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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus.

Uma breve análise do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus. Uma breve análise do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação

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Há muitas famílias brasileiras instruindo os seus filhos fora do ambiente escolar, fortes na convicção de que, em casa, a criança desenvolveria os seus potenciais intelectuais de um modo mais apropriado do que na escola. Contudo, o Poder Público entende que a criança deve ser educada dentro da escola, seja a estatal ou a não-estatal.

Resumo: Analisa-se, a partir da leitura das peças processuais e da oitiva dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal por ocasião das sessões de julgamento do feito, os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos pelas partes,  magistrados e outros atores processuais nos autos do Recurso Extraordinário n. 888.815, que apreciou a questão da educação domiciliar (homeschooling), verificando se essas manifestações estão em sintonia com o direito humano fundamental da criança à educação.

Palavras-chave: Direitos Humanos Fundamentais - Direito das Crianças – Educação Domiciliar – Supremo Tribunal Federal – Recurso Extraordinário n. 888.815.

Sumário: 1 Introdução; 2 O direito humano fundamental da criança à educação; 3 O processo e o julgamento do RE 888.815; 4 Conclusões; 5 Referências.


1. INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos por ocasião do processo e do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815[1], no qual o Supremo Tribunal Federal decidiu que a educação domiciliar (homeschooling) não está autorizada no Brasil.

 Este artigo descansa a sua justificativa no fato de que há muitas famílias brasileiras que estavam instruindo os seus filhos fora do ambiente escolar, fortes na convicção de que em casa a criança desenvolveria os seus potenciais intelectuais de um modo mais apropriado do que na escola. Além desse aspecto fático, há o conflito normativo, visto que as famílias entendem possuir a liberdade de instruir os seus filhos fora da escola, enquanto que o Poder Público entende que a criança deve ser educada dentro da escola, seja a estatal ou a não-estatal.

A finalidade deste texto consiste, no entanto, em apresentar os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos pelos atores processuais (partes e magistrados) no curso do feito, levando em consideração as prescrições normativas, nacionais e internacionais, sobre os direitos humanos fundamentais das crianças, mormente o de ser instruída e educada, a fim de verificar se as razões das partes e dos magistrados são consistentes, convincentes e coerentes.

Para alcançar esse desiderato, o caminho a ser percorrido consiste em analisar os autos do processo, lendo com atenção e rigor todos os expedientes relevantes, escutar os áudios das sessões de julgamento do feito disponibilizado em plataforma midiática, apreciar os textos normativos pertinentes e colher adequados subsídios no apropriado magistério doutrinário. Nesse percurso, visitaremos, inicialmente, o direito humano fundamental da criança de ser educada. Depois, avançaremos sobre o feito judicial.


2. O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DA CRIANÇA À EDUCAÇÃO

Está prescrito no caput do art. 6º da Constituição Federal que a educação é um dos direitos sociais. No inciso XXV do art. 7º desse citado diploma político-normativo está enunciado o direito do trabalhador à assistência gratuita aos seus filhos e dependentes desde o nascimento até cinco anos de idade em creches e pré-escolas. Nessa toada, entre os arts. 205 e 214 da Constituição, consta uma Seção apenas para cuidar do tema “educação”. Dentre esses comandos normativos recorda-se o caput do art. 205 que prescreve ser a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nos demais comandos constitucionais, há a regulação da educação escolar formal a ser prestada ou na rede pública ou na rede privada. No art. 227 está prescrito que o Estado, a família e a sociedade assegurarão à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, vários direitos, e dentre eles o direito à educação. Assim, sem maiores esforços interpretativos, à luz do quanto prescrito na Constituição, houve a opção normativa preferencial pela educação formal escolar, concedendo aos pais a liberdade de escolher entre uma escola pública ou uma escola particular. Cuide-se, a bem da verdade, que a Constituição não veda explicitamente a possibilidade de educação domiciliar. Daí que poderia o legislador infraconstitucional regulamentar esse modelo alternativo de educação. Porém, essa regulamentação infraconstitucional legal não adveio.

Com efeito, no plano infraconstitucional, o “Estatuto da Criança e do Adolescente” (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990) dispõe, no art. 4º, em regulamentação ao texto constitucional, o dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, com absoluta prioridade, a efetivação do direito referente à educação, dentre outros direitos constitucionalmente assegurados. Ainda no “Estatuto da Criança e do Adolescente” – ECA, entre os arts. 53 e 59, há um extenso rol de preceitos que reconhecem às crianças o direito de serem educados em escolas, ou públicas ou privadas, e o consequente dever da família e do Poder Público de viabilizarem esse direito à educação escolar, reitere-se.

A reforçar esse direito da criança, e o consequente dever da família e do Estado, recorde-se o disposto na “Lei das Diretrizes e Base da Educação Nacional” – LDB (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que preceitua enunciados específicos sobre o tema da educação. O art. 1º dessa citada Lei enuncia que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. No § 1º desse mencionado art. 1º está enunciado que a educação escolar se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino em instituições próprias. E, no art. 6º, está prescrito ser dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade. E, para as autoridades públicas, está disposto, no §4º do art. 5º, que comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.

Cuide-se que nessa “LDB”, entre os arts. 58 e 60, há a regulamentação para a educação especial, entendida como a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, e nessas hipóteses, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular, serão possíveis serviços especializados. Ou seja, se acaso for melhor para a criança, tendo em vista suas peculiares características, a sua não participação na escola formal, poderá ser autorizada, excepcionalmente, a educação especial em serviços especializados. Assim, se a família comprovar que o melhor para a criança for a sua não participação na escola, ou pública ou privada, poderá o órgão competente autorizar a aplicação de modelo extraordinário de educação especial.

No plano normativo internacional, recorde-se o disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que prescreve, no artigo 26, o direito humano à instrução e, dentre outros comandos, o direito dos pais à prioridade na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. Por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992, o Brasil promulgou e internalizou o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, que estabelece, em seu artigo 13, o direito das crianças à educação e o dever dos Estados Partes à garantia desse direito, inclusive o direito dos pais de escolherem escolas distintas das públicas. Ou seja, garante-se o direito de escolher uma escola, mas não se dá o direito de não matricular em escola alguma. Tenha-se, por fim, o Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulgou e internalizou a Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 28 enuncia que os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e o seu exercício progressivo e em igualdade de condições. Todos esses citados diplomas internacionais não estipulam o modelo educacional, conquanto sinalizem em favor da educação escolar, sem vedar a educação ou ensino domiciliar.

O tema da educação domiciliar (homeschooling) já tinha sido objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de Segurança n. 7.407[2], ocasião na qual o Tribunal negou o direito à educação domiciliar, uma vez que não há previsão constitucional ou legal reconhecendo essa modalidade de ensino. Pede-se licença para transcrever excertos do voto vencedor do ministro Peçanha Martins:

É inconteste que na conjuntura atual, quando se procura erradicar o analfabetismo, reduzir o absenteismo escolar, retirar menores e adolescentes das ruas, estimular o retorno às escolas etc., o ordenamento jurídico em vigor no país pertinente ao ensino básico fundamental, constante de preceitos constitucionais e legais, dispõe que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, com colaboração da sociedade, competindo ao poder público, aos pais ou responsáveis e aos estabelecimentos de ensino controlar a frequência às escolas, que não poderá ser inferior a setenta e cinco por cento do total de horas do período letivo para a aprovação.

São comoventes as constantes reportagens da TV sobre professoras abnegadas e pessimamente remuneradas, nos mais distantes rincões do país, improvisando salas de aulas; alunos encanecidos desenhando letras com as mãos calejadas pela labuta diária; crianças percorrendo quilômetros a pé, ou em transportes precários como frágeis canoas nos igarapés amazonenses, a fim de comparecerem às escolas. Outro tanto se diga em relação a programas desenvolvidos por diversas entidades privadas e governamentais, despertando o interesse de menores e adolescentes por atividades culturais e esportivas.

Os filhos não são dos pais, como pensam os Autores. São pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no convívio social formador da cidadania. Aos pais cabem, sim, as obrigações de manter e educar os filhos consoante a Constituição e as leis do País, asseguradoras do direito do menor à escola (art. 5º e 53, I, da Lei nº 8.096/90) e impositivas de providências e sanções voltadas à educação dos jovens como se observa no art. 129, e incisos, da Lei nº 8.096/90 supra transcritos, e art. 246, do Código Penal, que define como crime contra a assistência familiar "deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar", cominando a pena de "detenção de quinze dias a um mês, ou multa, de vinte centavos a cinquenta centavos".

Esses os motivos pelos quais, à míngua de direito líquido e certo dos Autores, denego a segurança.

Nada obstante esse precedente superior, o Poder Judiciário foi novamente instado a se manifestar sobre essa importante questão. Sobre esse novo processo que foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal que iremos avançar.


3. O PROCESSO E O JULGAMENTO DO RE 888.815

O feito se originou em um mandado de segurança[3] impetrado em face de ato praticado pela Secretaria de Educação do Município de Canela, Estado do Rio Grande do Sul, que não autorizou a solicitação dos pais em educar a sua filha por meio da educação domiciliar. O ato questionado está vazado no seguinte teor:

“Em resposta a sua solicitação de educar sua filha, no Sistema de Ensino Domiciliar, esta Secretaria, conforme decisão do Conselho Municipal de Educação, e amparada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Estatuto da Criança e do Adolescente, orienta para a imediata matrícula de Valentina Dias na rede regular de ensino, assim como o compromisso com a frequência escolar”.

A impetração aduziu que a convivência com outras crianças de diferentes idades e com distintas formações culturais poderia ser prejudicial para a criança impetrante, por aspectos morais, religiosos e ate sexuais.  Os pais invocaram a liberdade de crença religiosa em favor de sua postulação e evocaram a falência da educação pública brasileira para justificar a educação domiciliar. Na impetração aludiu-se inexistir normas proibitivas da educação domiciliar e aludiram a uma lacuna normativa sobre o tema. O ponto central da impetração reside na tese de que a primazia na educação dos filhos pertence à família, de sorte que somente na hipótese de falência familiar competiria ao Estado cuidar da educação das crianças. Segundo a impetração, os pais não têm o direito de educarem domiciliarmente, mas o dever de educarem no domicilio familiar. E, segundo a impetração, o Estado é, portanto, uma estrutura auxiliar e subsidiária da família no processo educacional das crianças.

Na impetração, evocaram fundamentos normativos que dariam conforto à postulação, e esses fundamentos estariam ancorados em textos normativos constitucionais, legislativos e internacionais, que, segundo a impetração, conduziriam à tese segundo a qual a educação domiciliar é um dever familiar. E que os pais possuem o direito natural de criarem e educarem os seus filhos, que somente não poderão exercer esse direito/dever se não houver condições de seu exercício. Ademais, a impetração recorda a legislação que autoriza que o aluno ingresse em algum nível da educação básica sem necessidade de ter frequentado anteriormente a escola, bastando a realização de uma avaliação que meça seu grau de desenvolvimento. Nessa perspectiva, segundo a impetração é possível que aquele que foi educado em casa possa se submeter aos exames nacionais de ensino médio (ENEM), o que resultaria no reconhecimento implícito da validade da educação domiciliar.

A impetração recordou como direito fundamental a liberdade de crenças e de consciência, de sorte que obrigar os pais ao dever de matricular os filhos em escolas (públicas ou privadas) seria uma violação a esses dois direitos fundamentais. Na impetração concluiu-se:

1. O ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há nenhuma norma jurídica que, expressamente, o considere inválido. E casos como esse, aplica-se o princípio constitucional da legalidade, que considera lícito qualquer ato que não seja proibido por lei;

2. O ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsáveis têm com relação aos filhos. A educação, em sentido amplo, deve ser dada principalmente em casa, sendo a instrução escolar apenas subsidiária;

3. O ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois, conforme o Código Civil, uma das atribuições decorrentes do poder familiar é a de dirigir a educação dos filhos. A escolarização somente é necessária se os pais não puderem ou não quiserem educar os filhos em casa;

4. Essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Ministério da Educação ao dispor que a obtenção de determinada pontuação no Enem dá direito a um certificado de conclusão do ensino médio, sendo desnecessária qualquer comprovação escolar;

5. A matrícula em instituição de ensino somente é obrigatória, nos termos da LDB e do ECA, para os menores que não estejam sendo ensinados em casa ou cuja educação domiciliar revele-se, indubitavelmente, deficiente;

6. Somente há crime de abandono intelectual se não for provida instrução primária aos filhos. O CP, ao prever essa conduta, não colocou como requisito que essa instrução deva ser dada na escola; e

7. O Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente, de fiscalizar a educação recebida por crianças e adolescentes, podendo, inclusive, submeter aqueles educados em casa a avaliações de desempenho intelectual condizente com sua idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão educados, em casa ou na escola, o que constituiria abuso de autoridade por intromissão indevida na esfera do poder familiar dos pais.

O juiz de primeiro grau sentenciou[4] indeferindo de pronto a inicial, forte no argumento de que não há direito líquido e certo a viabilizar a pretensão contida no mandado de segurança e entendeu que não existia possibilidade jurídica do pedido por absoluta falta de amparo legal. E o juiz assinalou:

O convívio em sociedade implica respeitar as diferenças que marcam a personalidade de cada indivíduo. Em tenra idade, a escola é o primeiro núcleo em que a pessoa se vê diante dessas diferenças. Há contato com colegas de diferentes religiões, cor, preferência musical, até de nacionalidades distintas, etc.

O mundo não é feito de iguais.

Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus.

A escola é um ambiente de socialização essencial na formação dos indivíduos. Nela se aprende a conviver com o outro, desenvolvendo-se a alteridade necessária à vida em sociedade.

Ademais, a orientação religiosa de um cidadão não se sobrepõe à observância das normais legais que regem o país em que vive.

No Brasil, a educação é dever do Estado e da família, conforme estabelece o artigo 205 da Constituição Federal. Assim sendo, foi devidamente regulamentada mediante a sua divisão em ensino infantil, fundamentai, médio e superior.

Consequentemente, cabe à impetrante frequentar o ensino regularmente estabelecido e reconhecido pelo Poder Público. Nada impede, evidentemente, que em horário não colidente com o da escola, tenha contato com outros métodos de ensino, inclusive religiosos, que seus pais entendam adequados ao seu desenvolvido físico e psíquico, até porque a formação moral compete à família.

Se o aluno recebe uma boa educação em casa, estabelecendo os limites do certo e do errado, o que for ensinado na vida discente apenas acrescentará valores à sua formação. Não será, entretanto, capaz de mudar-lhe o comportamento a ponto de negar os ensinamentos que recebeu no lar.

Irresignados, os impetrantes manejaram os competentes recursos e interpuseram recurso de apelação para o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em seu apelo, os impetrantes reiteraram as principais razões contidas na petição inicial. Perante o Tribunal gaúcho, o Ministério Público[5] opinou pela manutenção da sentença e indeferimento da impetração. Essa opinião se fundou no cânone de que a educação é um dever do Estado e dos pais, e que consiste em um direito social fundamental da criança à educação, e que não há o direito de não frequentar a escola, cabendo aos pais zelar por essa frequência escolar. E, segundo o Parquet,  no conflito entre os direitos ideológicos e religiosos dos pais e os deveres deles com a educação escolar dos filhos, há de prevalecer este sobre aqueles.

O acórdão[6] do Tribunal de Justiça negou provimento ao apelo dos impetrantes e manteve a sentença, reforçando o aspecto de que não há que se falar em “direito líquido e certo”, visto que não há Lei confortando o interesse postulado. A decisão do TJ encampou os fundamentos normativos e os argumentos jurídicos deduzidos na sentença judicial. Nada obstante, vez mais irresignados, os impetrantes interpuseram recurso extraordinário[7] para o Supremo Tribunal Federal e alegaram:

  1. A obrigatoriedade de ensino prevista no art. 208, I, da Constituição, dirige-se somente ao Estado;
  2. A Constituição não pretende criar um Estado totalitário e paternalista que possa validamente se substituir aos pais na escolha da melhor educação a ser dada aos filhos (arts. 1º, caput, - ‘Estado Democrático de Direito’, e V – ‘pluralismo político’; 3º, I; 206, II e III);
  3. Cabe, sim, ao Poder Público fiscalizar as condições em que o ensino privado é ministrado, mas jamais proibir uma modalidade de ensino sem qualquer razão para tanto – a escola não é o único lugar em que as crianças podem ter contato com a diversidade;
  4. Ademais, é necessário, no presente caso, a aplicação do princípio da razoabilidade por tratar-se ‘de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, [...] por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema"2 (grifo nosso). Assim, os dispositivos da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, e da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que obrigam a matrícula devem ser interpretados dessa maneira: Os pais são obrigados a dar educação aos filhos, mas têm liberdade para escolher o melhor meio para tanto, considerados o interesse da criança e as suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas e religiosas. Nesse contexto, somente poderão ser obrigados a matricular seus filhos na rede regular de ensino se, de outra forma, não puderem prover à educação dos filhos.

Na petição de recurso extraordinário, além de repisar os fundamentos e argumentos esgrimidos desde a inicial, os recorrentes recordaram várias decisões no plano do direito comparado, visando demonstrar que em nações desenvolvidas, o respectivo Poder Judiciário reconheceu o ensino domiciliar, além de se fiar em respeitável magistério doutrinário justificador de sua pretensão, bem como invocando preceitos de textos normativos internacionais que autorizariam o reconhecimento do direito à educação domiciliar. No apelo extraordinário concluiu-se:

O acórdão da Apelação Cível n. 70052218047 é flagrantemente inconstitucional, uma vez que ao impedir a educação em casa, com realização de provas normais em sala de aula, restringe arbitrariamente o sentido da expressão educar no art. 229 da CF à realizada em estabelecimento de ensino convencional, ignorando os diversos princípios constitucionais relativos à educação, à família, bem como garantias fundamentais individuais.

Os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como os documentos relativos a direitos humanos de maior relevância para as modernas democracias são unânimes quanto à garantia do direito fundamental dos pais de escolherem os meios que julgarem mais apropriados para educar seus filhos.

Deve-se dar aos arts. 6° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevêem a obrigatoriedade de matrícula em estabelecimento de ensino, interpretação conforme a Constituição. Os pais são obrigados a dar educação aos filhos, mas têm liberdade para escolher o melhor meio para tanto, considerados o interesse da criança e as suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas e religiosas. Nesse contexto, somente poderão ser obrigados a matricular seus filhos na rede regular de ensino se, de outra forma, não puderem e prover à educação das crianças.  

Em face desse recurso extraordinário, o Município de Canela apresentou suas contrarrazões[8] e defendeu a manutenção do acórdão recorrido. Segundo o Município:

O ensino domiciliar não pode ser visto como um substituto do ensino escolar, mas sim como uma complementação, uma participação ética e conjunta dos pais na educação de seus filhos.

A escola proporciona o primeiro contato das crianças com a sociedade em que vivem, pois é o primeiro lugar que frequentam fora do âmbito familiar.

A participação dos pais na educação das crianças é essencial para o desenvolvimento escolar de seus filhos, pois são eles que fornecem suporte moral, social e emocional às crianças, por isso devem participar efetivamente da vida escolar delas, acompanhando seus estudos, auxiliando nas tarefas e incentivando a leitura.

Todavia, a ida à escola, o convívio diário com pessoas diferentes, com os professores, a realização de atividades de classe e em grupo são fundamentais, pois propiciam o desenvolvimento da criança, proporcionando o desenvolvimento da criatividade e do descobrimento de seus talentos.

A simples divisão de tarefas em uma atividade em grupo funciona como propulsora para a formação pessoal como ser humano, pois visualizam que cada pessoa tem seu papel na construção de um trabalho comum, aprendendo o porquê da convivência em sociedade.

No Supremo Tribunal Federal, o feito restou distribuído ao ministro Luís Roberto Barroso, que saneou vícios procedimentais e submeteu ao Tribunal a seguinte proposta de questão constitucional, que restou acolhida pela Corte: saber se o ensino domiciliar (homeschooling) pode ser proibido pelo Estado ou viabilizado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação, tal como previsto no art. 205 da CRFB/1988.

A relevância da referida controvérsia constitucional provocou a obrigatória manifestação da Procuradoria-Geral da República[9], e manifestações facultativas, como amici curiae, da Advocacia-Geral da União[10], do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal[11] e da Associação Nacional de Educação Domiciliar[12].

O Procurador-Geral da República (PGR) opinou no sentido do desprovimento do recurso extraordinário e pela ilicitude do ensino domiciliar. Eis trechos relevantes da ementa do parecer ministerial:

1 - Proposta de Tese: A utilização de instrumentos e métodos de ensino domiciliar (homeschooling) para crianças e adolescentes em idade escolar em substituição à educação em estabelecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis, não encontra fundamento próprio na Constituição Federal.

2 (...)

3 - Pais e responsáveis legais não têm autorização para, mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da escusa constitucional de consciência e de crença (art. 52, VI, da CF I 1988). Inexiste estipulação legal de prestação alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola (art. 52, VIII, da CF/1988).

4 - É inconcebível tutelar juridicamente práticas deliberadas de desescolarização no país, sem que haja previsão legal que as autorize e compatibilize com o imperativo constitucional de formação integral e socialização do educando.

5 - A Carta elevou a educação ao patamar de direito constitucional. Não está vedada, pela Constituição, a criação legal de estratégias alternativas ao ensino escolar, desde que resguardado o projeto constitucional de socialização e formação plena do educando. Novas formas de escolarização, meios de aferição da frequência escolar e outras variáveis do padrão pedagógico de ensino devem ser autorizados pelo Poder Legislativo, locus republicano de debate e deliberação públicos por excelência, dada a forte implicância política do tema.

6 - Impossibilidade de considerar, no que se refere ao caso sub judice, o ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito de cumprimento do dever de educação.   

Em seu parecer, o PGR formulou duas indagações para enfrentar o mérito da questão:

a) A utilização de instrumentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, em substituição à educação em estabelecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis, tem fundamento na própria Constituição Federal?

b) Em caso de resposta negativa para a primeira questão, é possível a adoção, pela via legislativa, dos referidos instrumentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, sem entrar em conflito com as disposições constitucionais?

O PGR, para alcançar suas conclusões às indagações acima elencadas, partiu da correta premissa de que a educação não se resume no processo ensino-aprendizagem de conteúdos curriculares, mas integra a iniciação da vida em sociedade, mediante o reconhecimento do outro e o respeito à diversidade e pluralidade. De porte dessa pré-compreensão, o PGR construiu suas alegações no sentido de que, enquanto não advier lei específica regulando o ensino domiciliar, não há espaço para esse modelo alternativo educacional em nosso País. Nesse caminho, o PGR buscou suporte nas experiências estrangeiras e colheu opiniões de respeitáveis especialistas educacionais, para concluir que a educação domiciliar, em si, não está vedada, mas que, no Brasil, ela necessita de autorização legal, o que não existe.

O Advogado-Geral da União (AGU) também se manifestou pelo desprovimento do recurso extraordinário forte na tese de que o ordenamento jurídico exige a frequência escolar para as crianças, competindo aos pais e professores zelarem por essa regularidade. Ademais, entende o AGU que o processo educacional é complexo e deve ser praticado tanto pela Escola quanto pela Família, com o auxílio da Comunidade, de sorte que não há espaço para a exclusividade educacional familiar ou domiciliar, em prejuízo da educação escolar, sobretudo para as famílias mais carentes. Outrossim, na escola a criança terá acesso a outros conhecimentos que talvez a família não consiga oportunizar, o que é válido para o seu processo de amadurecimento, como sucede com ensinamentos e práticas sobre diversidade, tolerância e pluralidade. Nessa perspectiva, escola e família, segundo a legislação brasileira, devem ser instituições galvanizadoras de um bom desenvolvimento e integral desenvolvimento da criança.

O Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, na mesma toada do PGR e do AGU, se manifestou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Em sua manifestação, o Colégio aduziu aspectos metajurídicos sobre o processo educacional, sobre os papéis da família, da escola e da comunidade. Também invocou decisões de outros tribunais e documentos normativos internacionais em favor de sua postulação. No entanto, o Colégio assinala que um dos papeis da escola é preservar os filhos de seus pais. Essa perspectiva é arriscada, pois coloca em xeque o papel central da família e dá valor sobranceiro à escola. Nada obstante, o Colégio reconhece a importância de uma escola capaz de ensinar, além de conhecimentos, valores indispensáveis para uma boa vida em sociedade. Daí que, para o Colégio, qualquer forma de ensino domiciliar é inconstitucional na medida em que afasta a criança da escola formal.

A Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANEDE), forte no fato de que a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural é a família, achegou pesquisa junto às famílias praticantes da educação domiciliar e recordou os Princípios do Rio elaborados e assinados pelos participantes do Global Home Education no ano de 2016, reiterando o papel sobranceiro da família na formação e educação dos filhos em face do Estado e, por essa razão, seria possível uma leitura do texto constitucional autorizadora de modelos educacionais alternativos aos modelos oficiais. Em sua manifestação, a ANEDE recordou decisões judiciais e o magistério doutrinário que colocam a dignidade da pessoa humana e o pluralismo ideológico (político, moral, religioso etc.) como fundamentos do Estado democrático e da sociedade brasileira. Isso implicaria o reconhecimento de modos de viver alternativos, mas dentro da normalidade institucionalizada, como sucede com o interesse ao “homeschooling”.

Nessa linha, a ANEDE reforçou a tese do caráter subsidiário do Estado em face da família, mormente em matéria educacional. Para isso, aduziu diplomas normativos internacionais de direitos humanos que, ao seu ver, endossariam a pretensão deduzida. Também evocaram a liberdade de crença religiosa em favor de sua postulação, na medida em que pretendem evitar que os filhos tenham acesso a magistério contrário ao das fés dos pais das crianças. Defenderam que a socialização das crianças participantes do “homeschooling” não é pior do que as das crianças das escolas formais, e que teriam, inclusive, melhores desempenhos intelectuais e emocionais do que as outras crianças. Ao final, a ANADE requereu:

a) O reconhecimento do modelo educacional conhecido no Brasil como Educação Domiciliar como um direito constitucional autoaplicável, podendo o Estado brasileiro, se assim o desejar, adotar os procedimentos necessários para registrar os educandos e seus responsáveis legais que optem pela prática, podendo, ainda, adotar parâmetros educacionais, pedagógicos e psico-pedagógicos atuais para medir os resultados educacionais dessas famílias optantes, em tudo levando-se em conta os ideais e princípios basilares de liberdade que fundamentam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a necessária colaboração da sociedade, assim como as finalidades da Educação Nacional insculpida na Constituição da República Federativa do Brasil;

b) Alternativamente, o reconhecimento do direito fundamental democrático à objeção de consciência como fundamento da adoção da educação domiciliar pelas famílias.

A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente[13] apresentou Nota Técnica sobre essa questão e se manifestou no sentido de que não há no ordenamento jurídico brasileiro autorização normativa para o “homeschooling” e que para que esse modelo passasse a existir, no Brasil, se faria necessária a edição de lei regulamentando com rigor esse modelo educacional, visto que a criança tem o direito de frequentar uma escola, ou pública ou privada, e os pais têm o dever de matriculá-la. Essa tem sido a opção normativa do Estado brasileiro, daí que somente se houver lei aprovada pelos legítimos representantes eleitos do povo é que se poderia cogitar de uma modelo educacional alternativo ao modelo educacional escolar. E que a Escola é um espaço que ocupa lugar relevante no processo de amadurecimento da criança, sem diminuir ou substituir o espaço central que é indiscutivelmente da Família. Mas ambas devem ter como perspectiva o melhor interesse da criança, seu desenvolvimento moral, espiritual e intelectual, e sua capacidade de conviver em uma sociedade plural e complexa.

De posse dessas alegações, os ministros do Supremo Tribunal Federal enfrentaram o tema. O relator, ministro Luís Roberto Barroso[14], expôs a controvérsia a partir de duas indagações redutoras de complexidade:

1. Podem os pais ou responsáveis por uma criança optarem pelo ensino domiciliar para a educação dos filhos ou a Constituição exige a matrícula das crianças na escola?

2. No caso de se admitir a educação domiciliar, quais são os requisitos e obrigações a serem observados, considerando que não há uma lei específica que regulamente o ensino domiciliar?

 Segundo o ministro relator, do ponto de vista jurídico não há norma constitucional específica sobre o tema (educação domiciliar), visto que a Constituição só cuida do ensino oficial. Logo há duas possibilidades interpretativas, segundo o relator: uma, a de que somente é possível o ensino formal, escolar, ou a segunda, de que como a Constituição não veda o ensino domiciliar, deve-se respeitar a autonomia dos pais na escolha do modelo educacional dos seus filhos. O relator parte de quatro premissas: primeira, o Estado brasileiro é gigantesco e ineficiente, e prática políticas públicas inadequadas e sem qualquer tipo de monitoramento; segunda, os resultados das avaliações educacionais estão sendo desoladores, que revelam a falência da educação pública brasileira; e terceira, por convicção filosófica, o relator é favorável à autonomia e a emancipação das pessoas, do que ao paternalismo e as intervenções heterônomas do Estado, salvo onde essas intervenções são indispensáveis; e quarta e última, o fato de se admitir a possibilidade de educação domiciliar não significa um juízo de valor sobre a eventual superioridade desse modelo em relação à educação escolar, mas que cabe a cada pai escolher qual o melhor modelo para os seus filhos.

Depois de fincar essas premissas, o relator passou a tecer comentários sobre o homeschooling, e analisou a situação dele e as suas várias modalidades.  E elencou sete razões para que os pais escolhessem essa modalidade educacional: primeira, o desejo de conduzir diretamente o desenvolvimento dos filhos; a segunda, o fornecimento de instrução moral, científica, filosófica e religiosa da forma que os pais consideram a mais adequada; a terceira, a proteção da integridade física ou mental dos educandos, retirando-os de ambientes escolares, agressivos, incapacitantes ou limitadores; quarta, o descontentamento com a real eficácia  do sistema escolar ofertado pela rede pública ou privada; quinta, o desenvolvimento de um plano de ensino personalizado e adaptado às peculiaridades das crianças e adolescentes; sexta, a crença da superioridade do método de ensino doméstico em relação aos métodos tradicionais empregados pela rede regular de ensino; e sétima, a dificuldade de acesso a instituições de ensino tradicionais em virtude de dificuldades financeiras ou geográficas. E, para o relator, são genuínas as preocupações dos pais com o desenvolvimento educacional e emocional dos seus filhos, pois nenhum pai ou mãe faz essa opção por preguiça, pois é mais difícil educar em casa do que encaminhar o filho para a escola.

No decorrer de seu voto, o relator buscou as exitosas experiências estrangeiras sobre o homeschooling, bem como de julgamentos de outras Cortes sobre o tema, e depois passou a enfrentar os argumentos contrários a esse modelo educacional, basicamente para dizer que não há na Constituição preceito que vede a adoção dessa modalidade educacional, e que a criança seria avaliada periodicamente para aferir o seu aprendizado. Ademais, recordou pesquisas empíricas demonstrando a inexistência de problemas de socialização de crianças que participam da educação domiciliar, e recordou diretivas internacionais que autorizariam aos pais escolher o gênero de educação dos filhos, inclusive em respeito à ampla livre iniciativa, não apenas no aspecto econômico, mas inclusive no plano das liberdades ideológicas, como as religiosas, de consciência e de convicções filosóficas ou políticas. Na finalização de seu voto, o relator fixou as seguintes teses para efeitos de repercussão geral:

É constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes em virtude da compatibilidade com finalidades e os valores da educação infanto-juvenil, expressos na Constituição de 1988;

Para evitar eventuais ilegalidades e garantir o desenvolvimento acadêmico das crianças e adolescentes,  e avaliar qualidade do ensino até que seja editada lei específica sobre tema com fundamento no artigo 209, os seguintes parâmetros devem ser seguidos:

1 Os pais ou responsáveis devem notificar secretaria municipal de educação a opção pela educação domiciliar de modo a se manter cadastro e registros dessas famílias que adotaram essa opção de ensino naquela localidade;

2 Educandos domésticos, mesmo que autorizados ao ensino em casa, devem ser submetidos às mesmas avaliações periódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas públicas ou privadas;

3 As secretarias municipais de educação, a partir do cadastro, devem indicar escola pública em que a criança irá realizar avaliações periódicas com preferência em estabelecimento de ensino mais próximo ao local de residência;

4 As secretarias municipais de educação podem compartilhar informações do cadastro com demais autoridades, como ministério público, conselhos municipais de direitos e/ou conselhos tutelares; e

5 Em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica verificada por meio do desempenho nas avaliações periódicas anuais, cabe aos órgãos públicos competentes notificarem os pais e na hipótese em que não haja melhoria do rendimento dos testes periódicos, determinar a matricula das crianças e adolescentes submetidas ao ensino doméstico na rede regular de ensino.

Segundo o relator, com essas regras estariam conciliados os diferentes interesses em jogo: o dos pais em educarem os seus filhos em casa, e os do Estado de verificar se o ensino domiciliar está permitindo o pleno desenvolvimento da criança. Em que pese os judiciosos argumentos do relator, a maioria do Tribunal dele divergiu. Essa divergência foi inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes[15], que restou secundado pelos demais ministros da Corte presentes na sessão de finalização do julgamento (Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Cármen Lúcia).

Em sua divergência vencedora, o ministro Alexandre de Moraes partiu de três premissas: a primeira, saber se a Constituição veda expressamente a educação domiciliar; a segunda, se não vedar expressamente, qual modelo de ensino domiciliar poderia ser válido; e terceira, se o ensino domiciliar é autoaplicável ou se há necessidade de regulamentação legal pelo Congresso Nacional.

E, segundo o ministro Alexandre de Moraes, não há vedação constitucional ao ensino domiciliar. Nada obstante, o ministro Alexandre diferencia educação de ensino. Para ele há uma solidariedade na educação envolvendo a família, o Estado e a sociedade, que devem compartilhar as responsabilidades pela educação das crianças, adolescentes e jovens. Daí que inafastável a participação da família na formação (educação, no sentido amplo) da criança, sem prejuízo da atividade de ensino (educação formal) da escola. E que nas democracias as famílias devem participar do processo de ensino e não se pode afastar a escola da educação. Há uma relação solidária e simbiótica, para que ambas cooperem, como parceiras, em favor dos interesses das crianças e dos adolescentes.  Nessa perspectiva, segundo o ministro Alexandre de Moraes, a educação domiciliar possível seria aquela que respeite os comandos constitucionais e legais pertinentes e similares à educação escolar, aceitando inclusive a participação estatal com a fiscalização e com os conteúdos básicos mínimos, a fim de aferir periodicamente os conhecimentos assimilados pelas crianças.

Porém, segundo o ministro Alexandre de Moraes, e eis a divergência central com o voto do relator ministro Luís Roberto Barroso, esse direito não é autoaplicável e diretamente extraído da Constituição, pois necessitam da intermediação legislativa do Congresso Nacional. Assim, somente haveria direito a educação domiciliar se houvesse lei específica regulando esse tema. É que para o ministro Alexandre de Moraes, todas as normas constitucionais e infraconstitucionais conduzem à educação escolar, mas não veda a possibilidade de educação domiciliar, desde que, reitera o ministro, haja legislação específica regulamentando o tema. Os demais ministros da Corte acompanharam a divergência e entenderam que não há direito à educação domiciliar à míngua de amparo legal. Em seus votos, os ministros acolheram os principais argumentos aduzidos pelas partes contrárias ao provimento do recurso.


4 CONCLUSÕES

A escola não deve substituir a família naquilo que é de competência desta, nem a família deve substituir a escola no que é de competência daquela. A família educa e também ensina, e a escola ensina e também educa. Ambas exercem de modo simbiótico uma relação cooperativa em favor da criança. Nas tristes hipóteses de famílias disfuncionais, a escola é um refúgio para criança, e na hipótese de escola disfuncional, a família é o esteio da criança.  Daí que a decisão do STF foi adequada, visto que, enquanto não advier lei regulando homeschooling, toda criança tem o direito de frequentar a escola e é dever dos pais e do Estado garantirem o exercício desse direito.


5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 888.815. Relator ministro Roberto Barroso. Redator do acórdão ministro Alexandre de Moraes. Julgamento em 12.9.2018. Acórdão ainda não publicado. Julgamento disponível no canal TV Justiça, na plataforma do Youtube: www.youtube.com.br.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. Mandado de Segurança n. 7.407. Relator ministro Peçanha Martins. Julgamento em 24.4.2002. Acórdão publicado em 21.3.2005. Acesso: www.stj.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição Inicial do Mandado de Segurança. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Sentença do Juiz de Direito da Comarca de Canela - RS. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Parecer do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição de Recurso Extraordinário. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição de Contrarrazões do Município de Canela. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Parecer do Procurador-Geral da República. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação do Advogado-Geral da União. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal. Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED). Acesso: www.stf.jus.br

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Nota Técnica. Processo SEI n. 00135212349/2018-02. Acesso: www.mdh.gov.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Voto ministro Luís Roberto Barroso. TV Justiça. Canal STF. Sessão de julgamento em 6.9.2018. Acesso: www.youtube.com.br

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Voto ministro Alexandre de Moraes. TV Justiça. Canal STF. Sessão de julgamento em 12.9.2018. Acesso: www.youtube.com.br


Notas

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 888.815. Relator ministro Roberto Barroso. Redator do acórdão ministro Alexandre de Moraes. Julgamento em 12.9.2018. Acórdão ainda não publicado. Julgamento disponível no canal TV Justiça, na plataforma do Youtube: www.youtube.com.br.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. Mandado de Segurança n. 7.407. Relator ministro Peçanha Martins. Julgamento em 24.4.2002. Acórdão publicado em 21.3.2005. Acesso: www.stj.jus.br.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição Inicial do Mandado de Segurança. Acesso: www.stf.jus.br

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Sentença do Juiz de Direito da Comarca de Canela - RS. Acesso: www.stf.jus.br

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Parecer do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Acesso: www.stf.jus.br

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acesso: www.stf.jus.br

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição de Recurso Extraordinário. Acesso: www.stf.jus.br

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Petição de Contrarrazões do Município de Canela. Acesso: www.stf.jus.br

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Parecer do Procurador-Geral da República. Acesso: www.stf.jus.br

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação do Advogado-Geral da União. Acesso: www.stf.jus.br

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal. Acesso: www.stf.jus.br

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Manifestação da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED). Acesso: www.stf.jus.br

[13]BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Nota Técnica. Processo SEI n. 00135212349/2018-02. Acesso: www.mdh.gov.br

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Voto ministro Luís Roberto Barroso. TV Justiça. Canal STF. Sessão de julgamento em 6.9.2018. Acesso: www.youtube.com.br

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 855.815. Voto ministro Alexandre de Moraes. TV Justiça. Canal STF. Sessão de julgamento em 12.9.2018. Acesso: www.youtube.com.br


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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ALVES JR., Luís Carlos Martins. A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus. Uma breve análise do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5801, 20 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73943. Acesso em: 28 mar. 2024.