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As vísceras da violência

As vísceras da violência

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A sociedade civil precisa entender melhor o fenômeno da violência e os políticos devem buscar soluções com a ajuda da comunidade científica.

INTRODUÇÃO

As populações metropolitanas e as de um expressivo número de cidades brasileiras estão sendo fustigadas por um fato que, a cada dia, vem trazendo-lhes ansiedade e angústia: a explosão da violência.

Este indesejável fenômeno pode ser visto e percebido em dois grandes eixos: a violência da exclusão social e a violência subjacente à criminalidade sem controle, com destaque para os assaltos, os seqüestros e os homicídios, que vêm alterando, para pior, o nosso já exacerbado ambiente.

A violência, esta grave doença que ataca de forma diversificada os organismos sociais, constitui-se, hoje, com certeza, em específica matriz de insegurança em nosso país. Além de provocar indignações, que não têm tido a devida ressonância, acarreta volumosas reclamações que não têm sido atendidas, em maioria. É que, respectivamente, são dirigidas a instituições e órgãos que não têm ou a necessária capacidade de absorvê-las ou a competência legal para solucioná-las. São reclamações certas, feitas, contudo, em lugares errados.

Por que isto acontece? Porque a sociedade civil sofre com a violência, mas entende pouco deste fenômeno, porque não o conhece bem. Tendo noção, mas não tendo convicção, não consegue definir bem o problema que lhe angustia. Aliás, o que nem é de sua responsabilidade e, sim, da sociedade política. Nossos políticos-dirigentes é que devem buscar soluções, resolver a questão satisfatoriamente, iniciando pela sua correta definição e exata delimitação, ensejando o surgimento e um conseqüente exame criterioso de alternativas adequadas, exeqüíveis e aceitáveis.

Conviria que se reportassem mais à capacidade reconhecida da comunidade científica/acadêmica brasileira, bem assim à competência dos integrantes de instituições que trabalham exclusivamente com a defesa social no Brasil.

Referidos profissionais não têm sido instados, com a freqüência e a intensidade devidas, valendo-se de seu vasto conhecimento técnico-científico e – por que não? – de sua prática, que se tem mostrado positivamente inovadora.

Enquanto isto, assiste-se a um acontecimento muito preocupante: à medida em que a violência vai aumentando, também se banaliza. É que as pessoas estão trocando a indignação pela resignação. Já não acreditam na eficácia de programas oficiais, nem confiam na capacidade de as autoridades reverterem o quadro, que se agrava mais e mais. Constata-se que há, somente, cobranças eventuais, pontuais, isoladas, não mais que isto. Movimentos coletivos, organizados, não têm obtido grandes êxitos em suas cruzadas. Provavelmente, a causa de insucessos no enfrentamento a esta chaga social esteja no equívoco do foco. Verdadeiramente, a questão da violência no Brasil não está bem focada. De passagem, lembra-se aqui que pressupostos equivocados, ainda que trabalhados com inteligência e obstinação, conduzem a resultados errados.

Discutem-se, a seguir, aspectos – cujo propósito é contribuir para dar melhor enquadramento e mais nitidez a essa questão – que poderão auxiliar para que haja a exata percepção do problema e, conseqüentemente, o encontro de soluções que reduzam a inexorável ameaça da violência em nosso ambiente de insegurança.


SEGURANÇA/INSEGURANÇA

Até bem pouco, era comum serem feitas abordagens sobre aspectos relacionados à "segurança", como se esta fora, dogmaticamente, um produto contraposto a uma ameaça. Daí, expressões em que a palavra "segurança" é usada no sentido de significar "estar protegido/ser defendido contra ameaças". A partir do momento em que a discussão deste tema foi intensificada, constatou-se a necessidade de se entender e de se conceituar outros fatores intervenientes, destacando-se ameaça, proteção e defesa.

Grosso modo, ameaça é tudo aquilo que pode afetar a preservação e/ou a perpetuação da espécie humana, seja de origem física (riscos e perigos), seja de origem psicológica (receios e medos). Já a proteção é caracterizada por anteparos (vistos em conjunto ou individualmente) colocados diante das ameaças, com destaque para instrumentos como a família, a religião, a educação, a economia e o Estado. Quanto à defesa, pode-se dizer que se refere à operacionalização da proteção, através de vários mecanismos.

Todo esforço que vise a minimização, estabilização ou eliminação de ameaças é uma forma, é um mecanismo de defesa praticado por um instrumento de proteção, na busca do utópico ambiente de segurança, é, enfim, na prática, um redutor de ameaças.

Desta forma, a nós nos parece equivocada a colocação de que determinados trabalhos são realizados visando a aumentar-se a segurança. Trabalha-se para a redução das ameaças no ambiente de insegurança em que a vida é vivida. Para fazer face às ameaças, não se produz segurança. Utilizam-se, sim, instrumentos de proteção, que aplicam mecanismos de defesa, que reduzem as ameaças em nosso ambiente de insegurança.

Assim, já não se tem como certo que segurança é algo que se faz, que se realiza. Segurança é vista como um ambiente, um estado, como a resultante de uma situação simultânea em que todas as ameaças à preservação e à perpetuação da espécie humana estão, objetivamente, sob absoluto controle e, subjetivamente, existe a firme convicção de que efetivamente estão controladas.

Significa dizer que deve haver concomitância da proteção objetiva (efetivo controle de todas as ameaças) e da proteção subjetiva (crença na ausência de ameaças). Pode parecer chocante, num primeiro momento, mas, lamentavelmente, fica evidente que este ambiente de segurança, ratifica-se, é uma utopia, ainda que deva ser perseguida permanentemente.

Um fato relevante tem merecido maior atenção.

Observa-se que, ultimamente, a discussão vem girando em torno da "insegurança" – o que nos parece absolutamente correto – visto que o ambiente que nos cerca é, e sempre foi, de insegurança. Não só aqui no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo: porque as ameaças estão sob precário controle e há percepção disso, ou porque as ameaças, objetivamente, estão sob relativo controle, mas não há a crença subjetiva, concomitantemente, e vice-versa.

Assim, é de se constatar que cada país tem uma ameaça específica que mais o fustiga, que mais afeta a serenidade e a confiança de seu povo. Constitui o que se convencionou chamar de raiz ou matriz de insegurança, podendo ser o terrorismo, a fome, a miséria, a violência, a AIDS, o ebola, um vulcão, dentre outras.

A afirmação de que vivemos em um ambiente de insegurança não visa trazer inquietações ou aumentar angústias, ansiedades, tensões, mas, ao inverso, aplacá-las, trazendo ajuda para a exata compreensão deste tão real quanto angustiante fenômeno social.

Esta assertiva tem como sustentação o fato de ser de todo impossível a contenção plena, o controle absoluto de todas as ameaças (as adversidades, os antagonismos, as pressões), em virtude do imponderável e do inopinado que as cercam. Predominam incertezas, mínimas que sejam, quanto às circunstâncias de sua ocorrência (local, época, forma, freqüência e intensidade).

Então – pode surgir a pergunta – como viver, como nos comportar em um ambiente reconhecidamente de insegurança?

De duas maneiras: a primeira, de forma sensata, acreditando que as ameaças estão sob o controle possível ou exigindo que assim o seja, sem histerismos, sempre adotando uma postura de autocontrole, que decorre da sensação de segurança (sentimento de que se está em um ambiente de segurança, no qual se está totalmente protegido contra as ameaças, conforme o que é possível e tolerável) que se inicia com a prática de cuidados mínimos, de responsabilidade individual; a segunda seria viver de forma insensata, tensa, onde predominam atitudes irracionais, chegando, algumas pessoas, a se tornarem presas da síndrome de insegurança (não sai de carro, não vai a Nova York, não sai de casa).

É fundamental que encaremos e compreendamos duas situações: temos de aceitar nossa realidade fática – vivemos em um ambiente de insegurança – sem permitir que isto nos aterrorize; temos de internalizar que nenhum tipo de trabalho é realizado objetivando oferecer, produzir segurança, mas restringir, reduzir o ambiente de insegurança, controlando e limitando o surgimento e os efeitos das ameaças no ambiente.

Lembra-se, aqui, que as manifestações de referidas ameaças são vistas e sentidas através da brutalidade do homem contra a natureza, e vice-versa, e do homem contra o próprio homem, sempre na razão direta da constatação de inexistência (ausência), insuficiência (baixa quantidade), ineficiência (inadequação) deficiência (baixa qualidade) de instrumentos de proteção e de mecanismos de defesa.

A concepção do controle das ameaças, relembra-se aqui, tem origem nos instrumentos de proteção e é operacionalizada pelos mecanismos de defesa, com o objetivo de reduzir causas e efeitos daquelas e com a finalidade de purificar o ambiente de insegurança em que se vive.

Acredita-se que somente através do fortalecimento dos instrumentos de proteção, ao qual se segue uma diligente aplicação dos mecanismos de defesa, é que as ameaças estarão relativamente bem controladas.

Recorde-se que referidos mecanismos dizem respeito:

à defesa da nação, à defesa nacional – cujo fim é "proteger todo o potencial material e humano do Estado contra ameaças externas e internas e garantir atitudes e comportamentos que visem ao desenvolvimento do país";

à defesa da sociedade, à defesa social – que "congrega os mecanismos preventivos, repressivos e sustinentes para controlar as ameaças genéricas que impedem a instalação do desejado estado de segurança social, seja minimizando, restringindo ou eliminando as referidas ameaças".

Porque estamos discutindo o ambiente de insegurança da sociedade brasileira (e não o da nação brasileira), atendendo à pertinência, não vamos falar de proteção nacional e defesa nacional, mas somente de proteção social e de defesa social.

Para se falar sobre proteção social, convém lembrar uma das hipóteses de surgimento do Estado. Desde a pré-história, o homem sentiu que, sozinho, era impotente para enfrentar as ameaças à preservação e perpetuação de sua espécie. Agrupou-se, dando origem a famílias, clãs, tribos, comunidades, sociedades e, finalmente, ao Estado. Sua origem, portanto, estaria ligada à necessidade de prover a proteção do ambiente social e promover, de forma suplementar, o seu desenvolvimento. Preservar e perpetuar a espécie humana e, subsidiariamente, bens e interesses, enquanto eleitos pela própria sociedade, são objetivos da proteção, cujo provimento se dá através de mecanismos de defesa contra as ameaças".

O Estado atual é um macrossistema integrado pelos sistemas de proteção e de desenvolvimento, cujas atividades ora são realizadas, ora reguladas, ora regulamentadas pela autoridade estatal. O provimento da proteção é realizado, originariamente, pelo Estado e, secundariamente, pela sociedade civil.

Quanto à expressão "defesa social", a nós nos parece mais concernente que a restritiva, equivocada, desgastada e paradoxal, mas, reconheça-se, notória "segurança pública", para caracterizar o esforço de proteção à sociedade:

  • restritiva, ao contemplar somente o trabalho realizado pelo governo e, ainda, apenas aquele contra a criminalidade;

  • equivocada, porque segurança não é um trabalho, uma ação, é uma situação, um resultado;

  • desgastada, porque sua citação vem acompanhada de descrédito, chacotas e desconfiança;

  • paradoxal, porque, conforme o conceito que vem predominando, é a atividade desenvolvida por órgãos estatais, enquanto que segurança privada é praticada por entidades civis; já a CF, art.144, estabelece que segurança pública (sic) é responsabilidade de todos.

Defesa social, a nós nos parece, tem significação mais abrangente, adequada e inovadora:

  • abrangente, pois, mesmo sendo iniciativa do governo, a sociedade civil é convocada a participar – e vem participando – além de alcançar todos os mecanismos para minimização e controle das ameaças: a defesa da evolução social, a defesa antiadversidades sociais, a defesa da seguridade social, a defesa antiinfrações sociais e a defesa antidesordens sociais;

  • adequada, quando se entende a "defesa" como ato ou efeito de, intervir, socorrer, enfim, como a manifestação prática da proteção, que ensejará o ambiente de segurança;

  • inovadora porque decorre de um exame inédito de surgimento, delimitação e contenção de quaisquer ameaças, não se referindo, apenas, à criminalidade violenta e organizada.

De passagem, observa-se que, em alguns Estados, houve a extinção da Secretaria de Segurança Pública e criação da Secretaria de Defesa Social. Porém, estas realizam, quase que na totalidade, somente a defesa antiinfracional (prevenir, reprimir, investigar delitos, que eram atividades da então segurança pública), desenvolvidas apenas pelo sistema de Polícia Criminal, além da defesa antiadversidades sociais, sob responsabilidade do Corpo de Bombeiros Militar.

Note-se que, até há pouco tempo, a vida fora vivida de forma relativamente despreocupada, tranqüila, dentro do pressuposto de que as ameaças estariam relativamente controladas, sem que isso significasse abrir mão de cautelas mínimas, de responsabilidade individual. Contudo, a violência do homem contra o homem – uma ameaça perfeitamente controlável – caminha, segundo alguns especialistas, para uma situação de descontrole, o que, além de ocasionar sobressaltos sociais, vem provocando mudanças de hábitos e costumes de, até então, saudáveis rotinas de vida.

A violência urbana – expressão cunhada pela mídia, na década de 70, visando designar a emergente nova roupagem da velha criminal – adquiriu novos contornos, evoluiu e é, hoje, uma das maiores ameaças nas grandes cidades.

É uma situação que, quase, já se aproxima de um diagnóstico de endemia social, o que vem protagonizando inquietações e infortúnios para muitos cidadãos.

E por quais razões?

Podemos listar, no mínimo, cinco: os índices de criminalidade violenta, efetivamente, estão subindo; há uma síndrome de violência urbana; o foco da discussão vinha sendo dirigido apenas à causalidade; há pouca efetividade nas ações preventivas e corretivas; há informação insuficiente sobre esta grave doença do tecido social.

A seguir, faremos uma rápida abordagem sobre cada um destes itens.


A ESCALADA DA VIOLÊNCIA

A mídia mineira, não há muito tempo, deu destaque aos tenebrosos números de homicídios ocorridos, só num final de semana, na região metropolitana de Belo Horizonte: inimagináveis 37, para uma cidade que foi considerada, no final da década de 80, um paraíso de tranqüilidade, de paz e harmonia. Era tida como a metrópole mais segura do país.

Esta consideração foi feita após o lançamento, em 89, do inédito Policiamento Distrital, em Belo Horizonte, que teve, como um dos vetores do êxito, o resgate da autoridade do graduado (cabo e sargento) da Polícia Militar, quando se acreditou e se investiu em sua capacidade de comandar, cometendo-lhe o princípio da responsabilidade territorial.

O Distrital (hoje, após sofrer transfigurações, tem o nome de Policiamento Comunitário) ao final de 90, além de impedir a ascensão dos números da criminalidade violenta, permitiu uma redução de 35% nos números de 88.

As circunstâncias, em que aquela preocupante elevação no número de crimes ocorreu, permitiram várias ilações e algumas constatações – diante de informações colhidas nos locais de crime e de investigações realizadas – como, por exemplo, a de que o ingrediente tráfico de drogas e de armas foi a causa recorrente. Significa dizer que, se não houvesse esta indesejável presença, seguramente o número absoluto seria bem menor enquadrando-se, com certeza, no limite tolerável de insegurança (uma estimativa numérica da implacável ocorrência de crimes num determinado espaço considerado, obtida através do tratamento matemático de variáveis peculiares, intrínsecas à forma como se desenrola a vida na localidade considerada).

Entretanto, não se vive sob hipóteses, mas sob uma realidade fática: está ocorrendo, efetivamente, uma escalada da violência nas grandes cidades brasileiras.

Se se fizer uma correlação entre as de São Paulo, Rio e BH, é possível que, relativamente, uma seja tão violenta quanto as outras. Este fato decorre da constatação de que a estatística criminal não deve trabalhar com números linearmente progressivos (conhecidos através de relações diretamente proporcionais), mas com números exponenciais (decorrentes de correlações de certos indicadores).

Comprovado que drogas e armas estiveram presentes na quase totalidade dos casos, obvia e prioritariamente devem ser desencadeadas vigorosas ações e operações de desarmamento (não apenas de cidadãos, mas, sobretudo, de marginais) e de combate ao tráfico de drogas. É de se convir, entretanto, que há um comportamento letárgico, muito pouco técnico da União, no que se refere ao enfrentamento, na origem, dessas chagas sociais, que são responsáveis, em maioria, pela assustadora e incômoda elevação dos índices de violência nos Estados-membros. Urge que se tenha um sistema mais proficiente, mais ativo, atuando nos pontos de fronteiras, onde se iniciam os eixos internos de suprimento que têm suas fontes de abastecimento externamente.

E, enquanto não se sistematizam, não se realizam ataques à raiz do problema, observa-se que as polícias estaduais estão desgastadas e, até, desacreditadas perante a opinião pública. É que, esta, por desconhecimento da legislação, entende que aquelas não têm sido competentes suficientemente no combate ao tráfico e à disseminação de drogas e de armas. As cobranças certas são feitas a órgãos errados. A população não está suficientemente esclarecida quanto ao fato de que a responsabilidade originária de contenção do tráfico é da União. E que as polícias estaduais agem supletivamente, mas não atuam nas fronteiras. Apenas recebem o fluxo da questão que ali tem origem.

Tecnicamente, a União é que vem sendo desafiada, vem lutando uma renhida queda-de-braço com os traficantes. Porém, aos olhos do povo, os Estados-membros, através de suas polícias, é que são os perdedores.

A União deve assumir o combate efetivo aos crimes federais, não apenas por intermédio da Polícia Federal (que é a polícia judiciária da União, porém não é a força federal de polícia, inexistente, aliás) – que vem esmerando-se no trabalho de Inteligência – mas, também, mediante a criação de uma profissional e permanente Força Federal de Defesa Social (o que também ajudaria no cabal entendimento de destinação de força para atuar na defesa social, fazendo desaparecer a insubsistente, por equivocada, celeuma do emprego das Forças Armadas no policiamento ostensivo, quando sua razão de ser é a defesa nacional. Evidentemente, isto não a desobrigaria do monitoramento de nossas fronteiras, secas e molhadas, e da intervenção operacional, ali, contra o tráfico, que começa a afetar a defesa interna).

De passagem, é interessante observar que a União tem "presos federais" (indivíduos que cometeram crimes denominados federais), mas não tem "presídios federais" (cuja construção e gestão seria de sua responsabilidade), o que enseja o cumprimento de pena em presídios estaduais.

Desta feita, deve ser examinada a hipótese de a União reembolsar, ressarcir gastos que os Estados-membros venham a ter para executar trabalhos de competência originária daquela, quando atuam no combate ao tráfico em geral, em invasões de áreas federais, na preservação de áreas indígenas, na guarda de presos condenados pela União e outros episódios, sujeitando-se aos riscos de surgimento de novos "Eldorados dos Carajás", no mínimo.

Lembra-se que a legislação permite, a Estados-membros, a posse temporária de bens e patrimônio apreendidos do tráfico, e lhes acena com repasse de numerário decorrente de leilões.

Entretanto, até hoje, receberam muito pouco ou quase nada, por esta via, porque sua realização é extremamente difícil, além de gerar temores de retaliação de traficantes. Este processo carece de maior agilidade, evitando-se que se tenha um leilão de sucatas.

Na realidade, convém à União rever sua postura de dona da chave do cofre. Realiza contingenciamentos e, eventualmente, com pompas e circunstâncias de quem está "fazendo favores", distribui verbas seletivamente, quando deveria estar fazendo, simplesmente, uma reposição de gastos que o Estado-membro teve na realização de trabalhos de responsabilidade da União. E, cabe a pergunta, vivemos em uma Federação ou em um Império?

Não se discute a evidência de que o governo federal deve zelar pelo melhor emprego do dinheiro público. Porém, não deve considerar-se um messenas-distribuidor de verbas. Deve participar, deve integrar-se ao esforço dos Estados, visando maior capacitação das polícias judiciárias estaduais e da maior qualificação das forças estaduais. De passagem, lembra-se aqui, que a operosa Inspetoria Geral das Polícias Militares, então integrando a estrutura do Exército Brasileiro, ajudou a formatar uma doutrina de policiamento ostensivo, catalisando experiências positivas ocorridas em determinado Estado e as irradiava para os outros. Nos dias de hoje, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) poderia ser a agência catalisadora.

Finalmente, deve ficar claro que a escalada da criminalidade violenta não será contida apenas com o trabalho das polícias, por mais bem treinadas, armadas, equipadas, que possam vir a ser (porque hoje não estão, visto que a maioria dos governantes enxerga gastos com polícia como sendo dispêndio e não investimento). A contenção deve ser o resultado de um esforço sinérgico, envolvendo a sociedade civil e a sociedade política, nos níveis federal, estadual e municipal.


A SÍNDROME DE VIOLÊNCIA URBANA

Observa-se que, em razão de os grandes veículos de comunicação de massa do Brasil localizarem-se no eixo Rio-São Paulo, é comum que um fato, ali ocorrido e noticiado, invada nossos lares, do Oiapoque ao Chuí.

Como exemplo, a briga de quadrilhas, pela posse de pontos de tráfico de drogas, foi um acontecimento, na Rocinha, que provocou abalos no ambiente de insegurança das cidades brasileiras, afetando, negativamente, a sensação de segurança de seus moradores.

Policiólogos denominam este fenômeno de Ilusão de Isotopia, isto é, aquela sensação ou aquele sentimento de que se está vivendo naquele lugar onde ocorreu o fato, ou de que, onde se vive, ocorrerá o mesmo fato, inevitavelmente, gerando a "síndrome de próxima vítima".

Estatisticamente, os fatos são representados por uma linha sinuosa, enquanto que a lógica da síndrome é uma reta ascendente, que acumula fatos permanentemente.

A população da cidade de Belo Horizonte não estava imune, padecendo, assim, desta neurose. Contudo, seu sofrimento tem aumentado à medida que vem enfrentando, também, a realidade do aumento da criminalidade violenta, em seu bairro, em sua rua, em sua porta, inclusive, em plena luz do dia. E os acontecimentos na região metropolitana passaram a ser, lamentavelmente, referência para outras cidades, que estão envolvidas pela ilusão de isotopia.

É importante observar que, em concreto, paralelamente aos aspectos de ordem emocional, instalam-se situações geradoras de violência. Por exemplo, há notícias de existência de "feudos" em alguns pontos de periferias e de favelas, nas grande cidades, onde a "polícia não entra", onde são cobrados "pedágios" de comerciantes locais e das redondezas. Isto é extremamente perigoso. Pior, inquietante e preocupante.


O FOCO DA DISCUSSÃO

Quanto ao foco da discussão, constata-se que está voltado apenas para uma parte da questão: para a causalidade, espaço e tempo onde eclodem os delitos e para onde fluem as causas e refluem os efeitos. São raros os trabalhos que abordam, em amplitude e profundidade, causas e efeitos da violência, particularmente da criminalidade. Estes agentes intervenientes – causas e efeitos – sempre foram relegados e pouco analisados, questionados, pesquisados. Estudiosos e autoridades, que se manifestam sobre o tema, fazem uma abordagem tradicional, em maioria sobre a causalidade, sobre o "quê" está acontecendo e, pouquíssimos, sobre o "porquê", sobre causas e efeitos. Face essa superficialidade, quase sempre a conclusão é de que a polícia está perdendo o controle, por falta de recursos ou por incompetência, chegando alguns, inclusive, conforme já se falou, a clamar pelo emprego das Forças Armadas. Aliás, diga-se de passagem, a polícia sempre foi um ótimo bode expiatório para justificar ineficiente administração, principalmente se estiver ocorrendo crise.

Convém à sociedade brasileira que este grave fenômeno social não tenha tratamento tão sazonal (ou espasmódico?) quanto simplista. Já está passando da hora de o problema passar por um exame exaustivo de todas as formas de seu contorno e de sua complexidade, hora de ser dado um basta à administração de surtos (ou administração por susto?), hora de um engajamento multidisciplinar. Afinal, é sabido mas pouco difundido, a violência é muito menos um problema policial que um grave e complexo problema social. Entretanto, por inépcia ou incompetência, nossas autoridades insistem em não enxergá-la desta forma e postergam seu efetivo enfrentamento.

Na sociedade brasileira, as raízes da insegurança estão bipartidas na violência da exclusão social e na criminalidade violenta. A exclusão está presente nas carências de assistência social, moradia e remuneração dignas, na inacessibilidade a serviços médico-hospitalares, na fome, na miséria, no analfabetismo, na deseducação, no desemprego, na desocupação, na concentração de renda. Caminha-se para um consenso de que o intranqüilizador quadro da exclusão social, que agrava o fenômeno da marginalização, é um dos vetores da marginalidade.

Ainda que seja de todo impossível eliminar causas e efeitos da violência no Brasil, é urgente que se implementem medidas que visem sua redução. De um lado, as atitudes que objetivam a inclusão social devem ter como foco a redução de nossa vulnerabilidade socioeconômica e, em paralelo, não apenas o exercício da cidadania (que tem sua prática restrita ao gozo de direitos civis e políticos) mas, principalmente, o estímulo a atividades que conduzam à consolidação da societania (conhecimento e prática de deveres e direitos de integrantes de uma sociedade). Em que pese ser visto como um povo alegre, acolhedor, na realidade o brasileiro parece ter uma auto-estima muito frágil, visto que é um dos poucos no mundo a falar mal de si próprio. Este fato, aliado a outros, como por exemplo a incapacidade de suprir-se conforme os apelos consumistas, contribui para que marginalizados migrem para a marginalidade. Ressalte-se, porém, que nem todo marginalizado é marginal e vice-versa.

Por outro lado, objetivando a redução paulatina de nossa vulnerabilidade civil, devem ser desenvolvidas ações que incidam sobre o vertiginoso quadro da criminalidade violenta. Com certeza, a prioridade deve ser o trabalho de reverter a preocupante sensação de impunidade pela certeza da punição. Evidentemente, não se propugna pela lotação (ou superlotação) de nossos presídios. Afinal, há outras penas que não as privativas de liberdade.


POUCA EFETIVIDADE

Em relação à pouca efetividade das ações, a origem estaria em políticas sociais descontínuas, por serem de governo ou, até, de partido (felizmente, o atual Ministro da Justiça é defensor de políticas sociais de Estado) e/ou inadequadas, em razão de seus objetivos serem tímidos, que, quando alcançados, sempre se apresentaram como paliativos ou assistencialismo hipócrita. Este erro faz persistir e aumentar a marginalização – indivíduos e grupos que são colocados à margem social – além de ensejar o florescimento de subculturas, nestes locais, onde há prevalência de regras e valores comunitários, localizados, em detrimento de regras e valores sociais, de caráter geral. Isto tem como origem uma distopia social (funcionamento anômalo de órgãos de proteção social), que ali se observa. Surgem, em decorrência, e não apenas ali, os desvios de conduta, as infrações administrativas, as contravenções, a permissividade, dando origem a uma marginalidade emergente – indivíduos e grupos que se colocam à margem da lei. À maior freqüência e incidência de crimes, soma-se o ingrediente da violência. Em razão de anacronismos – de leis, de ritos e de rotinas, da processualística penal – reina uma sensação de impunidade entre os marginais, que, então, se organizam em quadrilhas, com seus bem estruturados sistemas de informação, planejamento, operações, logística e administração.

Há muitas notícias, mas poucas informações, que são decodificadas como estímulo, pelos iniciantes no crime, ou provocam indignação e revolta na sociedade civil. Esta se mobiliza, cobra correções, atitudes e soluções dos políticos.

A sociedade política se agita, cria comissões, aprova e executa projetos de políticas sociais. Inadequadas!... O ciclo perverso se reinicia, por absoluta falta de objetividade.


INFORMAÇÃO INSUFICIENTE

Quanto à questão da notícia versus informação, interessante confrontar o tratamento que é dado à violência da criminalidade e a outras doenças do organismo social, como, por exemplo, a AIDS e a dengue. Em relação à primeira, são dadas notícias, quase sempre em manchetes bombásticas, sensacionalistas. Para as outras, são dadas informações, que orientam, formam, educam. Por estas razões, a população conhece bem as origens da AIDS e da dengue, os grupos de risco, as precauções, o tratamento, a recuperação. Campanhas educativas são muito bem produzidas e divulgadas, resultando em absoluto controle desses males, sendo o Brasil, inclusive, referência mundial no controle da AIDS. Em contrapartida, em razão de muita notícia externa e pouca informação interna, nosso país é também referência – negativa – de violência.

A quem interessa uma sociedade desinformada, assustada, intranqüila, que tem reduzidas sua qualidade de vida e sua produtividade, e que se torna uma presa fácil em razão da ausência paulatina da solidariedade? A marginais! Urge que nossos veículos de comunicação de massa se conscientizem de que têm enorme responsabilidade social e que devem assumir um compromisso em relação à violência, particularmente da criminalidade: informar, para orientar, formar e educar ! Estarão contribuindo para que surja uma nova sociedade pacífica, harmoniosa, serena e confiante.

Constata-se que a pesquisa sobre esta doença social é muito tímida, incipiente, insuficiente. É que os recursos para fazê-la (e os há) não são muito visíveis, são muito pouco divulgados. Estímulos ao engajamento são muito difusos (ou confusos?), carecendo de o governo adotar procedimentos claros que despertem a motivação na sociedade civil para esta área, particularmente agora que se "descobriu" a importância de se pesquisar "Causa e Efeito" da violência.


CORRIGINDO OS RUMOS

Temos convicção de que todas estas mazelas e contradições sociais, tratadas até agora, podem ser corrigidas e revertidas. Para fugir do lugar comum de que basta vontade política, é necessário que o Estado brasileiro (não apenas o governo) realize um esforço, que compreenda:

  • um específico Planejamento Estratégico, a ser elaborado por representantes dos três poderes – dos níveis federal, estadual e municipal – e da sociedade civil, de forma pragmática, de forma a não se transformar em mais um glossário, de boas idéias, refrigerado a ar condicionado;

  • um compromisso, sem volta, de operacionalizá-lo integralmente, para que não ocupe lugar, ainda que de destaque, no já imenso "arquivo morto".

Deve contemplar, no mínimo:

  • medidas de fortalecimento das instituições (da família – cujo número de monogâmicas, sob a responsabilidade de mães que, em grande número, "trabalham fora", vem tristemente aumentando; da escola – hoje, simples agência de repasse de conhecimentos – que necessita de transformações, iniciando-se pela restauração do mérito, da importância que têm os professores; da igreja – que se enfraquece, na medida em que se constatam ramificações estranhas, da noite para o dia; do próprio estado – vítima de descrédito generalizado, já de algum tempo);

  • criação e/ou difusão de atitudes firmes de correção de desvios do caráter social (estimulando o respeito a valores sociais e exigindo a obediência a regras sociais – e os veículos de comunicação de massa podem dar uma enorme contribuição).

A operacionalização deve ocorrer através de efetivos procedimentos da sociedade política e do engajamento e participação da sociedade civil. Portanto, é necessário que:

  • o Legislativo seja mais objetivo, modernize nossas leis, varra os anacronismos, os procedimentos protelatórios, enfim, menos coreografia e mais samba-enredo;

  • o Judiciário reduza ou elimine ritos e rotinas da época do império (de procedimentos burocráticos ao nepotismo e às "férias forenses"), que se modernize logística e administrativamente, que incremente os Juizados de Pequenas Causas e estimule a aplicação de penas alternativas e de penas substitutivas;

  • o Executivo reconheça o extraordinário valor dos assistentes sociais e dos educadores;

  • que os poderes reconheçam o destacado papel que deve ser reservado ao Ministério Público.

A primeira obra de reengenharia política seria conceber e efetivar o Estado de tal maneira que ele pudesse ser mais eficiente, tanto na implementação de medidas distributivas, afastando a ameaça da exclusão, como na consolidação de políticas retributivas, destinadas a controlar a ameaça da criminalidade.

Para a primeira hipótese, o trabalho de assistentes sociais é prioritário e, certamente, a curto e médio prazos, trará resultados concretos e perenes. Para a segunda hipótese, a participação de educadores (resgatando-se-lhes a dignidade profissional, começando pela dignidade salarial) é fundamental na formação do caráter e na preparação da geração, que ora desabrocha, para uma convivência harmoniosa e pacífica. A mim me parece claro que devemos iniciar esta cruzada, de resgate social do povo brasileiro, devolvendo-lhe a paz e a harmonia, investindo maciçamente nestes profissionais, construtores de novos e sólidos alicerces.

Quanto à geração atual, que produz ou que sofre com a criminalidade violenta, fica a esperança de um efetivo funcionamento do sistema de defesa antiinfracional (em muito contribuirá para instalar-se o ambiente de segurança), como resultado do esforço sinérgico das polícias administrativas, da força estadual, das polícias judiciárias, do ministério público, da defensoria pública, da justiça criminal e da emergente polícia prisional (para custódia e reinserção social de apenados). Sem vaidades, sem a prevalência presunçosa de um órgão sobre outro; sem o equívoco semântico da integração (fusão) da força estadual (Polícia Militar) com a polícia judiciária (Polícia Civil), quando alguns querem referir-se à conveniente e necessária interação (ação mútua ou integração de esforços, que não é integração física). Hoje, a grande ameaça é o crime violento; se amanhã for uma epidemia de dengue ou uma catástrofe ambiental ou desobediência coletiva de não pagamento de tributos, a integração da força estadual seria, respectivamente, com a polícia de salubridade pública, ou a polícia de meio-ambiente, ou a polícia fazendária? Que utopia!

O que mais necessitamos é rever a forma de perceber, sistematizar e operacionalizar o provimento da proteção contra as ameaças ao corpo social. Isto se inicia com modificações "de" e não "nos" sistemas: do emergente sistema de defesa social, visando garantir o ambiente de segurança social; do subsistema de defesa antiinfracional (ex-segurança pública), visando garantir o ambiente de segurança antiinfracional.

Sem pretender que isto soe como postura autoritária, ou de mera crítica, gratuita, a determinados procedimentos, entendo que a tudo vem faltando o revestimento do rigor e, em relação à policia, o revestimento da firmeza, da energia. Aliás, faltava. Conforme a imprensa noticiou recentemente, o governador Aécio Neves recomendou rigor nas ações da força policial e da polícia judiciária. Vale dizer, exigiu que uma exerça sua atividade-força com energia, firmeza e que a outra seja mais percuciente, tudo dentro dos limites da lei.

É importante observar que, jamais, sua colocação deve ser interpretada como uma senha para arbitrariedades, atos covardes, comportamento atrabiliário ou simples exercício de elevação da estatística da produção profissional.

Alguém menos avisado pode questionar o fato de o governador manifestar-se, explicitamente, sobre atuação da polícia, dado que energia e firmeza são inerentes ao emprego da força estadual e agudeza e percuciência são intrínsecas ao trabalho investigativo. Ele deve ter sido informado de que parte de sua polícia criminal (a força e a investigativa) está acuada, tensa, recuada, o que vem permitindo à marginalidade ocupar o vácuo (e não será fácil desalojá-la).

Tecnicamente, este retraimento provém de crises institucionais (de identidade, de autoridade) – incômoda herança deixada para o governador – a que se soma a insegurança no trabalho.

A crise de identidade é sentida pelas Polícias Civis e Militares quando, sem qualquer embasamento científico, é proposta a integração, a fusão, a unificação das duas como sendo a solução, a panacéia contra os males da violência. Um exame mais atento indica que cidadãos e entidades, bem intencionados até, vêm confundindo integração dos órgãos com integração de esforços (interação), que é conveniente, positiva e salutar. Se a proposta de interação é ótima, a de integração é péssima, em virtude da agonia da dúvida sobre "quem vai absorver quem". Esta discussão, que confunde e ilude a população, perturba e desvia o foco dos profissionais. Corpos de Bombeiros Militares não devem guardar boas lembranças da época em que estavam integrados às Polícias Militares. A prioridade era adquirir material (armamento, equipamento, munição) e fomentar treinamentos voltados para o policiamento ostensivo. Foi uma fase de sucateamento dos Corpos de Bombeiros que, lembre-se, também é uma instituição militar, ao contrário da Polícia Civil, que não o é. Militar com militar não deu certo! Militar com civil, dará?...

Outra crise – parece fabricada, porque não tem a menor consistência – é a discussão do caráter militar das Polícias Militares. Também nesta questão observa-se pouco conhecimento daqueles que se colocam contra, quando a maioria confunde "caráter" militar com "atividade" militar. A sociedade, parece, ainda não está suficientemente despertada para a necessidade de que toda força seja e esteja controlada, sob pena de correr o risco de voltar-se contra aqueles que tem o dever de proteger. O movimento de 1997, em Minas Gerais, foi uma pequena mostra daquilo que o enfraquecimento do caráter militar pode ocasionar. O exercício do comando é, fundamentalmente, um exercício de liderança. Pleitear aumento de vencimento, somente para oficiais, não foi um salutar exercício que, inclusive, corroeu os alicerces da disciplina e da hierarquia. Se a forma, rebelada, de manifestação é condenável, inaceitável numa organização militar, a situação de orfandade de liderança, a que foram jogadas as praças, ensejou uma legítima defesa reativa. Com certeza, se houvesse comando efetivo, liderança militar na exata acepção, tal fato não ocorreria. O vácuo de liderança militar ensejou surgimento de intervenções de lideranças políticas na Instituição, no que estão totalmente corretos, visto que é do maior interesse do político encontrar espaço vazio de liderança que possa ocupar. E, reconheça-se, grande maioria tem prestado bons serviços às organizações policiais. Pode-se discutir a forma como o trabalho, vem sendo realizado, visto que, a alguns, é intervenção indevida. Mas, qualquer que seja o ângulo de visada, fica patente a necessidade de se cerrar fileira em torno do Comandante-Geral da Força Estadual (que, inadequadamente, tem o nome de Polícia Militar), resgatando-se-lhe a posição de líder-mor, de único interlocutor da Instituição. Instituição que desenvolve atividades ora de Força Pública – garantindo os poderes constituídos – ora de Força de Defesa Social – garantindo o poder de polícia dos órgãos que atuam na proteção social.

Enfim, a sociedade não deve permitir, para seu próprio bem, que a Força Estadual, não trabalhe sob esse extraordinário instrumento, que é o caráter militar, cujos pilares são disciplina e hierarquia.

Constatação grave é a gradual asfixia de líderes militares, em razão de interferências político-partidárias na escolha de ocupantes de cargos de alta chefia, o que reduz a vibração, o entusiasmo, o profissionalismo. Estrategistas, táticos, operacionais, profissionais, na essência, têm sido preteridos em favor de "palacianos" ou "maçanetas".

Uma situação de desgaste da autoridade, que vem sendo desafiada inclusive, também tem contribuído para surgimento de vácuos. Nota-se ausência de autoconfiança para cumprir a missão, visto que policiais estão em condições de inferioridade de meios em relação aos bandidos. Um princípio tático fundamental – a supremacia de força – não vem sendo observado. Os marginais estão melhor armados que a Polícia. Em paralelo, há situações de falta de confiança nos superiores, pela incerteza de haver reconhecimento de ação policial legítima, quando do emprego da força, da energia e firmeza necessárias.

Estas incertezas derivam da rápida transição de autoritarismo para excessivo liberalismo, com destaque aos esclarecimentos restritivos dos direitos fundamentais, estreitando-se o foco do direito da sociedade à proteção, pela interpretação distorcida de alguns direitos individuais.

Emocionalmente, este retraimento da polícia pode ser explicado por uma falta de sintonia que, gradativamente, deu origem a divergências conceituais, que se intensificaram. Os conflitos, que felizmente não evoluíram para confrontos, envolviam uma combativa, persistente e elogiável ação de grupos denominados de defensores, "militantes" dos Direitos Humanos de um lado e, de outro, uma inação policial, ao se constatar deficiente instrução informativa sobre aquela ação.

O exagerado entusiasmo de uns, contrastando com o conhecimento insuficiente de outros, não permitiu que ficasse claro que o objetivo daquelas ações não era prejudicar o trabalho das polícias e, sim, identificar e exigir punição para excessos, para procedimentos que não se enquadrassem em ação policial legítima.

Interesses pessoais e, principalmente, a politização partidária impedem que divergências sejam debatidas, visando a busca de uma resultante, visto que ambos os lados, de formas diferentes – que não necessitam ser antagônicas – buscam o bem comum. Enquanto isto, persiste a acusação elementar de que "a polícia é muito violenta" e a queixa generalizada de que há, em maioria, "militantes de direitos humanos de bandidos"; que estes não distinguem emprego de energia (que é inerente à força) com a violência desmedida, desnecessária (que é abominada). Uma queixa particular, que se aproxima da mágoa, é de que os militantes nunca foram vistos, confortando as viúvas e os órfãos, em velórios de policiais que morreram defendendo a sociedade.

Todos queremos uma polícia profissional, uma polícia forte, enérgica, uma polícia adorada pelas crianças, respeitada pelos adultos e temida pelos marginais. Como sempre foi a força estadual de Minas Gerais!

A senha para reversão dessa adversidade social momentânea – a violência da criminalidade – já foi dada pelo governador às instituições de polícia (administrativa, ostensiva, judiciária e prisional). Estima-se que repercuta nos demais órgãos e entidades envolvidos com a Defesa Social, sejam da sociedade política, sejam da sociedade civil.

Afinal, a segurança – deveria ser defesa (nacional e social) – é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos nós, consoante nossa Constituição, ainda que, sob a ótica policiológica, se equivoque conceitualmente.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. As vísceras da violência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 804, 13 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7286. Acesso em: 25 abr. 2024.