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A noção de justiça formal em Chaïm Perelman

igualdade e categorias essenciais

A noção de justiça formal em Chaïm Perelman: igualdade e categorias essenciais

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A aplicação da justiça formal exige a prévia delimitação das categorias consideradas essenciais, dentro de uma certa escala de valores, que são mutáveis no tempo e no espaço.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; I. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA; II. CONCEPÇÕES DE DISTRIBUIÇÃO DE JUSTIÇA CONCRETA; II. 1. Igualdade absoluta (a cada qual a mesma coisa); II. 2. Igualdade distributiva (a cada qual segundo seus méritos);II. 3. Igualdade comutativa (a cada qual segundo suas obras); II. 4. Igualdade de caridade (a cada qual segundo suas necessidades); II. 5. Igualdade aristocrática (a cada qual segundo sua posição); II. 6. Igualdade formal (a cada qual segundo o que a lei lhe atribui); III. A NOÇÃO DE JUSTIÇA FORMAL (AS CATEGORIAS ESSENCIAIS); IV. CONCLUSÕES; BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

            "A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, consequentemente, o que é justo e o injusto."(Aristóteles)

            Chaïm Perelman [01], fundador da Retórica moderna, em seu livro "Ética e Direito" [02], mais especificamente em sua primeira parte, debruçou-se sobre a análise do conceito de "justiça", nos ofertando, ainda, outras considerações de ordem moral, sempre conectadas com a próprio Direito, enquanto ciência social.

            Na própria apresentação da obra de Perelman, "Ética e Direito", Alaim Lempereur já alerta que "(...) Sua originalidade se deve, em grande parte, à vontade incessante de reabilitar a vida do direito e de torná-lo o fundamento de sua atividade..." [03]

            A preocupação perelmaniana com o Direito era tamanha, que durante o transcorrer de toda sua narrativa, na obra acima citada, o mesmo, de forma invariável, se vale de exemplos corriqueiros observados nos tribunais e nos escritórios de advocacia.

            Tal postura, digamos menos formal, do ponto de vista da linguagem filosófica, árida e, por vezes, intranspugnável, demonstra, apenas, que Perelman punha em prática sua própria teoria de argumentação jurídica, ampliando os horizontes de seu próprio auditório particular, a ser formado, não só por filósofos, mas também por juristas. [04]

            O capítulo I, da supra-mencionada obra, agora estudado tão somente em parte, surgiu de um artigo escrito por Perelman, "Da Justiça", em 1945, publicado na coleção das "Actualités Sociales" do Instituto de Sociologia Solvay da Universidade Livre de Bruxelas.

            Neste ensaio, Perelman prestigia, do legado aristótelico, aspectos até então pouco estudados pelos demais filósofos, a saber, o modo dialético de raciocínio jusfilósofico, como um saber necessário, sério e passível de controle, já que portador de regras próprias.

            Perelman, em 1947, com a colaboração de Lucie Olbrechts-Tyteca, reabilita e reconstrói, de forma pioneira, aquilo que Aristóteles alcunhava de "técnica retórica", de origem sofística, nos idos do século V a.C., e que Platão combatia de forma ardorosa, lhe conferindo o mero status de "arte da persuasão".

            O filósofo belga toma como ponto de partida a análise do "Code Napoleon" e seu raciocínio jurídico, como operação dedutiva, partindo de premissas positivas, tidas como "primum verum", vale dizer, necessárias e dogmáticas ("indiscutíveis", no vulgo do senso comum).

            Perelman perquire se tal método lógico-dedutivo, portanto, axiomático, seria capaz de explicar como se operaria a interferência dos juízos de valor do aplicador da norma. Noutras palavras, Perelman se viu na obrigação de examinar se existiria ou não uma racionalidade jurídica nas decisões judiciais.

            Na parte final deste opúsculo, há um tratamento quanto à resposta dada pelo filósofo de Bruxelas à tal crucial questão, que ele mesmo chamou de "justiça formal"; noção assumidamente positivista (é de se lembrar a contemporaneidade da obra de Perelman com a de Hans Kelsen, ainda que o segundo lhe tenha antecedido em sua teoria), pela qual o justo se traduziria em dispensar tratamento igual a situações que se revelam, no essencial, semelhantes. [05]

            Em suma, para Perelman, "justiça", em sua acepção meramente formal, era sinônimo de "igualdade". É bem verdade que, em seus estudos posteriores, especialmente sobre a "Nova Retórica" [06], o mesmo apontou a importância de não se criar uma concepção absolutista da justiça, que, segundo o mesmo, há de ser desenvolvida a partir de uma argumentação racional, prudente; e calcada no senso comum e no consenso.


I-COLOCAÇÃO DO PROBLEMA.

            Chaïm Perelman, ao iniciar sua análise sobre o que seja "justiça", ainda assim preso a um resquício do modo de pensar lógico-formal, alerta ao leitor menos avisado, que não se busca o mesmo atingir uma definição completa e definitiva de justiça, expressão por demais prestigiosa e emotiva.

            O jusfilósofo belga, no particular, já demonstra a evidente dificuldade que existe em se aferir, de uma maneira universal, uma noção abstrata, apotídica (aqui, entendida sob uma perspectiva silogística-axiomática) acerca de um "valor", tal qual é a justiça.

            É impossível se desvendar uma definição única de tal vocábulo, extremamente polissêmico, e que, a depender das palavras utilizadas em sua definição, pode soar, na verdade, extremamente injusto ou não, a depender da própria íntima convicção de cada pessoa.

            A ressonância emotiva da "Justiça" (grafada com inicial maiúscula, por indicação do próprio autor) já nos revela o profundo respeito, e porque não se dizer temor, que Perelman tem, quando se vê diante de supostos conceitos objetivos de "Justiça".

            A plurivocidade da expressão suso-mencionada há de ser considerada em todos os seus sentidos possíveis, pena de se perder o próprio sentido do conteúdo da palavra, em apreço à um suposto rigor formal de linguagem.

            No particular, Perelman, retomando os ensinamentos de Max Weber, assaca severas críticas ao modo de pensar lógico-dedutivo, que deita raízes na Grécia Antiga [07], e que foi reinserido no contexto iluminista por René Descartes [08] e Emmanuel Kant.

            Segundo o mestre de Bruxelas, é errôneo se fundamentar em deduções sólidas inferíveis de definições arbitrárias e imparciais. Assevera, Perelman, que:

            "(...) Se os lógicos admitem a natureza arbitrária das definições, é porque elas não constituem, para eles, senão uma operação que permite substituir um grupo de símbolos conhecidos por um símbolo novo, mais curto e de manejo mais fácil do que o grupo de signos que o define (...)" [09]

            Perelman aduz que o raciocínio lógico-arbitrário pode nos levar ao que o próprio denomina de "definição dupla", ou seja, uma noção com dois sentidos distintos, e sem comprovação de que tais se coincidam.

            Nesse sentido, coteje-se esta assertiva com um exemplo dado por Aristóteles, em "Ética à Nicômaco" [10], no qual o mesmo, testificando a ambigüidade dos vocábulos "justiça" e "injustiça", exemplifica com o uso da palavra "kleis", que tanto pode significar a clavícula de um animal como aquilo que se tranca uma porta. Do mesmo modo, Perelman não vê distinção entre razoabilidade e proporcionalidade, e. g.

            O exemplo acima citado, sendo "razoável" e "proporcional" a mesma coisa, apenas reafirma, nos esclarecimentos perelmanianos, que todas as vezes que se visa definir uma noção, que não represente um signo novo, mas que já preexista na linguagem, com toda uma carga particularmente emotiva, não se trata de uma ação arbitrária ou indiferente, aos moldes kantianos.

            Pelo contrário, é puro ato de vontade, carregado de desejos e paixões singulares, portanto, dialético.

            Perelman entabula, destarte, a comumente conhecida "coloração afetiva das definições", a qual se liga à um juízo essencialmente sintético, porém nunca analítico. Para ele, só existe juízo analítico-arbitrário, na medida em que nenhuma coloração emocional se vincula ao termo definido. [11]

            É pela carga de emotividade aplicada na busca em torno de um consenso sobre dada definição de um conceito, que se distinguem a filosofia da ciência. Daí porque os conceitos científicos, com fuste em métodos experimentais ou analíticos, o que não ocorre na seara filosófica, intrinsecamente valorativa, são menos perenes, porque circunstanciados, e deixam de ser aplicados, se não mais servirem ou conseguirem ser provados.

            No particular, a explicação dada por Perelman nos aparenta, rogata maxima venia, contraditória, já que, com base nessa colocação, os conceitos filosóficos também teriam pouca densidade temporal, porque imiscuídos por idéias valorativas, logo humanas, portanto mutáveis; e aí, ao invés de se afastar, se aproximariam dos conceitos puramente científicos.

            Tal justifica a dificuldade que têm as "ciências do espírito", noção difundida pioneiramente entre os alemães por Wilhelm Dilthey, segundo nos informa Gadamer [12], em se constituírem e consolidarem, enquanto tais.

            Perelman, palmilhando essas idéias, acaba por delimitar o objeto da filosofia, como sendo justamente o estudo dessas noções extremamente valorativas, por assim dizer "prestigiosas", e que nos levam à uma situação irracional, ou ao menos, confusa.

            Na luta pela descoberta de tais definições é que se acaba por discutir o verdadeiro sentido das próprias palavras, e nestes embates não-consensuais, o que acaba por preponderar é a proliferação de noções confusas, tão típicas da filosofia.

            Perelman propõe, então, como mera sugestão para se solucionar tal problema, a tentativa de diminuição do papel afetivo agregado aos conceitos filosóficos. Entretanto, Perelman adverte que não se trata de transformar a filosofia numa ciência, porém, sim, apenas torná-la mais lógica. [13]

            Perelman admite que a justiça é a principal virtude, e dela todos as outras promanam, posto que açambarcariam toda a moralidade.

            Contudo, Perelman, citando outros autores, como Dupreél e Proudhon, reafirma que a justiça é uma noção eminentemente particular, se bastando para tanto uma abordagem histórica das diversas concepções de teorias da justiça, seja ela a felicidade (Platão), a verdade (Aristóteles), a razão divina - a fé em Deus (Tomás de Aquino), a liberdade ou autonomia da vontade humana (Kant), o ato de poder vital (Nietszche) ou a felicidade conforme a lei (Kelsen). [14]

            Ainda que todas estas noções, entre si contraditórias, tratem da noção suprema de "justiça", tais são válidas para aqueles que as comungam, e, aqui, Perelman salienta que a noção de "justiça" é convencional, e cada grupo a defenderá, como concepção própria de pensar; logo, a mais correta, adequada e razoável.

            Quando Perelman fala em "convenção", seu raciocínio se aproxima daqueloutro aristótelico, pelo qual a justiça se faz através dos hábitos, costumes e da própria experiência.


II-CONCEPÇÕES DE DISTRIBUIÇÃO DE JUSTIÇA CONCRETA.

            Perelman elenca seis concepções concretas da noção de "justiça", num rol meramente exemplificativo, a fim de demonstrar, através de fortes argumentos, ser pouco provável se conseguir a extração definitiva e universal do que seja "justiça".

            São eles:

            II. 1. Igualdade absoluta (a cada qual a mesma coisa).

            Segundo esta concepção, todas as pessoas hão de ser tratadas da mesma forma, sem levar em conta as diferenças que as distinguem. Logo, tratar-se-ia, do mesmo jeito, independentemente das condições ou situações fáticas particulares, e. g., um velho e um jovem; um rico e um pobre.

            Perelman critica tal concepção, e, de forma irônica, salienta que, sob tal prisma, o único ser perfeitamente justo seria a morte, inexorável e universal. Realmente, é absolutamente injusto, ainda que seja sedutor e "populista", tal critério; tendo em conta que, a depender do caso concreto, mister se faz conferir certos privilégios, para sopesar algumas desvantagens, de acordo com os usos e costumes.

            II. 2. Igualdade distributiva (a cada qual segundo seus méritos).

            Neste viés, tal concepção prevê um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, qual seja, ao mérito da pessoa. Nota-se nitidamente nesta concepção a retomada, ainda que indireta, do pensamento aristótelico, arrimado numa "meritocracia", na qual, como critério material de distribuição de justiça, se valoriza o mérito do ser humano.

            O que vale é o esforço, a causa da ação, e não o seu simples resultado.

            Todas essas concepções, aqui expostas, se referem à critérios de distribuição de justiça, e como tal, amplamente relativos, sob o aspecto material, posto que, numa visão perelmaniana, não há como se eleger um "melhor" critério.

            Contudo, como já salientado alhures, sob o aspecto formal, Perelman é um neo-positivista, no particular se afastando por completo do ideário aristótelico, assumindo, como se verá adiante, ser a justiça o que a lei disser, recusando qualquer objetividade ao conceito de valor.

            II. 3. Igualdade comutativa (a cada qual segundo suas obras).

            Este critério de distribuição, segundo Perelman, propugna, assim como o critério do mérito, por um tratamento geométrico, contudo, ao contrário da "meritocracia", este aqui só considera os resultados da ação, deixando, assim, de ser moral.

            O critério do mérito leva em conta a intenção da ação, os sacrifícios ou esforços realizados, e neste ponto, é mais justo que o ora em análise, segundo as obras.

            O critério dos resultados da ação, ao dar primazia à elementos ligados ao cálculo, peso ou medida, nos remete ao pensamento de Ronald Dworkin, que dá vazão à um justo receio ao que chama de "ceticismo interior". [15]

            De igual maneira, o critério dos resultados foi amplamente utilizado no auge da Reforma Protestante, na Idade Média, no qual o fiel era salvo pela sua fé ou pelas suas obras, frise-se, com a institucionalização do "dízimo" doado à Igreja e a tese, de fundo calvinista, de que quanto mais se trabalhasse e acumulasse riquezas, mais fácil seria o próprio acesso ao paraíso celestial. [16]

            Aqui, de forma particular, válida é a crítica feita por Baruch de Spinoza, dirigida à Francisco Suarez, teólogo franciscano espanhol, adepto da 2ª Escolástica. [17]

            Para Perelman, segundo esse critério dos resultados, poder-se-ia justificar o pagamento do salário dos operários, por hora ou peça.; bem como os exames e concursos de seleção de candidatos. Hannah Arendt refuta tal critério, embora admita que a sociedade atual é altamente tecnicista. [18]

            II. 4. Igualdade de caridade (a cada qual segundo suas necessidades).

            Este critério visa abrandar os sofrimentos decorrentes da impossibilidade em que o homem se encontra de satisfazer suas necessidades essenciais. Seria uma concepção de caridade, para Perelman, que para não se tornar inviável, haveria de se nortear por regras formais.

            Como exemplo de aplicação deste critério, Perelman aponta a legislação social e trabalhista que surgiu logo após o auge da Revolução Industrial do século XIX e do apogeu do liberalismo econômico.

            Válido, ainda que de relance, analisarmos a teoria da justiça de John Rawls, que, sob nítida influência kantiana [19], analisa a justiça como equidade, através da noção (por ele mesmo mais tarde reformulada, visando mitigar as invariáveis críticas assacadas à sua teoria da "posição original" do pacto social), de "overllaping consensus" (numa livre tradução, "superposição consensual").

            Observa-se em Rawls a busca de uma síntese da noção aristótelica de justiça, centrada na igualdade, e a noção kantiana [20], mirada na busca da autonomia (liberdade). [21] Segundo Rawls, a escolha das pessoas, seja por um modelo neo-liberal, seja por um modelo social-democrata, passaria, para ganhar foros de universalidade, pelo crivo de uma justificação pública, que é exatamente aquela noção da superposição consensual, acima citada.

            Em Rawls, a prioridade justa é o bem, vale dizer, a equidade ("fairness") e não o útil, como apregoavam os utilitaristas econômicos, e. g., de Jeremias Bentham e Stuart Mill; assim como o pragmatismo jurídico de Holmes e Frank. Para que tal sociedade justa se torne exeqüível, mister se faz que a mesma esteja bem ordenada, do ponto de vista jurídico e político. Rawls despreza aquele aforismo de que "a decisão é boa, na medida em que é útil para a maioria da sociedade."

            Portanto, tal critério da caridade, como denominou Perelman, foi bendito pelos social-democratas [22], que criticando Rawls e os demais adeptos do neo-liberalismo, bradam por um "Welfare State" (Estado-Previdência ou do Bem-Estar Social), com um projeto de Estado intervencionista e garantidor dos direitos sociais.

            Por sua vez, a concepção neo-liberal, de origem rawlsiana, vai paulatinamente sendo reconstruída, a se guiar em busca de um "Estado-Mínimo", como propõe Robert Nozick, e com suas variações, Friedrich Hayek, dentre outros, até se romperem, de vez, com o neo-liberalismo clássico, e propugnarem pelo que ficou conhecido como "comunitarismo". [23]

            Segundo os comunitaristas, esta "meta-ética" de Rawls, erigida em princípios de justiça extraídos apenas pela razão, independentemente do tempo e do lugar, abstraindo-se, assim, quaisquer elementos empíricos, disponta como algo utópico e inexeqüível. É, em ultima ratio, uma reação à despersonalização da sociedade moderna globalizante, a que se refere Hannah Arendt.

            Já Jürgen Habermas, em parte, critica, e, em parte, adota a teoria ralwsiana. Habermas valoriza uma razão procedimental, calcada num processo dialógico e pragmático, na seara do discurso lingüístico, o que o mesmo chama de "razão comunicativa", e que haveria de ter foros universalistas, a exemplo do modelo de Rawls. Contudo, a idéia habermasiana se fulcra na prevalência da razão comunicativa sobre a razão centrada no sujeito. [24]

            II. 5. Igualdade aristocrática (a cada qual segundo sua posição).

            É um critério aristocrático de distribuição formal de justiça, aduz Perelman, consistindo em tratar as pessoas de acordo com a categoria a que pertençam. Se traduz num critério anti-universalista, e altamente discriminatório, se dando como exemplos clássicos as diferenças de tratamento dispensadas à brancos e negros, nacionais e estrangeiros, livres e escravos, e assim por diante.

            Tal critério tem por caráter a natureza social e o cunho hereditário das pessoas, independendo, destarte, da vontade do indivíduo, sendo ardorosamente defendida pelos detentores do poder e pelas maiorias intolerantes, e. g., respectivamente, pelos EUA e pelo extinto Talibã.

            II. 6. Igualdade formal (a cada qual segundo o que a lei lhe atribui).

            Tal critério nos remete àquela velha parêmia romana de "suum cuique tribuere", vale dizer, dar a cada um o que é seu.

            Segundo Perelman, ser justo é atribuir a cada qual o que lhe cabe, que, em sentido jurídico, é aquilo que a lei lhe atribui. Ser justo é aplicar as leis do país; daí decorrendo que, a depender de cada legislação, existirá um critério particular de distribuição de justiça.

            Perelman afirma, categoricamente, que a injustiça apenas florescerá na distorção da aplicação das regras jurídicas de cada sistema.

            Dupreél, citado por Perelman, concebe este critério como de "justiça estática", posto que almeja a mantença do status quo, de índole conservadora, servível como fator de fixidez. Considera, assim, os outros cinco critérios, acima explicitados, como de "justiça dinâmica", progressista e concebível como fator de transformação.

            Este critério, apesar de nominalmente "formal", implica uma fórmula material de distribuição da justiça, a se confundir com a própria idéia de "justiça formal", fundada num viés absolutamente legalista, ou, melhor dizendo, positivista jurídico.

            Tal critério, em suma, há de preponderar sobre as demais fórmulas de distribuição material de justiça. Entretanto, Perelman alerta que todos esses critérios não são auto-excludentes, mas sim complementares. Assim, o professor de Bruxelas não invalida os outros cinco critérios, que, segundo o mesmo, seriam coexistentes.

            Perelman, entretanto, no exato instante em que afirma a coexistência dos critérios, mostra a possibilidade de ocorrência de contraposição entre os mesmos, em dada situação concreta.

            In casu, ele aponta três possíveis atitudes a serem tomadas:

            a)declarar que tais critérios não possuem qualquer vínculo conceitual, se buscando, assim, a distinção dos seus diferentes sentidos;

            b) ou não adotar nenhum dos critérios, ou escolher, dentre as seis concepções, apenas e tão só uma delas; e,

            c)pesquisar o que há de comum entre as diferentes concepções de justiça, mesclando-as.

            Perelman aponta a terceira opção como a melhor de todas, posto que nem a primeira atitude, nem a Segunda são sustentáveis. A primeira porque se negaria a evidente existência dos demais critérios, que são reais e concretos. A Segunda por ser absolutamente inadmissível considerar apenas uma das formas de "justiça concreta" como a única realmente justa.


III. A NOÇÃO DE JUSTIÇA FORMAL (AS CATEGORIAS ESSENCIAIS).

            De acordo com Perelman, dentre os pontos convergentes e os divergentes das diversas concepções de justiça, é necessário se talhar uma fórmula de justiça que exsurja de um acordo unânime.

            A noção de justiça consiste, por certo, na aplicação da idéia de igualdade, porém como um elemento indeterminado, ou seja, que possibilite o levantamento e discussão de suas divergências.

            De tal elemento variável, numa pluralidade de determinações, é que advirão as mais opostas fórmulas de justiça, até que se chegue à um ideal de limite, sendo justiça a igualdade, não absoluta, mas a parcial, como algo possível de execução prática.

            Ser justo, persiste Perelman, é tratar a todos de forma igual, contudo tendo em mente a idéia de "limite", em contraposição às possibilidades de realização de tais critérios de distribuição do que seja justo.

            É a noção de "categorias essenciais" de Perelman, pela qual a justiça implica o tratamento igual dos seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde que haja identidade comum entre os indivíduos à que a mesma é aplicada. Citando Tisset, Perelman exemplifica: não há justiça nas relações entre homens e vegetais.

            Tal conceito perelmaniano já serve para aplacar a ira dos defensores de cada tipo de critério de distribuição de justiça, contudo se percebe que um novo problema surge, consistente em se saber como deverá ser o tratamento entre os membros de uma mesma categoria essencial.

            Perelman argumenta que, tomando como vetor variável ("elemento indeterminado") cada fórmula concreta de justiça, será neste campo de ação que o desacordo se instalará. Vale dizer: dentro das diversas categorias essenciais, haverá de existir um tratamento igual entre as pessoas que sejam iguais em certo ponto de vista.

            Em síntese, Perelman traça uma definição de justiça formal (abstrata), como "(...) um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma (...)" [25]

            Tal definição é formal, justamente porque não se esquadrinha as categorias que são reputadas essenciais para a aplicação da justiça; se permitindo, assim, se surjam e sejam discutidas as divergências no exato instante de estabelecimento de tais categorias, no plano, logo, da justiça concreta.

            A partir daí, Perelman retorna à análise dos seis critérios concretos de administração da justiça, e a cada um deles, através de argumentos convincentes, o mesmo aplica a fórmula de justiça formal.

            Quanto ao primeiro critério, o de "dar a cada qual a mesma coisa", se percebe que, diferentemente do que se imagine, o mesmo não traduz um "humanitarismo igualitário"; posto que, sendo possível se restringir a aplicação deste princípio à uma categoria essencial, tal categoria, se for mais qualificada que as demais, a exemplo dos empresários e dos parlamentares, e. g., poderá se valer de tal discurso para se considerar superior às demais classes.

            Logo, surge daí uma nova fórmula para tal critério, que, de um modo geral, reflete a própria noção de "justiça formal", qual seja: "a cada membro da mesma categoria essencial, a mesma coisa."

            Quanto ao segundo critério, "a cada qual segundo seus méritos", Perelman observa ser premente que se possua o mérito ou o demérito, contudo num mesmo grau ou intensidade, o que possibilita, assim, recompensar ou punir, dentro de sistemas equivalentes, e de uma adequada representação dos fatos subsumidos à apreciação do aplicador da norma.

            De relação ao terceiro critério, "a cada qual segundo suas obras", o belga admite que as obras ou conhecimentos terão de ser considerados equivalentes aos olhos do aplicador da justiça, se considerando, pura e simplesmente, o resultado do trabalho ou a qualidade intrínseca da obra, sem se ater ao esforço ou tempo dispendido pelo agente.

            A partir desta noção, Perelman justifica a necessidade da existência do dinheiro, para comparar a valiosidade de obras; e de um programa (um esquema de regras procedimentais), para se comparar candidatos num concurso público, por exemplo.

            Quanto ao quarto critério, "a cada qual segundo suas necessidades", o mestre de Bruxelas propõe que se busque a determinação das necessidades essenciais dos seres humanos, consideradas estas, a partir de uma pesquisa psicológica de prioridades, dentro de uma grade hierárquica, chamada de "mínimo vital", que levará em conta as exigências do organismo em geral, contudo não as necessidades mais refinadas e particulares.

            Desta concepção, Perelman sugere o que ele próprio alcunha de noção de "justiça social", que é distinta da "caridade", que apenas leva em conta os seres enquanto indivíduos, com caracteres particulares.

            No que tange ao quinto critério, "a cada qual segundo sua posição", Perelman explicita que se deve ter em conta a repartição habitual, mas nem sempre necessária, dos seres em classes hierarquizadas.

            Nesse toar, há de se tratar as classes hierarquicamente superiores de forma distinta das mais inferiores, lhes conferindo tantos direitos, quantos deveres; contudo, de forma igual, entre cada membro de uma mesma classe, pena de se criar o que ele denomina de uma "república de amigos".

            Quanto ao sexto e último critério, "a cada qual segundo o que a lei lhe atribui", tal difere de todos os outros anteriormente mencionados, posto que, por esta concepção, o aplicador da justiça não possui livre escolha para ditar esta ou aquela fórmula de justiça concreta.

            Ao aplicador é imposto o critério estabelecido pela regra, que, no particular, é a jurídica, e não a moral. Por tal critério, desimporta a escolha moral, advinda da livre adesão da consciência do magistrado.

            O que vale é a ordem jurídica estabelecida, que determina as categorias, cuja aplicação competirá ao julgador.


IV. CONCLUSÕES.

            Perelman, já em suas derradeiras conclusões acerca de sua concepção de "justiça formal", perquire em que medida o juiz, em face da lei, poderá fazer valer sua concepção particular de justiça.

            A tal pergunta, o mesmo responde que, a depender da consciência do magistrado, seu nível de isenção será maior ou menor; ainda que, Perelman ressalte, jamais existirá um juiz absolutamente isento, sob o aspecto de detenção de uma íntima concepção de justiça, até mesmo em razão de sua humana condição.

            De outra quadra, se torna óbvio admitir que as leis são elaboradas, segundo uma concepção de justiça dos detentores do poder, não coincidente com a da maioria da população.

            Em casos que tais, compete à jurisprudência reduzir, ou mesmo aplacar estas discrepâncias, até em função do já tão conhecido descompasso entre a edição da lei e a constatação das evoluções morais da sociedade pelo Parlamento.

            Perelman, adotando postura pós-positivista, no esteio de Kelsen, peremptoriamente afirma que não pode haver um direito injusto, já que só se pode conceber e respeitar uma única e universal concepção justa, a da lei, pena de se tornar impossível a aplicação da própria justiça.

            A cada situação, portanto, se deve aplicar uma fórmula de justiça concreta, que descreva uma coerência mínima nas ações que vinculam as leis e os legisladores, nos remetendo àquele brocardo latino "pacta sunt servanda", pelo qual uma vez pactuado, deve ser cumprido.

            De qualquer sorte, a aplicação da justiça formal exige a prévia delimitação das categorias consideradas essenciais, dentro de uma certa escala de valores, que são mutáveis no tempo e no espaço.

            De fato, se a noção de justiça é confusa, isto se dá porque toda definição de justiça concreta se interconecta com uma visão subjetiva, parcial, carregada de forte coloração emotiva, do próprio universo.

            Apenas por meio de uma definição de justiça formal, que é clara e racional [26], será possível se neutralizar esses juízos de valor [27], de tal modo que haja um unânime acordo quanto à sua aplicação.

            A grande questão, entrementes, é se saber situar diante das inúmeras dificuldades, admite Perelman, decorrentes das clivagens travadas entre a justiça formal e a justiça concreta, como, por exemplo, na definição de "equidade", conceito fundamental trazido por Perelman, que o relacionou com "justiça social", o que, desde já, revela, no pensamento do professor belga, o que é digno de nota, uma séria preocupação com a questão da garantia e emancipação dos direitos sociais.


BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

            01 Chaïm Perelman nasceu em Varsóvia, Polônia. Em 1925, emigrou para a Bélgica, onde sedimentou sua carreira, lecionando lógica, Moral e Filosofia na Universidade de Bruxelas até 1978.

            02 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim.

            03 Ibidem, p. XIII.

            04 Sobre a noção de "auditório", cf.: PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: uma nova retórica. 5ª tiragem. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 20 e segs; PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. 3ª tiragem. Trad. de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, passim, em especial, p. 143-144.

            05 COELHO, Fábio Ulhôa. Prefácio à edição brasileira. In.: PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação...., ed. cit., p. XV.

            06 Perelman se aproxima de Recaséns Siches, ao propor que a racionalidade argumentativa, ainda que frágil, é que deve justificar as decisões jurídicas, com base numa lógica do razoável ( ou proporcional), cimentada em "topoi" extraídas da estrutura da realidade fática. Clássico é o exemplo do marroquino, com suas esposas, algo legítimo no Marrocos, mas considerado bigamia na França, e. g. Cf.: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica...., ed. cit., passim, no particular, p. 109-110.

            07 Platão, calcado nas experiências orais transmitidas por Sócrates, na Grécia Antiga, foi o precursor do que mais tarde ficaria conhecido como as bases do "Organon" de Aristóteles, conjunto de escritos aristótelicos sobre "lógica". Platão buscou, durante toda sua vida, o conhecimento filosófico racional, no rastro de uma verdade absoluta e universal. Platão contrapunha-se aos sofistas ( "sophia", expressão grega a significar "sabedoria"), que eram mestres do ensino da retórica e da oratória, e que cobravam pelos seus serviços àqueles que quisessem adentrar na política da democracia grega. Em suma, os sofistas, para os pré-socráticos e platônicos, eram "livres pensadores", porém não filósofos. Para Platão, cognome de "Arístocles", a justiça representava agir de acordo com a sua natureza ou essência, fundando-se na verdade, como adequação entre o pensamento ( idéia) e o evento ( realidade exterior). A noção ôntica de Platão, acerca do que seria "justiça", liga-se muito à idéia de realidade suprema, do mundo inteligível das formas, universais e necessárias, porque existentes em si mesmas, e não na consciência de cada um, adstrita ao mundo sensível da matéria, parcial e mutável. Mister se faz observar que Platão não era um democrata, e defendia uma "aristocracia do saber", com a idéia contrafática do "Rei Filósofo". Cf.: PLATÃO. A República. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, passim.

            08 René Descartes, considerado po uns como o "pai da filosofia moderna", foi quem engendrou um método "matemático" aplicado à filosofia, com o mito da neutralidade axiológica. O filósofo, dizia o francês, deve ser, antes de mais nada, um pesquisador, e nunca aceitar nada como verdadeiro, sem demonstração empírica da tese ofertada. Para ele, acima de tudo, há de se duvidar de tudo, só sendo real, a princípio, aquele conhecido adágio "Cogito, ergo sum"( penso, logo existo). O pensamento cético cartesiano lhe rendeu inúmeros sucessores, a ponto de até hoje influenciar o pensamento filósofico moderno, pelo qual o homem é simplesmente um ser pensante, que duvida daquilo que é indemonstrável pela experiência, só acreditando na existência da alma. Descartes, em suas considerações morais, encontráveis na 4ª parte de sua obra "Discurso do Método", vislumbra o alcance da verdade, como bem supremo, somente através da razão. Cf.: DESCARTES, René. Discurso do Método e Regras para a direção do espírito. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 41-46.

            09 PERELMAN, Chaïm. Ética...., ed. cit., p. 4.

            10 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 104. Sobre um conceito de "justiça social", segundo Aristóteles, cf.: MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 78-82.

            11 Numa lição retórica aristótelica, "definição" e "conceito" não são sinônimos, mas sim a definição como explicitação lingüística de uma dada qualidade, total ou não, de um conceito, que a engloba. De outra quadra, o juízo sintético de Perelman se afasta daquele juízo "a priori" de Kant, que é analítico e conduz à uma conexão intrínseca entre o sujeito e o predicado ( objeto).

            12 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon ( Org.). Trad. de Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 28.

            13 A expressão "lógica" nunca foi utilizada por Aristóteles, que preferia o termo "analítica". "Lógica", no sentido usualmente empregado, só surgiu, pela primeira vez, com os filosóficos estóicos e por Alexandre de Afrodisia. Para Aristóteles, "analytikós" correspondia ao ato de dissolução para busca dos elementos, causas ou condições. Um juízo analítico é aquele no qual o predicado já se está contido no próprio sujeito. Tal juízo visa explicitar o significado do que já se contém no sujeito, ainda que isto repouse desconhecido. Cf.: CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a aristóteles. v. 1. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 357.

            14 Em essência, Kelsen se apropria da noção platônica, de cunho ontológico, segundo o qual o justo é aquele que é feliz, posto que se comporta de acordo com a lei, dando à justiça um cunho normativo. Bom frisar que Kelsen, na busca do surgimento de uma ciência pura do Direito, relega questões morais ao plano da filosofia do direito. Cf.: KELSEN, Hans. O que é justiça? 3ª ed. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 6-7.

            15 Ronald Dworkin discorre sobre a existência de um ceticismo interior, no pensamento moral moderno, e isto é decorrente de interpretações ou percepções parciais do universo como um todo, particularmente influenciado pelo atual pluralismo cultural do ensino sobre questões morais. É o que ele denomina de "posição moral geral e abstrata" de um ceticismo dito "exterior" ( em verdade, interior), algo pelo mesmo condenado, tendo em conta, diante do embate de argumentos que hoje se exigem para a validação de qualque argumentação moral, a impossibilidade do descompromisso ou da pura neutralidade em tais questionamentos nos tempos atuais. Melhor dizendo, não há como se ponderar ser uma convicção moral melhor do que outra, já que cada argumento é construído num determinado lugar e tempo, e naquelas circunstâncias, tal ou qual ponto de vista moral é o mais justo. Cf.: DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 102-108.

            16 Atente-se, em particular, para o movimento que ficou conhecido por "Escolástica", capitaneado por Tomás de Aquino, que exigia que cada argumento filosófico, especificamente o de cunho religioso, fosse baseado na autoridade de Deus, cujo representante terreno era o Vaticano e seu papado. A Igreja Católica adota, então, o que se convencionou como "dogmatismo religioso cristão", a representar a filosofia oficial do catolicismo, e que influenciou, por demais, a própria dogmática jurídica. Cf.: GUERRA FILHO, Willis Santiago. A Filosofia do Direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 39.

            17 Baruch ( ou Benedito, de "bento") de Spinoza, filósofo judeu, nascido em Amsterdã ( Holanda), criticou duramente a filosofia da 2ª Escolástica, aduzindo, resumidamente, que não era concebível os homens serem forjados à imagem e semelhança de Deus, porque estes, ao contrário do Ser Supremo, são faticamente imperfeitos. Spinoza se considera um filósofo religioso, e como tal não separa o amor ou vontade ( divino) da razão ( humana). Pelas suas idéias, o holandês foi excomungado e execrado, porque ousou discordar dos dogmas eclesiásticos, e preferiu propugnar por uma religião vivida e filosoficamente compreendida, na busca da experiência pessoal de Deus, que seria uno em sua essência e múltiplo em suas existências ou manifestações. Cf.: SPINOZA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, passim.

            18 Hannah Arendt, reabilitando a noção de "praxis" de Aristóteles, essencialmente criativa, propõe a adoção de ações ético-políticas ( algo não analisado pelo seu mestre, Martin Heidegger), ao invés da valorização da técnica ou ciência, como ações "sem objetivos", que só conhecem "finalidades desinteressadas" ( como a glória, a liberdade e a justiça), pena de se perder o sentido da própria existência do homem. Cf.: ARENDT, Hannah. "Tradition and the modern age." In.: Between past and future - eight exercises in political thought. New York: Penguin Books, 1980 apud ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 198.

            19 Emmanuel Kant centralizou sua noção de justiça na norma, valorizando o Direito, vindo daí a expressão "jusnaturalismo", como um "dever-ser" ou ideal de permissão de realização da coexistência dos arbítrios. Para tanto, de igual modo e para todos, mister se faz uma esfera de liberdade, ou seja, de autonomia da vontade do ser humano, enquanto ser racional. Logicamente, na cultura moderna, a noção de liberdade passou a ter primazia sobre a de igualdade, particularmente na defesa e garantia dos direitos civis. O filósofo de Koenigsberg constrói uma filosofia crítica, seja da razão pura ( teórica), seja da razão prática ( fundada numa "metafísica dos costumes"), pela qual o Direito integra a Moral. A liberdade pressupõe, do homem, dotado de vontade, uma "boa-vontade" ou "vontade pura" ( leia-se: razão). A ação moral humana não se submete à condicionamentos externos, a exemplo de paixões, desejos ou apetites, sendo ditada apenas pela consciência do dever de agir moral, com lastro na razão prática, e que busca foros de universalidade. Cf.: KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. 2ª ed. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, passim.

            20 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. Trad. de Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 115 e segs.

            21 John Rawls é um filósofo construtivista, a exemplo de Kant e Aristóteles; ao contrário daqueloutra corrente diametralmente oposta, a dos desconstrutivistas, em verdade, livres pensadores políticos (portanto, não rotulados de "jusfilósofos"), a que se filiam Nietszche, Marx e Foucault. Nesse particular, a distinção entre filosofia jurídica (voltada para a paz) e a filosofia política (orientada à guerra) é nítida, já disse Paul Ricoeur. Em sua "Teoria da Justiça", Rawls, neokantiano dos EUA, combate ferrenhamente o tradicional utilitarismo norte-americano, centrando sua premissa na situação hipotética ideal da "posição original", num novo contrato social. A sociedade, formada por pessoas livres, iguais, num esforço cooperativo, diante do "véu da ignorância", abstrairiam suas condições individuais e empíricas, e a partir daí, numa escolha racional, elegeriam aqueles princípios que melhor regeriam suas vidas, que seriam de duas matizes: o da igualdade (privilégio das liberdades individuais e dos direitos civis) e o da diferença (preponderância dos direitos sociais). Tais princípios fundantes de uma sociedade justa, porém, haveriam de ser legitimados por um procedimento, como exigência de universalidade, de justificação pública. Cf.: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, passim.

            22 Sobre a crítica social-democrata, especialmente de Pierre Rosanvallon, às teses de Rawls, cf.: TORRES, Ricardo Lobo. Reformulação das teses de Rawls. In.: PAIM, Antônio et al. Avaliação crítica da social-democracia: o exemplo francês. Ubiratan Borges de Macedo (Org.). São Paulo: Instituto Tancredo Neves, 2000, p. 91-98.

            23 Robert Nozick, Michael Walzer, Friedrich A. Hayek, Alasdair MaCIntyre, Karl Popper, e vários outros filósofos políticos, cada qual a seu próprio modo, gestaram o que se alcunhou de "comunitarismo", em contraposição ao liberalismo individualista de John Rawls. Os comunitaristas, em suma, criticam a posição rawlsiana, que, depois acabou por ser revista pelo próprio professor norte-americano, de que haveria de ter uma única e universal forma de novo contrato social. Para os comunitaristas, tal pretensão universalizante é descabida, pois despreza o espírito particular de cada comunidade, com suas próprias tradições, usos e costumes.

            24 Cf.: MACEDO, Ubiratan Borges de. Renascença, apogeu e crise do liberalismo, Ethica - Cadernos Acadêmicos. Rio de Janeiro: UGF, 1998, v. 5, n. 2, p. 75-92.

            25 PERELMAN, Chaïm. Ética...., ed. cit., p. 19.

            26 Sobre a noção de "razão histórica", contraposta à de "razão eterna", demonstrada por Perelman, em seu "Tratado da Argumentação", cf.: PEÇANHA, José Américo Motta. A teoria da argumentação ou nova retórica. In.: Paradigmas filósoficos da atualidade. OLIVA, Alberto et al. Maria Cecilia M. de Carvalho ( Org.). Campinas: Papirus, 1989, p. 232.

            27 Cabe a crítica, aposta por Fábio Ulhôa Coelho, ao pensamento perelmaniano, visto que os juízos de valor são apresentados, pelo belga, de forma arbitrária, portanto, insusceptível de tratamento racional. Contudo, ressalta Ulhôa Coelho, o próprio Perelman, mais tarde, em sua "Nova Retórica", percebe que esta aplicação irracional do direito só levaria os seres humanos à violência, propondo, então, um projeto teórico de pesquisa de uma "lógica dos julgamentos de valor". Cf.: COELHO, Fábio Ulhôa. Prefácio à edição brasileira. In.: PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação...., ed. cit., p. XV.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, André Luiz Vinhas da. A noção de justiça formal em Chaïm Perelman: igualdade e categorias essenciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 870, 20 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7607. Acesso em: 18 abr. 2024.