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A manutenção da atividade empresarial sobre a perspectiva da função social: uma análise do instituto da recuperação judicial à luz do decreto-lei nº 7.661 de 1945, lei nº 11.101/05 e proposições do projeto de lei nº 10.220/2018

A manutenção da atividade empresarial sobre a perspectiva da função social: uma análise do instituto da recuperação judicial à luz do decreto-lei nº 7.661 de 1945, lei nº 11.101/05 e proposições do projeto de lei nº 10.220/2018

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Estudo sobre o instituto da recuperação judicial à luz do decreto-lei nº 7.661 de 1945, lei nº 11.101/05 e proposições do projeto de lei nº 10.220/2018.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo estudar o procedimento de recuperação judicial, através de método histórico, comparado e dialético dos regramentos legais, a doutrina e o entendimento mais atual dos juízes e tribunais brasileiros, assim como as proposições do Projeto de Lei nº 10.220/2018, que versa sobre propostas de reforma à Lei nº 11.101/2005 e contém uma disciplina específica para a regulamentação da recuperação de empresas. Primeiramente, será explorado o conceito e instituto da concordata no Decreto-Lei nº 7.661 de 1945, suas classificações e requisitos. Em seguida, tratar-se-á do instituto da recuperação judicial à luz da Lei nº 11.101/05, expondo-se os principais efeitos e mudanças com seu advento. Ato contínuo, abordar-se-ão as principais proposições empreendidas no Projeto de Lei nº 10.220/2018, que prevê atualização na lei de falência e recuperação judicial brasileira.  Por fim, proceder-se-á à análise crítica dos dispositivos, em especial aos princípios regentes que norteiam o instituto, notadamente considerando a manutenção da atividade empresarial como premissa básica.

Palavras-chave: Concordata; Recuperação Judicial; Função Social da Empresa; Projeto de Lei nº 10.220/2018

 

ABSTRACT:The purpose of this paper is to study the judicial recovery procedure, through a historical, comparative and dialectical method of legal regulations, the most current doctrine and understanding of Brazilian judges and courts, as well as the proposals of Law 10.220/2018, which deals with reform proposals to Law 11.101/2005 and contains a specific discipline for the regulation of business recovery. First, the concept and institute of concordata will be explored in Decree-Law No. 7.661 of 1945, its classifications and requirements. Next, it will be the institute of the judicial recovery in light of the Law nº 11.101/05, exposing itself the main effects and changes with its advent. The main proposals made in Law 10.220/2018, which provides for an update on the bankruptcy law and Brazilian judicial recovery, will be discussed below. Finally, a critical analysis of the devices will be carried out, in particular the regulative principles guiding the institute, especially considering the maintenance of business activity as a basic premise.

Keywords: Concordata; Judicial recovery; Social Function of the Company; Draft Law 10.220/2018


1.INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, muitas mudanças ocorreram no ciclo evolutivo do tema Direito Falimentar, sendo a lei de falências em vigor (Lei nº 11.101/05) mais um grande passo. No Brasil, desde 1945 estávamos sob o manto da Lei de Falência e Concordata, que disciplinava o processo de extinção da empresa que se encontrava em dificuldade econômica para adimplir suas obrigações perante os credores. Entretanto, observou-se que o decreto-lei 7.661 de 1945 se tornou ultrapassado na medida que não conseguia mais atender seus objetivos iniciais.

A promulgação da Lei nº 11.101/05 trouxe, em sua base, a consagração da empresa em seu contexto social, em face do interesse comum. A nova lei trouxe a novidade do instituto da recuperação judicial, a qual visa a superação da crise financeira-econômica do devedor, estimulando a atividade econômica, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores (Art. 47 da Lei 11.101/05), o qual será objeto do estudo de análise.

Neste trabalho, busca-se explorar a conexão entre a antiga legislação falimentar e a lei vigente, trazendo aspectos positivos e negativos desta, considerando, ainda, os entendimentos dos juízes e tribunais pátrios. Inicia-se através de breve histórico dos institutos anteriores, sua forma de funcionamento e classificações principais, migrando ao atual sistema vigente e aspectos polêmicos e introduzidos pela Lei nº 11.101/05, a exemplo do “Cram Down”.

Desse modo, conjecturando os fundamentos dos instrumentos, a análise recairá sobre o Projeto de Lei nº 10.220/2018, proposta de reforma legislativa bastante extensa, que interfere em dezenas de dispositivos de lei atual falimentar, de forma a melhor relacionar e refletir algumas das mais importantes alterações contidas em referido projeto de lei.

 


2.BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DO INSTITUTO DA CONCORDATA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO

O ano de 1945 foi marcado, no âmbito do Direito Comercial, pela edição do Decreto n. 7.661, projetado durante a época predominante das empresas individuais e familiares em que o ordenamento ofertava aos empresários em crise as opções da falência ou da concordata.

Quanto ao primeiro instituto, temos que a falência se definia como o instrumento judicial apto para lidar com as empresas insolventes, ao passo que a concordata era tida como instrumento para lidar com empresas em dificuldades transitórias de crise financeira, viáveis à recuperação.

Nesse contexto, destaca Amador Paes de Almeida (2013, 27ªed, cap.XXIX) que:

“(...) a falência tinha, nos primórdios, manifesto caráter punitivo, cercando o falido de infâmia e expondo-o à degradação pública. Daí o velho refrão – Falliti sunt fraudatores (Os falidos são fraudadores). (...) Ainda hoje, em que a falência já não mais se ressente de caráter repressivo, constituindo-se, antes de tudo, num processo de execução coletiva, com nítido objetivo patrimonial, observam-se consequências morais que se refletem fatalmente no conceito do devedor. Vista a falência como um delito, ou apenas como um processo de execução patrimonial, estabelecida a distinção entre bons e maus pagadores, procurou-se evitar, para os primeiros, as desastrosas consequências da quebra, possibilitando-lhes composição com os credores, por meio da chamada moratória – a prescriptio moratoria –, dilação concedida ao devedor para solver suas obrigações, sucedâneo do que viria a ser posteriormente a concordata.”

Nesse contexto, a concordata seria um instituto que objetivava regularizar a situação econômica do devedor comerciante, evitando (concordata preventiva), ou suspendendo (concordata suspensiva), a falência. O instrumento permitia a continuidade das atividades empresariais, ainda que em caráter precário, de forma a afastar ou suspender a medida extrema da falência, desde que atendidos os requisitos legais. Outrossim, vê-se que as obrigações do devedor eram abrandadas, a fim de que se tornassem passíveis de cumprimento.

A natureza jurídica da concordata, por sua vez, não deve ser considerada como contrato, tampouco negócio jurídico entre comerciante e credor, mas sim uma pretensão jurídica. Explique-se: é dado o direito de pleitear ao devedor comerciante, através da prestação jurisdicional do Estado (concretizando um remédio legal e jurídico) uma forma de reorganização e a restruturação econômica e financeira.

Dentre as principais críticas ao instituto anterior, citamos a visão de que a concordata, no caso concreto, atuava como égide para postergar a Falência e enriquecer devedores perspicazes e inescrupulosos, posto que, no momento de concessão do benefício, não havia análise econômica, financeira ou administrativa que verificasse a viabilidade de continuação das atividades do negócio. Não havia a preocupação quanto aos motivos de insolvência, ou se o plano de soerguimento da empresa era viável, o que dava pouca chance de recuperação e pagamento das dívidas.

No Brasil, a concordata foi extinta pela Lei nº 11.101, promulgada em 2005 e substituída pela recuperação judicial ou extrajudicial, a qual será objeto de análise nos tópicos a seguir. Passamos, então, a decodificação do procedimento da concordata à luz do Decreto-Lei nº 7.661/45.

2.1 PROCEDIMENTO DA CONCORDATA CONFORME DECRETO-LEI Nº 7.661 DE 1945

 

Conforme dito alhures, a concordata difere visceralmente da falência, tendo em vista que não submete o devedor às restrições em sua liberdade, nem lhe tira a administração de seus bens. Com a concessão da concordata, o empresário comercial continua praticando seus negócios, dirigindo a empresa sob a fiscalização de um comissário nomeado pelo juiz.

Para que ocorresse a obtenção da concordata era necessário o preenchimento de alguns requisitos, tais como: a) regularidade no exercício do comércio (ou seja, sociedade empresária, para ter direito à concordata, deveria ter os seus atos constitutivos registrados na Junta Comercial e os seus livros devidamente autenticados); b) não ter título vencido ou a falência requerida há mais de 30 dias; c) não ter impetrado concordata nos 5 anos anteriores; d) não possuir dívidas com Fisco e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Satisfeitos os requisitos, o devedor tinha acesso ao favor legal, com proposta de recuperação limitada a escolha de formas de pagamento e prazos.

Com efeito, destacam-se, no direito falimentar normalizado pelo Decreto-lei n.° 7.661/45, duas espécies de concordata: a suspensiva, com condão de suspender a falência, e a preventiva, cuja função seria de prevenir o estado falimentar.

 

2.2 DA MORATÓRIA E DAS ESPÉCIES DE CONCORDATA

 

Iniciamos a análise desta espécie não por um acaso: a primeira concordata a ser introduzida no direito brasileiro foi a de caráter suspensivo, cuja concessão ocorria no decorrer do próprio processo falimentar. A sua finalidade era evitar a liquidação da empresa e devolver ao falido a administração de determinada atividade empresarial, restituindo, assim, a livre administração de seus bens.

Nesse diapasão, devemos dar destaque, de forma paralela à concordata suspensiva, a moratória, uma espécie de dilação de prazo para solução de obrigações decorrentes de acidentes de força maior ou de cunho extraordinário e imprevisível. Repise-se que, até então, não se falava em o que viria ser concordata preventiva.

O Decreto-Lei nº 7.661 de 1945, objeto central de estudo em conjunto com a Lei nº 11.101 e o PL nº 10.220/2018, foi responsável pelo fim da exigência de aprovação prévia dos credores, modulando a concordata feição de favor judicial concedido pelo juiz, e não pelos credores, conforme ocorria. A concordata preventiva veio a ser injetada no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 917, de 1890, possuindo como principais características o requerimento prévio como forma de se evitar a declaração da falência.

2.3 A (IM)POSSIBILIDADE DA CONCESSÃO DA CONCORDATA SUSPENSIVA NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 11.101/05 À LUZ DO RECURSO ESPECIAL Nº 97125/RJ

 

Com o advento da Nova Lei de Falências, questões interessantes foram suscitadas perante o Superior Tribunal de Justiça, notadamente sobre dispositivos que tratam de direito intertemporal.

 

A redação do art. 192 da Lei 11.101/05 dispõe que:

 

Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Dec. Lei n 7.661, de 21 de junho de 1945.

 

Ato contínuo, em seu parágrafo primeiro, temos:

 

§ 1º: Fica vedada a concessão de concordata suspensiva nos processos de falência em curso, podendo ser promovida a alienação dos bens da massa falida, assim que concluída a arrecadação, independentemente da formação de quadro-geral de credores e da conclusão do inquérito judicial.

 

Nota-se, assim, um possível conflito aparente de normas sediado no referido artigo. Enquanto o caput induz o leitor que os processos de falência ou concordata ajuizados anteriormente ao início da vigência da Lei não sofrerão seus efeitos, mas sim do Decreto nº7.661/45, o dispositivo do primeiro parágrafo traz vedação a concessão de concordata suspensiva nos processos de falência em curso. Afinal, a concordata ainda pode ser concedida na vigência da Nova Lei?

Ora, se os processos em curso continuam a observar o velho estatuto do Decreto nº 7.661/45, é porque falidos e concordatários continuam expostos às exigências e sanções nele previstas e titulares dos benefícios por ele concedidos, de modo que não faria sentido mantê-los expostos às sanções e, ao mesmo tempo, quitar-lhes as benesses. Tal interpretação seria de grande injustiça às empresas, quebrando o princípio da igualdade.

No entanto, a dúvida maior a ser dirimida é que tal interpretação levaria à inconstitucionalidade da Lei. Nesse sentido, a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça[1] parece ser a mais viável e adequada ao caso. Entendeu a Corte, com razão, que o caput refere-se aos processos de falência ou de concordata “ajuizados anteriormente ao início de sua vigência”, já o § 1º dirige-se aos processos de falência “em curso”, ou seja, as falências decretadas antes da Lei nova regem-se integralmente pela lei velha; as falências em curso (não decretadas antes do estatuto novo) não podem resultar em concordata.

A medida adotada e guiada pelo Min. Humberto Gomes de Barros aparenta estar em consonância com as diretrizes e princípios inerentes ao Direito Comercial, notadamente o princípio da preservação das empresas que traz o valor básico da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste (COELHO, Fábio Ulhoa, 2008, p.13).

Não obstante, além da preservação da empresa, inolvidável o escopo do art. 47 da lei 11.101/05, já citado, que dissocia o interesse do sócio do interesse social que prestigia a função social da empresa, a qual beneficia credores, empregados, consumidores, fisco, dentre outros. Desse modo, acertado se mostra o entendimento firmado pelo STJ.

 


3.DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI Nº 11.101/05

 

Revela destacar que a Lei nº 11.101, de 2005, que disciplina e regulamenta a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, não só ab-rogou e substituiu a antiga Lei de Falências (que se encontrava em vigor pelo sexagenário Decreto-Lei nº 7.661 de 1945), promovendo, em verdade, uma extensa reforma na regulação de falência e recuperação judicial brasileira.

Inspirada na legislação americana, pretendeu-se, com a nova lei, adequar o regime falimentar brasileiro às numerosas e profundas alterações que ocorreram nas práticas empresariais no Brasil e no mundo nas últimas seis décadas.Antes da entrada em vigor da Lei nº 11.101, de 2005, o devedor empresário, para recuperar judicialmente o seu empreendimento, valia-se apenas da concordata, em sua forma preventiva ou suspensiva, conforme explicitado no tópico anterior.

A prática das concessões das concordatas demonstrou, no decorrer dos anos, ser ineficiente para recuperação da empresa, incapaz de soerguer devedores em dificuldades pelos motivos outrora expostos, os quais giram precipuamente entorno da concepção da concordata como “favor” a ser concedido pelo juiz, sem análise econômica, financeira ou administrativa que verificasse a viabilidade de continuação das atividades do negócio. Nesse sentido, no intuito de suprimir tais omissões, surge a recuperação judicial e extrajudicial da sociedade empresária ou do empresário que exerça profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, a qual será exposta a seguir.

3.1 DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial é uma permissão legal que concede ao devedor empresário ou sociedade empresária a possibilidade de negociar diretamente com todos os seus credores ou tão somente parte destes, de acordo com suas reais possibilidades, ampliando o seu universo de medidas eficazes e suficientes à satisfação dos créditos negociados, mantendo os direitos dos credores não incluídos no plano, garantindo o controle do poder judiciário e dos credores por instrumentos próprios, com a finalidade de recuperar e preservar a empresa viável com a reorganização.

 A Recuperação Judicial substituiu a antiga concordata, prevista no DL 7.661/45. A concordata era um instituto que pouco ajudava efetivamente na recuperação do devedor em dificuldades, conduzindo quase sempre à falência da empresa. A finalidade primordial da recuperação judicial é a chamada preservação da empresa (função social da empresa), que está ligada a manutenção de empregos, manutenção da fonte produtora, preservação dos interesses dos credores e manutenção do desenvolvimento na região, conforme se extrai do art. 47 da lei:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Quantos aos requisitos e legitimados, a teor do art. 48, poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda requisitos cumulativos de: a) não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; b) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; c) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial; d) não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes falimentares.

Dentre os meios para recuperação judicial da empresa, com o advento da Lei nº 11.101/05 foram dispostos diversas formas que não são excludentes, tampouco rol taxativo de medidas. Há, em verdade, uma relação de interação, o que tem que ser observado caso a caso, o que pode ocorrer a combinação de uma ou mais modalidades, mas que estejam alinhadas e compatíveis. A título de exemplo, destaca-se: a concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas, alteração do controle societário, aumento de capital social, redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva e a venda parcial dos bens.

Com efeito, estando devidamente instruída, o juiz deferirá o processamento da recuperação. Tal despacho, cuja previsão se encontra no art. 52 da Lei de Falências, chama atenção em dois aspectos relevantes: 1) aqui não se deferiu, ainda, a recuperação propriamente dita, apenas autorizou-se o seu processamento, pois a análise da viabilidade em manter a empresa ativa será feita em outro posterior; 2) há uma ordem de suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações que versem sobre quantia ilíquida, de natureza trabalhista, execuções de natureza fiscal e das ações e execuções movidas por credores que não se sujeitam à recuperação judicial.

 

3.2JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DA MATÉRIA

A jurisprudência, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a respeito da matéria, assentou que o deferimento do processamento da recuperação judicial não atinge o direito material dos credores, não havendo, pois, o que se falar em exclusão dos débitos, sendo mantidos, por conseguinte, os registros do nome do devedor nos bancos de dados e cadastros dos órgãos de proteção ao crédito, assim como nos tabelionatos de protestos. Senão, vejamos:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.374.259 - MT (2011/0306973-4) RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE: DESTILARIA DE ÁLCOOL LIBRA LTDA - EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL ADVOGADO : EUCLIDES RIBEIRO S JUNIOR E OUTRO(S) RECORRIDO : PIRAN- SOCIEDADE DE FOMENTO MERCANTIL LTDA ADVOGADO : MARCELO ALVES DE OLIVEIRA E OUTRO(S).

DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO DE PROCESSAMENTO. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. STAY PERIOD. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO, MANTIDO O DIREITO MATERIAL DOS CREDORES. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES E TABELIONATO DE PROTESTOS. POSSIBILIDADE. EN. 54 DA JORNADA DE DIREITO COMERCIAL I DO CJF/STJ. 1. Na recuperação judicial, apresentado o pedido por empresa que busca o soerguimento, estando em ordem a petição inicial - com a documentação exigida pelo art. 51 da Lei n. 11.101/2005 -, o juiz deferirá o processamento do pedido (art. 52), iniciando-se em seguida a fase de formação do quadro de credores, com apresentação e habilitação dos créditos. 2. Uma vez deferido o processamento da recuperação, entre outras providências a serem adotadas pelo magistrado, determina-se a suspensão de todas as ações e execuções, nos termos dos arts. 6º e 52, inciso III, da Lei n. 11.101/2005. 3. A razão de ser da norma que determina a pausa momentânea das ações e execuções - stay period - na recuperação judicial é a de permitir que o devedor em crise consiga negociar, de forma conjunta, com todos os credores (plano de recuperação) e, ao mesmo tempo, preservar o patrimônio do empreendimento, o qual se verá liberto, por um lapso de tempo, de eventuais constrições de bens imprescindíveis à continuidade da atividade empresarial, impedindo o seu fatiamento, além de afastar o risco da falência. 4. Nessa fase processual ainda não se alcança, no plano material, o direito creditório propriamente dito, que ficará indene - havendo apenas a suspensão temporária de sua exigibilidade - até que se ultrapasse o termo legal (§ 4° do art. 6°) ou que se dê posterior decisão do juízo concedendo a recuperação ou decretando a falência (com a rejeição do plano). 5. Como o deferimento do processamento da recuperação judicial não atinge o direito material dos credores, não há falar em exclusão dos débitos, devendo ser mantidos, por conseguinte, os registros do nome do devedor nos bancos de dados e cadastros dos órgãos de proteção ao crédito, assim como nos tabelionatos de protestos. Também foi Documento: 1410753 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 18/06/2015 Página 1 de 16 Superior Tribunal de Justiça essa a conclusão adotada no Enunciado 54 da Jornada de Direito Comercial I do CJF/STJ. 6. Recurso especial não provido.

No que pertine as ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, firmou-se o entendimento de que a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei 11.101/2005.[2] Em igual sentido, se posiciona o Enunciado 43 da I Jornada de Direito Comercial do CJF/STJ[3].

Por fim, considerando a suspensão das ações e execuções por 180 dias, tal como previsto no artigo 6º[4], o STJ tem flexibilizado o prazo para estendê-lo, nos casos em que o atraso do processo não se dê por culpa do devedor. Frise-se que igual entendimento foi exposto no Enunciado 42 da I Jornada de Direito Comercial[5].

Na mesma medida, a Corte assentou o entendimento de que o deferimento do processamento de recuperação judicial não suspende o curso das execuções fiscais, visto que o art. 174 do CTN prevê que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. No entanto, destacou-se que os atos de constrição direcionada ao patrimônio da empresa devem ser submetidos à análise do juízo universal, em homenagem ao princípio da preservação da empresa[6].

 

3.3O PODER DE ATUAÇÃO DO JUIZ NO ÂMBITO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O INSTITUTO DO “CRAM DOWN”

Como vimos acima, o magistrado é quem homologa o plano e concede a recuperação judicial (art. 58 da Lei n.° 11.101/2005). Outrossim, questiona-se: poderia o juiz pode recusar-se a homologar o plano de recuperação judicial alegando que ele não tem viabilidade econômica, mesmo já tendo sido aprovado em assembleia e estando formalmente perfeito? Entendemos que não. Se o plano cumpriu as exigências legais e foi aprovado em assembleia, o juiz deve homologá-lo e conceder a recuperação judicial do devedor, não sendo permitido ao magistrado se imiscuir no aspecto da viabilidade econômica da empresa.

A aprovação do plano pela assembleia representa uma nova relação negocial que é construída entre o devedor e os credores. Se os credores aceitaram a proposta e ela preenche os requisitos legais, não cabe ao juiz indeferir a recuperação judicial. Além disso, de certo, o magistrado não é a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica do plano de recuperação judicial. Isso porque a análise do possível sucesso ou não do plano proposto é não é uma questão jurídica propriamente dita, mas sim econômica e que está inserida na seara negocial da recuperação judicial, o que deve ser tratado entre devedor e credores.

O juiz, na realidade, deve exercer o controle de legalidade do plano de recuperação, analisando se há fraude ou abuso de direito. No entanto, não cabe a ele fazer controle sobre a viabilidade econômica do plano. No mesmo sentido são os enunciados 44 e 46 da I Jornada de Direito Comercial do CJF/STJ[7].

De outro giro, poderia o magistrado conceder a recuperação judicial mesmo tendo o plano sido recusado pela assembleia? A Lei 11.101/05[8] expressamente autoriza, instituto denominado no direito americano como “Craw Down”. No entanto, entendemos que o contrário não é possível, ou seja, o juiz não pode indeferir a recuperação judicial cujo plano foi aprovado pela assembleia, considerando que isso significaria a quebra (falência) da empresa, o que vai de encontro com o objetivo fundamental da Lei n.° 11.101/2005, que é o de que reerguer a sociedade empresária.

Além de tais hipóteses, indaga-se corriqueiramente se seria possível ao Poder Judiciário reconhecer a ineficácia, em relação ao prejudicado, de uma cláusula constante de plano de recuperação judicial aprovado em Assembleia Geral de Credores, ou as deliberações tomadas nessa assembleia não são passíveis de controle judicial.

De certo, a apresentação, pelo devedor, de plano de recuperação, bem como sua aprovação, pelos credores, seja pela falta de oposição, seja pelos votos em assembleia de credores (arts. 56 e 57) consubstanciam atos de manifestação de vontade. Disso decorre que, de fato, não compete ao juízo interferir na vontade soberana dos credores, alterando o conteúdo do plano de recuperação judicial, salvo em hipóteses expressamente autorizadas por lei (v.g. art. 58, §1º).

A obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade, no entanto, não implica impossibilitar ao juízo que promova um controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia. Qualquer negócio jurídico, mesmo no âmbito privado, representa uma manifestação soberana de vontade, mas que somente é válida se, nos termos do art. 104 do CC, provier de agente capaz, mediante a utilização de forma prescrita ou não defesa em lei, e se contiver objeto lícito, possível, determinado ou determinável. Na ausência desses elementos, o negócio jurídico é inválido.

Observe-se, ainda, que a decretação de invalidade de um negócio jurídico em geral não implica interferência, pelo Estado, na livre manifestação de vontade das partes. Implica, em vez disso, controle estatal justamente sobre a liberdade dessa manifestação, ou sobre a licitude de seu conteúdo. Assim, a vontade dos credores, ao aprovarem o plano, deve ser respeitada nos limites da Lei, somente podendo ser controlada judicialmente se não forem atendidos os requisitos de validade dos atos jurídicos em geral.

Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que embora a assembleia de credores seja soberana em suas decisões, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial[9].

 

3.4DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL

 

Além da recuperação judicial, com introdução da Lei nº 11.101/05, foi facultada ao devedor a possibilidade de propor e negociar com os credores um plano de recuperação extrajudicial, desde que preencha os requisitos definidos em lei, que são os mesmos em relação ao plano de recuperação judicial.

A Lei nº 11.101/2005 traz duas modalidades de recuperação extrajudicial: a do art. 162, voluntária, na qual somente os credores que expressamente aderirem ao plano de recuperação estarão submetidos a ele; e a do art. 163, que prevê a submissão da minoria no caso adesão por três quintos dos créditos de “cada espécie” abrangida pelo plano.

Para que seja homologado o plano extrajudicial, é fundamental que o devedor apresente a sua justificativa e o documento que contenha seus termos e condições, com as assinaturas dos credores que a ele aderiram, bem como deverá juntar: 1) exposição da situação patrimonial do devedor; 2) as demonstrações contábeis relativas ao último exercício social e as levantadas especialmente para instruir o pedido confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente do balanço patrimonial, demonstração de resultados acumulados, demonstração do resultado desde o último exercício social; relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; 3) os documentos que comprovem os poderes dos subscritores para novar ou transigir, relação nominal completa dos credores, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente.

No entanto, uma peculiaridade é a de que o pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial não acarretará suspensão de direitos, ações ou execuções, nem a impossibilidade do pedido de decretação de falência pelos credores não sujeitos ao plano de recuperação extrajudicial. Recebido o pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial previsto, o juiz ordenará a publicação de edital no órgão oficial e em jornal de grande circulação nacional ou das localidades da sede e das filiais do devedor, convocando todos os credores do devedor para apresentação de suas impugnações ao plano de recuperação extrajudicial, tratadas no artigo 164 § 3º da Lei 11.101/2005.

Evidente, assim, que o escopo de uma recuperação de natureza extrajudicial remete a um procedimento simplificado. Contudo, essa simplificação não deveria importar perda de segurança, possibilidade de manipulações e fraudes ou injusto prejuízo aos credores. A facilitação procedimental há de ser balizada com requisitos e consequências mais rigorosos, bem como pela maior transparência e pela definição mais explícita das etapas a serem vencidas no processo, haja vista o menor controle pelo Judiciário e pelos credores.

Ademais, alguns autores tecem críticas a respeito da matéria, a qual seria uma via de solução que não abarca todos os problemas da empresa em crise. Diferentemente da recuperação judicial, esta não engloba créditos de natureza tributária, derivados da legislação trabalhista ou que decorram de relações de trabalho, dívidas como garantia fiduciária de móveis ou imóveis, arrendamento mercantil, compra e venda de imóveis com determinadas características, compra e venda com reserva de domínio e adiantamento de contrato de câmbio, como elenca o artigo 161, § 1º.

Não obstante, em que pese a simplificação do procedimento, a lei eliminou quase todos os mecanismos que, na recuperação judicial, foram desenvolvidos para evitar abusos pelos devedores são mitigados nessa modalidade de recuperação, como: a) divulgação de informações aos credores bastante restrita (especialmente se comparada à recuperação judicial) e insuficiente para permitir objeções ao plano; b) não há um procedimento de habilitação de créditos; c) não é exigida comprovação de regularidade fiscal; d) não há participação de um administrador judicial; e) não é prevista a possibilidade de formação de Comitê de Credores; f) o Ministério Público fica totalmente excluído do procedimento; g) não há o período de observação de dois anos após a homologação do plano; h) não há obrigação de prestar contas por parte do devedor; i) não há qualquer outro tipo de fiscalização ou controle do cumprimento do plano; j) não há previsão de hipótese alguma de afastamento dos administradores da empresa devedora, nem mesmo em casos de má-fé ou de graves violações à lei ou ao direito; k) a rejeição ou o descumprimento do plano não acarretam a falência do devedor; e, por fim, l) o devedor pode reiterar, a cada dois anos, o pedido de recuperação, com nova sujeição da minoria discordante.

Conclui-se, portanto que a recuperação extrajudicial, é simplificação temerária de uma matéria de grande complexidade, que influencia todo o delicado equilíbrio das relações jurídicas privadas no Brasil. Como se tolhendo direitos e prerrogativas dos credores pudesse afastar a real dificuldade de constituir uma sólida opção institucional que, de fato e organizadamente, permita a efetiva solução das situações de dificuldades de empresas sólidas.


4ASPECTOS GERAIS DO PROJETO DE LEI Nº 10.220/2018

 

No dia 09 de setembro de 2017, o então Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, divulgou planos de implementar uma nova lei de falências e recuperação judicial no Brasil. Para ele, os processos, que ainda duram, em média, aproximadamente 5 anos5, precisavam cair para um prazo entre 3 e 4 anos[10]. Nesse diapasão, o presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional projeto de lei que visa reformar a lei 11.101/2005. Referida proposta ganhou o número PL 10.220/2018 e encontra-se em fase de formação de Comissão Especial para análise.

Certamente, há ainda muito o que discutir sobre o tema, envolto em polêmicas e interesses os mais diversos. De todo modo, resta em claríssimo tom que o projeto se trata de proposta de reforma legislativa bastante extensa, que interfere em dezenas de dispositivos de lei. Considerando a limitação do presente trabalho à matéria da Recuperação Judicial, selecionou-se os seguintes pontos para análise:

4.1 COMPETÊNCIA

O projeto propõe concentrar a recuperação judicial (e também a extrajudicial, assim como a falência) com passivo superior a 300.000 salários-mínimos na capital do Estado ou do Distrito Federal onde se localizar o principal estabelecimento da empresa em recuperação. Atualmente, a teor do artigo 3º da lei falimentar, é competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.

Ao que parece, o objetivo da lei consiste em concentrar as recuperações judiciais de maior repercussão em varas especializadas na matéria. O ponto negativo que pode-se destacar seria o risco de se dificultar, pela distância, o acesso dos credores (notadamente, os credores pessoas físicas, como empregados, e microempresas) ao juízo da recuperação.

4.2 PUBLICIDADE E DIVULGAÇÃO NA INTERNET

A medida do projeto acompanha tendência verificada no CPC/2015, de priorizar a publicidade e divulgação dos atos da recuperação pela internet, em sítio específico para este fim, deixando de lado a tradicional publicação de editais no Diário Oficial.

Nesse sentido, passariam a ser divulgados em sítio eletrônico: (i) a relação de credores elaborada pelo administrador judicial a partir das habilitações e divergências apresentadas pelos credores; (ii) o quadro geral de credores consolidado pelo administrador judicial com base nas decisões proferidas nas impugnações; (iii) a convocação da assembleia geral de credores. Ademais, o deferimento do processamento da recuperação judicial também será sucedido de ampla divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico em cadastro no CNJ. Exige-se do administrador judicial, por fim, que mantenha sítio eletrônico na internet, para divulgação dos principais documentos e informações acerca da recuperação judicial.

Tal inovação, a prima facie, é positiva, pois não só desburocratiza as publicações na recuperação judicial, como poderá evitar custos associados à publicação de editais.

4.3 AJUIZAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL COMO FATO GERADOR DO STAY PERIOD E EXCLUSÃO DO LIMITE TEMPORAL RÍGIDO

De acordo com a lei em vigor, a suspensão de ações e execuções contra a empresa em recuperação, assim como do curso da prescrição, conhecida como stay period, é deflagrada pelo despacho liminar do juiz que admite o processamento da recuperação judicial, conforme visto nos tópicos anteriores deste trabalho.

Segundo o projeto, essa suspensão seria antecipada para o momento da apresentação do pedido de recuperação judicial, e não do despacho que admite o processamento. Em contrapartida, há previsão de que, caso o juiz identifique que o devedor atuou como dolo ou má-fé no pedido de recuperação judicial, fará constar o fato da sentença, para que seja considerado em futuros pedidos.

Desaparece, ainda, a limitação rígida de 180 dias para o stay period, passando a se prever que a suspensão perdurará até o encerramento da recuperação judicial. Nesse caso, o legislador busca, de fato, poupar o devedor da morosidade na recuperação judicial.

4.4 PROCESSO COMPETITIVO PARA A ESCOLHA DO ADMINISTRADOR JUDICIAL

Dentre as propostas, o projeto também busca estabelecer, com o deferimento do processamento da recuperação judicial, uma espécie de processo simplificado para a escolha do administrador judicial, em vez da nomeação direta de profissional de confiança do juiz, como ocorre atualmente.

Nesse sentido, o projeto dispõe que eventuais interessados deverão apresentar propostas em que indicarão o valor da remuneração, a forma e o prazo de pagamento, o escopo do trabalho e a sua avaliação sobre o grau de complexidade do trabalho e os cursos para o desempenho das funções de administrador judicial. O devedor e os credores poderão se manifestar sobre as propostas e, ao final, o juiz decidirá, fixando o valor da remuneração do administrador judicial.

Há previsão, ainda, de recurso contra a decisão que fixar a remuneração do administrador judicial, o qual poderá ser interposto pelo credor que houver se manifestado. Em tal aspecto, vê-se que a medida seria, em verdade, uma maior burocracia ao sistema.

4.5 DISCIPLINA DO VOTO ABUSIVO

O voto abusivo acontece quando o voto de algum credor é desconsiderado porque realizado com abuso de direito. Neste caso, conflitam dois interesses: o do credor, que tem o direito de votar conforme seu próprio juízo de conveniência, e o do devedor em recuperação, que pode ser vítima de pressões injustas dos credores com maiores créditos e, portanto, maior poder em assembleia.

O projeto estabelece que o voto será considerado abusivo quando o credor dele se valer para obter vantagem ilícita, ou para exclusivamente prejudicar devedor ou terceiro, ou quando este é exercido por conta, ordem ou no interesse total ou parcial de outro que não o próprio credor, ou quando o credor tiver ajustado com devedor ou terceiro, de maneira a se excluir dos efeitos das disposições do plano de recuperação judicial.

O assunto merece ser disciplinado, mas a proposta apresentada ainda necessita, de fato, ser aprimorada, sendo insuficiente para um tratamento seguro sobre o tema. Em que pese a dificuldade de disciplinar objetivamente a matéria, ainda resta espaço muito amplo para uma análise casuística, sem critérios bem definidos.

4.6 EXTINÇÃO DAS QUATRO CLASSES LEGAIS DE CREDORES

Sabe-se que a lei 11.101/2005, em sua configuração atual, estabelece quatro classes de credores: (I) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; (II) titulares de créditos com garantia real; (III) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados e (IV) titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte. Tais classes são extintas pelo projeto, que estabelece que as classes serão definidas conforme estabelecido pelo próprio plano de recuperação judicial.

A proposta ainda prevê que os credores de cada classe devem possuir interesses homogêneos, delineados em função da natureza ou da importância do crédito, ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e aprovado pelo juiz. Créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho, entretanto, não poderão ser alocados pelo plano em classes que envolvam créditos de outra natureza.

Referida disciplina causa demasiada preocupação, pois abriria margem para que a alocação de classes seja manipulada para favorecer indevidamente a aprovação de planos de recuperação judiciais. Ainda que seja previsto o controle judicial sobre as classes que vierem a ser delimitadas pelo plano, tal regime ensejaria insegurança jurídica e provavelmente seria fonte de muita controvérsia no curso da recuperação judicial, com repercussões significativas sobre o resultado da assembleia de credores. Fugindo, assim, do intuito maior da reforma.

4.7 AMPLIAÇÃO DO PRAZO PARA A APRESENTAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

O projeto propõe a ampliação do prazo de apresentação do plano, de sessenta para noventa dias, contado da data do deferimento do processamento da recuperação judicial.

A ampliação, contudo, pode ser menor do que se imagina (de sessenta dias úteis para noventa dias corridos), na medida em que atualmente há diversos precedentes estabelecendo a contagem dos prazos na recuperação judicial em dias úteis, por aplicação subsidiária do art. 219 do CPC – em que pese recente julgado do STJ sinalizar em sentido contrário[11]. A proposta legislativa em análise, por sua vez, estabelece que todos os prazos previstos na lei 11.101/2005 – incluindo o que ora se discute – serão computados em dias corridos, preservando-se, contudo, a contagem em dias úteis para os recursos interpostos na recuperação judicial, extrajudicial e falência.

4.8 CONTAGEM DE PRAZOS E CABIMENTO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO 

Por fim, como já visto no tópico anterior, o projeto acolhe a orientação recente do STJ, segundo a qual os prazos da lei 11.101/2005 devem ser computados em dias corridos. Ficam ressalvados os prazos recursais, assim como os prazos processuais previstos em outras leis, que continuarão a ser contados em dias úteis. Além disso, a proposta legislativa, de forma que nos parece acertada, explicita que caberá agravo de instrumento contra todas as decisões proferidas na recuperação judicial (assim como na recuperação extrajudicial e na falência), salvo se a lei 11.101/2005 regular a questão de forma diversa.


5 CONCLUSÃO

 

Com a realização deste trabalho, projetam-se algumas considerações acerca do tema proposto. Em sua fase introdutória foi destacado que o objetivo geral do presente trabalho seria de estudar o instituto da recuperação, desde sua origem, conceitos, evolução histórica e as contraposições entre o Decreto-Lei nº 7.661 de 1945 e a Lei nº 11.101/05. Não obstante, foi perseguida também uma análise perfunctória sobre a mudança que ensejou a promulgação da atual lei falimentar.

Pois bem, na análise procedida, verificou-se que antes de chegar ao princípio da manutenção da atividade empresarial, que possui como égide a função social exercida pela empresa, observou-se que o instituto falimentar passou, no decorrer de seu desenvolvimento histórico, por diversos estágios e reformulações. Durante a pesquisa, constatou-se que além da falência ser vista, em sua origem, como forma de punição do devedor (e posteriormente, adquirir um caráter mais sócio-econômico), a extinta concordata, embora tivesse a finalidade de ajudar o devedor, era facilmente manejada, muitas vezes de má-fé, pelas empresas, o que findava pela pouquíssima chance de solução dos casos postos para apreciação jurisdicional.

Constatou-se, ademais, que as modificações propostas pela Lei nº 11.101/05 de fato aproximaram o direito de crédito e a execução coletiva à função relevante das empresas, como a geração de empregos, pagamento de tributos, geração de riquezas, distribuição de renda, entre outros. No entanto, conclui-se que a recuperação extrajudicial, em específico, é passível de diversas críticas, pela simplificação temerária de uma matéria de grande complexidade.

Por fim, no que atine ao Projeto de Lei nº 10.220/2018, conclui-se que o mesmo, em que pese seu objetivo de simplificar e diminuir o tempo de duração dos processos judiciais, acaba por burocratizar, ainda mais, escolhas que via de regra não tumultuavam os casos (complexos por si), tal como a escolha do administrador judicial. Necessitando, pois, de melhor aprofundamento e reformulação.


6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falência e Recuperação de Empresa. 27ª ed. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

PROJETO DE LEI 10.220/2018. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2174927. Acesso em: 01 de outubro de 2018

BRASIL. Lei nº 11.101, de  9 DE FEVEREIRO DE 2005.Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>.

____________. Decreto-Lei nº 7.661, de DE 21 DE JUNHO DE 1945. Lei de Falências. Acesso em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del7661impressao.htm>

____________. Lei nº 13.105, de  16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Acesso em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.


Notas

[1] Recurso Especial nº 971.215 - RJ (2006/0248205-4). Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros.

[2] REsp 1.333.349-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 2/2/2015. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT , 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005". 2. Recurso especial não provido.

[3] “A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6° da Lei nº 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor”.

[4]  Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) § 4o Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

[5] O prazo de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005 pode excepcionalmente ser prorrogado, se o retardamento do feito não puder ser imputado ao devedor.

[6] AGRCC 201402409870, MARCO AURÉLIO BELLIZZE, STJ - SEGUNDA SEÇÃO, DJE DATA:19/05/2015

[7] Enunciado 44: A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle de legalidade. Enunciado 46: Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores.

[8]  Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei.  § 1o O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:       I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;       II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes      com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;       III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 desta Lei.

[9] Terceira Turma. REsp 1.314.209-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/5/2012.

[10] Segundo dados do Serasa Experian (https://www.serasaexperian.com.br/). Entretanto, os dados do Doing Business (http://www.doingbusiness.org/data/exploretopics/resolving-insolvency) afirmam que o tempo médio é de 4 anos.  

[11] STJ, REsp 1.699.528, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 10/4/2018.



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