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Manutenção do crédito de ICMS em conta gráfica em face da súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça

Manutenção do crédito de ICMS em conta gráfica em face da súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça

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Análise acerca da manutenção do crédito do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do próprio contribuinte, sem o destaque do ICMS: interpretação das locuções "isenção", "não incidência" e o princípio da não cumulatividade.

Sumário: 1. Exposição do Problema; 2. A Regra Matriz de Incidência do ICMS; 3. Da inconstitucionalidade da Lei Complementar 87/97 e da Lei 11.580/96 do Estado do Paraná; 4. O Princípio Constitucional da Não-Cumulatividade. 5. O Caráter Relativo do Princípio da Não-Cumulatividade – Efeitos da Isenção e da Não Incidência do ICMS; 6. Os efeitos da Isenção ou Não Incidência Intercalar do ICMS – Nas Transferências de Mercadorias Entre Estabelecimentos do Mesmo Contribuinte e a Súmula 166 do STJ; 7. Conclusão.

Resumo: O presente artigo trata da análise da manutenção em conta gráfica do crédito do ICMS pelos contribuintes que possuem um grande número de estabelecimentos (filiais) e que promovem a transferência de mercadorias sem o destaque do imposto nas respectivas notas fiscais de saída. Apesar de os tribunais superiores acolherem a tese da irrealização da hipótese de incidência do ICMS nas aludidas transferências, ensejando inclusive a edição da Súmula 166 pelo STJ, vários Estados membros, entre eles do Estado do Paraná, com fundamento no artigo 155, § 2º, II, “a” e “b” exigem que os contribuintes procedam o estorno dos créditos em conta gráfica. A abordagem envolve esforço interpretativo do princípio constitucional da não cumulatividade do ICMS, bem como dos efeitos da isenção ou da não-incidência intercalar nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. 

Palavras Chaves: Regra-matriz de incidência. ICMS. Operações. Circulação. Não-cumulatividade. Isenção. Não incidência.


1. EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA

Muitas empresas que desenvolvem suas operações no mercado brasileiro possuem um grande número de estabelecimentos (filiais) espalhados em todo território nacional em face das suas dimensões continentais.

Referidas empresas, no exercício dos seus objetivos sociais, praticam atos sujeitos à tributação pelos Estados membros do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, nos termos do art. 155, II, da Constituição Federal.

De acordo com o artigo 12 da Lei Complementar 87/96, que estabelece normais gerais do aludido imposto, também as saídas de mercadorias de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular, também estão sujeitas a incidência do ICMS.

Muitos contribuintes recorrem ao Poder Judiciário sob o argumento de que o deslocamento de mercadorias ou bens entre estabelecimentos de um mesmo titular não configura hipótese constitucional de incidência do ICMS, restando evidente a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 87/96.

Os tribunais superiores acolheram a tese dos contribuintes, concluindo não configurar hipótese de incidência tributária operação que não esteja fundamentada na transferência da titularidade da mercadoria, ensejando a edição da Súmula 166 pelo Superior Tribunal de Justiça: “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. 

Ocorre que vários Estados membros, entre eles do Estado do Paraná, com fundamento no artigo 155, § 2º, II, “b” da Constituição Federal, vem exigindo dos contribuintes que procedam ao estorno dos créditos das operações anteriores, referentes as entradas de mercadorias e de matérias primas, produtos intermediários e demais insumos em seus estabelecimentos, em decorrência das transferências realizadas para seus estabelecimentos sem destaque do ICMS.

Será analisado, no presente trabalho, se a exigência em causa afronta o princípio constitucional da não cumulatividade, que garante ao contribuinte o pleno aproveitamento dos créditos do ICMS, como forma de evitar que a carga econômica do tributo distorça a formação dos preços dos bens e serviços.

É nesse ponto que se concentra o núcleo da proposta de investigação sobre a correta interpretação e alcance das hipóteses restritivas contidas no artigo 155, § 2º, inciso II, alíneas “a” e “b” em face do princípio da não cumulatividade, envolvendo a investigação do real significado das locuções constitucionais: “operação relativa à circulação de mercadorias” e “isenção ou não incidência não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes”.


2. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ICMS

A denominação regra-matriz de incidência da norma tributária é adotada por Paulo de Barros Carvalho (2010, p. 153 et seq.) que demonstra com perfeição a fórmula descritiva da norma jurídica tributária que, segundo ele, “em sentido estrito é a que define a incidência fiscal”.

Essa fórmula jurídica é composta por uma hipótese e uma consequência, de tal modo que na hipótese está contida a descrição de um fato e na consequência está “a relação jurídica que vai se instaurar, onde e quando acontecer o evento cogitado no suposto”.

Na hipótese, localizam-se os critérios material, espacial e temporal, e na consequência, os critérios pessoal e quantitativo. É como assevera José Roberto Vieira:

Assim é que teremos, na hipótese, um comportamento de pessoas (critério material), subordinado a uma condição de lugar (reconhecida pelo critério espacial) e uma condição de tempo (reconhecida pelo critério temporal); e na consequência, sujeitos ativo e passivo (critério pessoal), e base de cálculo e alíquota (critério quantitativo) (1993, p. 87). 

Na norma jurídica tributária verifica-se que, ocorrendo, na realidade, aquele fato descrito na hipótese da norma, implica um dever-ser, uma consequência que ensejará o nascimento de uma relação obrigacional entre dois sujeitos, de tal forma que o sujeito passivo dessa relação deverá entregar ao sujeito ativo uma determinada quantia em dinheiro (correspondente ao tributo) relativa àquele fato. 

A análise da regra- do ICMS deve ser realizada partindo do próprio texto constitucional, uma vez que o legislador constituinte tratou de fixar o critério material da sua regra-matriz de incidência, ao atribuir à competência tributária aos Estados e ao Distrito Federal:

 Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

[...]

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (sem destaques no original).

Como se percebe, a Constituição quanto atribui a competência aos Estados e ao DF para criar o ICMS, prescreve um conceito para a situação de fato, designada pela expressão: operações relativas a circulação de mercadorias.A propósito, Mary Elbe Queiroz (p. 83-84) preleciona que:

 [...] a Constituição Federal, ao fixar a repartição das competências tributárias, dada a rigidez dos seus mandamentos, e ao estabelecer os princípios que devem reger as exações, na verdade, já prefixou a regra-matriz de incidência dos tributos, as definições e as respectivas hipóteses a serem consideradas pelo legislador ordinário.

A Carta Magna foi rígida e exaustiva ao estabelecer as competências, delinear e limitar o âmbito de atuação do legislador ordinário tendo determinado, previamente, o âmbito semântico dos vocábulos que compõem a exação e fixado os pressupostos e os princípios que deveriam ser obedecidos na elaboração das normas infraconstitucionais, quer sejam leis complementares, quer sejam leis ordinárias, a fim de ser preservada a unidade do sistema.

Logo, é necessário que dela própria se infiram os parâmetros necessários à conceituação do que sejam operações relativas à circulação de mercadorias.

O primeiro e mais importante conceito do critério material do ICMS a ser desvendado é o de operações, ou seja, a prática de negócios jurídicos que impliquem em mudança de titularidade. Geraldo Ataliba, citado por Roque Antônio Carrazza (2012, p. 47), assim se expressa ao referir-se ao ICMS:

A sua perfeita compreensão e a exegese dos textos normativos a ele referentes evidencia prontamente que toda a ênfase deve ser posta no termo 'operação' mais do que no termo 'circulação'. A incidência é sobre operações e não sobre o fenômeno da circulação. (...)

 Para Roque Antônio Carrazza (2012, p. 60),

O fato imponível deste ICMS [incidente sobre operações mercantis] ocorre quando comerciante, industrial ou produtor promove uma operação jurídica que causa a transmissão da titularidade de uma mercadoria. Só há falar em nascimento do tributo se comprovadamente houver uma operação mercantil – ou seja, um negócio jurídico que implique circulação de mercadoria.

 Também José Eduardo Soares de Melo e Leandro Paulsen (2012, p. 244) seguem pelo mesmo caminho, pois, segundo eles, operação configura “(...) o verdadeiro sentido do fato juridicizado, a prática de ato jurídico relativo à transmissão de um direito (posse ou propriedade). Ninguém fica obrigado a recolher o tributo pelo simples fato de possuir ou ser proprietário de mercadoria”.

 Em suma, para que se concretize o fato imponível do ICMS incidente sobre circulação de mercadorias, é imprescindível a existência de uma operação jurídica na origem dessa circulação. Considerando-se os demais institutos tratados neste tópico, conclui-se, mais uma vez utilizando as palavras de Roque Antônio Carrazza (2012, p. 61), que:

(…) o nascimento do dever de recolher ICMS encontra-se indissociavelmente ligado à concomitância dos seguintes pressupostos: a) a realização de operações (negócios jurídicos) mercantis; b) a circulação jurídica (transmissão da posse ou da propriedade); c) a existência de mercadoria enquanto objeto da operação; e, d) o propósito de lucro imediato, com a entrega (tradictio) da mercadoria.

Por outro lado, para os casos de incidência do imposto, o verbo circular não se refere necessariamente ao ato de movimentar ou transportar mercadoria. Alude, isto sim, à transferência da titularidade da mercadoria. De acordo com José Eduardo Soares de Melo e Leandro Paulsen (2012, p. 248), circulação é:

 É a passagem das mercadorias de uma pessoa para outra, sob um título jurídico, sendo irrelevante a mera circulação física ou econômica.

O fato da “saída” de mercadoria do estabelecimento, por si só, seria irrelevante para tipificar a hipótese de incidência do imposto, sendo firmada a diretriz de que não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. (Grifo do autor).

Esse mesmo entendimento é esmiuçado por Roque Antônio Carrazza (2012, p.56-57):

II – Salientamos que o fato imponível do ICMS só se completa com a transferência da titularidade da mercadoria. Sem ela, o dever de pagar ICMS não nasce.(…)

Assim, não cabe ICMS quando simplesmente as mercadorias saem do estabelecimento comercial e a ele retornam, por não se ter concretizado, na compra e venda, a imprescindível tradição.

Deveras, só quando há transferência da titularidade das mercadorias (o domínio ou a posse indireta, como exteriorização da propriedade) é que o fato imponível do ICMS se verifica. Do contrário inocorre a alteração da titularidade da res; verifica-se, apenas, a saída física das mercadorias. Juridicamente falando, é o mesmo que tivessem sido levadas do depósito do estabelecimento para a vitrina. Ninguém cogitaria, na hipótese, de ocorrência de operação mercantil, apta a ensejar a cobrança de ICMS. (Grifos do autor)

 Portanto, a movimentação de mercadoria apta a fazer incidir a exação do ICMS é aquela que promove a transferência da titularidade da mercadoria através da tradição. Logo, saídas de mercadorias de estabelecimentos decorrentes da simples movimentação entre os estabelecimentos do contribuinte, ou ainda, de furtos, enchentes, ou casualmente retirados do prédio por causa de eventual incêndio, não dão ensejo à incidência do ICMS, visto a não ocorrência de evento jurídico apto a transferir-lhes a propriedade.


3. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI COMPLEMENTAR 87/97 E DA LEI 11.580/96 DO ESTADO DO PARANÁ.

Na medida em que o deslocamento de mercadorias ou bens entre estabelecimentos de um mesmo titular não configura hipótese constitucional de incidência do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, resta evidente a inconstitucionalidade da Lei Complementar 87/96 e da Lei Estadual 11.580/96 que elegeram, nos seus art. 12 e 5º, respectivamente, como hipótese de incidência, essa espécie de circulação:

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; .

Art. 5º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;

Percebe-se a todas as luzes que a hipótese eleita “saída de mercadoria de estabelecimento contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, não está fundamentada numa operação de transferência de titularidade, pois “o imposto não incide sobre a mera circulação física que não configure real mudança de titularidade do domínio” (COELHO, 2006, p. 532), conforme entendimento já consagrado pela Súmula 166 do STJ:

Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.

Não se pode menoscabar a importância da interpretação da lei conforme a constituição, a qual deve ser prestigiada como critério de solução de antinomias entre interpretações possíveis de uma mesma lei (ALMEIDA JUNIOR, 2002, p. 18).

De se acrescentar, ainda, que o artigo 110, da Lei 5.172/66, Código Tributário Nacional, enfatiza que a lei tributária não pode alterar o conteúdo e o alcance de institutos conceitos e formas de direito privado, utilizados expressamente pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências Tributárias.

Não há que tergiversar que o artigo 110 do Código Tributário Nacional explicita a supremacia da Constituição quanto a inalterabilidade dos conceitos por ela utilizados.

O inciso II do art. 155, da Constituição Federal descreve de modo claro e inequívoco o critério material da hipótese de incidência do ICMS ao dispor que o imposto incide sobre operações relativas a circulação de mercadorias, deixando claro a necessidade da existência de uma operação jurídica na origem dessa circulação, ou seja, realização de um negócio jurídico envolvendo a posse e a propriedade da mercadoria enquanto objeto da operação.

Ferem de morte a Constituição Federal tanto a Lei Complementar 87/96 quanto a norma de regência do ICMS no Estado do Paraná, Lei 11.580/96 no ponto em que consideram como ocorrido o fato gerador da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.

Como já salientado anteriormente, ninguém fica obrigado a recolher o tributo pelo simples fato de possuir ou ser proprietário de mercadoria. É imprescindível a existência de uma operação jurídica na origem dessa circulação.

Sobre o assunto, o STF proferiu a seguinte decisão no julgamento do Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 765.486, Santa Catarina, publicado em 13.05.2014:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. TRANSFERÊNCIA DE BEM ENTRE ESTABELECIMENTOS DO MESMO CONTRIBUINTE. AGREGAÇÃO DE VALOR A MERCADORIA OU SUA TRANSFORMAÇÃO. AUSÊNCIA DE EFETIVA TRANSFERÊNCIA DE TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR DO TRIBUTO. AGRAVO REGIMENTAL QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I – A mera saída física do bem para outro estabelecimento do mesmo titular, quanto ausente efetiva transferência da sua titularidade, não configura operação de circulação sujeita a incidência do ICMS, ainda que, ocorra agregação de valor à mercadoria ou sua transformação.

II – Agravo regimental a que se nega provimento. (Grifou-se).

No mesmo sentido, outras decisões proferidas pela Suprema Corte: RE 158.834/SP; AI 131.941-AgR/SP; AI 682.680-AgR/RJ; AI 271.528-AgR/PA; AI 658.719/SP; AI 618.947-AgR/MG; AI 733.334-AgR/RJ; RE 386.598-AgR/RJ; AI 769.897-AgR/RJ; RE 113.101; RE 113.090/PB; RE 93.523/AM; AI 693.714-AgR/RJ e RE 519.853/RN.   

Como se percebe, é firme a jurisprudência do STF no sentido de que diante da inexistência de negócio mercantil, havendo tão somente deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro, ambos do mesmo dono, não traduz fato gerador apto a desencadear a cobrança do ICMS.

De se lamentar que até o momento não tenha sido decretada a inconstitucionalidade do art. 12, inciso I, da Lei Complementar 87/96 e do artigo 5º, inciso Ida Lei 11.580/96 do Estado do Paraná pelo STF.   


4. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO CUMULATIVIDADE.

A Constituição Federal ao outorgar competências aos entes federados, inseriu o ICMS na competência dos Estados e do Distrito Federal, prescrevendo que o referido tributo é de índole não cumulativa, na dicção do artigo 155, parágrafo 2º, inciso I adiante transcrito:

Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – Operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

(...)

§ 2º O Imposto previsto no inciso II atenderá o seguinte:

I – Será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrada nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; (grifou-se).

II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

Pela análise percuciente da diretriz constitucional supracitada, constata-se que a não cumulatividade do ICMS deve ser observada pelo legislador infraconstitucional e pelos entes federados. É técnica de arrecadação, na qual o contribuinte tem o direito de compensar o ICMS que incidiu em operação relativas à circulação de mercadorias, com o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou outro Estado, ou Distrito Federal, com o ICMS por ele devido em cada operação.  

É cediço que, na dinâmica da atividade empresarial, o contribuinte adquire bens tributados pelo ICMS, suportando, assim, o ônus da incidência nessas operações. Em razão disso, o imposto que suportou integrará o valor das suas operações tributadas repercutindo no valor final da operação mercantil, vale dizer, há uma cumulação de incidências.

Para evitar essa cumulação, ou incidência em cascata como preferem alguns, a Constituição Federal determina que o imposto seja de índole não cumulativa, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadoria, com o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Roque Antonio Carrazza (2012, p. 400), ao tratar da não cumulatividade do ICMS registra que:

(...) o princípio da não cumulatividade garante, ao contribuinte, o pleno aproveitamento dos créditos do ICMS e tem por escopo de evitar que a carga econômica do tributo (i) distorça as formações dos preços das mercadorias ou dos serviços de transporte intermunicipal e de comunicação; e (ii) afete a competividade da empresa.

Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 731), ao tratar do direito de crédito envolvendo mercadorias ensina que:

(...) exige-se em cada elo da cadeia de produção ou de circulação, a compensação entre a relação do direito ao crédito (nascida com a entrada jurídica do bem) e a relação jurídica tributária (que nasce com a saída da mercadoria).

A locução constitucional operação relativa a circulação de mercadorias não deixa dúvida e deve ser juridicamente entendida como determinante, tanto no direito ao crédito, nascido com a entrada jurídica da mercadoria, como em relação a relação jurídica tributária que nasce com a saída da mercadoria.

Assim, é necessário, mais uma vez, se encalamistrar na conceituação do que sejam operações relativas a circulação de mercadorias.

Operações configuram o verdadeiro sentido do fato jurídico, ou seja, a prática de ato jurídico relativa à transmissão de um direito (propriedade), enquanto que a locução circulação deve ser entendida como a passagem das mercadorias de uma pessoa para outra, sob um título jurídico, não se referindo ao ato de movimentar ou transportar mercadoria, sendo, portanto, irrelevante a merca circulação física ou econômica. 

Nesse sentido a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho (2006, p. 537):

 “O princípio da não-cumulatividade, gerando a conta gráfica débito-crédito, de modo a ‘compensar’ o estabelecimento do mesmo titular recebente das mercadorias, não justifica a incidência do ICMS nas transferências, que são meros deslocamentos ou movimentações físicas de insumos ou mercadorias. A este fundamento decretou o STF a inconstitucionalidade de várias leis estaduais, irrelevante a alegada permissão de lei complementar, no caso o Decreto-Lei nº 406/68, que lhes fora dada para tributar transferências, hoje reiterada pela Lei Complementar nº 87/96.

Pode-se concluir, portanto, que os atos de transferência de insumos e mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular não mudam pela simples existência da Federação e da República.

Não há que tergiversar que a exigência de estorno dos créditos do ICMS em conta gráfica não encontra guarida no art. 155, § 2º, inciso II da CF e suas alíneas que determinada o não aproveitamento dos créditos, nas hipóteses de isenção ou não incidência.

Admitir tal hipótese implica na quebra do elo da cadeia de produção. Supondo que determinado contribuinte movimente mercadorias entre seu estabelecimento matriz e suas filiais, com manutenção dos respectivos créditos em conta gráfica a uma alíquota de 15% pode ser representada pelo seguinte exemplo numérico:

Aquisições de mercadorias pela matriz – ICMS – creditado R$ 150,00 C

Transferência para filial “A” sem débito de ICMS R$ 0,00 D

Transferência para filial “B” sem débito de ICMS R$ 0,00 D

Venda para consumidor pela Filial “A” com débito de ICMS R$ 60,00 D

Venda para consumidor pela Filial “B” com débito de ICMS R$ 60,00 D

SALDO CREDOR EM CONTA GRÁFICA R$ 30,00 C

Considerando que o mesmo contribuinte promova o estorno dos créditos do ICMS em conta gráfica, relativos às aquisições de mercadorias e demais insumos pela matriz no momento da transferência destas aos seus estabelecimentos, desse modo a mecânica de incidência do ICMS fica assim representada:

Aquisições de mercadorias pela matriz – ICMS – creditado R$ 150,00 C

Transferência para filial “A” sem débito de ICMS R$ 0,00 D

Transferência para filial “B” sem débito de ICMS R$ 0,00 D

Venda para consumidor pela Filial “A” com débito de ICMS R$ 60,00 D

Venda para consumidor pela Filial “B” com débito de ICMS R$ 60,00 D

Estorno de crédito proporcional às transferências (R$ 800,00) R$ 120,00 D

SALDO DEVEDOR EM CONTA GRÁFICA R$ 90,00 D

Induvidosamente, a não cumulatividade, como princípio informativo da sistemática do ICMS, tem sua aplicação circunscrita às fases intermediárias que antecedem o momento da operação final, ou da transferência final da titularidade da mercadoria ao consumidor final, o qual sofrerá a incidência econômica de todo o imposto acumulado nas operações anteriores.

Constata-se pela representação “B”, claramente, a quebra da não cumulatividade na hipótese de estorno dos créditos em conta gráfica decorrentes da transferência de mercadorias para as filiais “A” e “B”, hipótese em que, apresentará saldo devedor em conta gráfica de R$ 90,00.

Entretanto, situação inversa se verifica na representação “A” em que o contribuinte apresentará saldo credor em conta gráfica de R$ 30,00, em razão da manutenção dos créditos tributados nas operações anteriores. 

A majoração do imposto pela quebra da não-cumulatividade é patente.


5. CARÁTER RELATIVO DO PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE – EFEITOS DA ISENÇÃO E DA NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS

O princípio da não cumulatividade do ICMS não é absoluto como, aliás, nada é absoluto no mundo do direito. Ele sofre flexibilizações ante a isenção e a não incidência expressa artigo 155, § 2º, inciso II, alíneas “a” e “b” ” da Constituição Federal.

§ 2º O Imposto previsto no inciso II atenderá o seguinte:

(...)

II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

Neste ponto, surge a indagação: o contribuinte que compra mercadorias tributadas pelo ICMS, ao realizar operações isentas ou não tributadas, pode apropriar-se dos créditos relativos às suas aquisições? 

Para a teoria clássica, a natureza da isenção de acordo com o art. 175 do Código Tributário Nacional exclui o crédito tributário, dispensando o sujeito passivo do pagamento de tributo que, de outro modo, seria exigível, não de confundindo, desse modo, com a não incidência, uma vez que pressupõe a incidência.

Todavia, a despeito da aceitação desse conceito pelo STF, os defensores da moderna teoria do Direito Tributário tecem exacerbadas críticas,

Alguns autores entendem que a isenção afasta a incidência do tributo, de modo a obstar o nascimento da própria obrigação principal. Para Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 560), o preceito da isenção subtrai parcela do campo de abrangência do critério antecedente ou do consequente da norma tributária, paralisando a atuação da regra-matriz de incidência para certos e determinados casos.

Para Alfredo Augusto Becker (1963, p. 277) e José Souto Maior Borges (1980, p. 182), hipótese de não incidência da norma tributária.

Entretanto, predomina no direito positivo brasileiro a corrente que reconhece a incidência, pela realização do fato gerador, criando a obrigação, embora a não exigibilidade do crédito respectivo, pela dispensa legal, pois que a exclusão pressupõe a existência do “quid” a excluir.

A despeito da atecnia, tão bem apontada por José Souto Maior Borges (2009, p. 82), porque mistura instituto rigorosamente construído pela doutrina (isenção) e categoria genérica (não-incidência), deve ser interpretado como um dispositivo de fechamento do sistema, ou seja, recai nas mesmas restrições constitucionais de isenção e eventual referência legal e expressa a uma hipótese de não-incidência.  

Decorre disso, em conclusão, que a isenção e a não-incidência produzem o mesmo efeito, não há surgimento da obrigação tributária, logo, conclui-se que o estorno é a regra, caso a lei ordinária não disponha em contrário.


6. OS EFEITOS DA ISENÇÃO OU NÃO INCIDÊNCIA INTERCALAR DO ICMS – NAS TRANSFERÊNCIAS DE MERCADORIAS ENTRE ESTABELECIMENTOS DO MESMO CONTRIBUINTE E A SÚMULA 166 DO STJ. 

Assentadas as premissas anteriores, impende agora analisar o direito a manutenção dos créditos do ICMS, nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Como regra o contribuinte tem o direito ao crédito do ICMS nas operações de entrada em homenagem ao princípio da não cumulatividade, porém, ele é mitigado, pelo próprio texto constitucional ante a isenção e a não incidência, nas operações de saída, expressa no artigo 155, § 2º, inciso II, alíneas “a” e “b” ” da Constituição Federal.

Contudo, merece análise apartada a situação envolvendo as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, amparados que estão pela súmula 166 pelo Superior Tribunal de Justiça:

“Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. ” 

É certo, em análise perfunctória, pelos fundamentos indicados, que a circulação de mercadorias se prestariam a sustentar o estorno dos créditos, uma vez que a não cumulatividade pressupõe saídas tributadas.

As transferências entre os estabelecimentos do contribuinte não configuram operações relativas à circulação de mercadorias, no sentido jurídico examinado anteriormente, e, como tal, abrigadas no conceito de isenção ou não incidência, como hipótese restritiva da aplicação do princípio da não cumulatividade previsto no artigo 155, § 2º, inciso II, alíneas “a” e “b” ” da Constituição Federal.

Nesse sendeiro, é lícito afirmar que as razões invocadas pela Fazenda Pública para negar a manutenção dos créditos do ICMS quando das saídas de mercadorias (transferências) destinadas aos estabelecimentos do mesmo contribuinte não se sustentam.

 Aos olhos da Fazenda Pública, a mera circulação de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte equipara-se a alienação, logo constitui fato gerador do ICMS. Assim, emitida a nota fiscal sem o destaque do imposto implica em estorno do respectivo crédito em conta gráfica.

Contudo, como já averbado, a não cumulatividade é aplicável quando existentes duas operações intercaladas, seguidamente gravadas pelo imposto.

Duas operações. Uma de entrada, resultante de um negócio jurídico de aquisição de mercadorias, implicando em mudança da titularidade, portanto, hipótese de incidência de creditamento do ICMS, a qual, segundo Jefferson Marcos Biagini Medina, toma por base a circulação de mercadorias que determina o surgimento ao direito ao crédito, fazendo nascer uma relação jurídica que tem como sujeito ativo o adquirente das mercadorias, detentor de crédito do ICMS e como sujeito passivo o Estado ou Distrito Federal (2012, p. 77).

Outra, de saída, resultante de uma operação relativa à circulação de mercadorias, ou seja, da prática de negócio jurídico que implica em mudança na titularidade, evidencia posta no termo “operação”.

Decorre disso, em conclusão, que a movimentação de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não se constitui em “operação” intercalar, não se encaixa numa sequência entre a operação de entrada e a operação de saída.

É um NADA, fato inidôneo a produção de consequências jurídicas, desprovido do elemento essencial à configuração da hipótese de incidência do ICMS, a existência de uma operação, sobre a qual deve ser dada toda a ênfase, muito mais do que no termo circulação.

Face ao antedito, não há que tergiversar sobre o direito à manutenção dos créditos de ICMS em face das transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.


7. CONCLUSÃO

De tudo o quanto antecede, conclui-se:

O núcleo, ou critério material da regra-matriz de incidência do ICMS-Mercadorias consiste na realização de operações relativas à circulação de mercadorias, sendo o mais importante o de operações, a prática de negócios que impliquem em mudança de titularidade da mercadoria.

A incidência é sobre operações aquelas aptas à transferência da titularidade pela tradição, e não sobre o fenômeno da circulação.

São inconstitucionais os art. 12, inciso I, da Lei Complementar 87/96 e o artigo 5º, inciso Ida Lei 11.580/96 do Estado do Paraná.

O contribuinte que compra mercadorias tributadas pelo ICMS, ao realizar operações isentas ou não tributadas, não pode apropriar-se dos créditos relativos às suas aquisições.

Todavia, as transferências entre os estabelecimentos do contribuinte, por não configurarem operações relativas à circulação de mercadorias, no sentido jurídico, a exigência de estorno dos créditos do ICMS em conta gráfica não encontra guarida no art. 155, § 2º, inciso II da CF e suas alíneas, que determinam o não aproveitamento dos créditos, nas hipóteses de isenção ou não incidência.


REFERÊNCIAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBAS, Vicente Paulo Hajaki. Manutenção do crédito de ICMS em conta gráfica em face da súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6019, 24 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76437. Acesso em: 19 abr. 2024.