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Legalidade x Desburocratização: o princípio da afetividade e a adoção à brasileira

Legalidade x Desburocratização: o princípio da afetividade e a adoção à brasileira

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A adoção precisa parar de ser tratada como última opção, pois, para estes pequenos largados à própria sorte por quem supostamente os deveria proteger, aquela é, talvez, a única alternativa de ser família.

RESUMO:A presente produção científica tem por objetivo discorrer sobre a prática da adoção à brasileira, conduta que, mesmo possuindo tipificação no Código Penal Brasileiro, mais especificamente em seu artigo 242, é extremamente recorrente em nosso país, não se sabendo precisar sequer quando teve início, tampouco quantas famílias se constituíram mediante a modalidade – e, como demonstraremos, não há vestígios que indiquem que deixará de suceder. Com uma pesquisa bibliográfica intensa e exaustiva sobre o tema, demonstrou-se necessário, além de uma contextualização histórica do próprio instituto da adoção, em igual importância resultou discorrer acerca da evolução social e legislativa do Direito de Família. Mediante intensa e exaustiva pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legal buscou-se condensar neste trabalho científico no que tange, em especial, a grande influência do princípio da afetividade, que não se encontra no ordenamento tal qual sua importância o requer, em posição adjacente estão os também princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do adolescente para tornar possível a discussão da modalidade de adoção à brasileira no ordenamento, em que pese a sua legalidade e a desburocratização do instituto, recorrentemente alvo de críticas pelos mais renomados doutrinadores. A Constituição Federal de 1988 será igualmente vislumbrada em diversos pontos, a fim de mostrar quão essencial foi sua promulgação para que os demais regramentos pudessem trazer reais avanços sociais. Ato contínuo, a análise de um caso concreto será explanada para que se possa demonstrar o atual entendimento dos Tribunais brasileiros quanto a legalidade da adoção à brasileira.  

PALAVRAS-CHAVE:Princípio da afetividade; Afeto; Adoção; Adoção à brasileira.


1 INTRODUÇÃO

As mudanças advindas da legislação, bem como o contexto atual no que diz respeito ao tema da adoção, trazem alguns questionamentos e debates ao meio jurídico brasileiro. Questões relevantes quanto à desburocratização e à legalidade são alvos de juristas e doutrinadores constantemente. Diante desse cenário, busca-se através deste trabalho, a realização de uma análise sob o olhar da legislação brasileira e estrangeira sobre o tema da adoção e suas implicações práticas atualmente no Brasil.

O processo adotivo no ordenamento brasileiro possui uma vasta gama de requisitos, o que o torna extremamente burocrático. Buscando-se a flexibilização desse processo surgem, constantemente, tentativas de inovações legislativas que objetivam desburocratizar ou, pelo menos, torná-lo mais célere. Não obstante, diante da morosidade do poder legislativo em julgar os projetos e das “falhas” que existem na legislação, bem como de outros entraves, alguns pensadores, como é o caso de Maria Berenice Dias, entendem que não é fácil consertar a norma, havendo, portanto, a necessidade de uma nova lei que solucione esse celeuma.

Entender o contexto histórico, bem como os avanços do instituto da adoção no Brasil é de grande valia para que se compreenda como se chegou à condição atual, principalmente porque o Direito de Família é considerado um dos que mais sofrem modificações no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, a pesquisa em doutrina foi crucial para tal contextualização, com igual importância, a compreensão das leis, tais como, a Constituição de 1988, o Código Civil de 2002, a Lei Nacional de Adoção (Lei n.º 12.010/2009), em observância dos Tratados Internacionais, que compilam o aparato legal do instituto.

Os objetivos do presente trabalho compreendem, a partir de uma análise evolutiva do direito de família, demonstrar que, com base no princípio da afetividade, bem como nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do adolescente, a adoção à brasileira carece de um olhar mais atento dos legisladores brasileiros, bem como verificar a questão da legislação e da (des)burocratização do instituto da adoção como um todo.

No que diz respeito a adoção à brasileira, este trabalho traz uma breve análise de um caso concreto ocorrido no ano de 2009, no estado do Rio Grande do Sul, que culminou em referência jurisprudencial.

Verifica-se, ainda, os princípios, quais sejam, o da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do princípio da afetividade, que é o princípio basilar na constituição desse trabalho, instituídos mediante a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, que reverenciou o lado humano, buscando a isonomia social e possibilitando os inúmeros avanços obtidos na legislação brasileira, bem como sua aplicação nos tribunais brasileiros.

Começa-se elucidando, o mais breve possível, sobre o contexto histórico do instituto da adoção.


2 A HISTÓRIA DA ADOÇÃO NO BRASIL

O instituto da adoção, um dos mais antigos que se tem notícia, haja vista que possui registros trazidos na bíblia de que foi uma prática utilizada pelos hebreus, teve uma evolução bastante peculiar ao longo da história. Com a intensa cobrança e ideia de perpetuação da espécie, era utilizada como opção quando casais não conseguiam conceber filhos pelo meio natural, no intuito de “escapar a tão temida desgraça da extinção”, frase do civilista para Washington de Barros Monteiro, estimulando o dever de perpetuar o culto doméstico. Em Roma, onde o instituto se difundiu e ganhou contornos precisos a ideia era de que “adotar é pedir à religião e à lei aquilo que da natureza não pôde obter-se”, assumindo, assim, um conceito mais sentimental do que mera hereditariedade. (DIAS, 2015, p. 52). (VENOSA, 2014, p. 287-288).

Durante a Idade Média, o instituto chegou a cair em desuso por conta do Direito Canônico (...), mas durante a Idade Moderna, graças à legislação da Revolução Francesa, a adoção voltou à discussão, sendo inserida no Código Napoleônico de 1804. (VENOSA, 2014, p. 289).

Mesmo sempre estando presente no Brasil, foi apenas em 1990, com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que ganhou nova regulamentação no nosso país, embora o Código Civil de 1916 já tratasse sutilmente sobre o tema. Tudo até então era muito superficial, não em requisitos, pois estes eram tantos e absurdamente impessoais, em contrapartida, era tida a adoção como um negócio jurídico, gerando entre adotante e adotado um mero parentesco civil, que tinha como objetivo proporcionar filiação àqueles que não pudessem ter filhos biológicos. (PEREIRA, 2010, p. 411).

Foi a partir da década de 1990 que um novo paradigma veio a orientar a adoção, como a busca de uma família para aqueles que não tinham a possibilidade de permanecer na família biológica, prevalecendo, assim, o melhor interesse da criança e do adolescente como orientação jurídica, o que vale ressaltar que só foi possível graças a nossa Carta Magna de 1988, a Constituição Cidadã, que veio humanizada com princípios que prezam pelos direitos humanos de forma digna, sem qualquer tipo de discriminação, seja para a prole biológica ou para aqueles que são alvos desse ato tão nobre.

Atualmente, a chamada Lei Nacional da Adoção (Lei Federal n.º 12.010/2009), que regula o procedimento da adoção no Brasil, atribui ao Estatuto da Criança e do Adolescente a adoção de crianças e adolescentes, mas manda aplicar seus princípios à adoção de maiores de idade, conforme o artigo 1.619, do Código Civil. (DIAS, 2015, p. 481).

A Constituição Federal de 1988, atualmente, em seu artigo 227, § 6º, assegura a igualdade entre filhos biológicos e àqueles constituídos mediante adoção, o que não havia antigamente no Código Civil de 1916, onde quando adviessem filhos biológicos, o adotado perderia o seu direito sucessório, sendo este somente daquele que carregava em suas veias o sangue do então de cujos, por exemplo. (BRASIL, 1916, s.p.). (BRASIL, 1988, s.p.).

Além dessas codificações, quais sejam, o Código Civil (Lei Federal n.º 10.406/2002), o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Federal n.º 8.069/1990) e a nova Lei Nacional de Adoção (Lei Federal n.º 12.010/2009) são incorporados à legislação brasileira a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional (Convenção de Haia) e a Convenção sobre os Direitos da Criança, ambos tratados internacionais. Diante disso, pode-se perceber que o presente instituto passou por diversas mudanças, sempre tentando se aperfeiçoar, tal qual deve ser com o Direito, todavia, nunca teve uma estabilidade legislativa consolidada, até recentemente.

Diante do exposto, passarei a tratar do princípio da afetividade.


3 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Quando se menciona o princípio da afetividade devemos ter em mente o conceito de Maria Berenice Dias, um dos pilares do moderno Direito das Famílias, que entende que: “A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida”. (DIAS, 2015, p. 52).

A partir da nova conjuntura que a Constituição Federal de 1988 apresentou ao ordenamento jurídico pátrio, sendo aquela uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais se projetaram no Código Civil de 2002, como bem ressalta Paulo Luiz Netto Lobo, é importante observar que mediante essa nova roupagem, significativas mudanças puderam ser sentidas na realidade social e das quais surgiu a necessidade de pensar a premissa da afetividade, alçado a condição de princípio geral após o advento da Constituição de 1988, que o traz, embora implicitamente, como aduz entendimento doutrinário majoritário, opinião esta corroborada pela juspsicanalista Giselle Câmara Greoninga:

O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade. (Grifo nosso). (GROENINGA, 2008, p. 28).

Nota-se pela fala da distinta especialista o quanto tem crescido a valoração dada aos laços que constituímos ao longo da vida em relação ao mero fator biológico/sanguíneo que liga os seres humanos e que, de fato, é o que faz ter sentido a vida, é o que propicia uma melhor qualidade de vida, são essas pessoas com as quais estamos ligados que nos estimulam a sermos melhores e a dar valor aos momentos mais simples. A profundidade dos laços que criamos ao longo da vida define muito do que somos.

Logo, antes se priorizava o ter, hoje se busca a valorização do ser, elevando o indivíduo e os direitos humanos, o que aflui para a valoração da afetividade, o que está intimamente ligado ao também princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, consequência daquilo que se chama de personalização do Direito Privado. (FACHIN, 2001, pp. 01-02).

Para bem resumir e significar o princípio da afetividade, nada como a máxima atribuída à Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka de que “o novo Direito de Família é baseado mais na afetividade do que na estrita legalidade”. (TARTUCE, 2016, p. 5). É o afeto o elo emocional que une as pessoas, fazendo com que elas se identifiquem como uma família. Foi o reconhecimento da afetividade que deu origem a termos como socioafetividade, posse de estado de pai e posse de estado de filho.

Nas legislações precedentes o princípio da afetividade não possuía a menor significância no ordenamento, tanto que novos enlaces surgiam mediante o arranjo de famílias a fim de fundirem patrimônios. Hoje, vemos até os legisladores irem de encontro aos grandes cultos religiosos e seus preceitos para que se dê, necessariamente, maior valor ao afeto, à busca da felicidade, ao direito de amar a quem o coração escolher, sem que seja apontado o que é certo ou errado nisso.

Foi em razão deste princípio que profundas alterações no pensar da família brasileira começaram a ocorrer, tal como pontua Luís Roberto Barroso quando diz que foi a afetividade que contribuiu para o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, o que culminou na histórica decisão do Supremo Tribunal Federal em decisão, publicada no Informativo n. 635: (TARTUCE, 2012, s.p.).

União Estável Homoafetiva - Legitimidade Constitucional - Afeto como Valor Jurídico - Direito à Busca da Felicidade - Função Contramajoritária do STF (Transcrições) RE 477554/MG* RELATOR: Min. Celso de Mello EMENTA: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF). O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA. O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA (2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTIDADE DE GÊNERO. (...) RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Especial n.º 477.554/MG. Rel. Min. Celso de Mello, j. 01.07.2011, publicado no Informativo n.º 635).

Além desse reconhecimento, foi com fundamento no princípio da afetividade que também se pôde admitir a reparação civil pelo abandono afetivo (BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Recurso Especial n.º 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012) e, por fim, mas não menos importante, podemos falar do reconhecimento da paternidade socioafetiva como nova forma de parentesco e mediante tal reconhecimento espontâneo, a indissolubilidade do vínculo filial (BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n.º 234.833/MG, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 276).

Demonstrada a relevância do princípio da afetividade seguiremos para a adoção à Brasileira.


4 A ADOÇÃO À BRASILEIRA

Carlos Alberto Gonçalves define a adoção como “o ato jurídico solene pelo qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela estranha”, porquanto, em definição mais completa, Maria Helena Diniz que diz que “a adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”. (GONÇALVES, 2010, p. 362). (DINIZ, 2017, p. 416).

Como já dito, o Direito carece de se manter sempre em atualização para que possa acompanhar os avanços sociais que acontecem de tempos em tempos, dia após dia, pois, sabemos o quanto a sociedade é hoje diferente do que era a 50 (cinquenta) anos atrás. As relações vão evoluindo, conceitos vão mudando, e foi o que aconteceu com o Direito das Famílias que, sem dúvida, foi um dos ramos que mais sofreu alterações com o decorrer dos anos. Ele lida diretamente com pessoas, o bem jurídico mais importante tutelado pela nossa Constituição Federal.

Sabemos das barreiras conservadoras que ainda existem e por muito persistirá, entretanto, a duras penas se conseguiu, por exemplo, e com muito louvor, ampliar o conceito de família, que já não é somente aquele atrelado ao matrimônio, pelo contrário, são tantos os tipos de famílias hoje albergadas pelo nosso ordenamento que fica inviável tratar aqui um a um, uma vez que o trabalho não visa esse fim, no entanto, não deixa de ser pertinente, haja vista que são justamente tais avanços que me permitirão discorrer sobre o modelo de adoção em questão.

As estruturais e amplas mudanças que aconteceram com o presente instituto, que possui diversas modalidades, todas sempre prezando pelo melhor interesse da criança e do adolescente, no entanto, neste momento nos compete tratar de uma em específico, qual seja, a adoção à brasileira, a qual caracteriza-se quando a genitora ou a família biológica entrega a criança a um terceiro estranho, em que este provavelmente a registrará como se sua fosse, sem chegar a instaurar o competente processo de adoção.

Seja por quaisquer dos inúmeros possíveis motivos existentes, a família biológica – ou, muitas vezes, a mãe – não tem interesse ou não pode fazê-lo e acaba decidindo não ficar com o filho, entregando-o, na melhor das hipóteses, em casas de acolhimento ou abandonando-a na porta de alguma família escolhida aleatoriamente – ou não. Seja quando essa criança é deixada ou quando as pessoas que, sabendo da situação resolvem se dispor a ficar a criança, esta acaba por ser acolhida e zelada, gerando, então, um vínculo que, na maioria dos casos, não há interesse, tampouco necessidade em ser rompido.

Muitas vezes, em razão do medo que aqueles então responsáveis – e que já estão emocionalmente envolvidos e apegados – encontram em ter que enfrentar o mundo burocrático presente no ordenamento jurídico brasileiro, passível até de indeferimento caso não cumpram os requisitos impostos, leva-os a essa prática há muito recorrente e tão comum em nossa realidade social. Tal qual demonstra Fabrina Moreira ao dividir em dois grupos distintos aqueles que realizam a adoção à brasileira:

As pessoas que realizam a “adoção à brasileira”, podem ser divididas em dois grupamentos distintos do ponto de vista de móvel psicológico para o ato: os que precipitadamente realizam essa colocação indevida por medo de constarem na fila de interessados em adoção. Com eventual demora na chamada por especificação excessiva das características da criança pretendida (geralmente branca, recém-nascida e do sexo feminino), poderia haver o medo de envelhecimento dos interessados, com profundo distanciamento em relação à faixa etária do “adotado” (quebra da mística de geração natural no seio familiar) ou frustração decorrente de situação não resolvida (mito do tempo perdido, que poderia ser aproveitado com uma criança já inserida na família); os que recorrem à “adoção à brasileira” com apreensão de desaceitação do Poder Judiciário (ou do Ministério Público) em aceitar o perfil dos interessados. Há pessoas que têm insegurança em suas atitudes, imaginando que o juiz de Direito (ou o promotor de Justiça) possa criar dificuldades à colocação adotiva com objeções variadas (falta de recursos financeiros, anomalias psíquicas, inadequação para os cuidados de uma criança etc.). (MOREIRA, 2011, p. 19).

Acontece que também devido a morosidade do processo adotivo, mesmo após as tentativas – falhas, diga-se de passagem – em mudar esse cenário, tentando agilizar, por exemplo, ao estabelecer prazos para os procedimentos, ainda existe uma enorme quantidade de crianças e adolescentes em abrigos e uma quantidade ainda maior de pais em potencial, no entanto, a ânsia por constituir família, o vínculo que antecede sem se ter planejado, acaba por (in)felizmente levar à prática da “adoção” mais rápida, pois além de não possuir o aval judicial que a legalidade exige, a conduta ainda se encontra tipificada no ordenamento brasileiro, no artigo 242, do Código Penal:

Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. (BRASIL, 1940, s.p.).

Não há dados que mostrem quando especificamente começou a ser realizada essa prática, ou quantas pessoas adentraram em seios familiares por meio dela, mas o que não deixa dúvidas é que ela seguirá existindo, seja para acalantar os corações que buscam essa alternativa para concretizar um sonho, seja para facilitar pessoas mal-intencionadas que o fazem tão somente para, por prazer ou ganância, disseminar o mal.

Ora, é fato que estes “pais ilegais” optam pelo procedimento mais fácil por não acreditarem no sistema oferecido pela legislação, realizando todos os atos à margem da lei, sem se preocuparem (naquele momento) com as consequências deste ato, que poderá ser descoberto um dia, ou não. No mundo social esta prática de adoção sequer é conhecida como crime, pelo contrário, acredita-se que a sua realização é um ato nobre, não devendo de forma alguma ser investida de ilegalidade. Na realidade e de acordo com a legislação, tal ato sequer pode ser chamado de adoção, uma vez que não preenche os requisitos legais, sendo na verdade, uma simulação errônea de filiação (CAVALCANTE, 2013, s.p.).

Você sabia que o status criminal que recebe essa prática não é de conhecimento de todos? A lei, por mais que esteja aí para todos não é de conhecimento geral, são poucos os que, de fato, o possuem. No mais, as pessoas que praticam o ato são movidas pelo desejo de aumentar sua prole ou mesmo pela conexão que sentiu com aquela criança e/ou adolescente. Quando casos envolvem crianças, sabemos que existe um cuidado e uma preocupação maiores, devendo sempre ser conduzidos com muita cautela e ter em mente o melhor interesse daquela e é fundado por esse entendimento, qual seja, o de buscar o melhor interesse da criança, que os Tribunais Superiores vêm sendo favoráveis, como demonstra o HABEAS CORPUS Nº 385.507 - PR (2017/0007772-9):

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE MENOR. APARENTE ADOÇÃO À BRASILEIRA E INDÍCIOS DE BURLA AO CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO. PRETENSOS ADOTANTES QUE REUNEM AS QUALIDADES NECESSÁRIAS PARA O EXERCÍCIO DA GUARDA PROVISÓRIA. VÍNCULO SOCIOAFETIVO PRESUMÍVEL NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES FAMILIARES DESENVOLVIDAS. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. 1- O propósito do habeas corpus é definir se deve ser mantida a ordem de acolhimento institucional da menor diante do reconhecimento, pelos graus de jurisdição ordinários, de que houve tentativa de burlar o cadastro nacional de adoção. 2- Conquanto a adoção à brasileira evidentemente não se revista de legalidade, a regra segundo a qual a adoção deve ser realizada em observância do cadastro nacional de adotantes deve ser sopesada com o princípio do melhor interesse do menor, admitindo-se em razão deste cânone, ainda que excepcionalmente, a concessão da guarda provisória a quem não respeita a regra de adoção. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso de Habeas Corpus. RELAÇÕES FAMILIARES. Habeas Corpus nº 385.507 – PR (2017/0007772-9), da 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Adrighi, j. 27/02/2018).

Assim, por mais que a medida que deva ser adotada pelos órgãos protetivos seja a de afastamento da criança e da então família que praticou o ato ilegal, levando-a para uma casa de acolhimento, em razão da excludente que existe no próprio Código Penal, qual seja, a de diminuir a pena ou conceder o perdão judicial – o que vem sendo recorrente – o que os Tribunais vêm fazendo acaba por não ser considerado inconstitucional, logo, possível. Levando em conta o psicológico dessa criança, o vínculo afetivo que se presume existir na relação, eles optam por permitir que o menor seja mantido com a família que o acolheu por entenderem que melhor atende às suas necessidades.

Transcorrida a etapa da Adoção à Brasileira iremos mencionar o princípio da afetividade nos Tribunais brasileiros e a sua aplicação.


5 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS E A SUA APLICAÇÃO AOS CASOS DE ADOÇÃO À BRASILEIRA

Não dá para se falar em Direito sem falar em sociedade, visto que ambos estão intrinsecamente ligados e não se pode falar em sociedade sem se falar em família, uma vez que esta é a base daquela. É o pilar de sustentação que vêm sofrendo diversas e cada vez mais rápidas mudanças, de modo que os legisladores, juristas e operadores do Direito não podem ficar omissos as transformações que ocorrem no seio da sociedade, cabendo-lhes trabalhar em prol da oxigenação das normas, através de sua atualização e adequação ao comportamentos sociais em voga.

Para começar a entender o conceito de família para o Direito, vale trazer inicialmente o entendimento subjetivista de Maria Berenice Dias:

A sociedade só aceitava o conceito de família instituído sob uma base matrimonial, por isso o ordenamento jurídico brasileiro só dissertava sobre casamento, as relações de filiação e o parentesco. As relações extramatrimoniais só começaram a ingressar no ordenamento por jurisprudência. (DIAS, 2010, p. 33).

Os conservadores, que são muitos em nosso país, não conseguem enxergar com bons olhos as muitas transformações ocorridas na sociedade – ou a forma como a regramento como um todo vem agindo para dirimir conflitos legais persistentes, o que os faz propagar que o instituto familiar encontra-se em decadência, do que discorda veemente a digníssima Maria Berenice Dias:

A família, apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias. (DIAS, 2010, p. 33).

A família natural, instituída pela Igreja Católica, que consumou o casamento em instituição sacralizada e indissolúvel vem perdendo espaço nas mais recentes doutrinas e jurisprudência, até mesmo pela própria norma, por dois quesitos muito mais inquinados e apropriados à realidade: o afeto e a dignidade da pessoa humana.

Para Maria Helena Diniz:

Família no sentido amplíssimo seria aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade. Já a acepção lato sensu do vocábulo refere-se àquela formada além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro). Por fim, o sentido restrito restringe a família à comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação. (DINIZ, 2008, p. 9).

Ora, família é onde há amor, cuidado, lealdade, confiança, no seu aspecto mais significativo, um LAR: Lugar de Afeto e Respeito, expressão trazida por Maria Berenice Dias (2015, p. 29) e, mais uma vez, pertinente falar desse instituto pois a sua ressignificação permite, mediante os preceitos constitucionais, falar da possibilidade de se flexibilizar o instituto da adoção em casos de adoções à brasileira.

A partir dessa explanação, fica evidente a importância da afetividade e do afeto nas relações familiares da atualidade. É, pois, o princípio da afetividade o fundamento utilizado, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança, para embasar a constitucionalidade das decisões que validam a adoção à brasileira.

Apesar de todo medo e insegurança que as famílias substitutas enfrentam, a jurisprudência pátria já está consolidada no sentido de garantir a possibilidade desse tipo de adoção, que apesar de ilegal, é sim válida, afinal, o ordenamento jurídico brasileiro não é composto apenas de leis, mas os princípios são também fontes a serem seguidas, e os já mencionados ao longo deste artigo servem de base para que os Tribunais de 2º grau e os Tribunais Superiores decidam de modo favorável a essa prática.

HABEAS CORPUS. ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. MEDIDA LIMINAR PROTETIVA DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇA EM ABRIGO. GRAVE SUSPEITA DA PRÁTICA DE "ADOÇÃO À BRASILEIRA" EM DUAS OCASIÕES DISTINTAS. INDÍCIOS DE ADOÇÃO DE CRIANÇA MEDIANTE PAGAMENTO. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO AFETIVA. GRAVIDEZ FALSA. INDUZIMENTO A ERRO. AMEAÇA GRAVE A OFICIAL DE JUSTIÇA. CIRCUNSTÂNCIAS NEGATIVAS. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ABRIGAMENTO. EXCEPCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA DE DECISÃO FLAGRANTEMENTE ILEGAL OU TERATOLÓGICA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 2. A jurisprudência desta eg. Corte Superior tem decidido que não é do melhor interesse da criança o acolhimento temporário em abrigo, quando não há evidente risco à sua integridade física e psíquica, com a preservação dos laços afetivos eventualmente configurados entre a família substituta e o adotado ilegalmente. Precedentes. (BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Terceira Turma. Data do julgamento: 05/12/2017. HC 418431/SP. Ministro Moura Ribeiro). (Brasil. Superior Tribunal De Justiça. Recurso De Habeas Corpus. Anulação De Registro De Nascimento. Habeas Corpus Nº 418.431 - SP (2017/0251482-4), Da 3ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 05/12/2017).

Na mesma linha de entendimento estão sendo os julgados dos Tribunais inferiores, não condenando a tal prática “ilegal” de adoção, prezando sempre por, além do melhor interesse do menor, levando em consideração a criação do vínculo socioafetivo:

APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA -APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CARACTERIZADAS. RECURSO IMPROVIDO. 1. O reconhecimento voluntário de paternidade, com ou sem dúvida por parte do reconhecente, é irrevogável e irretratável (arts.1609e 1610do Código Civil), somente podendo ser desconstituído mediante prova de que se deu mediante erro, dolo ou coação, vícios aptos a nulificar os atos jurídicos em geral. (AC Nº 70040743338, TJRS). 2. Caracterizadas a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento da ré pelo pai registral, mantém-se a improcedência da ação. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ. Apelação Civil nº 201000010064408 PI 201000010064408. Relator Desembargador Brandão de Carvalho. Data do julgamento: 26/05/2015).

A maior finalidade do Estado é garantir, além do bem-estar social do menor, todos os demais direitos elencados no artigo 227, da Constituição Federal de 1988, valendo ressaltar o “direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência (...), crueldade e opressão”, o que não vem sendo priorizado pelas entidades responsáveis, haja vista que a atual Lei de Adoção não se mostrou eficaz para sanar os déficits existentes no instituto da adoção.

É em razão disso que Maria Berenice Dias, a maior referência utilizada ao longo deste trabalho, uma vez que dedica sua vida ao Direito das Famílias como nenhum outro o faz, tanto que, enquanto vice-presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, junto à colegas juristas, criaram o intitulado “Anteprojeto do Estatuto da Adoção”, que não possui consonância com a Lei do Governo Federal (Lei Federal n.º 12.010/2009), como bem deixa evidenciado a advogada supracitada: “O [Anteprojeto] que está tramitando no Congresso não vai solucionar esses problemas [apontados na proposta do IBDFAM]. Portanto, não vejo em que isto poderia melhorar, até porque a [atual] Lei da Adoção é tão ruim, que não tem como ser consertada. Indispensável é que se faça uma nova norma”. (IBDFAM, 2017).

 Transcorrida esta etapa, resta-se demonstrado como a jurisprudência tem buscado se adaptar a realidade dos fatos, afastando a ilicitude do ato, prezando pela legalidade e ansiando pela desburocratização a fim de melhor atender as necessidades dos que buscam o reconhecimento judicial deste vínculo familiar preexistente.


6 ANÁLISE DE CASO CONCRETO

Buscando proporcionar um melhor embasamento, pertinente é a apresentação de um caso concreto referente ao tema.

In casu, no ano de 2009, no estado do Rio Grande do Sul, a então apelante (genitora do menor), entregou, assinando, para tanto, um Termo de Compromisso Particular atestando a sua vontade em fazê-lo. Transcorridos 5 (cinco) anos do fato, demonstrou-se arrependida e tentou reaver a criança. Os então apelados (os pais socioafetivos), entraram na justiça com o pedido de adoção da criança, que se constituiria em adoção à brasileira.

Ainda que diante dos motivos alegados pela mãe biológica, quais sejam, de que sempre teve vontade de criar o filho, todavia, não possuía condições financeiras para tal, que havia sido pressionada durante o puerpério para entregar a criança e que esta deveria ser criada junto à irmã – que nasceu três anos depois – não foi sentenciado em seu favor pelo entendimento de que não cabia a desconstituição do laço que foi construindo ao longo dos cinco anos como bem demonstrará o trecho a seguir do julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. MENOR QUE ESTÁ SOB A GUARDA FÁTICA DOS AUTORES DESDE O NASCIMENTO. ARREPENDIMENTO MATERNO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. VÍNCULO AFETIVO CONSOLIDADO. MELHOR INTERESSE E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA. Não merece reparo a decisão que destituiu o poder familiar, e concedeu a adoção do menor, que convive com os autores desde tenra idade. Em que pese o arrependimento materno, o infante, atualmente com 5 anos de idade, está adaptado à família adotante, reconhece-os como pai e mãe, já consolidado o vínculo afetivo. Manutenção deste arranjo familiar, considerando o melhor interesse da criança. RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70062283361. Relatora Liselena Schifino. Data do julgamento: 26/11/2014).

À criança foram providos todos os direitos decorrentes do poder familiar pelos pais socioafetivos, aquela está adaptada à família na qual foi inserida desde que veio ao mundo, reconhece-os como pai e mãe, e o vínculo afetivo se consolidou, logo, afastá-lo desse meio seria demasiado prejudicial, tornando o Estado falho na real busca da prestação jurisdicional no caso.

Vê-se que está consolidada, como já demonstrado anteriormente, nos diversos Tribunais, a prática da adoção à brasileira que, mesmo tida como ilegal, não é desclassificada como adoção e muito menos passível de punição quando se pode atestar a boa-fé voluntária do agente que pratica tal conduta e, principalmente, o melhor interesse do menor, que é o pilar de toda a discussão.                                   


7 CONCLUSÃO      

Explanando brevemente, mas tentando demonstrar os aspectos mais importantes da evolução legislativa do instituto da adoção, pôde-se perceber o quão remoto ele é, tendo relatos tão antigos quanto a humanidade conseguiu registrar. Desde a sua intensão grotesca, qual seja, a de ser uma alternativa somente quando não havia a possibilidade de conceber um filho naturalmente até quando, em Roma, começa a ganhar um conceito mais humanitário.

Ato contínuo, viu-se que no Brasil, embora a adoção já fosse sutilmente tratada pelo Código Civil de 1916 foi somente com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante a abordagem humanista proporcionada pela Constituição Federal de 1988 que foi possível vislumbrar o instituto tomando forma para conseguir se aproximar do que é hoje. Antes, era gerado tão somente um mero parentesco civil entre adotando e adotado, não se prolongava à família extensa, tampouco se conseguia falar em igualdade entre filhos biológicos e adotivos.

As reais mudanças começaram a ser vislumbradas quando o Código Civil, projetando os fundamentos Constitucionais trazem significância para o princípio da afetividade que, como visto, não está expresso na legislação, e antes não era sequer pensado. A valorização do ser sobre o ter, o Novo Direito é baseado muito mais na afetividade – ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança – do que na estrita legalidade.

Podemos perceber que foi o princípio da afetividade que tornou possível a jurisprudência tratar de assuntos que antes pareciam mera utopia, como direitos homossexuais, reconhecimento da paternidade socioafetiva, reparação civil em decorrência do abandono afetivo. Todos eram temas muito distantes na realidade do século passado. O que não seria diferente para com a adoção à brasileira se não existisse o olhar mais humano para as tantas realidades sociais que temos conhecimento, que acabou fazendo surgir uma Constituição Federal tão rica em cidadania.

A concepção dos princípios se dá mediante as abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir de normas, costumes, aspectos políticos, econômicos e sociais, doutrina e jurisprudência, ou seja, sua função é vital para a sociedade, logo, para o Direito. Trago isso para frisar que foram o afeto e o princípio da dignidade da pessoa humana que permitiram a repersonalização das relações famílias, que nada mais é do que a retirada da excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que matizaram o direito de família tradicional por outros interesses de cunho pessoal ou humano, que é tipificado por nada menos que a afetividade, não deixando dúvidas quanto ao seu tão importante papel.

Embora trate de diversos pontos ao longo do trabalho, fica evidente que não poderia ser diferente uma vez que para tratar da significância de repensar a adoção, em particular a adoção à brasileira, foi preciso trazer todo esse contexto histórico da evolução legislativa do direito da família como um todo.

A adoção é, sem dúvidas, além da busca por satisfazer um desejo pessoal, qual seja, o de ser pai e/ou mãe, é, sobretudo, um ato honroso. Quando você coloca no campo de busca do Google (site de pesquisas) “a nobreza da adoção” todos os links vão te remeter a adoção à brasileira, isso em razão do debate que existe por ser considerada pelo Código Penal um crime, como já dissemos anteriormente, então, surge o questionamento: seria a adoção à brasileira um ato nobre ou ilegal?

Vimos que a jurisprudência vem concedendo o perdão judicial em razão da prática do ato, como também vem negando o direito que assistiria aos genitores ante circunstância diversa, com fundamentação no princípio do melhor interesse da criança e a constituição do vínculo afetivo com a família substituta, como bem demonstramos quando trouxemos no capítulo seis do presente trabalho e em outros momentos, diante do exposto, nota-se que a nobreza tem sobressaído perante a ilegalidade.

Mas é preciso ir mais adiante, ora, acontece que no curso dos julgamentos dos pedidos de adoção, a fim de respeitar o procedimento legal exigido hoje, diga-se de passagem, extremamente burocrático e moroso, os tribunais, por exemplo, retiram do convívio familiar aqueles que até mesmo já conviviam, mesmo que em posição “ilegal”, mantendo vínculo afetivo há meses ou anos. Isso não existe. O que se busca ao permitir a incidência do presente instituto está muito além de propiciar àquela família a satisfação do seu desejo de ampliar a prole, mas sim que aquelas crianças que tanto carecem de atenção possam viver em harmonia com pessoas que as queiram, que possam proporcionar-lhes uma boa educação, valores que os tornem seres humanos dignos, que consigam prosperar na vida. Quem melhor do que aqueles com quem já conviviam, que conseguia dar-lhes não só o já citado, mas também carinho, amor, atenção, cuidado?

É o clássico ditado popular de “pai é quem cria”. Ao longo da nossa vida buscamos por relações – em qualquer âmbito que seja – que nos somem, que acrescentem valores, façam bem, que nos façam prosperar. São as pessoas com quem mantemos vínculos de afeto, de cuidado que realmente significam algo para nós, que temos o instinto de proteger e nos fazem sentir em família. Não adianta o simples fator biológico existir para que possamos dizer que nos importamos, que queremos aquela pessoa presente em nossa vida.

A busca pela desburocratização nada mais é do que almejar um processo mais célere, que consiga garantir o respeito aos direitos inerentes aos menores, que quando haja a vontade, a convivência e o vínculo entre os pretendentes à adoção, que não seja encarado como um desleixo no procedimento ou levado a rigor pelo Código Penal, mas como um ato humano, que busca legalizar, com a maior presteza possível, o vínculo afetivo quando se reste demonstrado. A adoção precisa parar de ser tratada como uma última opção, pois, para estes pequenos largados à própria sorte por quem supostamente os deveria proteger, aquela é, talvez, a única alternativa de ser família.


8 REFERÊNCIAS   

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BRASIL. Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 10 mai. 2019.

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Autores

  • Leonardo Barreto Ferraz Gominho

    Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

    Textos publicados pelo autor

  • Marília Leal Nunes Cavalcanti Novaes

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