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Perspectiva processual coletiva das ações eleitorais

Perspectiva processual coletiva das ações eleitorais

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Este ensaio traz uma visão ainda pouco explorada: as ações tipicamente eleitorais sob o ângulo de mecanismos de defesa de direitos transindividuais, transpostos para o âmbito do Direito Eleitoral.

I- INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988, atendendo ao dogmatismo objetivado na sua elaboração, organizou, com minúcias, todo o sistema eleitoral a ser aplicado no País a partir da sua vigência, carreando profundas modificações ao sistema de inelegibilidades, à organização da justiça eleitoral e ao sistema de votação, tudo com vistas a garantir um processo de sufrágio que atendesse às perspectivas do Estado Democrático de Direito implantado através do novo sistema constitucional brasileiro.

Nesse contexto, vislumbra-se, tanto no texto da Carta Política, quanto na legislação eleitoral, toda uma rede de proteção ao sufrágio universal e ao sigilo das votações diretas, lugar onde desponta a importância das diversas ações eleitorais previstas no ordenamento pátrio, cada uma com seu objeto e legitimidade particulares e momento próprio de interposição.

Não obstante a confusão legislativa que permeia a seara do direito eleitoral, mormente no que tange à antiguidade do Código Eleitoral – e aos seus diversos pontos não recepcionados pela Constituição de 1988 – e à farta regulamentação por meio de resoluções dos tribunais que, a cada eleição, trazem novas normas a serem seguidas, não se pode olvidar que o sistema eleitoral atual possui bons instrumentos jurisdicionais de impugnação de candidaturas ou mandatos eivados de vícios de inelegibilidade ou ilegalidade, e também de combate aos abusos de poder político e econômico que tanto desmerecem a história política do nosso País.

O que se pretende trazer a lume através desse ensaio é uma visão ainda pouco explorada pela doutrina, consistente na avaliação dessas ações tipicamente eleitorais sob o ângulo de mecanismos de defesa de direitos transindividuais, assim considerados os bens jurídicos que constituem seu objeto de proteção. E, nesse intento, demonstrar a possibilidade de transposição dos institutos processuais próprios das ações coletivas ao universo do direito eleitoral.

Ressalte-se, desde já, a amplitude do assunto e o caráter inovador dessa tese – como já dissemos, pouco explorada pela doutrina – motivo pelo qual não teremos qualquer pretensão em esgotá-lo, mas, ao contrário, trazer breves luzes, que possam despertar o interesse para a importância da temática tratada.


II – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO SISTEMA ELEITORAL

A Constituição de 1988 começou a tratar do sistema que rege todo o processo democrático de escolha dos agentes políticos a partir do seu art. 14, que dá início ao capítulo destinado ao trato dos direitos políticos. Em primeiro plano, o dispositivo consagrou o princípio da soberania popular e determinou os instrumentos para o seu exercício, fixando a universalidade do sufrágio e o voto direto e secreto dos representantes do povo, bem como as prerrogativas do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, todas corolários do mesmo princípio. Trazendo uma breve, mas elucidativa noção de sufrágio, Carlos S. Fayt, citado por José Afonso da Silva [01], define que "o sufrágio é um direito público subjetivo de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da organização e da atividade do poder estatal" (2004, p. 348). Já sobre o critério de universalidade, o mesmo constitucionalista afirma o seguinte:

A universalidade do direito de sufrágio é um princípio basilar da democracia política, que se apóia na identidade entre governantes e governados. Essa identidade será tanto mais real quanto mais se amplie o direito de sufrágio aos integrantes da nacionalidade. É o que caracteriza o sufrágio universal, acolhido no art. 14 da Constituição, que se funda na coincidência entre a qualidade de eleitor e a de nacional, de um país. (SILVA, 2004, p. 349)

A partir das observações citadas é possível extrair a importância da proteção do processo eleitoral para a manutenção do estado democrático; afinal, é ele que proporciona "a identidade entre governantes e governados", possibilitando o real exercício da cidadania pelo povo, no momento em que têm condições de escolher, por meio de um sistema destituído de qualquer imposição, o representante que mais lhe aprouver e cuja filosofia política for mais condizente às suas convicções.

Consagrando a sua importância, o ordenamento constitucional de 1988 elevou os direitos políticos à categoria de "Direitos e Garantias Fundamentais" (Título II), alçando-os ao status de cláusulas pétreas, não apenas por estarem inseridos nesse título, mas também em virtude do rol do art. 60 da Carta, no qual consta a imutabilidade do voto direto, secreto, universal e periódico. Exatamente por visar a efetivação do processo de escolha democrático, a CF/88 disciplinou a mais ampla proteção ao sufrágio universal, trazendo, em seu texto, as disposições sobre o alistamento e o voto, as condições de elegibilidade (gerais e específicas para determinados cargos eletivos) e inelegibilidade, a vedação à cassação dos direitos políticos e, ao mesmo tempo, os casos taxativos de suspensão e perda destes. Ademais, reformulou toda a conformação da Justiça Eleitoral, nos seus arts. 118 a 121 e trouxe, como mecanismo jurisdicional eleitoral, a ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10), hábil à coibição dos casos de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude acaso manifestados durante o processo eleitoral.

Ao tratarmos da conformação constitucional do sistema eleitoral, é necessário conferirmos maior atenção à questão das condições de elegibilidade e dos critérios de inelegibilidade, tendo em vista serem esses elementos objeto de proteção de diversas ações eleitorais. Nesse ponto, devemos citar as definições de Alexandre de Moraes [02] sobre o tema, para que, a partir do conceito, seja possível delinear as hipóteses de incidência:

Elegibilidade é a capacidade eleitoral passiva consistente na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos. A inelegibilidade consiste na ausência de capacidade eleitoral passiva, ou seja, da condição de ser candidato e, consequentemente, poder ser votado, constituindo-se, portanto, em condição obstativa ao exercício passivo da cidadania. Sua finalidade é proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, conforme expressa previsão constitucional (art. 14, § 9). (MORAES, 2001, pgs. 227 e 229)

Com fulcro na definição em tela, vê-se que, para que possa exercer o direito de sufrágio (no sentido de ser votado), ao cidadão é necessário preencher todas as condições de elegibilidade (trazidas na CF/88 e na legislação eleitoral) e, ao mesmo tempo, não incorrer em nenhuma situação que determine a sua inelegibilidade. De acordo com o § 3º do art. 14 da CF/88, são condições de elegibilidade a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima respectiva para cada cargo eletivo (18, 21, 30 ou 35 anos). A respeito dessas condições, devemos lembrar que, enquanto a Constituição traça as normas gerais, são elas complementadas pela legislação eleitoral, que disciplina, por exemplo, os prazos para filiação, os prazos e locais para o alistamento eleitoral, entre outros critérios.

Em outro pórtico, as inelegibilidades podem ser classificadas sob as feições absoluta e relativa. Reside a primeira no art. 14, § 4º, consistente na impossibilidade de candidatura dos inalistáveis (estrangeiros e, durante o período de serviço militar, os conscritos) e dos analfabetos, vedação, portanto, incidente sobre todo e qualquer cargo eletivo. No que concerne à inelegibilidade relativa, tendo em conta sua maior complexidade, citemos a classificação do mesmo autor (MORAES, 2004, p. 231) supracitado, quando as divide em quatro categorias, assim definidas: a) por motivos funcionais (art. 14, §§ 5º e 6º), onde se encontra a possibilidade de reeleição, introduzida no ordenamento pela EC nº 16/97; b) por motivos de casamento, parentesco e afinidade (art. 14, § 7º); c) dos militares (art. 14, § 8º); d) previsões de ordem legal, correspondentes aos regramentos constantes na Lei Complementar nº 64/90, que trata sobre o sistema de inelegibilidades no país, estabelecendo todos os casos relativamente a cada cargo eletivo e os seus prazos de duração. Deve-se complementar que, dentre a classificação citada pelo autor, as três primeiras hipóteses dizem respeito às inelegibilidades inatas, e a última engloba também as inelegibilidades cominadas, ou seja, aquelas aplicadas a título de sanção de algum ilícito ou conduta vedada na legislação eleitoral cuja prática tenha sido confirmada.

Por fim, ressalte-se – por ser importante à nossa análise posterior – o tratamento destinado pela Constituição aos partidos políticos, sob os ditames do Capítulo V do Título II da Carta, através dos quais é livre a sua criação, fusão, incorporação e extinção, desde que resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana. O regime jurídico dos partidos políticos foi complementado através da edição da Lei nº 9.096/95, onde são veiculadas normas específicas sobre a sua criação, extinção, e todos os aspectos peculiares ao seu desenvolvimento. E da conjugação entre as normas constitucionais e infraconstitucionais, depreende-se a importância dessas instituições no papel de assegurar a autenticidade do sistema representativo e do regime democrático no Brasil.

Deixemos de lado, nesse momento, as críticas à real atuação dos partidos políticos - já que é notável a enorme distância dos nobres objetivos a ele traçados pela norma constitucional e infraconstitucional -, para vislumbrá-los como institutos de representação social, em que deve ser fixada uma plataforma de idéias, à qual qualquer cidadão pode filiar-se, na defesa do sistema democrático.

A conformação do sistema eleitoral na Constituição de 1988 é assunto de enorme amplitude e complexidade, cuja análise detalhada não será possível neste trabalho; no entanto, as noções que pretendemos fixar referem-se à proteção à lisura e correção do processo eleitoral, preceito que deve nortear toda a atuação dos agentes políticos e para onde deve convergir toda a legislação.


III – AÇÕES ELEITORAIS PRÓPRIAS: ASPECTOS GERAIS

Expostos os aspectos constitucionais de manutenção do sistema democrático, deve-se atentar agora para os mecanismos judiciais instrumentalizados pela legislação eleitoral como forma de viabilizar o controle de legalidade e legitimidade dos atos componentes do processo eleitoral. Cada uma dessas ações possui disciplina própria e objetivo definido, e pretendemos aqui trazer a sua definição quanto aos aspectos de legitimidade, objeto, finalidade e momento de interposição, síntese que trará supedâneo à sua compreensão como instrumentos de defesa de direitos transindividuais, estudo a ser feito no próximo tópico deste ensaio. Dito isso, tratemos de cada ação em específico, nas próximas linhas.

Ab initio, a Lei nº 64/90 dispõe, em seus artigos 3º a 17, sobre a Ação de Impugnação de Registro de Candidatura - AIRC. Em relação ao critério temporal, constitui-se como a primeira das ações eleitorais próprias que se pode interpor no curso do processo eletivo – compreendido esse como o interregno entre o registro dos candidatos e a diplomação dos eleitos – pois tem em vista a impugnação dos pedidos de registro de candidatura, com fulcro na falta de alguma condição de elegibilidade ou na incidência de alguma das situações de inelegibilidade (inata ou cominada). São legitimados ativos quaisquer candidatos, partidos políticos, coligações ou o Ministério Público, sendo que a ação dos três primeiros não inibe a atuação concomitante do parquet. Em relação à legitimidade dos candidatos, deve-se ressaltar que a jurisprudência considera o poder de ação mesmo daqueles que não tiveram ainda deferido o registro de sua candidatura, sendo necessário apenas que tenha sido indicado em convenção e protocolado seu pedido perante a Justiça Eleitoral, ostentando, portanto, a qualidade de pré-candidato. E tal premissa é lógica, posto que, se a ação é de impugnação de registro, significa que os pedidos ainda não foram julgados, não se tendo ainda candidatos propriamente ditos, e se assim não se entendesse, a lei seria letra morta nessa parte.

Ainda quanto à legitimidade, ressaltam dois pontos em que é uníssona a jurisprudência do TSE: o primeiro é no sentido de rejeitar seja concorrente a legitimidade dos partidos e das coligações que eles integrem; o sentido é de não confundir legitimidade com capacidade postulatória, sendo, portanto, com exceção das ações interpostas pelo Ministério Público, necessária a presença de advogado constituído. Em sede doutrinária, menciona o autor Marcos Ramayana [03] que a doutrina é firme em rejeitar a legitimidade dos partidos e coligações para a impugnação de registros de candidatos integrantes dos seus próprios quadros. O momento de interposição da ação é logo após a publicação, na imprensa, dos pedidos de registro de candidaturas, mais precisamente nos cinco dias subsequentes à sua publicidade (art. 3º, LC nº 64/90), sendo preclusivo o referido prazo.

No que concerne à finalidade da ação, depreende-se esta do efeito que se pretende obter com a sentença, qual seja, a declaração negativa do direito público subjetivo do pré-candidato ao registro perante a Justiça Eleitoral. Especificando, a finalidade da AIRC é a constituição de impedimento à participação do indivíduo no processo eleitoral, seja porque presente condição de inelegibilidade seja porque ausente algum dos documentos reputados essenciais pela lei eleitoral, para fins de registro perante o Poder Judiciário.

O segundo instrumento jurisdicional que mencionaremos consiste numa ação de elevada importância para a manutenção da lisura do processo eletivo, e bastante presente na atual conjuntura: a Ação de Investigação Judicial Eleitoral - AIJE, prevista no art. 22 da Lei das Inelegibilidades. Trata-se de mecanismo ímpar, dotado de diversos efeitos que podem postergar-se no tempo, para atingir a candidatura da pessoa contra a qual restar constatado o uso indevido, o desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou ainda o uso indevido de veículos ou dos meios de comunicação social, em desfavor da liberdade de voto. O seu objetivo é, portanto, o reconhecimento das condutas abusivas, com vistas à cassação do registro do candidato e à declaração de inelegibilidade, pelos três anos posteriores, daquele e de todos os envolvidos na prática do ato, além da remessa dos autos ao Ministério Público para fins de persecução penal, quando antes do pleito; e ainda, constituirá subsídio para a interposição de Recurso contra a Diplomação ou Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, quando julgada somente após a eleição do candidato, tudo com vistas a impedir a perpetuação da cultura de corrupção sempre latente no Brasil, no que se refere ao processo de eleições.

Como se nota, portanto, a lei não conferiu à AIJE um prazo determinado para interposição, justamente porque sua sentença pode produzir efeitos diferidos no tempo; assim, mesmo que não seja mais possível atingir o mandato eletivo, pode ainda a ação subsidiar a persecução criminal pelo Ministério Público. Quanto à legitimação ativa, foi esta novamente conferida aos candidatos, partidos, coligações e representantes do Ministério Público; atente-se, no entanto, para o fato de que a Resolução nº 20.105/98 – TSE trouxe ampliação ao rol legal, ao incluir também o eleitor como legitimado a oferecer representação à Justiça Eleitoral para a apuração de abuso de poder econômico ou político.

Transpondo-nos para um outro momento do processo eleitoral, vislumbramos na lei eleitoral por excelência – o Código Eleitoral de 1967 – a previsão do Recurso contra a Diplomação, o qual, a despeito de ostentar errônea denominação, configura-se como típica ação eleitoral de impugnação. A respeito de sua natureza, Adriano Soares da Costa [04] posiciona-se com maestria, em orientação que merece ser transcrita. Senão vejamos:

(...) os recursos são impugnativas manejadas, dentro da mesma relação processual, contra decisão judicial. Dessarte, se o ato contra o qual é exercitado o remédio jurídico não for uma decisão judicial, restará claro não se tratar ele de recurso, mas de uma verdadeira ação autônoma. (...) A atividade de julgar pressupõe que o juiz declare sua vontade, por meio de cognição condicionada pelo pedido da parte ou requerente, aplicando o direito objetivo ao caso concreto deduzido. Na diplomação o juiz nada julga: comunica conhecimento quando proclama os resultados; e certifica tal resultado, para os candidatos eleitos e suplentes, mediante o diploma. (...) Mas há ainda outros argumentos que militam em favor da tese de que não há recurso, mas ação contra a diplomação. (...) Quem "recorre" contra a diplomação não recorre contra o ato de expedição do diploma em si, mas contra situações anteriores que viciaram o resultado da eleição, vale dizer, o ato certificado pelo diploma. (...) Questionado o resultado certificado, com a sua nulidade, obviamente que se esvazia o ato certificador (o diploma). (COSTA, 1997, pgs. 416 a 417) (Grifos acrescentados)

Compreendida a natureza jurídica do instituto, devemos trazer à baila as hipóteses de cabimento, definidas no art. 262 do Código Eleitoral, ou seja, os fatos que podem ensejar a propositura da ação: a) inelegibilidade ou incompatibilidade de candidato; b) errônea interpretação da lei quanto à aplicação do sistema de representação proporcional; c) erro de direito ou de fato na apuração final quanto à determinação do quociente eleitoral ou partidário, contagem de votos e classificação de candidato, ou a sua contemplação sob determinada legenda; e d) concessão ou denegação do diploma em manifesta contradição com a prova dos autos, nas hipóteses do art. 222 e do art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Quanto à legitimidade para agir, remetemos às demais ações, posto que legitimadas as mesmas pessoas já citadas. Quanto ao prazo, devemos dizer que, por ter tratado erroneamente o instituto em tela como recurso, e, ao mesmo tempo, não ter-lhe fixado o dies a quo, deve este ser interpretado como o período dos três dias após a diplomação, conforme a regra geral do art. 258 do Código Eleitoral.

Por derradeiro, sem embargo de instrumentos igualmente importantes, como a Ação de Captação Ilícita de Sufrágio (art. 41-A da Lei nº 9.504/97), procuraremos deitar os aspectos mais importantes acerca da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME. Ação de origem constitucional, trazida ao ordenamento através do art. 14, § 10º da Constituição de 1988, corresponde ao último instrumento de que se pode lançar mão, no âmbito do processo eleitoral, com vistas à declaração da inelegibilidade do cidadão, agora já empossado no mandato eletivo para o qual foi eleito.

Devido ao momento previsto para a sua propositura – 15 dias após a diplomação – a AIME não visa atacar o diploma, mas sim a impugnação do próprio mandato, em decorrência da prática de atos anteriores que, reconhecidos, deveriam ter impedido a continuidade do candidato na disputa do pleito eleitoral. Daí a necessidade de ser instruída com provas do abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, de onde decorre a obrigatoriedade de julgamento positivo de anterior AIJE proposta contra o mesmo agente. Novamente trazendo a lição do eminente Adriano Soares da Costa, extrai-se que a AIME proposta após a AIJE possui como finalidade a cassação dos efeitos do diploma do candidato já anteriormente decretado inelegível, enquanto que à AIME proposta em face dos casos de corrupção ou fraude cabe a finalidade de decretar a inelegibilidade cominada daquele cuja eleição está maculada com o benefício trazido pelos ilícitos praticados.

Finalmente, deve-se dizer que a CF/88 foi omissa acerca do rol dos legitimados para a AIME, e, diante de tal lacuna, a doutrina mais abalizada colocou-se em prol da aceitação da legitimação de qualquer eleitor - constituindo o que rotularam de "verdadeira ação popular eleitoral" -, bem como do mesmo rol de legitimados constante nas demais ações citadas (Ministério Público, candidatos, partidos e coligações).


IV- AÇÕES ELEITORAIS COMO AÇÕES COLETIVAS LATO SENSU

Em outro momento desse trabalho dissemos que as ações coletivas se prestam à defesa de direitos transindividuais; passaremos agora para a análise dessas questões, esclarecendo porque consideramos os bens jurídicos objeto das ações eleitorais como direitos difusos, bem como as conseqüências processuais de reputá-las ações coletivas lato sensu.

Como primeira providência, impõe-se a definição do conceito de direitos transindividuais, e, em meio a estes, a menção aos direitos difusos, que mais nos interessam, por adequarem-se à questão eleitoral. Tal definição será extraída da doutrina de Hugo Nigro Mazzilli [05], nos seguintes termos:

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. (...) Difusos – como o conceitua o CDC – são interesses ou direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". (...) São como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas. (MAZZILLI, 2004, p. 50)

Complementando o conceito, o mesmo autor passa a fazer uma classificação dos direitos difusos em diversos grupos e, nessa análise, menciona que há interesses difusos "tão abrangentes que chegam a coincidir com o interesse público" (2004, p. 51). Sob esse conceito vislumbramos os direitos abarcados pelas ações eleitorais. Como pudemos delinear anteriormente, todas as ações estudadas – guardadas as devidas distinções - têm, como objetivo comum, a finalidade de garantir a legalidade do sufrágio, a lisura do processo eleitoral e, por conseqüência, a manutenção do status da democracia brasileira.

Esses direitos são pertencentes a toda a população brasileira, sejam eleitores ou não, posto que a todos interessa a manutenção da democracia e o bom exercício das funções políticas do Estado, o que somente poderá acontecer se o processo eleitoral estiver livre de qualquer mácula. Constitui também interesse comum a todos os eleitores (de forma indivisível) a garantia da sua liberdade de voto, bem como que a formação de sua opinião política não seja influenciada por outros fatores, como a corrupção e a captação ilícita de sufrágio. Ademais, interessa a todo o povo da nação o preenchimento das condições de elegibilidade por aqueles que pretendem disputar o pleito eleitoral, pois, somente com a possibilidade de diferentes candidaturas resta preservada a liberdade de escolha, mediante o julgamento das diversas propostas políticas apresentadas. E, por fim, constitui direito de cada cidadão o sufrágio universal, entendido este como o direito de votar e ser votado.

Como se colhe das afirmações acima, os direitos postos em discussão por meio das ações eleitorais são típicos direitos difusos, enquadrados na categoria mencionada por Mazzilli, ou seja, os que são tão abrangentes que chegam a coincidir com o próprio interesse público. E tal premissa decorre simplesmente do fato de que os elementos concernentes à lisura do processo eleitoral são corolários constitucionais, motivo pelo qual, lato sensu, se dirigem as ações eleitorais à garantia do cumprimento da própria Constituição Federal.

A respeito da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, dissemos anteriormente que a doutrina a considera verdadeira "ação popular eleitoral". Diante da importância do referido instrumento jurisdicional, o jurista Gregório Assagra [06] destina a ela considerações em seus estudos de direito processual coletivo, que muito bem definem a sua natureza de ação coletiva. Por isso, transcreveremos:

Portanto, o objeto da ação de impugnação de mandato eletivo é um direito difuso decorrente da legitimidade, normalidade e integridade do pleito eleitoral que foi lesado pelo abuso do poder econômico, pela fraude ou pela corrupção eleitoral. Com efeito, é a ação de impugnação de mandato eletivo espécie de ação coletiva, pois o que se tutela por seu intermédio é um direito difuso (espécie de direito coletivo em sentido amplo: art. 81, parágrafo único, I, do CDC), cujos titulares são indeterminados e indetermináveis, o objeto é indivisível e a origem decorre das circunstâncias fáticas ensejadoras de um dos ilícitos acima (abuso de poder econômico, fraude ou corrupção). E mais: é uma ação coletiva pertencente ao direito processual coletivo comum, haja vista que o fato que a motiva é um conflito coletivo ocorrido no mundo da concretude. (ALMEIDA, 2003, p. 317)

Tomando por base essa doutrina, podemos estender a mesma análise às demais ações, verificando que, na Ação de Impugnação de Registro de Candidatura, as circunstâncias de fato residem na falta de uma das condições de elegibilidade ou incidência de inelegibilidade; na Ação de Investigação Judicial Eleitoral, na ocorrência de algum ilícito relativo a abuso de poder econômico ou político, e no Recurso Contra a Diplomação, na incidência de algum dos motivos elencados no art. 262 do Código Eleitoral. Todas, portanto, circunstâncias fáticas que, por viciarem o processo eleitoral, contrapõem-se ao direito difuso de "normalidade e integridade do pleito eleitoral".

Outro ponto crucial à caracterização das ações eleitorais como ações coletivas diz respeito à legitimidade ativa para a interposição destas. Conforme delineamos no tópico anterior, todas as ações eleitorais têm como legitimados comuns os candidatos, os partidos políticos, as coligações e o Ministério Público. Cada uma dessas pessoas, agindo no pólo ativo da respectiva ação, está atuando como legitimado extraordinário, defendendo, em seu próprio nome, direitos (aqui já mencionados) pertencentes a um número indeterminável de pessoas, sendo tal legitimação conferida por força da lei eleitoral. Nesse ponto, devemos trazer, de forma breve, o entendimento defendido por Nelson Nery, quando pondera que a legitimação nas ações coletivas não é propriamente extraordinária, e sim uma legitimação autônoma para a condução do processo. E tal se justificaria porque, para o jurista, a legitimação extraordinária pressupõe uma substituição processual, onde os titulares do direito poderiam defendê-los individualmente; para este, portanto, nas ações coletivas em defesa de interesses difusos, a lei elegeu alguém para a defesa de direitos, porque seus titulares não poderiam individualmente fazê-lo.

Da adoção do entendimento das ações eleitorais como espécies de ações coletivas decorrem dois postulados principais, bastante úteis à garantia da efetivação do Estado Democrático de Direito. O primeiro deles consiste na aplicação do princípio da máxima efetividade do processo coletivo, preceito que, levando em conta o máximo interesse social no bom resultado da demanda coletiva, impõe ao Judiciário uma conduta que possibilite o seu melhor aproveitamento, o que se materializa tanto na produção de provas quanto nas medidas de tutela que garantam essa máxima efetividade. Mais uma vez devemos citar Gregório Assagra, tendo em conta a lucidez de suas lições:

O interesse social, sempre presente nas ações coletivas, impõe essa efetividade no processo coletivo. (...) Com base nesse princípio, o aplicador do direito deverá se valer de todos os instrumentos e meios necessários e eficazes – decorrentes do princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva -, para que o processo coletivo seja realmente efetivo.(...) Com efeito, por força do princípio da máxima efetividade do processo coletivo, o Poder Judiciário tem, no direito processual coletivo comum, poderes instrutórios amplos e deve atuar independentemente da iniciativa das partes para a busca da verdade processual e a efetividade do processo coletivo. Isso não significa que tais poderes sejam ilimitados. Os limites a esses poderes instrutórios decorrem da própria Constituição Federal, que: garante o contraditório (art. 5º, LV); proíbe a utilização de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI); exige que todas as decisões jurisdicionais sejam fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX). (ALMEIDA, 2003, p. 577)

Com esteio no princípio citado, adquire o julgador maiores poderes quanto à ação, devendo empregar todos os mecanismos – logicamente, aqueles que não vão de encontro à legislação eleitoral – para que seja conferida, no caso concreto posto a seu exame, o resultado que se apresente mais eficaz à preservação da legalidade e idoneidade do sufrágio, regra que se refletirá na atividade probatória e na valoração dos bens em jogo.

O segundo postulado principal, que imprime importante inovação ao processamento das ações eleitorais, é a aplicação do sistema da coisa julgada no processo coletivo, segundo os moldes do artigo 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, conforme a disciplina da coisa julgada secundum eventum litis. Instituiu o diploma consumerista um sistema processual de defesa dos interesses transindividuais, no qual a coisa julgada recebeu tratamento diferenciado e inovador no ordenamento brasileiro, tendo, assim, sido especificado um tratamento particular no que tange a cada categoria de direito coletivo (lato sensu).

O artigo 103, I, do CDC disciplina as características da coisa julgada nas ações cujo objeto é a defesa de direitos difusos: é ela erga omnes, ou seja, produz efeitos extensivos a todas as pessoas e secundum eventum litis, ou, dependente de resultado do processo. Desse modo, sendo a ação julgada improcedente por falta de provas, não se verificará a coisa julgada, podendo qualquer legitimado intentar nova ação, com idêntico fundamento, valendo-se de prova nova ou não utilizada no primeiro processo, que possa subsidiar suas alegações.

Entendemos que a aplicação da coisa julgada segundo o sistema do CDC, nas ações eleitorais constituirá importante arma na defesa do sistema democrático, quiçá no que se refere ao combate à corrupção, à captação ilícita de sufrágio e à prática do abuso de poder político e econômico, quando, muitas vezes, não consegue o autor o suporte probatório necessário à comprovação das condutas, nos curtos prazos estipulados pela lei eleitoral. Desse modo, extinta a primeira ação (mediante julgamento de improcedência), em virtude da falta de provas, mitigados estariam os prazos de interposição, para que qualquer legitimado, de posse de novas provas, pudesse concretizar o intento de defesa do sistema democrático e da liberdade de voto.

Contudo, devemos reforçar, ao final, que não se defende aqui a aplicação de todo o sistema processual coletivo, presente no CDC e na Lei da Ação Civil Pública, pois deve-se sempre ter em conta que o processo eleitoral tem contornos definidos em legislação própria, sendo a legitimidade e o rito de cada ação definido pela lei que a instituiu – à exceção da AIME, cujo rito é o mesmo do processo civil, por falta de previsão legal específica -,motivos pelos quais deve valer aqui o princípio da especialidade. No entanto, levando-se em consideração a importância dos dois postulados aqui tratados, e também que estes não encontram óbice na legislação eleitoral, deve-se sim pugnar pela sua aplicabilidade no cerne das ações eleitorais próprias, tendo em vista o benefício que podem trazer à segurança e legalidade dos pleitos.

Em suma, a exegese restritiva da lei eleitoral deve ceder lugar à visão do sistema jurídico como um complexo de normas aptas a assegurar os interesses sociais e combater a cultura corrupta ainda existente em nosso país quando o assunto é a disputa dos pleitos eleitorais e o exercício dos cargos eletivos.


V – CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 trouxe clara regulamentação do sistema eleitoral brasileiro, consolidando como bases do Estado Democrático de Direito o sufrágio universal e o voto direto e secreto, garantida a total liberdade de escolha, livre de pressões ou influências externas, que não as permitidas segundo a própria legislação eleitoral (propaganda política, por exemplo). Para tanto, consagrou também um sistema de inelegibilidades inatas e cominadas, com vistas a barrar a participação, no processo eleitoral, de pessoas contra as quais pende alguma condição impeditiva, seja em virtude da falta de condição de elegibilidade, seja em face da prática de algum ilícito eleitoral.

Na legislação eleitoral, foi formulado todo um sistema de defesa da legalidade e idoneidade do processo eletivo, composto de diversas ações próprias, cada uma com objeto, legitimidade e momento de interposição particulares, mas todas voltadas ao interesse público da garantia da liberdade de voto e o bom exercício do direito de sufrágio.

Todas as ações estudadas podem ser encaradas com a qualificação de ações coletivas, o que se afirmou levando em consideração que a legalidade e idoneidade do processo eletivo se caracterizam como direitos difusos, espécie de direitos coletivos, pertencentes a toda a população, de forma indeterminada. Considerou-se, também, a conformação da legitimidade ativa dessas ações, em torno da qual foi possível concluir ser esta uma legitimação extraordinária (como prefere a maioria da doutrina), também considerada como autônoma por Nelson Nery, classificação da qual não ousamos dissentir, já que baseada em explicação plenamente verossímil.

A partir do momento em que são aceitas as ações eleitorais como ações coletivas, devem ser, no contexto processual, aplicados os postulados consistentes no princípio da máxima efetividade da tutela jurisdicional coletiva e da coisa julgada secundum eventum litis, pois estes possibilitarão uma maior eficácia das ações que se prestam ao nobre objetivo de garantir o reestabelecimento do sistema democrático, quando afetado em algum de seus elementos.

Concluímos, então, que o sistema jurídico não deve ser visto como compartimentos estanques, onde cada legislação cuida apenas de uma área específica. Ao contrário, uma visão panorâmica do sistema legal permite compatibilizá-lo com o ordenamento constitucional, em suas mais diversas áreas; e tal não é diferente quando se trata de direito eleitoral. Por fim, acreditamos que não devem os representantes do Poder Judiciário conscientizar-se da importância da sua atuação não como simples exegeta da lei, mas como um intérprete ligado à realidade do seu tempo, de forma a prestar relevante serviço ao povo brasileiro, já tão farto da corrupção e dos abusos daqueles que exercem ou pretendem exercer cargos eletivos em nosso País.


VI – REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.

COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.


NOTAS

01 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.

02 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

03 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004

04 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

05 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

06 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Isabelle de Carvalho. Perspectiva processual coletiva das ações eleitorais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 773, 15 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7156. Acesso em: 19 abr. 2024.