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A Medida Provisória 871 e a desconstrução da previdência social

A Medida Provisória 871 e a desconstrução da previdência social

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A medida provisória trouxe diversas mudanças como a retomada do prazo de carência na nova filiação, a necessidade de prova documental para a comprovação da união estável, novos critérios de comprovação da atividade rural, entre outras.

Como de costume e sem o esperado debate democrático que caracteriza os sistemas jurídicos contemporâneos que foram apoiados no bem-estar e nas cartas constitucionais, em repetido ato normativo, mais uma vez, lançou-se a pretensão em realizar uma minirreforma previdenciária por meio de medida provisória, o que ocorreu através da MP de número 871, de 18 de janeiro de 2019.

De longe, todo o seu conteúdo possui campo de pouso no excepcionalíssimo caminho das medidas provisórias, seja quanto à profundidade desse complexo tema de política pública e social, como também, pela ausência clara das elementares “relevância” e “urgência” que justificam esse trajeto normativo.

A bem da verdade, espera-se há muito uma reforma ou ainda, se assim não ocorrer, a necessária atualização das bases da previdência nacional, a revisão de suas premissas e adequação aos fenômenos modernos, dentre eles, por exemplo o envelhecimento do contingente populacional e a baixíssima taxa de fecundidade. Entretanto, também se espera um amplo debate democrático a respeito, sem desnaturar sua essência; sem olvidar dos destinatários da sua atuação e sobretudo sem afastar o ideário social que estrutura todo o próprio ordenamento jurídico arquitetado em pilares do bem-estar, do modelo constitucional e da democracia republicana.

 Assim, repetidas são as minireformas, mudanças sazonais e alterações facetárias que não representam os desejos de aprimoramento, evolução e ampliação de qualquer técnica protetiva constitucional e social, fundamental por excelência e que retrate o corolário da dignidade humana.

Aqui, algumas e pequenas reflexões sobre o que trouxe mais uma medida provisória no campo previdenciário tupiniquim, de novo, na contramão dos ideários de um povo, distantes do trajeto democrático e a revelia do que constitui o texto magno ou que assim deveria ser, o paradigma a ser seguido.

 José Afonso da Silva registra a esse respeito que:

No Estado Democrático de Direito, é a Constituição que dirige a marcha da sociedade e vincula, positiva e negativamente, os atos do Poder Público. Assenta-se na técnica da rigidez constitucional, que decorre da maior dificuldade para a mudança formal da Constituição que para a alteração da legislação ordinária ou complementar. Da rigidez decorre, como primordial consequência, o princípio da supremacia constitucional, que – no dizer de Pinto Ferreira – “é um princípio basilar do direito constitucional moderno”. Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do País, ao qual confere validade, e que todos os Poderes estatais só são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção em que por ela distribuídos. Nisso se consubstancia o princípio da conformidade dos atos do Poder Público às normas e princípios constitucionais.[1]

Em contundente voz doutrinária que defende, dia e noite, a observância primeira e fidedigna ao que reza a Constituição, Lenio Streck assevera que:

A Constituição não é simples ferramenta; não é uma terceira coisa que se interpõe entre o Estado e a Sociedade. A Constituição dirige; constitui. A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad hoc de dispositivos menos significantes da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu núcleo essencial fundamental.[2]

Por assim verificar, ao relegar o desejo de reforma ou de atualização das bases previdenciárias através de reiteradas medidas provisórias, essencialmente, distante se está do que pretendeu o Texto Maior sobre esse autêntico modelo protetivo, inclusivo, social por excelência, que encontra no primado do trabalho sua fonte e na dignidade humana seu vetor máximo.

Também, desprezou-se o caráter democrático, político e de gestão registrado no artigo 194, VII da Constituição, garantindo a tudo e a todos um colegiado para gerir e direcionar as políticas previdenciárias em solo nacional, o que nem sempre é debatido ou mesmo concretizado, infelizmente.

E os dizeres constitucionais não devem ser desprezados, sob pena da inversão da programação firmada a partir do horizonte de 1988, tempo esse de conquistas, especialmente as sociais.

Pontualmente, descreve o inciso VII do texto constitucional antes citado que: “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante uma gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo”.

Tem-se aqui, claramente, mais uma exigência democrática fundamental e não observada no correte uso de medidas provisórias previdenciárias, pois esse o formato político adotado que não pode ser desnaturado por meras deliberações administrativas de agentes políticos, cujo intento da preservação, expansão e o futuro do plano de proteção social há de contar com efetiva participação gerencial dos atores sociais, seus destinatários, cuja perspectiva democrática se apresenta como o trajeto construtivo de aprimoramento das conquistas sociais.

Desta forma, em sentido contrário e agindo na contramão da gestão partilhada idealizada na dimensão constitucional, se nota um pleno retrocesso do ideal democrático em se negar a gestão quadripartite para a construção de um novo modelo previdenciário, exaustivamente debatido por todos.

Portanto, não se pode tratar a política previdenciária de maneira apressada, superficial e unilateral no campo de medidas provisórias, trazendo assim sérios impactos cotidianos aqueles destinatários desse programa de proteção, com redução de direitos e dificuldade de acessibilidade a um pacote protetivo adjetivado pelo Texto Maior de universalizado.

Em seu bojo, traz a Medida Provisória duras regras contra beneficiários e benefícios específicos, fazendo com que pressupostos de jubilação mudem drasticamente e no meio do jogo.

Por exemplo, criou esse abreviado ato normativo atípico e excepcional a figura da suspensão cautelar de benefícios previdenciários por indícios de fraude ou suspeita de irregularidade, conferindo extremado poder aos agentes públicos e fomentando ainda, vale dizer, premiando os servidores através de incrementos financeiros na hipótese de convalidação das suspensões administrativas.

Esqueceu o texto que a relação, atos, fases e os processos administrativos existem em favor do administrado, a fim de criar um elo jurídico entre ambos e também para que a relação desigual seja equilibrada, sob a inspiração do princípio constitucional da eficiência dos órgãos públicos, além do inusitado fato que a MP ora suscintamente comentada não definiu claramente o conteúdo e extensão do que se tratam essas suspeitas ou indícios de fraudes, o que certamente produzirá abusos e excessos, invertendo a ordem do trato administrativo para a superposição daquele que já possui há muito diversas prerrogativas funcionais e no descompasso do texto maior. Registre-se que toda a fraude, ilicitude e outras irregularidades devem sim serem combatidas, mas dentro de uma razoabilidade jurídica que garantam ferramentas iguais de controle, inspirados nas bases constitucionais da “ampla defesa” e do “devido processo legal”.

Não bastassem essas inconsistências, na contramão da doutrina especializada, aliás, sequer convocada para o debate coletivo e democrático a respeito, criou a MP prazos fatais para o exercício de certas prestações, cuja essência jurídica da natureza que antecede qualquer análise indicavam e há muito, que a busca, o exercício e o gozo de prestações previdenciários não se sujeitam a qualquer lapso temporal, tendo em vista que traduzem, essencialmente o núcleo dos direitos fundamentais.

Portanto, evidentemente que a Medida Provisória invade cenário estruturante da teoria geral das prestações previdenciárias relativizando seus aspectos e produzindo no ambiente jurídico coletivo uma perigosa fragilização de conquistas sociais.

Ainda, modificou a MP 871 sobre determinados prazos, criando vários, alterando o já complexo artigo 103 da Lei 8.213/91, impactando sobremodo o elo previdenciário nas hipóteses de busca, cobrança e revisão de direitos previdenciários, alocando-os em um mesmo pacote como se estivessem na mesma direção.

Alterações outras restaram introduzidas por conta dessa nova medida provisória, como a retomada do prazo de carência na nova filiação, a necessidade de prova documental para a comprovação da união estável, mudanças com referência a comprovação da atividade rural e outras mais de grande impacto no trato previdenciário diário e que aqui estenderiam sobremaneira esse pequeno e modesto texto.

Inevitavelmente a temática ora tratada deve ser enfrentada, sob diversos aspectos, não sendo simples e de baixa complexidade alterar um modelo previdenciário como o brasileiro no apagar das luzes, no estalar de um dedo ou em um curtíssimo semestre legislativo e sim ouvindo todos, sem retóricas partidárias, com compromisso único ao que restou assentado em 1988 que fixou um horizonte de conquistas, inclusão e de bem-estar, aspectos esses que a previdência social traz em seu bojo em alto e bom som e que a MP 871 preferiu esquecer.


Notas

[1] SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro – evolução institucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 99.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermeneutica e Teorias Discursivas da possibilidade de respostas corretas ao direito. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.112.


Autor

  • Sérgio Salvador

    Mestre em Direito (Constitucionalismo e Democracia) pela FDSM (Nota 4-Capes). Pós-Graduado em Direito Previdenciário pela EPD/SP e em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor Universitário. Escritor. Conselheiro da 23ª Subseção da OAB/MG. Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALVADOR, Sérgio. A Medida Provisória 871 e a desconstrução da previdência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5729, 9 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72471. Acesso em: 19 abr. 2024.