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A precária prestação de serviços públicos de transporte de passageiros em Salvador-BA e o dever do poder público em garantir o cumprimento do CDC

A precária prestação de serviços públicos de transporte de passageiros em Salvador-BA e o dever do poder público em garantir o cumprimento do CDC

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O transporte público de Salvador-BA é marcado por problemas crônicos. Esses fatores causam um transporte deficiente, sem locais para receber seus passageiros e sem espaço para transportá-los com qualidade e segurança.

RESUMO: O objeto de estudo do presente trabalho é o transporte público em Salvador-BA e seus graves problemas. Através de pesquisas com as empresas e com a população, se identificou que a frota de ônibus reduzida e sem estrutura para o transporte organizado gerou para os soteropolitanos a realização de um deslocamento urbano caótico. Em qualquer contrato público, é obrigatório se buscar os padrões que atendam a qualidade exigida, porque além de serem meios para o exercício de muitos direitos fundamentais, são aspectos preconizados pelos princípios que regem a Administração Pública. Além disto, estes serviços são remunerados e estão sobre a tutela do Código de Defesa do Consumidor, dando aos usuários proteções consumeristas. Com fulcro nesses argumentos, compreende-se que a lesão é configurada tanto pela omissão do Poder Público, frente as suas obrigações legais e constitucionais, como também as ações das empresas concessionárias. Como suporte a essa investigação, foram obtidos dados de relatórios de usuários, a percepção de cada usuário, o posicionamento das empresas concessionárias, as ações da prefeitura e as alternativas para alcançar um transporte público com mais qualidade e eficiência, de modo que a Administração Pública deve fiscalizar as empresas, para que estas obedeçam aos padrões de qualidade exigidos pelo CDC, não esperando só a atuação do Ministério Público, mas a própria Administração punir as empresas irregulares com as sanções previstas nos contratos firmados de modo a mudar esta realidade.

Palavras-chave: Transporte Público. Serviços Públicos. Código de Defesa do Consumidor.

ABSTRACT: The object of study is public transport in Salvador-Ba and its serious problems. Through researches with the companies and the population, it was identified that the reduced fleet and without structure for the organized transport lead to the soteropolitanos to a chaotic urban displacement. Any public contract is mandatory if it seeks the standards that meet the required quality, because in addition to being the means to exercise many fundamental rights are aspects advocated by the principles of Public Administration. In addition, these services are remunerated and are under the protection of the CDC giving users consumer protection. With the basis of these arguments, it is understood that the injury is configured both by the omission of the public power in front of its legal and constitutional obligations, as well as the actions of the concessionary companies. In support of this investigation, data were obtained from user reports, perception of each user, the positioning of the concessionaire companies, the actions of the city hall and the alternatives to reach a public transport with more quality and efficiency, so that the Public Administration must supervise the companies to obey the standards of quality demanded by the CDC, not expecting only the performance of the Public Prosecution Service, but the Administration itself punish irregular companies with the sanctions provided in the contracts signed in order to change this reality.

Keywords: Public transportation. Public services. Code of Consumer Protection.


INTRODUÇÃO:

Os serviços públicos são essenciais para o funcionamento da sociedade brasileira e o seu devido controle é vital para a proteção dos consumidores. Este artigo não se limita a discutir sobre a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor - CDC aos serviços públicos que recebem alguma remuneração, visto que essa polêmica já foi sanada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ, conforme trecho do REsp 1.062.975/RS transcrito a seguir: "na relação estabelecida entre o Poder concedente e a concessionária vige a normatização administrativa e na relação entre a concessionária e o usuário, o direito consumerista." Sendo possível, portanto,  a aplicação do código consumerista no transporte público.

A Lei 8.088/90 determina que deve se buscar os padrões de qualidade estabelecidos pelo Código Consumerista, porque além de serem meios para o exercício de muitos direitos sociais, são aspectos preconizados pelos princípios que controlam a Administração Pública.

A grande obscuridade, entretanto, reside no fato que, com tantas proteções jurídicas e políticas dadas ao cidadão, além de recursos para que reivindiquem a devida mudança, se continua nesse crônico problema.

Com fulcro nesses argumentos, compreende-se que a lesão aos direitos dos consumidores soteropolitanos é configurada tanto pela omissão do poder público frente as suas obrigações legais e constitucionais, como também as ações das empresas concessionárias. O Poder Público deve intervir haja vista a proteção aos consumidores e o dever de intervenção quando ocorre o desrespeito a determinados institutos, como apresentaremos a seguir.


2 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR  

Iniciando a análise pelas leis, vamos nos atentar para a Lei nº 8.088/90[3], que rege as relações de consumo, a qual também incide sobre os serviços públicos. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi criado para regulamentar as relações estabelecidas entre o vínculo estabelecido entre fornecedor e o que consome, ligados por um objeto que será necessariamente, um serviço ou um produto.[4]

Esses três requisitos devem coexistir, de modo que, na ausência de um deles, não se aplicaria esse código, e sim, as normas dispostas no Código Civil e legislações específicas. O Poder Público pode ser fornecedor e, normalmente, presta os serviços por meio de concessão, autorização, permissão. Quem paga tarifa ou preço público é consumidor, também existindo taxas que dizem respeito aos serviços públicos essenciais e podem suscitar a aplicação do CDC.

Para ser consumidor, é preciso ter destinação final, não pode ser o agente intermediário. A destinação final tem que ser fática e econômica.  A Lei nº 8.088/90 foi um grande marco na história da defesa do consumidor. A legislação prevê também padrões de conduta, prazos e penalidades em caso de desrespeito à regra. O CDC assegura outros direitos básicos, como a proteção à vida; à saúde; à segurança contra riscos provocados no fornecimento de produtos e serviços; proteção contra a publicidade enganosa e abusiva; e prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais. As disposições são claras quanto ao descumprimento das regras consumeristas, especialmente, porque se coadunam com as exigências de qualidade da Lei de Licitações[5], sendo o panorama atual mais grave ainda.

Hely Lopes Meirelles[6], assim escreve: O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) considera como direito básico a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (art. 6º) e, em complemento, obriga o Poder Público ou os seus delegados a fornecer serviços adequados...dispondo sobre os meios para o cumprimento daquelas obrigações e a reparação dos danos (art. 22 e parágrafo único).

Os serviços públicos são de responsabilidade do Poder Público. Dispõe o art. 175: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviço públicos” (art. 21, XII, e art. 24 175 CF/88).

O repasse das atividades dá-se, em geral, através de contrato administrativo, onde estão presentes as chamadas cláusulas exorbitantes, que garantem à Administração Pública a manutenção de sua prevalência sobre o particular, podendo influir, unilateralmente, na execução do serviço, se o mesmo não estiver atendendo ao interesse público. Assim, pode, exemplificando, fiscalizar a execução, ou rescindir o contrato (art. 58, II e III, Lei nº 8.666/93). Resta claro, então, que cabe à Administração Pública a regulamentação e o controle dos serviços públicos, sejam eles prestados por ela diretamente, sejam executados por terceiros, com vistas a cumprir os princípios que regem tal tema, em especial os da eficiência, continuidade, regularidade e segurança.

Mas não é só a ela que cabe essa tarefa. Além desse controle administrativo, sujeitam-se também aos controles judicial (art. 5º, XXXV, CF/88) e legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 71 e 75, CF/88). O controle legislativo pode dar-se, entre outras formas, através de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), pedido de informação, convocação de autoridades e fiscalização contábil, financeira e orçamentária.

Por sua vez, perante o Judiciário, o controle é comumente feito através de mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, habeas data e mandado de injunção. Quanto aos serviços públicos sujeitos às regras de proteção ao consumidor, trazidas pela Lei nº 8.078/90, essa não é uma questão pacificada, não existe uma unidade de entendimento por parte da doutrina, conforme explica Sergio Cavalieri[7]:uma corrente defende a aplicação do CDC somente aos serviços remunerados por taxa (preço público)....Uma segunda corrente, menos ortodoxa, da qual são adeptos Cláudia Lima Marques e Adalberto Pasqualotto, entende que o CDC é aplicável indistintamente, a todos os serviços públicos, remunerados por tributo ou tarifa. (CAVALIERI, 2008, p. 68).

Como visto anteriormente, a doutrina consumerista diverge acerca de quando ou quais serviços estão sujeitos às regras do código consumerista, uma corrente defendendo piamente que somente os serviços públicos remunerados sofreriam a incidência do diploma, já a outra corrente defende que o CDC deva ser aplicado a todos os serviços públicos.

Durante algum tempo, o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça esteve dividido acerca do tema. A 2ª turma do referido Tribunal, no julgamento do Recurso Especial 793422 (03/09/2006), decidiu o seguinte: O CDC somente se aplica aos serviços públicos remunerados por meio de tarifa ou preço público... (STJ, 2006, s/p.)

Desse modo, como o transporte público é acessado através do pagamento de tarifas ou preços públicos, sofrem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, devendo ser controlado tanto pelas normas consumeristas como pelos contratos administrativos. De acordo com o artigo 54 da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), os contratos administrativos são regidos por suas cláusulas, pelos preceitos de direito público e, supletivamente, pela teoria geral dos contratos e pelas disposições de direito privado.

Os efeitos do descumprimento dos contratos administrativos diferem-se, em muitos aspectos, do descumprimento dos contratos privados. De fato, se no âmbito dos contratos privados o não cumprimento das obrigações avençadas, seja ele voluntário ou não, com ou sem culpa, conduz à resolução do pacto, o descumprimento de obrigações no âmbito dos contratos administrativos pode ensejar, além da rescisão da avença, a aplicação de penalidades pelo ente público contratante. 

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região - TRF1 também já decidiu que a Administração deve ser fiel ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório (AC 199934000002288). O artigo 78 da Lei nº 8.666/93 contém um rol exemplificativo dos motivos que podem levar a Administração a rescindir unilateralmente os contratos administrativos. No entanto, como dito linhas acima, a rescisão do pacto não é a única consequência para o descumprimento contratual perpetrado pelo particular, que pode ensejar a aplicação das sanções previstas no art. 86 da lei de Licitações.  Conforme Jessé Torres Pereira Júnior[8] (2002) explicou ‘’Logo, se a suspensão ocorre perante a Administração, a empresa penalizada somente estará impedida de licitar e contratar perante o órgão que lhe aplicou a suspensão. Se a penalidade fosse a declaração de inidoneidade, de que cuida o art. 87, IV, os efeitos seriam mais amplos, porque devem ser observados perante a Administração Pública.’’(BRASIL, 1993, s/p.)

Do mesmo modo, os agentes públicos devem ter seus atos contratuais controlados pelo Poder Judiciário para que respeitem a legalidade e não cometam excessos haja vista que Celso Antônio Bandeira de Melo[9] explica que ‘’Assim, os atos administrativos praticados sem a tempestiva e suficiente motivação são ilegítimos e invalidáveis pelo Poder Judiciário toda vez que sua fundamentação tardia, apresentada apenas depois de impugnados em juízo, não possa oferecer segurança...’’ A aplicação de penalidades não se restringe às hipóteses de inexecução total ou parcial do contrato, podendo abarcar também todo e qualquer ilícito que venha a ser perpetrado durante o procedimento licitatório e a execução do contrato.


3 A PRECARIEDADE NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS: PRINCIPAIS PROBLEMAS

O transporte público de Salvador-BA é marcado por problemas crônicos, como a quantidade insuficiente de veículos e linhas, além da carência de organização no sistema de transporte. Esses fatores causam um transporte deficiente, sem locais para receber seus passageiros e sem espaço para transportá-los com qualidade e segurança.

3.1 AUSÊNCIA DE PONTUALIDADE E DE URBANIDADE

Os serviços de transportes públicos apresentam evidentes irregularidades, como superlotação e falta de pontualidade. Diversos pontos de ônibus não possuem a mínima estrutura para acomodar dignamente seus passageiros e não oferece programação de horário dos veículos de modo a não terem previsões exatas que viabilize aos clientes se organizarem para seus compromissos, prejudicando toda a população. Os ônibus não acomodam com qualidade os cidadãos e nem oferece segurança para os tais. Dezenas de pessoas são transportadas espalhadas pelo veículo sem suporte de apoio e sem proteção para frenagens bruscas.

Confrontando com os artigos 4º, II (melhoria dos serviços públicos como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo), 6º, X (prestação adequada dos serviços públicos como direito dos consumidores), e 22 (obrigação do Estado e de seus delegatórios pela prestação de serviços adequados), e com a Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos), em seu art. 7º, caput, faz remissão genérica à aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos. Logo, se elas estão irregulares perante as disposições consumeristas e legais, deveriam estar sendo reprimidas pelos órgãos de fiscalização e o poder judiciário.

É preciso reivindicar para os gestores públicos aplicarem o Código de Defesa do Consumidor, haja vista os deveres e responsabilidades do fornecedor dos serviços são expressos na Lei Consumerista e devem ser respeitados.

3.2 QUANTIDADES INSUFICIENTE DE VEÍCULOS E DE LINHAS

O Brasil apresenta uma grande concentração populacional e uma formação urbano-arquitetônica deficiente, o que permite inferir a racional e estrita necessidade de ser proporcionado uma frota compatível com a quantidade de pessoas dos municípios pelas empresas que assumiram os contratos licitatórios.

A realidade, entretanto, é diferente. As metrópoles brasileiras são marcadas por frotas insuficientes, frente a quantidade de pessoas e de acordo com os padrões de qualidade do CDC e da Lei de Licitação. É incabível transportar dignamente 200 pessoas em um veículo coletivo, o que leva a questionar e reivindicar a correção exigida pelo Poder Público.

A licitação é feita sobre a condição de serem assumidas e mantidas as cláusulas contratuais, sob pena de resolução contratual. Esse contrato viabilizará o exercício do direito fundamental ao transporte e possibilitará o funcionamento e mobilidade urbana. É inconcebível permitir que o inadimplemento em um acordo dessa natureza entre o particular e o Poder Público que aborde um direito tão imprescindível se permita que a condução de um número compatível de frotas seja desrespeitada.


4 A NECESSÁRIA EFETIVIDADE DA INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO

O Poder Público intervém de muitas maneiras na sociedade. Entretanto, raras são as ações que melhoram efetivamente a realidade do cidadão no transporte público. Os órgãos competentes recebem as reclamações, registram, apresentam para a mídia. O Ministério Público ingressa com ação civil pública, mas os efeitos dessas ações não são substanciais se a Administração Pública não colaborar e fiscalizar conjuntamente. É preciso que a contratante, amparada pelos princípios da Administração Pública, se posicione como defensora do interesse público e não alheia aos problemas locais.

4.1 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO ESTATAL NO CDC (ART. 4o)

A Política Nacional das Relações de Consumo conferiu poderes ao Estado para desenvolver e promover padrões de qualidade e de segurança adequados, garantindo a durabilidade e desempenho do produto ou serviço. Uma relação contratual no sistema tradicional poderia causar ao consumidor frustações e prejuízos, posto que o fornecedor é quem elabora o contrato unilateralmente, podendo este redigi-lo da forma mais benéfica à ele.

As normas do Código de Defesa do Consumidor têm o condão de proteger e garantir essa confiança do consumidor no vínculo contratual, principalmente na execução contratual, se este atingiu a destinação pretendida pelo consumidor, bem como a segurança do produto ou serviço. Conforme se observa no artigo 4º do CDC:

A Política Nacional das Relações de Consumo  preza pelo  respeito à  dignidade, saúde e segurança, além de buscar a  transparência e harmonia das relações de consumo conforme diz a lei Lei 8.088/90 nos incisos transcritos:’’ incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo; racionalização e melhoria dos serviços públicos’’

O artigo 4º da Lei 8.088/90 preza pela proteção efetiva do consumidor, de modo a viabilizar o melhor serviço possível e buscar a constante racionalização e melhoria do transporte público.

4.2 DA NECESSÁRIA ATUAÇÃO PROATIVA DO PODER PÚBLICO.

A aplicação do CDC não é absoluta, tendo em vista que essas atividades públicas não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação de manutenção de um sistema coletivo. Essa estrutura ratifica o Estado Democrático de Direito, que preza pela dignidade da pessoa humana, através da atividade do Estado em prol do cidadão e do dirigismo estatal.

Mais importante que a denúncia e a instauração do inquérito civil pelo Ministério Público do Estado, são as reais correções das irregularidades. Infelizmente, pouco se percebe a aplicação do CDC nas concessionárias, permissionárias e autorizadas. Além dessa omissão jurídica e legislativa, é notável que o Poder público não se manifesta de maneira adequada haja vista as contínuas e evidentes ilegalidades manifestas.

É preciso tornar eficaz e eficiente a denúncia, a investigação, a devida responsabilização e a real mudança. Mudança essa que deve ser divulgada pelas empresas envolvidas, órgãos fiscais e o cidadão. Coaduna-se com essa postura, o estimado jurista, Bruno Miragem, através do recorte abaixo da entrevista feita pelo O Globo[10]:’’Mas, qual é caminho para o brasileiro se tornar um cidadão-consumidor? Segundo os especialistas, dois pontos são fundamentais: informação e mobilização. ‘’

É evidente que existem limitações estruturais na sociedade brasileira. É uma nação emergente com graves problemas sociais, refletidos pela desigualdade social e concentração de renda. É um país que sofreu uma urbanização desordenada, marcada por fenômenos como a “macrocefalia urbana” e “favelização”, o que dificulta mais ainda a prestação de serviços e transportes públicos como ocorrem em países desenvolvidos os quais tem uma fiscalização cidadã de maneira consciente e eficaz.

O grande problema não reside na ausência de realização dos serviços e transportes públicos. Todavia, na forma em que são prestados esses serviços, deve se atender aos critérios de qualidade e eficiência, respeitar as regras e serem submetidas às penalidades do CDC como se ocorresse com uma empresa privada. Esse panorama nacional, entretanto, não exime as empresas comprometidas com o Poder público de atender aos indispensáveis critérios de qualidade assumidos.

Mesmo nos contextos mais complexos, deve a empresa se adequar à situação e servir da melhor maneira. A Teoria do Risco já doutrinava essas possibilidades, o que se torna um ônus que deve ser assumido pela empresa. Existe a responsabilidade do Estado e a responsabilidade da empresa. O Estado falha na fiscalização e exigência das empresas, já as empresas falham na execução do que foi estabelecido pela licitação e exigido pelo CDC.

Observando-se os seguintes julgados, percebe-se a jurisprudência tendenciosa na aplicação do CDC nesses julgados[11]:

RECURSO ESPECIAL N° 263229/SP (2000/0058972-1) EMENTA: ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2o E 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

1. Há relação de consumo no fornecimento de água por entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados. 2. A empresa utiliza o produto como consumidora final. 3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor. 4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. 5. Recurso provido.

Conforme pronunciamento do STJ no Recurso Especial acima, existe uma relação de consumo nos serviços públicos no qual existe tarifação haja vista os elementos apresentados no Código Consumerista no artigo 2º. Desse mesmo modo, deve ocorrer o mesmo com o transporte público, levando a aplicação dos direitos do consumidor, adotando os padrões de qualidade impostos aos serviços fornecidos pelas empresas concessionárias.

1. Embora a fatura de abastecimento de água esteja em nome de terceiro (avô da autora e já falecido), comprovando a parte autora que residia no imóvel desde a sua infância, incluindo a demanda a discussão a respeito da suspensão do fornecimento de água por débito pretérito, na qualidade de usuária do serviço essencial, possui a autora legitimidade ativa para postular o restabelecimento e a manutenção do serviço público essencial, mediante o adimplemento das faturas de consumo regulares mensais e atuais.

2.Independentemente da responsabilidade pelo consumo de água não pago, assiste ao consumidor o direito de não ter interrompido o fornecimento do serviço público essencial, pois se trata de débito antigo e consolidado, cumprindo à concessionária buscar a cobrança por intermédio das vias ordinárias.

(Agravo de Instrumento Nº 70031257546, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 21/07/2009.)

Os serviços públicos têm aplicação contínua dos direitos consumeristas, conforme jurisprudência colacionada acima. É preciso seguir o padrão de proteção ao consumidor nas relações de consumo, de modo a fiscalizar as empresas que infringem tais proteções e puni-las com parâmetros previstos na Lei de Licitações e no Código de Defesa do Consumidor.

4.3 A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO

 Há uma polêmica, também, acerca do problema federativo na aplicação genérica do CDC aos casos em que envolver um Estado ou Município. Nessa hipótese, estar-se-ia diante de uma lei da União, se sobrepondo as leis dos outros entes federativos, as quais dispõem sobre os seus próprios serviços públicos. Essa discussão, entretanto, não deve servir de legitimação para a inércia estatal, haja vista que o artigo 34, nos incisos VI e VII, dispõe expressamente que é permitido a intervenção da União nos outros entes, se houver a desobediência à lei federal ou a inobservância dos direitos da pessoa humana.

Entende-se que se nos casos citados é permitida uma intervenção mais direta da União, seria legítima aplicação da lei federal na má prestação de serviços públicos, visto que são direitos constitucionais expressos no artigo 6º, na CF/1988, como o transporte e a segurança. Além de o CDC ser uma lei Federal, com vigência em todo o território nacional. 

Por outro lado, a repartição vertical, de acordo com o art. 24 da CR/88, estabelece a competência legislativa concorrente, na qual um ente estabelecerá as normas gerais e o outro as normas suplementares. Eventuais conflitos entre essas normas são resolvidos de acordo com a competência do ente federado para o tratamento da matéria, e não pelo critério hierárquico. Contudo, ressalte-se que, não obstante não haver hierarquia entre as leis de cada um dos entes federativos, há relação hierárquica, respectivamente, entre a Constituição Federal, a Constituição do Estado, equiparada a ela, a Lei Orgânica do Distrito Federal e a Lei Orgânica do Município.

Os direitos dos consumidores são amparados pela CF/88, especialmente no que tange a eficiência, que é reflexo de normas constitucionais, como o princípio da eficiência, contido no artigo 37, da Lei Maior.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os serviços públicos são regidos por um regime jurídico próprio. Porém, já é pacificado na jurisprudência do STJ a aplicação do CDC nesses serviços quando remunerados. Embora não seja o principal córtex epistemológico desse artigo, o seu objeto investigativo foi amparado no argumento de que esses serviços devem ocorrer respeitando os critérios consumeristas, além de deverem ser fiscalizados e corrigidos com base nos parâmetros estabelecidos na Lei nº 8.088/90.

O artigo 22 do estatuto consumerista disciplina que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. Bem como dispõe o artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Dessa forma, deve a Administração Pública garantir a devida execução desses serviços sob pena de sofrer responsabilização pelos erros.

Por fim, o Código de Defesa do Consumidor não se deteve tão somente a estabelecer critérios de qualidade, avançando para prever para o consumidor a prestação de um serviço adequado e eficaz e dita que os controles de natureza legal, administrativa e judicial seriam, indubitavelmente, relevantes para a proteção dos contratantes mais frágeis, especialmente, os consumidores. O transporte público em Salvador - BA afeta a todos de modo direto e indireto e deve ser tratado com responsabilidade política, de maneira que os agentes públicos fiscalizem este serviço e não permitam que os cidadãos tenham seu direito fundamental ao transporte suprimido.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 793.422. Segunda Turma. Data do julgamento: 03 de agosto de 2006. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurispruden cia/7147219/recurso-especial-resp-793422-rs-2005-0179055-0/inteiro-teor-12865899?ref=júri s-tabs> Acesso em: 15 jul. 2018.


Notas

[3] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L8078.htm> Acesso em: 15 jul. 2018.

[4] FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2005.Ver ainda: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004; RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva. 2005.

[5] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666co ns.htm> Acesso em: 15 jul. 2018.

[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

[7] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.

[8]PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contratações da Administração Pública. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

[10] O GLOBO. Regras do CDC valem também para os serviços públicos. Reportagem do dia 24 de março de 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/regras-do-cdc-valem-tambem-para-os-servicos-publicos-18935517> Acesso em: 15 jul. 2018.

[11] Ver ainda: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 793.422. Segunda Turma. Data do julgamento: 03 de agosto de 2006. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurispruden cia/7147219/recurso-especial-resp-793422-rs-2005-0179055-0/inteiro-teor-12865899?ref=júri s-tabs> Acesso em: 15 jul. 2018.


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