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O psicopata e algumas considerações jurídicas pertinentes.

O psicopata e algumas considerações jurídicas pertinentes.

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Estudo sobre o transtorno de personalidade antissocial na dosimetria da pena, ressocialização, prevenção e repressão de condutas ilícitas e corrupção institucional organizada.

Sumário:1.Introdução. 2. Da(s) causa(s). 3. O transtorno antissocial. 4. Imputabilidade. 5. A segregação no sistema carcerário. 6. Ressocialização. 7. A abordagem terapêutica. 8. Medidas cautelares. 9. Transtorno de personalidade nas vítimas? 10. Os psicopatas e a corrupção institucional. 11. A personalidade do psicopata na dosimetria. 12. O ensino da ética como instrumento arrefecedor do psicopata institucional. 13. Filtros institucionais. 14. Conclusões.


1. Introdução.

Este artigo não tem a pretensão de discutir nuances muito específicas ou polêmicas da abordagem clínica da psicopatia, definida modernamente pelo professor Aaron T. Beck, entre outros, como um transtorno de personalidade antissocial. O objetivo será apresentar de forma resumida os principais traços cientificamente consagrados que distinguem a patologia, e tecer algumas possíveis repercussões no campo do Direito, a fim de auxiliar operadores que eventualmente precisem tratar do tema.


2. Da(s) causa(s).

Ainda persiste séria celeuma sobre a origem da psicopatia. A maioria dos especialistas prefere não reputá-la a uma causa isolada e desenvolver abordagens terapêuticas baseadas nos níveis de adequação comportamental. A hipótese fisiológica do distúrbio demandaria isolamento de uma área muito específica do cérebro responsável pelo discernimento ético, e a verificação de uma lesão obstrutiva desta capacidade de avaliação, mas isto ainda não pôde ser comprovado de modo inequívoco por nenhum pesquisador, a despeito de alguns testes terem detectado uma atividade neurológica deficitária na amígdala e no lobo frontal [SILVA, p. 161], bem como níveis acentuados de testosterona nos indivíduos do sexo masculino.


3. O transtorno antissocial.

O psiquiatra canadense Robert Hare, notório saber no assunto, citado por Ana Beatriz Barbosa Silva no best-seller ‘Mentes Perigosas’ [Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. P. 40.], esclarece que “os psicopatas têm total ciência de seus atos, (a parte cognitiva ou racional é perfeita), ou seja, sabem perfeitamente que estão infringindo regras sociais e porque estão agindo dessa maneira. A deficiência deles [...] está no campo dos afetos e das emoções [...] tanto faz ferir, maltratar ou até matar alguém que atravesse o seu caminho ou os seus interesses, mesmo que esse alguém faça parte de seu convívio íntimo.”

Emprestando a terminologia de Freud, o déficit estaria localizado na ausência de mediação do id e superego pelo ego, afetando a noção de auto-reprovabilidade de certas condutas e a elaboração adequada da culpa pelo sujeito cognoscente. [SINA, p. 14]

Trata-se de “uma visão de mundo pessoal, nunca interpessoal [...] não conseguem assumir o papel do outro. Pensam de maneira linear só antecipando reações [...] depois de responder aos próprios desejos [...] um sistema de avaliações e atribuições autoprotetoras. Por exemplo, [...] podem estar apenas ‘tomando emprestado’ dinheiro de seu empregador, pretendendo ‘pagar o ‘empréstimo’ assim que suas apostas renderem um bom dinheiro. ” [BECK, p. 151] “... vêem seus problemas como a incapacidade dos outros de aceitá-los ou como o desejo alheio de limitar sua liberdade.” [id. P. 152]

Alguns partidários da escola psicanalítica enxergam uma perversão originária, especialmente calcada no desejo desmedido de poder, sem os recalques da neurose ou a rejeição da realidade da psicose. O id enquanto componente inconsciente de pulsão regida pelo prazer, predominaria no aparelho psíquico sobre o superego (auto-censura), sem que pessoas ou leis pudessem simbolizar qualquer oposição aos desejos transviados. [DA SILVA, Pp.84-85]

Muitos traços do transtorno narcisista podem ser encontrados na personalidade antissocial [BECK, p. 212], mas o centro de atenção de um narcisista radica na auto-imagem, e os conflitos que provoca normalmente decorrem de superlativos irreais atribuídos a si mesmo. Diversamente, o foco do psicopata é a satisfação dos desejos. O narcisista pode evoluir à percepção afetiva da perspectiva dos outros e portanto ética [Id., 219]. Nos psicopatas uma tal afirmação seria inverossímil. Subjacente ou inconsciente ao narciso geralmente está presente um sentimento de baixa auto-estima ou inferioridade. O anti-social sempre se crê superior. Tanto o narcisista quanto o antissocial são autocentrados, difíceis de influenciar e irritantes devido à arrogância [Ibid., Pp. 206-207]. A aparência enganadoramente amistosa pode ser estragada por explosões impulsivas, comentários impiedosos e ações insensíveis. Usualmente são mentirosos contumazes, e até podem apresentar episódios de ansiedade ou depressão relacionados à frustração de algum objetivo egocêntrico como perda de poder [Ibid., p. 211].

É interessante distinguir a auto estima elevada considerada normal, do narcisismo. A primeira é baseada em uma “auto-avaliação realista de talentos, realizações e relacionamentos demonstrados, considerados em um contexto de oportunidades e normas sociais. Um feedback corretivo não desencadeia uma dramática perda de auto-estima.” No narcisista, a auto-estima é estabelecida “pelo sucesso exterior, e qualquer experiência que contesta esse sucesso torna-se uma ameaça para ela. Ele permanece firmemente enraizado na importância de uma imagem poderosa e impecável, assim como Narciso permaneceu enraizado no local admirando o seu reflexo.” [BECK, p. 210]

O diagnóstico da psicopatologia narcisista ordinariamente decorre da autopercepção de que “sem distinção ou sucesso superior a pessoa não seria importante e não valeria nada.” [Id. P. 211] A origem do transtorno estaria ligada à supercompensação e intolerância paterna de sentimentos de inferioridade ou insignificância, frustrações normais e provisórias da vida em geral, no(s) filho(s).

A despeito de algumas divergências sobre as características marginais do grupo antissocial, é unânime o entendimento de um núcleo composto de egocentrismo exacerbado, praticamente impermeável ao sentimento social, e o desafio constante a todo empecilho que lhe possa ser dirigido. [DA SILVA, p.76]. A décima revisão do CID confirma a deliberada ignorância do outro, das normas e obrigações; a crueldade, a baixa tolerância à frustração, e um diminuto limiar para evitar descargas reativas [Id., p.77.]


4. Imputabilidade

A imputabilidade é definida pela consciência do caráter ilícito de uma conduta, somada à potencialidade de não realizá-la por ação da vontade. Pode-se afirmar que a psicopatia não impede a imputabilidade para fins penais, respondendo ao elemento da culpabilidade devido à íntegra compreensão da gravidade e consequências dos atos praticados, a despeito da valoração moral inadequada. Esta valoração distorcida também não impede ordinariamente a inibição da maioria dos impulsos desajustados. Tanto que nenhum psicopata “só comete” atos reprováveis. Detém certa margem de autocontrole, ainda que por motivações amorais, muitos demonstrando impressionante paciência, embora alguns impulsos possam de fato extravasar de modo inconsciente.

Se todo tipo-penal é graduado pela pena abstrata e concreta definida em juízo, conforme a compreensão, intenção e capacidade de refrear-se do agente, causa certa perplexidade que muitos juristas ainda insistam em incluir psicopatas na categoria de semi-imputáveis sujeitos a redução de pena, ou doentes mentais adstritos à medidas de segurança ou internação, à letra do art.26, e par. único do Código Penal Brasileiro, respectivamente. Em recente julgado por homicídio, o Superior Tribunal de Justiça reformou Acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, decidindo que a personalidade de um indivíduo diagnosticado com transtorno antissocial pode ser valorada como circunstância judicial negativa, pois não há qualquer impedimento para a plena compreensão do caráter ilícito, nem para a autodeterminação da prática delitiva, autorizando a majoração da pena-base (RESp n. 1.331.087). O Voto condutor enalteceu que a psicopatia não se caracteriza como típica doença mental, mesmo catalogada na CID-10; M 0.2.

No Habeas Corpus n. 308246/SP, foi rechaçada a tese de ilegalidade flagrante no indeferimento de progressão de regime, tendo a decisão se ancorado em laudo psicológico que atestou o transtorno psicopático e o elevado risco de persistência delitiva. Também no Agravo em Execução n.º 70037159431, julgado pela 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Rio Grande do Sul, atestados carcerários de conduta satisfatória não foram suficientes para autorizar a progressão de regime de um antissocial, tendo em vista a narrativa recente de extrema frieza sobre o latrocínio cometido, à psicóloga, indicando periculosidade latente.

Se imputável na esfera penal, com muito maior razão o psicopata deve responder no âmbito cível e administrativo. Dependendo da conduta praticada e da gravidade, haverá improbidade passível de indenização e perda do cargo ou emprego público.


5. A segregação no sistema carcerário.

A Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva [Mentes ..., p.134.] enfatiza o porquê de instituir um sistema de separação dos psicopatas no sistema carcerário no Brasil: “[...] não existe um procedimento de diagnóstico para a psicopatia quando há solicitação de benefícios, redução de penas ou para julgar se o preso está apto a cumprir sua pena em um regime semi-aberto [...] Nos países onde a Escala Hare (PCL) foi aplicada com essa finalidade, constatou-se a redução de 2/3 nas taxas de reincidência de crimes mais graves e violentos.

A psiquiatra forense Hilda Morana, responsável pela tradução, adaptação e validação do PCL para o Brasil, além de tentar aplicar o teste para a identificação de psicopatas nos nossos presídios, lutou para convencer deputados a criar prisões especiais para eles. A ideia virou um projeto de lei que, lamentavelmente, não foi aprovado.

Um caso que exemplifica a importância de medidas como as descritas acima é o de Francisco Costa Rocha, mais conhecido como “Chico Picadinho”, autor de dois dos crimes de maior repercussão da história policial brasileira. Em 1966, Francisco, que até então parecia ser uma pessoa normal, matou e esquartejou a bailarina Margareth Suida em seu apartamento no centro de São Paulo. Chico foi condenado a 18 anos de reclusão por homicídio qualificado e mais dois anos e seis meses por destruição de cadáver [...] oito anos depois [...] foi libertado por bom comportamento. No parecer para concessão de liberdade condicional feito pelo então Instituto de Biotipologia Criminal constava que Francisco tinha ‘personalidade com distúrbio profundamente neurótico’, excluído o diagnóstico de personalidade psicopática. No dia 15 de outubro de 1976, Francisco matou Ângela de Souza da Silva com os mesmos requintes de crueldade e sadismo do seu crime anterior. Chico foi condenado a trinta anos de reclusão e permanece preso até hoje.”

No Brasil, o exame criminológico de presos deixou de ser obrigatório, tendo a Lei Federal n.º 10.792/2003 suprimido a exigência do art. 112 da Lei de Execução Penal (v. ainda a Súmula Vinculante n.º 26 do STF e Súmula n.º 439 do STJ), mas veremos que se revela indispensável para uma definição mais precisa da pena e da capacidade de ressocialização.


6. Ressocialização.

O art.1º da Lei Federal n.º 7.210/84 dispõe: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado.” A plausibilidade de ressocialização de um psicopata em execução de pena encontra-se centrada no fato de que o seu comportamento pode ser controlado por ele mesmo, embora por razões diversas das de um indivíduo normal. Assim como o vício, a ausência de cura dos impulsos propriamente ditos não significa a impossibilidade perpétua de adequação social, pois embora o sujeito não seja capaz de desenvolver o senso crítico sobre a eticidade das condutas que pratica, geralmente entende as inconveniências mais pueris de ver-se privado da liberdade, refreando posturas. Uma adequação utilitária ou pragmática, por assim dizer.

Com efeito, “... a variação do controle dos impulsos percorre o intervalo que vai dos indivíduos que evidenciam excelente controle, enquanto esperam pacientemente pela chance de conseguirem o que querem (por exemplo, os autores de desfalques). Outros são oportunistas, que buscam e agarram o que querem, sem pensar nas consequências (por exemplo, assaltantes). Há, ainda, aqueles que apresentam uma combinação de bom controle dos impulsos com oportunismo episódico. [BECK, p.150] Esta miríade de níveis ou graus de psicopatia, e a práxis pericial forense, indicam um caráter ressocializável em geral, embora não recomendável a todos os casos.

Para a Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva [p. 165], haveria um agente causador e outro catalizador da psicopatia: “uma disfunção neurobiológica e o conjunto de influências sociais e educativas que o psicopata recebe ao longo de sua vida.” A violência e a insensibilidade emocional o transformariam em delinquente, enquanto um sistema educacional competente, desde a família, poderia canalizá-lo para atividades toleradas, evitando repercussões criminais mais graves. A tese é plausível, pois todo psicopata na maior parte do tempo costuma mimetizar comportamentos normais para disfarçar as reais intenções. Ao mesmo tempo em que isto serve de marcador da imputabilidade, sugere que possa ser “treinado” para incrementar a capacidade adaptativa a níveis toleráveis, a partir de um pormenorizado e periódico trabalho terapêutico. Obviamente, isto depende do grau de periculosidade e da disposição cooperativa verificadas caso a caso. Certo é que, sem este acompanhamento, tende a engrossar a lista de reincidentes.


7. A abordagem terapêutica.

Os antissociais têm um certo prazer ou mendacidade pelo risco de praticar atos contrários às leis ou costumes, supondo-se superiores à ordem instituída. O seu comportamento leva milhões de pessoas, em todo o mundo, a sofrer sérias lesões na integridade psíquica e física, de maneira sistemática, duradoura e profunda, quando não à morte. Por isto, devem ser objeto de mais cuidadosa e efetiva ação do Estado. Mesmo quando presos, psicopatas tendem a resistir ao processo analítico.

O professor Aaron Beck (e colaboradores, p. 147), acentua esta dificuldade de convencê-los à dialogar com psicanalistas, pois entre os encarcerados são os únicos despidos de qualquer arrependimento. Isto é, podem tecer afirmações de que “estão arrependidos”, mas somente para obter alguma vantagem momentânea como acelerar o fim da entrevista, ou tentar manipular resultados dos laudos e obter benefícios.

Sem elaboração de culpa, como evoluir? Noções como “certo” e “errado” são desprezadas. Esta premissa de trabalho é essencial para qualquer profissional que se debruce sobre um caso envolvendo antissocial, seja sob a perspectiva terapêutica, e mesmo jurídica. Quando na defesa em processos judiciais, aliás, perfaz-se prudente acercar-se de algumas medidas que resguardem a representação legal de imputações ético-disciplinares por mentiras do acusado irrogadas em juízo. P.ex., pela subscrição conjunta da petição de defesa e razões finais quanto aos fatos narrados, visto que ao advogado não é permitido alterá-los (art. 6º, Código de Ética), senão debruçar-se sobre déficits probatórios a respeito de sua ocorrência ou circunstâncias em que se deram, além de contraditar enquadramentos típicos das condutas infirmadas.

A “motivação para estes indivíduos procurarem tratamento normalmente resulta de uma fonte (ou força) externa, que pressiona para que ele ‘mude’. Membros da família, outros significativos, empregadores, professores ou, mais frequentemente, o sistema judiciário criminal podem insistir para que a pessoa com TPAS busque tratamento, devido a comportamentos inaceitáveis ou relacionamentos interpessoais tensos. [...] Em muitos casos, a liberdade condicional depende da frequência à psicoterapia [...] também podem procurar clínicas, voluntariamente, com queixas falsas de problemas físicos ou psicopatologia, a fim de obterem uma prescrição de alguma substância controlada. Nesse caso, é extremamente importante separar os problemas psicológicos identificáveis e o tratamento apropriado da tentativa de manipulação.”[BECK, p. 147]

Já se nota que a ausência de empatia e motivação, e a hipótese de defeito genético, seriam alguns dos empecilhos teóricos para uma proposta analítica da psicopatia. De outro modo, para aqueles que a defendem como Beck e Hare, a questão estaria radicada em diferenciar com maior rigor os aspectos motivacionais e cognitivos, já que “sob muitas condições, os psicopatas [...] aprendem com a experiência, quando as contingências são imediatas, bem especificadas, tangíveis e pessoalmente relevantes – tal como obter ou perder acesso a cigarros [...]” [BECK, p.149]

Alguns casos clínicos descritos no estudo atestam que o sucesso da empreitada de fato dependerá da descoberta de algum estimulante particular que motive o paciente a dialogar com o terapeuta, mesmo que alheio à auto-avaliação ética. A grosso modo, a troca de benefícios como reduções de pena por delações que apontem provas, co-autorias e participações delitivas perante órgãos do parquet, têm tido sucesso no Brasil, justamente em razão do apego utilitarista (e nada idealista) de psicopatas envolvidos em crimes contra a administração pública.

Ainda conforme Beck [p.149/ss.], a Associação Psiquiátrica Norte-Americana apresenta alguns nortes para o diagnóstico da psicopatia: sob o aspecto cognitivo -- isto é à maneira de interpretar --, seria possível identificar uma crença em regras diversas para si, ou que as regras a todos imposta não lhes seria aplicável (i); uma preocupação muito incisiva de controlar e evitar o controle alheio (ii); a afetividade sincera inexistente e a resposta emocional comprometida por reações destemperadas contra terceiros, ou dirigidas a si pelo uso de entorpecentes (iii). O funcionamento interpessoal apresentando déficits, causando ações inapropriadas [surpreendentes] (o autor cita pegar um objeto alheio para si), e a falta de sinergia em grupo também. Alguns, no entanto, destacadamente os estelionatários, apresentariam alguma desenvoltura interpessoal com foco na manipulação (iv).

Prossegue, dizendo que “uma discussão completa da história de vida do paciente é necessária [...] Isso pode incluir uma revisão dos relacionamentos, das realizações acadêmicas e profissionais, do serviço militar, além de registro de prisões e condenações, assim como das circunstâncias de vida, saúde física, história de abuso de substâncias e autoconceito. Também devem ser feitas tentativas de revisar fontes adicionais de dados, de modo a não confiar inteiramente no ponto de vista do paciente.” [BECK, p. 151] Eis a importância dos relatos de convivas na definição do transtorno antissocial. O terapeuta deve estar familiarizado com um diagnóstico pautado pela ausência de repertório afetivo significante por parte do paciente em relação às suas vítimas, contrastando-o ao equilíbrio psicológico afetado negativamente dessas mesmas vítimas, sempre que possível. Quando num contexto assediador laborativo ou familiar, o laudo deve servir para solucioná-lo por via jurisdicional.

Para Beck, a terapia analítica de antissociais pode lograr bons resultados quanto à “assunção de perspectivas, controle de impulsos, comunicação efetiva, regulação das emoções, tolerância à frustração, assertividade, pensamento consequencial, adiamento de resposta e reestruturação cognitiva.” [p. 158]


8. Medidas cautelares.

As recomendações técnicas dirigidas aos médicos e psicólogos que lidam com psicopatas sugerem severas alterações de postura hermenêutica preventiva por parte de autoridades legislativas, policiais, ministeriais e judiciais constituídas. Um terapeuta está preparado para lidar com episódios de raiva, dissociação, desonestidade, estresse, esgotamento, apatia, impaciência, frustração, futilidade, humilhação, hostilidade, inflexibilidade, frieza emocional, entre outras dificuldades para o rapport. [BECK, P.154] A vítima não.

No seio familiar, laboral e social em geral, deve-se priorizar a avaliação do nível de psicopatia de um suspeito e, sendo o caso, buscar a restrição da liberdade ambulatória, do exercício profissional; ou o afastamento cautelar do lar, empresa ou órgão público, utilizando testes de metodologia consagrada internacionalmente. É preciso registrar detalhadamente o depoimento de vítimas e testemunhas, evitando maiores prejuízos num ambiente possivelmente caracterizado por ameaças, acobertamentos e ações intimidadoras voltadas a elidir flagrantes e manter intacto o estado das coisas. Dependendo dos ilícitos em curso, recorrer à quebra de sigilos que possam suprir a ausência de transparência pelo medo generalizado que costuma amparar a ação psicopática.

No meio ambiente do trabalho, o assédio moral praticado por um psicopata não costuma ser episódico ou calcado em vaidades mais corriqueiras, mas prolongado e humilhante, disfarçado até pela vergonha de vítimas confusas pela ambiguidade das violências íntimas sofridas, alternadas à atuações “hollywoodianas” do agressor para encobri-las, como se nada estivesse acontecendo.

Um indivíduo diagnosticado com alto nível de psicopatia só pode ser detido e readaptado pelo Estado, já que a educação familiar e escolar não puderam amenizar os efeitos práticos do transtorno. O que usualmente justifica a sua permanência institucional em posições de poder é um mascaramento do problema em classes mais abastadas, distantes da criminalidade mais evidente do cotidiano policial. Surpreendentemente, os estragos provocados nestas posições privilegiadas são até mais abrangentes, atingindo um maior número de pessoas e volume de recursos públicos ou privados, reclamando medidas pontuais capazes de isolá-los do meio em que se manifestam prejudiciais.

No caso da abordagem terapêutica proposta pelo professor Aaron T. Beck, baseado em estudos de R. Kagan (1986), ao invés de tentar inutilmente construir uma estrutura moral pela indução de afetos como ansiedade e vergonha, o progresso cognitivo eclodirá de estímulos que desenvolvam operações intelectivas menos imediatistas, concretas e circunscritas; e mais mediatas, abstratas e amplas. O sucesso do tratamento naturalmente é limitado pois inexiste alta (cura), mas o manejo dos comportamentos disruptivos para o convívio em ambientes institucionais de fato pode ser alcançado [BECK, p.152]


9. Transtorno de personalidade nas vítimas?

Talvez o Sancho Pança de Miguel de Cervantes espelhe um pouco do acoplamento psicológico de um dependente emocional a um ilusionista da realidade. Embora Dom Quixote não se assemelhe ao psicopata, a fidelidade cega do escudeiro às aventuras imaginárias do “cavaleiro” só pode ser explicada pela carência de uma autoridade (paternal) que inconscientemente supõe-se necessária, déficits de auto-estima e notas depressivas.

O psicólogo polonês Andrew Lobaczewski [Ponerologia, pp. 72-73], e também o psiquiatra argentino José Ingenieros [O Homem Medíocre, Ed. Chain 2aed], partindo de observações históricas comuns sobre as senóides entre a prosperidade e a decadência moral dos povos, perceberam, nos baixios, um sensível fenômeno de ‘histeria coletiva’, a envolver e estimular o aparecimento (ou a maior facilidade de acesso ao poder e com isto proeminência), de indivíduos psicopatas.

Convém registrar que o conceito de histeria variou muito desde Freud até assumir-se como transtorno histriônico. Possivelmente, nem este corresponda perfeitamente à observação original do psicólogo polonês, caracterizada fundamentalmente pela insegurança e dependência emocional na idade adulta, o que pode ser mais adequadamente verificado, na contemporaneidade, no transtorno da personalidade dependente. [BECK, p.230-231] A histeria propriamente dita foi tratada pela psicanálise de Freud [Obras Completas vol. 2. Companhia das Letras, 2016.]. O médico vienense observou que alguns dos sintomas comuns envolviam repressões de cunho sexual, e estudos posteriores indicaram indivíduos excessivamente emotivos, imaturos, egocêntricos e erotizados. [BECK, P. 190] Também a instabilidade (labilidade) de humor, a auto-dramatização e, nas mulheres, um fenótipo geralmente atraente, puderam ser estatisticamente registrados. [ID., p. 191] Os indivíduos histéricos hoje são considerados em geral superficiais, egoístas, ansiosos, vaidosos, e quando o diagnóstico se dá em homens encontra-se comumente associado à homossexualidade, podendo ou não envolver neuroses. [IBID., 192]

A par destas características mais esporádicas, as vítimas de psicopatas são por excelência reativas à rejeição, isto é, dependentes emocionais compulsivas, o que explica o acoplamento parasitário praticamente infenso à percepção dos desvios de caráter num primeiro momento; e a aceitação ilógica num segundo. Em casos extremos, a reação virá muito tarde, após a violência física derradeira ou a bancarrota econômica, sendo comum a prodigalidade associada no anti-social.

O dependente afetivo frequentemente confunde as próprias emoções com a realidade. Isto é, acredita mais na imaginação ou na versão emotiva dos fatos, do que os próprios fatos em si. Nos dramas da vida conjugal atribui-se esta cegueira à ‘paixão’. A dependência – evidentemente estimulada pela ambiguidade e auto-segurança extremadas do psicopata --, pode provocar severos quadros depressivos e paranóicos, dependendo do tempo de exposição à violência psicológica e ao ‘teatro’ emocional para mantê-la. A vítima tende à preservar o comportamento tipicamente emotivo, inseguro e medroso durante uma relação a nível conjugal. Mas também vaidoso, possivelmente porque o ideal inatingível ou idílico (obter amor de uma criatura incapaz de amar), a fascina. A habilidade em lidar com os sentimentos próprios será insuficiente e até mesmo inconsequente, podendo levar à beligerância que dá margem ao inevitável fracasso de buscar incentivar um parceiro impassível de afetividade sincera. O desgaste é certo.

O psicopata não pode suprir ninguém com sentimentos reais. A vítima envolvida num relacionamento mais íntimo se apaixona pelo ideal projetado e esquece de reter a realidade vivida. O convívio é periférico, insuficiente, baseado em medos e rejeições. Sem coragem e deixando de adotar ações concretas para neutralizá-lo, terá sorte se puder se afastar, antes que o processo se deteriore a níveis irreversíveis.

A separação de corpos na área de família e o acompanhamento policial são os únicos meios seguros de lidar com um psicopata inserido no lar. O terapeuta é fundamental para esta libertação, pois é preciso estimular a coragem e a aquisição de meios para fazê-lo.


10. Os psicopatas e a corrupção institucional.

O psicólogo A. Lobaczewski também ponderou que lesões cerebrais poderiam afetar o discernimento ético de um psicopata, mas acabou desenvolvendo uma das mais competentes pesquisas (clandestinas) do perfil psicológico envolvido na corrupção institucional, após uma série de entrevistas com pacientes vítimas do aparato comunista -- um prelúdio às terapias cognitivas modernas.

A análise preliminar dos processos patológicos envolvendo Sindicatos corrompidos foi bastante feliz e pode ser tranquilamente transposta para o universo dos partidos políticos, governos e empresas em geral: “Os indivíduos psicopatas geralmente ficam longe de organizações sociais caracterizadas pela razão e pela disciplina ética. Afinal, estas organizações são criadas por aquele outro mundo de pessoas normais tão estranhas a eles [...] sentem desprezo por várias ideologias sociais, enquanto, ao mesmo tempo, discernem facilmente seus defeitos reais. Contudo, uma vez que o processo de transformação ponérica de uma união humana para uma caricatura equivalente ainda não definida se inicia e avança o suficiente, eles percebem esse fato com sensibilidade praticamente infalível: um círculo foi criado, no qual eles podem esconder suas falhas e suas desigualdades psicológicas, encontrar seus próprios modus vivendi, e talvez até realizar seu sonho utópico de juventude, de um mundo onde eles estão no poder e todas aquelas outras ‘pessoas normais’ são forçadas à servidão [...] começam então a se infiltrar nos postos e fileiras de tal movimento. Fingir serem adeptos sinceros não é uma dificuldade para os psicopatas, uma vez que representar um papel e se esconder atrás de uma máscara de pessoas normais é uma segunda natureza para eles [...] Uma rede cada vez mais forte, formada por psicopatas e indivíduos relacionados, começa a gradualmente ter domínio, ofuscando os demais. Os indivíduos caractereopatas [idealistas] [...] também são eliminados [...] O papel inspirador da psicopatia essencial é agora também consolidado. Ele permanece característico por todo o futuro desse fenômeno macrossocial [...] o bloco patológico do movimento continua sendo uma minoria [...] a vida inteira de uma sociedade que foi afetada torna-se assim subordinada a critérios de pensamento anômalos e permeados por seus modos de experiência específicos [...] Eu devo concordar com a denominação de patocracia [...] onde uma minoria patológica assume o controle sobre uma sociedade de pessoas normais.” [LOBACZEWSKI, p. 167]

A disseminação de psicopatas organizados no poder sugere um vínculo muito próprio de afinidade: “todas as posições de liderança [...] devem ser preenchidas por indivíduos com anomalias psicológicas correspondentes [...] eles são considerados os mais leais [...] Sob tais condições, nenhuma área da vida social pode se desenvolver normalmente [...] As pessoas normais tendem a desenvolver um nível de paciência além do alcance de qualquer pessoa que vive em um sistema do homem normal, somente a fim de explicar o que fazer e como fazer para alguma mediocridade obtusa de um deficiente psicológico, que foi colocado em uma posição como responsável por algum projeto que ele não pode entender, muito menos gerenciar.” [Id., p. 168]

A ilação leva a crer que é falsa a afirmação de que o psicopata possui QI elevado. A maioria simplesmente se vale da boa-fé dos normais que os rodeiam e jamais acreditariam em golpes tão ousados. Por isto mesmo o psicopata “nem sempre, ou raramente é pego cometendo atitudes criminosas [ostensivas] [...] vive [comumente] no ambiente de trabalho, dissimulando atitudes, pronto para dar o bote como uma cobra sobre sua presa.” [SINA, p.4-5] Também “se descobrem” coletivamente nas instituições, agindo em conluio para assaltá-la. Trata-se de um acordo explícito ou implícito, consciente ou inconsciente, forjado a partir de um momento de identificação mútua de interesses.

Há cerca de 4% de psicopatas na sociedade mundial, dos quais ¾ homens. Algo em torno de setenta milhões de pessoas, sendo muito difícil que qualquer um de nós não tenha que conviver com um destes em algum momento da vida profissional, seja na iniciativa privada ou no poder público, especialmente em entidades comprometidas pelo fisiologismo e pouca transparência. A estruturação das cúpulas de governo por meio de afinidades egocêntricas e as tradicionais ‘dívidas eleitorais’ constituem terreno fértil para a proliferação psicopática associativa organizada.

Três eixos gerais do transtorno antissocial se destacam no ambiente institucional: o narcisismo patológico, ou seja, uma impressão superlativa sobre si mesmo; o maquiavelismo, que decorre da falta de empatia e espelha a ausência de escrúpulo; e a hostilidade interpessoal, imprimindo uma rotina extenuante e sórdida a quem convive com estes agentes sem participar ‘do esquema’. [SINA, Pp.26-28]

Outro psiquiatra que desenvolveu trabalho louvável, sob um enfoque terapêutico mais voltado às vítimas de psicopatas (no holocausto nazista, ele mesmo foi uma), foi o Dr. Victor E. Frankl. [Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2008. 36ª ed.] Diz-nos o autor que a motivação primária de um ser humano [normal] são seus ideais e valores, eventualmente representados por um ente querido. Algumas pesquisas atestaram que a maioria das pessoas até morreria para defendê-los. Se estes ideais estiverem embotados, o terapeuta deve (re) conduzir o analisado à percepção consciente deste ‘sentido’ necessário à existência, indo além da mera satisfação de impulsos e instintos, método que chamou de logoterapia.

Se transpormos o enfoque de Frankl para o psicopata, notaremos um escopo cognitivo rudimentar, distorcido, não afetado por processo auto-reflexivo mas pelo contrário, mesquinho, carente de ideais de vida, demarcado por um surpreendente desprezo por sentimentos e afeições alheios. Isto acaba cedo ou tarde afetando as dimensões da honra, da salubridade psíquica, da integridade física, do convívio familiar e social, do trabalho e do patrimônio de terceiros. Um psicopata frequentemente ofende um ou mais destes direitos, incorrendo em ilicitudes que precisam ser investigadas e punidas adequadamente.

Não se deve confundir as relações superficiais e instáveis que um psicopata comumente promove com o sentimento de afeto sincero que move os seres humanos para a amizade ou algo mais íntimo. Aquele, do mais grave ao menos grave, objeta pessoas como artigos de satisfação pessoal, até mesmo os eventuais filhos, comumente usados para forjar um ambiente familiar normal. Um “jogo” envolvendo mentiras que lhe propiciam certa satisfação anômala.

Quando as pessoas à volta não são tratadas como empecilho a ser removido, estão servindo de alguma maneira ao propósito fraudulento do antissocial. Isto vai da satisfação sexual ao suprimento da preguiça ou ignonímia ao esforço que costuma lhes caracterizar – daí a busca constante de funções insubordinadas de mando no meio ambiente laboral, evitando transparecer a desídia. A autora Amalia Sina [Psicopata Corporativo], explica que o transtornado “delega todo tipo de atividade que gera trabalho pesado, investimento de tempo e necessidade de real dedicação. Ou seja, o que puder passar para alguém fazer por ele, assim o fará. O crédito do resultado, se positivo, será dele. Se negativo, não dará apoio.” [p.8] “...se alicerça na autopromoção baseada no esforço alheio, ou seja, subir a qualquer preço, nas costas de suas vítimas [...] são transgressores contumazes, que vivem nesta dinâmica de usar as pessoas para seu próprio benefício, atuando sem misericórdia e sem dó.” [p. 11] E têm “boa memória, não se esquece[m] de seus inimigos e aprecia[m] se vingar sem que ninguém saiba, pois importante é que a pessoa sofra (e muito).” [p.12]

Isto não quer dizer que não possam realizar alguns projetos e trabalhos com intuito de mascarar as más tendências, especialmente quando percebem a iminência de um flagrante. É da índole do antissocial agir de maneira “escusa, traindo e fraudando informações [...] não há seres semelhantes: ele só vê a si mesmo e seus próprios interesses”. Causam “muitos danos físicos e morais dentro das organizações”. [Pp.8-9] “...procura[m] continuamente uma gratificação psicológica, sexual ou ainda ações impulsivas que lhe[s] deixe[m] excitado[s].”

Já se nota que o principal efeito deste tipo de transtorno é a orientação das principais ações profissionais ao poder, pois por meio dele o psicopata pode externar a sujeição incondicional de vítimas, sustentar inconsistências de caráter pelo tempo necessário -- mesmo contra àqueles que percebem as investidas, nem sempre sofisticadas ao ponto de tornarem-se imperceptíveis.

Preconceitos religiosos relacionados ao ‘perdão’ nas vítimas podem e frequentemente levam à subestimação das ações de um ou vários psicopatas, delongando contramedidas institucionais profiláticas.

Se a meta do psicopata é o poder, nenhum cenário se revela mais conveniente que o exercício de um mandato eleitoral. Este aspecto suscita sérias indagações, já que a altura destes cargos em algum momento fará transparecer o ilícito. Primeiramente, e preciso entender o porquê das sociedades em geral tolerarem por tanto tempo os prejuízos causados por psicopatas eleitos, para além de alguns privilégios legais burocráticos que dificultem a sua destituição. Afinal, desde o declínio das monarquias absolutistas e o advento das repúblicas, a repartição do poder tornou-se um marco de salubre desenvolvimento do Estado, tanto quanto possível institucional e impessoal. Alguns regimes como o de Chaves e Maduro na Venezuela, e outros autocratas travestidos de democracia que a história moderna registra, ilustram bem o consternamento.

Retornando ao fascínio do ‘histérico’ [dependente emocional] pelo psicopata, Lobaczewski cita um primeiro alerta. A ‘histeria coletiva’ estaria diagnosticada em uma desproporção valorativa, p.ex. a “mania de ficar ofendido por qualquer coisa”, provocando “retaliações constantes” , uma espécie de vitimismo vulgar por fatos pueris, o que tanto pode ser observado na comunidade estadunidense do final do éculo XX (palco de leitura do autor), quanto na sociedade brasileira atual, bastando constatar a quantidade de litígios surgidos de discussões sem qualquer sentido ou relevância, a entupir os escaninhos da justiça. Recentemente, em pleno 2019, foi noticiado que um cliente de um dado bar processara o dono do estabelecimento devido ao “tamanho do copo de caipirinha” que lhe fôra servido...

É possível acrescentar ainda à observação o reverso – o quanto causas realmente importantes como homicídios e crimes de corrupção no poder público, praticados à obviedade por psicopatas, consumindo incontáveis vidas humanas, direta e indiretamente no Brasil, deixam de ser investigadas e punidas adequadamente. Para além de desculpas calcadas em “dificuldades probatórias” e “condições de trabalho”, o elevado fato estatístico de homicídios e crimes contra o erário sem solução no país ( https://www.google.com/amp/s/oglobo.globo.com/brasil/no-brasil-so-5-dos-homicidios-sao-elucidados-7279090%3fversao=amp ; https://www.google.com/amp/s/oglobo.globo.com/brasil/desde-1988-so-16-parlamentares-foram-condenados-por-crimes-contra-administracao-17547627%3fversao=amp ) – ou com solução periférica, circunstancial, sem alterações institucionais substanciais preventivas --, demonstram que a percepção da verdade, por muitas autoridades persecutórias investidas, também se encontra deteriorada e provavelmente associada a transtornos que afetam a sensibilidade crítica dita normal. Estes transtornos devem ser diagnosticados previamente ao concurso, o que não dispensa o acompanhamento analítico posterior. Pelo menos o descarte da psicopatia deve figurar como requisito essencial para o acesso a cargos de juízes, procuradores e promotores públicos. 

Acrescente-se que teorias da prova que subvaloram vestígios têm se mostrado insuficientes para punir a ação psicopática organizada, especializada em ocultar provas e obscurecer responsabilidades. Muitos antissociais exercem cargos ou empregos que envolvem poder econômico ou político, e dificilmente acabam punidos devido ao lustro aparente que usam para confundir, mesmo quando delatados às autoridades. São exímios ocultadores de provas e muitos conhecem perfeitamente as leis e regulamentos que infringem e o funcionamento do Poder Judiciário, antevendo-se às ações da polícia e do Ministério Público. O psicopata geralmente procura a posição de mando, eventualmente a de conciglieri, porque estas lhes dão margem para expedir diretrizes verbais sem necessidade de registro e prestação de contas a quem quer que seja. Eis porque a transparência das decisões políticas no Estado, materializada em processos administrativos fundamentados, é tão evitada por tais figuras, a reclamar leis que a obriguem.


11. A personalidade do psicopata na dosimetria.

Longe de apresentar qualquer mácula de inconstitucionalidade por atipia, a avaliação criminal da personalidade já se encontra sedimentada na práxis jurisprudencial, intuitivamente materializada em jargões como “indivíduo tendente ou predisposto à delinquência”, ou ainda “de ação contumaz”, entre outros. Simplesmente o fruto da presença recorrente destes acusados nos meios policiais e judiciários.

Vimos que a potencialidade de ressocialização de um psicopata depende fundamentalmente de sua disposição para refrear os impulsos antissociais pela conveniência mais imediata de manter-se livre da prisão, ainda que despido de avaliação ética sobre as condutas que o levam ao cárcere. E que esta sutil e importante medição analítica deve ser realizada por um profissional habilitado a fazê-la. Mas, retornando ao momento de fixação da pena no processo condenatório, caso precedido de um diagnóstico do transtorno, parece coerente afirmar que esta prova milite a princípio em favor da acusação e de um agravamento circunstancial da pena-base prevista em abstrato, atendendo ao art. 59 do Código Penal. E na fase de execução da pena, evite a progressão, o indulto e o livramento condicional, colocando o psicopata em contato precoce com a sociedade.

Sem embargo, o interesse da perícia psiquiátrica e psicológica pela defesa pode tanto radicar na constatação de alguma doença mental traduzível em inimputabilidade, ou semi-imputabilidade tratável por medida de segurança ou internamento; quanto de algum outro transtorno de personalidade em que a noção de culpa e remorso não esteja inexoravelmente comprometida, geralmente o transtorno narcisista típico. Haveria ainda a hipótese de que o psicopata diagnosticado e submetido a tratamento prévio à condenação possa estar respondendo satisfatoriamente a um processo analítico capaz de discernir um nível desprezível de potencialidade lesiva futura. E que isto se dê a partir de uma detecção de processo consciente que o detento manifeste ao analista, estabelecendo claramente a percepção causal entre uma conduta que afete terceiro e o retorno à prisão, ao longo de um período de consultas capaz de constatar a autenticidade deste aprendizado. No caso de imputados que estejam cumprindo decretação de prisão preventiva, a perícia pode servir do mesmo modo.


12. O ensino da ética como instrumento arrefecedor do psicopata institucional.

Há um aspecto educacional que merece atenção. Se a adequada avaliação entre o certo e o errado, o importante e o desimportante, o bem e o mal, também é uma condição pedagógica, falhas estruturais na educação provavelmente estejam agregando amplitude à ‘histeria coletiva’ de que nos fala Lobaczewski, evitando a adequada identificação, segregação e readequação social dos psicopatas. Olhando um pouco para trás, a disciplina moral e cívica (Organização Social e Política do Brasil, Dec.-Lei 869/69) foi suprimida da rede curricular. O ensino das limitações egocêntricas encontra-se bastante prejudicado no seio familiar. Quem não aprendeu o que é ser ético (e o porquê de respeitar limites) não tem condição de ensiná-lo, muito menos avaliá-lo adequadamente num contexto jurídico-criminológico extremamente complexo e via de regra psicopático, como é o crime organizado.

O ensino da ética ficou muito restrito ao ambiente religioso, quando deveria ser desenvolvido por meio de uma disciplina regular nas escolas, integrando ainda conceitos e instrumentos para o exercício de cidadania, fomentando o sentimento de pertencimento à âmbitos de expressão e relação mais amplos que o individual, como ‘sociedade’ e ‘pátria’. No atual contexto, relegada à fé metafísica, a ética tornou-se “opção” de conduta, não um imperativo categórico de direito-dever. A questão suscita revisões urgentes da estrutura curricular e a reorganização das instituições, a fim de compreender a problemática e alterá-la providencialmente.


13. Filtros institucionais.

Percebe-se que um sistema ressocializador e até mesmo socializador futuro que leve em conta o diagnóstico da psicopatia terá que necessariamente evitar a inserção de seus portadores em funções que ordinariamente exijam avaliações éticas inter-relacionadas, como o Professorado, o Direito, a Administração de Empresas, a Política e a Medicina, reservando-lhes atividades mais modestas e essencialmente mecânicas ou lógicas. Para as cúpulas de governo, Lobaczewski sugeriu um Conselho composto de médicos e psicólogos, competente para filtrar candidatos às eleições, o que de fato evitaria muitos dos transtornos relacionados ao mau uso do poder.

O mesmo foco diagnóstico deveria ser adotado pelos Conselhos de Fiscalização Profissional e OAB, não apenas para a avaliação de habilitação e exclusão dos quadros profissionais, mas de própria assepsia interna.


14. Conclusões.

Embora haja estudos inconclusivos que tenham investigado causas biológicas e genéticas para o distúrbio antissocial, a compreensão do caráter proibitivo, ou pelo dos efeitos prejudiciais que a conduta provoca (imorais), não se vê prejudicada e este é um entendimento praticamente unânime dos especialistas. O senso ético distorcido do psicopata inclusive recomendaria, sob o prisma repressivo e preventivo da ação estatal, maior rigor no cálculo da pena e na aplicação de medidas cautelares voltadas à constrição da liberdade de ir e vir, especialmente se no exercício de uma função que envolva poder, ou a administração de patrimônio alheio, público ou privado.Também é preciso dedicar especial atenção à proteção de vítimas, testemunhas e provas do processo.

Muito ingênuo seria o legislador se, diante da suspeita de ação psicopática, restringisse o poder coercitivo do Estado à conduta criminal pretérita esmiuçadamente comprovada. A antevisão do comportamento delinquente a partir da personalidade, embora não possa figurar como elemento estrutural do delito ou tipo penal de forma isolada, é perfeitamente viável como anteparo complementar indiciário apto a atender a prevenção social da pena e a garantia processual do poder punitivo do Estado. Trata-se de um dos elementos de avaliação dosimétrica da pena (primeira fase), e pode servir para calibrar com maior precisão as medidas cautelares dirigidas à produção probatória do Estado-juiz, especialmente a constrição preventiva da liberdade de um sujeito suspeito ou comprovadamente psicopata, seja ele de atuação isolada ou coordenada em associação criminosa.

Sob o prisma da prevenção social, a periculosidade extremada de alguns destes indivíduos não pode ser negligenciada, mesmo que necessariamente atrelada à elementos indiciários ou probatórios de conduta em curso, já que a rigor não se pode punir/prevenir a mera cogitação criminosa. É preciso ter em mente que alguns psicopatas são responsáveis pelas piores atrocidades físicas e psicológicas praticadas desde os primórdios da sociedade civil organizada. Isto vai de homicidas que destroçam famílias num único ato, a políticos corruptos que durante anos desviam preciosos recursos do erário, prejudicando inúmeros usuários do sistema público de saúde e inibindo uma educação de qualidade aos cidadãos economicamente menos favorecidos.

A incapacidade de avaliação ética do psicopata, potencialmente desbordável a um ato ilícito, é um fato científico. Uma realidade, não uma hipótese como as abandonadas teorias morfológicas dos primórdios da criminologia. Por isto merece tratamento não apenas médico e psicológico, mas jurídico-interpretativo diferenciado. 


Referências bibliográficas:

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Da Silva, Jordan Freitas Prazeres. Psicopatia a partir da psicanálise: desmistificando a visão da mídia. Mneme – Revista de Humanidades. 2015.;

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Frankl, Victor E. Em busca de sentido. 36ªed. Petrópolis: Vozes, 2008.;

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______. O Eu e o Id. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.;

Inginieros, Jose. O homem medíocre. 3ªed. Chain: Curitiba, s/a;

Lobaczewski, Andrew. Ponerologia: psicopatas no poder. Campinas: Vide Editorial, 2014.;

Hare, Robert D. Sem Consciência. Porto Alegre: Artmed, 2013.

Silva, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.;

Sina, Amalia. Psicopata corporativo. São Paulo: Évora, 2017.


Autor

  • Alexandre Rocha Pintal

    Advogado da Fundação Estatal de Saúde de Curitiba, inscrito na OAB/PR sob o n.º 42.250, pós-graduado em Direito Público, do Trabalho e Previdenciário, autor de Direito Imigratório (Juruá 4ª ed., 2014), articulista de revistas e sites especializados.

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