circunstancias exigirem, e havendo tempo hábil, o setor jurídico da instituição poderá procurar o amparo do poder judiciário à decisão a ser tomada.

4. O Supremo Tribunal Federal (STF) deve ser provocado para pacificar as divergências de entendimento, interpretação e constitucionalidade das normas de Código Civil, Penal e Ético nas quais o médico fundamenta seu direito de agir contra a recusa do paciente nos casos de risco iminente de vida.

5. Até que o Supremo Tribunal Federal seja provocado a se manifestar, os Tribunais precisam ter extremo rigor e cautela caso considerem validar a recusa terapêutica de pacientes em risco iminente de vida, exigindo o cumprimento de critérios e requisitos rigorosos como aqueles elencados no Parecer no excelentíssimo Ministro do STF Luís Roberto Barroso.


Notas

[1] https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=27087:2017-08-03-20-17-39&catid=3

[2] C.F. Art. 5º, inc. II.

[3] MIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005

[4] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 9 ed. São Paulo: Método, 2006.

[5] CÓDIGO CIVIL COMENTADO (3ª. Ed. Revisada e ampliada, 2005)

[6] RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL DO MÉDICO – 2003 – LZN Editora – Campinas – SP)

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Saraiva. 2013. V. I.

[8] BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade de Recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Revista Trimestral de Direito Civil. v. 42. p. 49-91. Rio de Janeiro: Editora Padma, abril/junho 2010. Acesso em: https://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf

[9] Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984):

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[10] http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp

[11] RESOLUÇÃO CFM Nº 1.021/80. Regulamenta a conduta médica em casos de recusa de transfusão de sangue por parte de pacientes Testemunhas de jeová.

[12] https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/RJ/1999/136

[13] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 5ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp.20,24.

[14] Ob. cit. P. 273

[15] Ob. cit. P. 259

[16] STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil - vol. 3. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 214.

[17] https://jus.com.br/artigos/61419/direito-a-vida-e-direito-a-liberdade-de-crenca-aplicado-ao-caso-das-testemunhas-de-jeova-caso-de-colisao-de-direitos

[18] NELSON NERY JUNIOR, Parecer Jurídico “Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de direitos fundamentais”, p. 51, de 22 de setembro de 2009, São Paulo. 

[19] Ob. Cit. p. 15 e 16

[20] Ob. Cit. p. 16

[21] Ob. Cit. p. 19

[22] Ob. Cit. p. 24

[23] Ob. Cit. p. 17

[24] C.P. Art. 146, INC. I, §3º: não configura tal crime a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou do seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida ou a coação exercida para impedir suicídio

[25] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Parecer Jurídico Autonomia do paciente e Direito de Escolha de Tratamento médico sem transfusão de sangue mediante o novo código de ética médica- resolução CFM 1931/09. São Paulo 8 de Fevereiro de 2010.

[26] https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2014/12

[27] Parecer 01/2010 – LRB. http://www.rj.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=3d128ab5-88c9-49b0-b547-25c05cf5d299&groupId=132971

[28] BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade de Recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Revista Trimestral de Direito Civil. v. 42. p. 49-91. Rio de Janeiro: Editora Padma, abril/junho 2010. Acesso em: https://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf

[29] http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/v-jornada-direito-civil. Deve-se a V Jornada de Direito Civil à decisão do preclaro Ministro Ari Pargendler, Presidente do STJ, a que se somou o entusiasmo, o empenho e a competência do Ministro João Otávio de Noronha, Corregedor-Geral da Justiça Federal, que não mediram esforços para retomar o projeto de reunir, sob os auspícios do Conselho da Justiça Federal, nos dias 9, 10 e 11 de novembro de 2011, em Brasília, o mundo jurídico nacional, para discutir temas de Direito Civil, e homenagear o novo Código Civil no décimo ano de sua vigência. A V Jornada contou com a participação de 183 juristas, oriundos de todos os Estados brasileiros, entre professores especialmente convidados, magistrados federais e estaduais, membros do Ministério Público, advogados, defensores públicos, procuradores de entidades públicas, que apresentaram 326 proposições para a elaboração de enunciados interpretativos do texto do Código Civil.

[30] https://dellacellasouzaadvogados.jusbrasil.com.br/noticias/133992086/e-possivel-transfusao-de-sangue-em-testemunha-de-jeova-decide-o-stj

[31] http://www.tjgo.jus.br/index.php/consulta-processual:

 processo nº 201700242266 (24226-91.2017.8.09.0149). Adv. George Alexander Neri de Carvalho (OAB-GO nº 31303).

[32] https://saudejur.com.br/tjgo-determina-interdicao-de-paciente-que-nao-deseja-continuar-tratamento-medico/

[33] http://www.baltashow.com.br/artigo/juiz-volta-a-interditar-jovem-com-problema-renal-que-nao-quer-fazer-sessoes-de-hemodialise-em-goias

[34] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2087978

[35] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404

[36] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/08/08/professores-criticam-proposta-de-reforma-de-codigo-penal-em-tramitacao-no-senado

[37] Trata-se a representação do processo administrativo que tramitou na Procuradoria-Geral da República sob o n.º 1.00.000.014875/2009-80, arquivada em 23 de março de 2015

[38] http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2017/junho/pfdc-quer-adequacao-de-resolucao-cfm-que-trata-da-obrigatoriedade-do-paciente-em-receber-transfusao-sanguinea/

[39] https://comoescreve.com.br/risco-de-vida-ou-risco-de-morte/

[40] Estabelece estruturas para prestar atendimento nas situações de urgência-emergência, nos Pronto Socorros Públicos e Privados.

[41] Armelle Giglio-Jacquemot. Definições de urgência e emergência critérios e limitações. In: Urgências e emergências em saúde: perspectivas de profissionais e usuários [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. Antropologia e Saúde collection, pp. 15-26. ISBN 978-85-7541-378-4.

[42] https://conceitos.com/orgaos-vitais/

[43] Homicídio simples. Art. 121. Matar alguém: § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

[44] CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: é vedado ao médico: Art. 93. Ser perito ou auditor do próprio paciente, de pessoa de sua família ou de qualquer outra com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho ou de empresa em que atue ou tenha atuado.

[45] CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: é vedado ao médico:

Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal.

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados. §1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.

Art. 39 Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal.

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

Art. 44. Deixar de esclarecer o doador, o receptor ou seus representantes legais sobre os riscos decorrentes de exames, intervenções cirúrgicas e outros procedimentos nos casos de transplantes de órgãos.

Art. 45. Retirar órgão de doador vivo quando este for juridicamente incapaz, mesmo se houver autorização de seu representante legal, exceto nos casos permitidos e regulamentados em lei.

Art. 54. Deixar de fornecer a outro médico informações sobre o quadro clínico de paciente, desde que autorizado por este ou por seu representante legal.

Art. 91. Deixar de atestar atos executados no exercício profissional, quando solicitado pelo paciente ou por seu representante legal.

[46] Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001 (modalidades de internação): parágrafo 2: “o término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal (grifo nosso), ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.”.

[47]http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010442302008000300024&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

[48] https://sigifreud.wordpress.com/2013/11/12/a-mente-segundo-a-teoria-de-sigmund-freud-iii-consciente-pre-consciente-e-inconsciente/

[49] http://www.camem.uem.br/laec/ComaDrDiogo.pdf

[50]file:///F:/MEDICINA/MORTE%20ENCEF%C3%81LICA%20E%20DOA%C3%87%C3%83O%20DE%20%C3%93RG%C3%83OS/thiagoeleonardo.pdf

[51] https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=1266554


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBA, Diana Fontes de; RODAS, Alejandro Enrique Barba. A controvérsia da recusa terapêutica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5565, 26 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69251. Acesso em: 26 abr. 2024.