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O direito social à moradia e os municípios brasileiros

O direito social à moradia e os municípios brasileiros

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A política municipal de habitação precisa ser elaborada com a seguinte perspectiva: sempre que for viável, a regularização urbanística é a medida a ser adotada pelo Município diante da ocupação irregular.

Ao lado da alimentação, a habitação figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano. Para cada indivíduo desenvolver suas capacidades e até se integrar socialmente, é fundamental possuir morada. Trata-se de questão relacionada à própria sobrevivência, pois dificilmente se conseguiria viver por muito tempo exposto, a todo momento, aos fenômenos naturais, sem qualquer abrigo. O provimento dessa necessidade passa evidentemente pelo espaço físico, pelo "pedaço de terra", mas em razão do processo de civilização acaba sempre por requerer mais do que isso. Fatores culturais, econômicos e ambientais, entre outros, moldam a questão habitacional, definindo o mínimo desejável; é certo que as soluções alcançadas na pré-história, já não satisfazem os padrões atuais, bem como a habitação minimamente adequada para as áreas rurais não atende ao modo de vida urbano.

Admitidas essas variações, o fato é que a habitação satisfatória consiste em pressuposto para a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III da CRFB).

Correlacionando os temas, Nelson Saule Júnior esclarece que

"A dignidade da pessoa humana como comando constitucional será observada quando os componentes de uma moradia adequada forem reconhecidos pelo Poder Público e pelos agentes privados, responsáveis pela execução de programas e projetos de habitação e interesse social, como elementos necessários à satisfação do direito à moradia". [01]

Em observação dirigida à realidade brasileira, o autor afirma que para a moradia ser classificada como adequada precisaria englobar os seguintes itens: "segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços e infra-estrutura, custos da moradia acessível, habitabilidade, acessibilidade e localização e adequação cultural". [02]

Além de se envolver claramente com um dos fundamentos republicanos, o provimento da habitação diz respeito também aos objetivos fundamentais de nossa República, contidos no artigo 3º da Lei Maior, quais sejam:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e quaisquer outras formas de discriminação.

A precariedade (material e/ou jurídica) da habitação é, lamentavelmente, problemas dos mais graves da sociedade brasileira. Para além dos dramas pessoais e familiares, o pior é constatar que não estão aqui casos isolados, exceções à regra. A moradia representa um dos custos mais caros nas sociedades contemporâneas submetidas ao sistema capitalista. [03] Em um país com população predominantemente pobre e com capacidade comprometida para investimentos públicos, a habitação popular usualmente apresenta soluções temerárias, não raro improvisadas, muito ruins do ponto de vista da habitabilidade e sem qualquer segurança jurídica da posse; tal insegurança decorre, por vezes, da existência de legislação restritiva quanto à construção no local ocupado; em outros casos, por inexistir, para o possuidor, o chamado "justo título" em relação ao direito de propriedade.

A "Folha de São Paulo", em 04/06/2000, cruzando diferentes dados, divulgou que metade da população do Município de São Paulo, cerca de cinco milhões e quinhentos mil habitantes, mora em loteamentos ilegais, cortiços e favelas, a maioria sem infra-estrutura básica. Segundo noticiado no jornal O Globo, em 16/05/2004, no Município do Rio de Janeiro, somente em favelas, havia no ano 2000, cerca de um milhão e cem mil habitantes, cerca de 19 % (dezenove por cento) da população, dado colhido junto ao IBGE. Na mesma reportagem, o Instituto Pereira Passos, instituição pública ligada ao planejamento urbano carioca, revela que entre 1991 e 2000 a população das favelas cresceu seis vezes mais que a das áreas formais - o aumento foi de 24 % (vinte e quatro por cento), contra 4% (quatro por cento) da cidade formal.

O fenômeno não é exclusivo das duas grandes metrópoles. Em matéria do Jornal "O Globo" (14/11/03), o então Ministro das Cidades revelou que 85 % (oitenta e cinco por cento) dos Municípios brasileiros têm favelas ou outras formas de moradia em condições precárias. É certo que haja variação de números ao longo do território nacional, mas o mesmo órgão federal considera o déficit habitacional atualmente na ordem de seis milhões e seiscentas mil unidades.

Nessas condições, não há como construir sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos. Mais comum é que o quadro produzido seja o de segregação espacial, agravamento da miséria e da desigualdade social. Tudo isso requer ainda mais intensamente a atuação direta do Estado em prol da moradia, por se tratar de questão vital para a população e que, conseqüentemente, repercute no desenvolvimento nacional sustentável, influenciando a saúde, o acesso às oportunidades sociais (e a inserção social), a produtividade no trabalho etc..

Todos esse pontos convergem para, de modo mais específico, a Constituição da República definir como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais (e de saneamento básico). Isso ocorre no artigo 23, IX da Lei Maior. Não se esgota nesse mandamento o elenco de ações dos entes federativos em prol da habitação, mas é importante aqui revelar o tipo de competência previsto no dispositivo constitucional.

Os artigos 23 e 24, que distribuem competências em nosso Estado Federal, contêm vários incisos fazendo menção às mesmas questões. Certamente isso não é uma inútil repetição do texto legal. O artigo 24 da Constituição cuida da capacidade de editar normas jurídicas de alcance amplo, atingindo o comportamento da sociedade civil. Por sua vez, o artigo 23 estabelece a competência e, mais que isso, o dever de os entes federativos agirem materialmente em prol das missões que lhe são conferidas. Isto porque o preceito contém verdadeiros objetivos ou, em outras palavras, atribuições estatais mais específicas; se repararmos bem, são desdobramentos dos objetivos fundamentais, inscritos no art. 3º, traduzidos para determinados temas (saúde, meio ambiente etc.).

Duas conseqüências decorrem do artigo 23, IX da Lei Fundamental.

Pela primeira, toda e qualquer ação estatal, mesmo que não diretamente relacionada com aquele objetivo, encontra ali condição de validade. Enfim, o dispositivo, no final das contas, contém o que o Direito Constitucional contemporâneo costuma tratar como "normas programáticas", muito difundidas dentro do Estado de Bem-Estar Social. Canotilho prefere denominá-las "normas-tarefa", ou seja,

"aqueles preceitos constitucionais que de uma forma global e abstracta, fixam essencialmente os fins e as tarefas prioritárias do Estado (...). Estas normas não têm muitas vezes densidade suficiente para alicerçar directamente direitos e deveres dos cidadãos, mas qualquer norma contrária ao seu conteúdo vinculativo é inconstitucional" (grifos do original). [04]

A norma jurídica ou mesmo a ação material contrária ao dever constitucional do Estado nasce estéril. Em sua consagrada sistematização sobre a eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, lastreada na doutrina italiana, José Afonso da Silva elucida a capacidade de condicionamento que têm as normas constitucionais; mesmo aquelas classificadas como de "eficácia limitada", exatamente as que ficam a aguardar futura lei sobre o assunto, se prestam, pelo menos, a submeter um indivíduo, o Estado, a uma abstenção: a de não atentar por leis ou atos contra os princípios institutivos ou normas programáticas ali contidas, porque indicam os fins sociais a que se dirigem o Estado. [05]

Pela segunda conseqüência, surge o dever para cada ente federativo no sentido de formular e adotar políticas e medidas públicas voltadas para os fins ali dispostos, e a atuação isolada de um não responde pela obrigação dos demais.

Segundo o entendimento ainda corrente, as normas programáticas, na essência, sinalizam o dever do Estado, sem contemplar a questão de modo a tornar prontamente exigível essa ou aquela ação concreta, especialmente aquelas de natureza mais complexa, a não ser a abstenção vista logo acima.

Muitas vezes será necessária a edição de normas para organizar as ações estatais, bem como também deverá ser observada a adequação da programação financeira, através das leis específicas (plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual), questões que nem sempre podem ser enfrentadas ou resolvidas nos tribunais, em respeito à separação dos Poderes. Dificilmente na Justiça se poderá pleitear, em condições normais, a entrega de casas para essa ou aquela família, pelos motivos expostos. Entretanto, mesmo na falta de normas jurídicas mais indicativas de como deva se operar um dever estatal, assiste ao Judiciário cobrar que o Estado saia de sua omissão, declarando-o obrigado a estabelecer formas de agir em prol de suas obrigações, até mesmo estabelecendo prazo para tanto.

Foi um longo processo ate chegarmos a esse quadro acerca dos direitos sociais e das normas programáticas. Durante esse período muito se falou - e ainda se fala - na ineficácia do Direito, mas, como revela Boaventura de Sousa Santos, a verdadeira crise não esteve em última análise no Direito: esteve e ainda está, sim, na concretização do Estado de Providência, o qual daria sustentação àquelas normas; ele não consegue aprofundar seu papel, e em países periféricos, como o Brasil, no máximo são esboçados. [06] Ainda que em certos casos os propagadores desse ideal possam ter sido bem intencionados, do ponto de vista histórico, o Estado de Bem-Estar Social retirou do setor privado a responsabilidade pela gravidade do quadro social, sem conseguir dar uma solução definitiva para os problemas existentes.

Advirta-se, todavia, que é observada construção cada vez mais sólida no sentido de não se aceitar a imobilidade do Poder Público diante dos desafios postos: deve, sim, agir, observando os princípios e diretrizes. Além de ver nas normas-fim e nas normas-tarefa a qualidade de limites materiais negativos, Canotilho destaca que elas também vinculam o legislador e os órgãos públicos em caráter positivo: eles devem atuar de forma permanente para viabilizar a realização daqueles comandos. [07] Se descabe cobrar a pronta solução desejada, torna-se possível pelo menos exigir que o Poder Público movimente-se de modo contínuo naquelas direções apontadas, por meio de programas e medidas concretas. Diante de tal perspectiva é imaginável chegarmos a situações de responsabilização dos agentes públicos por omissões injustificáveis no cumprimento de tais obrigações.

Em casos extremos, nosso Poder Judiciário mesmo tem conseguindo superar a longa discussão sobre a independência dos Poderes para exigir providências concretas do Poder Executivo, a partir de princípios ou normas programáticas (diretrizes e objetivos, por exemplo). Na falta do atendimento minimamente esperado, a presença do binômio "razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira", tem levando a decisões cada vez mais frequentes, nas quais por exemplo são exigidas medidas concretas na área de saúde (entrega de medicamentos ou internações), educação (garantia de matrículas em escolas) ou de proteção ambiental (recuperação de área degradada). [08] Não cabe nas pretensões desta análise explicar o porquê desses avanços setoriais, mas constata-se que especialmente saúde e educação receberam atenção especial da Constituição, com uma série de normas que imprimem contorno mais claro à questão, apregoando-se, inclusive, a universalidade e a gratuidade do atendimento. Em todos esse casos é comum ressaltar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Hoje assistimos nossa Suprema Corte a afirmar:

"Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico – a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes seja injustamente recusada pelo Estado". [09]

Frise-se que a imposição de obrigação de fazer deduzida dos deveres gerais do Poder Público ainda está longe de ser pacífica, como se vê em outras decisões, fiéis à concepção de que a alocação de recursos públicos é tarefa inerente a quem detém a legitimidade política, fruto das eleições, não podendo ser determinada pelo juiz. [10]

Um momento importante na afirmação do direito à moradia - e do dever estatal de assegurá-lo - se deu com sua inclusão no rol dos direitos sociais (art. 6º da CRFB). [11] Como ensina José Afonso da Silva,

"os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais". [12]

Na seqüência da obra, o ilustre constitucionalista explicita que os direitos sociais têm conexão direta com o direito da igualdade. Representam o compromisso estatal em diminuir as diferenças sociais, assegurando-se, pelo menos, um mínimo básico para todos. O dever de agir do Estado é indeclinável, porquanto figura no pólo passivo da relação que constitui os direitos sociais, como indica a lição transcrita. Se a todo direito costuma corresponder um dever que assegure aquela pretensão, no caso dos direitos sociais a obrigação se volta contra o Estado e demais entidades que compõem a esfera pública (autarquias, fundações, concessionárias de serviço público etc.).

Nossa doutrina tem avançado na afirmação do direito à moradia, fundamentada no princípio de que as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo a conferir-lhes a máxima efetividade possível. [13] Descabe, todavia, imaginar que de pronto caiba demandar habitação digna a toda a população.

Voltando às lições de Nelson Saule Júnior, destaca-se a seguinte passagem:

"Nas normas definidoras do direito à moradia a aplicação é imediata o que faz com que sua eficácia seja plena. Isto é, de imediato, o Estado brasileiro tem a obrigação de adotar as políticas, ações e demais medidas compreendidas e extraídas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito, em especial aos que se encontram no estado de pobreza e miséria. Essa obrigação não significa, de forma alguma, prover e dar habitação para todos os cidadãos, mas sim construir políticas públicas que garanta (sic) o acesso de todos ao mercado habitacional, constituindo planos e programas habitacionais com recursos públicos e privados para os segmentos sociais que não têm acesso ao mercado e vivem em condições precárias de habitabilidade e situação indigna de vida". [14]

Em suma, o que se conclui é que por força constitucional, os Municípios, como também a União, os Estados e o Distrito Federal, devem possuir programas e planos habitacionais. Esse conjunto de ações é que efetivará as opções, prioridades e linhas de ação contempladas na política habitacional nacional, estadual e municipal, conforme o caso. Os entes federativos estão obrigados a elaborá-la não só moralmente, mas também do ponto de vista jurídico.

A fundamentação acima não é sequer a única para se confirmar o dever em tela. Há de se considerar que é imprescindível para a promoção do desenvolvimento urbano, obrigação do Município (art. 182), que a questão habitacional seja objeto de especial atenção. Não é difícil compreender, como a literatura urbanística aponta, que a habitação é núcleo essencial do tecido urbano; conseqüentemente, deve ser também a referência principal da atividade urbanística. Recorra-se mais uma vez à lavra de Nelson Saule Júnior, ao afirmar que "o Município, em razão de ser o principal ente federativo responsável pela execução da política urbana, tem que desenvolver uma política habitacional de âmbito local". [15] Os temas não estão só associados: o enfrentamento da questão habitacional é o ponto central para promoção das funções sociais da cidade e para o bem estar de todos, ou em outras palavras, para promover o desenvolvimento urbano.

Sendo diferentes as causas, os contextos e as soluções dos problemas habitacionais, muito provavelmente deverá o Município recorrer a medidas distintas, normalmente complementares; por vezes até, em vez de agir diretamente, deverá incentivar o setor privado para direcionar-se à camada social que costuma ser ignorada pelo mercado imobiliário. Em respeito aos recursos públicos e para bem atender às necessidades essenciais da coletividade, cumpre ao governo local buscar, sempre, a maior eficiência de suas ações, desde o momento de empreender as suas escolhas.


DA COMPETÊNCIA PARA O MUNICÍPIO ESTABELECER SUA POLÍTICA DE HABITAÇÃO

A competência material atribuída pela Constituição da República (p.ex., arts. 23, 30, VIII e 182) traz consigo, em regra, a competência legislativa capaz de viabilizar a atuação estatal. Essa constatação, na verdade, é fruto da denominada "teoria dos poderes implícitos", algo que desde cedo se compreendeu no constitucionalismo norte-americano.

Em homenagem à autonomia dos entes federativos, há de se compreender que se a Constituição lhes conferiu determinadas missões, implicitamente deu a cada um deles os meios necessários para agir, pois do contrário a atribuição seria letra morta. A coerência e harmonia do sistema jurídico, associadas à idéia de que o texto constitucional deve ser sucinto, sem entrar em pormenores, determinam essa conclusão. Em síntese apertada a justificativa central da teoria dos poderes implícitos se resume à seguinte lógica: "quem dá os fins, dá os meios". Se no Direito brasileiro a atuação do Município não prescinde de amparo legal, de acordo com o princípio da legalidade, as atribuições materiais conferidas ao Município estão, via de regra, acompanhadas pela competência para editar as normas necessárias para organizar e operacionalizar a tarefa administrativa. É importante compreender que a competência legislativa implícita limita-se às regras necessárias para a organização e ação do ente federativo, definindo os órgãos e autoridades envolvidos, os benefícios que serão concedidos, os recursos públicos que serão utilizados, as condições pessoais ou familiares dos beneficiados, as vantagens oferecidas aos empreendedores que atuem no segmento mais necessitado etc..

Compete, portanto, ao Município dispor em lei sobre as medidas administrativas relacionadas à questão habitacional, de modo a cumprir com suas obrigações máximas, entre as quais assegurar o direito social à moradia. [16] Como não está isolado em nosso Estado Federal, haverá de observar os princípios e normas condicionantes dessa atuação.


DAS CONDIÇÕES A SEREM OBSERVADAS PELA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL

Dentro do Estado de Direito, todas as ações estatais, inclusive a elaboração de leis, são passíveis de controle, pois as autoridades públicas subordinam-se ao Direito. É por isso que mesmo as normas jurídicas podem ser tidas como inválidas. O controle de validade das normas jurídicas opera-se fundamentalmente com base nos princípios jurídicos, que pairam sobre todo o sistema, e na Constituição da República, manifestação direta da soberania e peça que constitui e delimita o poder estatal, inclusive na função legislativa. Por ser o Brasil um Estado Federal e por vivenciarmos a fase do federalismo solidário, por vezes a própria Constituição atribui à União a capacidade de editar normas nacionais, condicionantes dos demais entes federativos, assegurando assim uma homogeneidade mínima no trato de certas questões. Fique bem claro, porém, que essa ascendência das normas federais sobre Estados e Municípios, não é ontológica, fruto de uma suposta supremacia da União; ela só existirá em razão de mandamento expresso da Carta Constitucional, pois inexiste hierarquia entre as entidades federativas.

Já que o foco do presente trabalho é o estabelecimento da política habitacional pelo Município, que regerá determinada parte da atividade administrativa, destacam-se logo os princípios constitucionais inscritos no artigo 37, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Mais determinante da política habitacional é o princípio, também constitucional, da isonomia. Trata-se de fator importantíssimo no tocante à decisão sobre quem será atendido pelas políticas públicas. Como certamente não há recursos nem capacidade administrativa para atender toda a população municipal, cabe à Municipalidade estabelecer de modo objetivo e justificável quem deva ser atendido pelas ações públicas. A justificativa aí passa necessariamente pela justiça social e pela maior vulnerabilidade de alguns assentamentos, sobretudo os que expõem grave risco aos moradores; como qualquer ação pública não prescinde do lastro financeiro, tudo isso será concebido dentro da sustentabilidade econômica, fator capaz de relativizar certos paradigmas e prioridades do ponto de vista social. Não se cogite, porém, de colocar em primeiro plano a questão financeira, nem tampouco de utilizá-la para justificar a completa omissão municipal.

O que se pretendeu afirmar acima é que a política pública habitacional deve ser pensada a partir do aspecto social envolvido, mas sem perder de vista sua viabilidade financeira; isso permite, por exemplo, justificar o atendimento simultâneo das demandas prioritárias e não-prioritárias, consideradas a partir da maior carência e/ou vunerabilidade habitacional das pessoas atendidas. Para tanto, deverão ser demonstrados os proveitos dessa conjugação ou pelo menos haverá de se comprovar que o programa ou projeto não-prioritário não traz prejuízo às ações mais urgentes. Frise-se que a margem de questionamento aumentará na medida em que predominarem os esforços públicos fora do universo de famílias com maior necessidade, crítica, aliás, comum na história da política nacional de habitação.

Dentro do possível, devem ser também adotadas medidas que permitam melhor condicionar o setor privado à realidade/necessidade brasileira, para capacitá-lo ao atendimento a um número maior de pessoas. Isso passa, inclusive, pela adequação da legislação urbanística, que define a produção de moradia legal e influencia no respectivo custo. É sobretudo por esse motivo que o Estatuto da Cidade estabelece no rol de diretrizes da política urbana "a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais" (art. 2º, XV). Interpretando tal mandamento em harmonia com o sistema de normas que regem a questão, é clara a necessidade de a moradia produzida ser, em todo caso, digna, integrada ao conceito de cidade sustentável. Notadamente, o desafio então é otimizar as exigências urbanísticas, evitando-se o exagero.

Em verdade, vemos acima uma obrigação básica do Poder Público municipal: legislar dentro da razoabilidade, no caso para permitir a ação adequada dos agentes construtores da cidade. Sem ignorar essa etapa, pode o Município avançar para outro estágio: criar maior convergência entre as iniciativas do setor imobiliário e da construção civil com a estratégia traçada para o desenvolvimento urbano. Como é de amplo conhecimento, a lei não constrói, por força própria, a cidade, apenas rege o processo, no mais das vezes estabelecendo balizas. [17] Se a produção de moradias dentro da lei no Brasil já representaria um enorme avanço, melhor ainda é que o processo de construção se desenvolva com coerência e lógica, ocupando gradualmente os locais mais indicados, entre os disponíveis, gerando externalidades positivas à coletividade e evitando a dispersão desnecessária da malha urbana; para tanto, é fundamental que o governo local saiba como induzir a iniciativa privada.

Na busca de soluções à questão habitacional, impende considerar, como fizemos logo acima, os dispositivos do Estatuto da Cidade.

A partir das diretrizes contidas no artigo 2º daquele Diploma Legal, é possível identificar de modo mais ou menos direto, algumas das condições e alternativas que alcançam a produção habitacional. Em verdade, todo o rol ali disposto toca, em graus variáveis, a questão habitacional. Destacamos, porém, os seguintes itens, por considerá-los mais influentes:

- Direito à cidade sustentável (inciso I). Como a letra da lei revela, engloba um feixe de situações, que manifestamente se faz integrado pelo direito à terra e à moradia, reforçando o compromisso do planejamento e gestão urbanos com essas questões. Além disso, nos outros aspectos listados acaba implicitamente definindo como a moradia deve ser produzida, pois não há cidade sustentável se seu núcleo essencial, a habitação, não estiver associado ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao sistema de transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. O próprio inciso V do mesmo artigo 2º do Estatuto da Cidade explicita essa conclusão. Outro desdobramento dessa diretriz é aquele relacionado à adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites de sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência (inciso VIII).

- Gestão democrática da cidade por meio da participação popular e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (inciso II). Forçosamente a formulação e execução da política habitacional se inserem nessa perspectiva, exigindo canais comunicativos entre a Administração Pública e a sociedade civil, devidamente instituídos, como Conselhos, audiências públicas, fóruns etc.. Em verdade, a própria Constituição já requer a abertura para a participação popular no processo de planejamento municipal (art. 29, XII);

-Cooperação intergovernamental e também da iniciativa privada e demais setores da sociedade na urbanização (inciso III). Na questão habitacional tal cooperação é fundamental, dada à complexidade do tema, especialmente em se tratando da habitação pensada para uma cidade sustentável. Um dos consensos sobre a questão é que os municípios brasileiros isoladamente não têm fôlego para suprir o déficit habitacional. Devem se consorciar ou mesmo celebrar convênios com Estados e União, para otimizar a ação, como, aliás, já orienta o próprio artigo 23 da Lei Maior, em seu parágrafo único. Parceiros na sociedade civil também devem ser buscados, e o Estatuto da Cidade prevê alguns instrumentos que facilitam tal relacionamento, como é o caso do consórcio imobiliário (art. 46) e da operação urbana consorciada (arts. 32 a 34).

-Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município (inciso IV). A Carta Constitucional já associa a questão urbana, e conseqüentemente a política habitacional, ao planejamento municipal (art. 30, VIII). As ações municipais na área de habitação devem ser concatenadas, conduzidas por uma ordem lógica e coerente, com bases predeterminadas; ainda que moldável pelos fatos supervenientes, não se admite o completo improviso ou ações que respondam isoladamente aos problemas concretos apresentados pela urbanização. Não pode aqui ficar de lado uma compreensão prévia desses problemas, até porque o planejamento não há de ser feito para estabelecer um modelo ideal e abstrato de cidade. Como adverte Nelson Saule Júnior, a atividade planejadora "deve contemplar os conflitos e possuir uma função de correção de todos os desequilíbrios causados pela urbanização". [18]

-Regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo (inciso XIV). Para tanto, deverão ser consideradas a situação sócio-econômica da população residente e as normas ambientais incidentes. Diante da realidade brasileira, um espaço significativo da política habitacional há de ser ocupado pela regularização da habitação existente. Dada a importância e a complexidade, o assunto será retomado no tópico seguinte.

-Justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização, com a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado valorização de imóveis urbanos (incisos IX e X). A urbanização é processo coletivo, não devendo ficar entre algumas poucas pessoas a chamada "mais-valia urbana", isto é, o excedente de riqueza produzido nesse contexto, especialmente o verificado pela valorização imobiliária. Esse valor deve ser apropriado pela coletividade, não só por uma questão de justiça social, mas também para viabilizar a continuidade do processo e corrigir as distorções verificadas. Tudo isso se reflete na política habitacional, por vezes até como modo de financiar o imenso desafio imposto ao Poder Público.

Vale o registro quanto às Leis Federais nº 6.766/79 e nº 10.098/00. A primeira traz normas gerais sobre o parcelamento do solo para fins urbanos, procedimento que muito provavelmente será utilizado na produção de habitação popular. Por sinal, para essa hipótese específica há previsões excepcionais, objetivando facilitar o loteamento para população de baixa renda e a regularização de tais empreendimentos. A segunda lei contempla regras a serem observadas na "construção da cidade" de modo a assegurar a acessibilidade às pessoas portadoras de deficiência física ou com mobilidade reduzida. Na realidade, toda e qualquer moradia precisa ser produzida dentro desse marco legal nacional.

Não se perca de vista também que a legislação de alguns temas correlatos à questão urbana podem acabar trazendo condicionantes para a questão habitacional. Notadamente é o caso da proteção ambiental, a qual muitas vezes estabelece normas que interferem na construção e no uso dos imóveis urbanos. Em geral, esses mandamentos devem também ser observadas.

O Município seguirá também os dispositivos estaduais incidentes sobre sua política habitacional, elaboradas dentro do limite da competência daquele ente da federação (art. 24, § 2º da CRFB). Normalmente, a Constituição Estadual costuma dedicar alguns artigos à causa, bem como, de modo reflexo, outros temas acabam por condicionar a política habitacional, especialmente a proteção ambiental.

A Política Habitacional do Município, mesmo quando constituída em lei própria, necessita observar certas normas locais que possuem ascendência sobre as demais. Referimo-nos especialmente àquelas estabelecidas na Lei Orgânica Municipal (LOM) e no Plano Diretor.

O primeiro Diploma condiciona toda a legislação municipal, sendo chamada, informalmente e com certa razão, de Constituição Municipal. É comum que, além de organizar os Poderes, acabe avançando sobre temas julgados relevantes, entre os quais a proteção ambiental, o desenvolvimento urbano e até a habitação.

Já o Plano Diretor é, por definição constitucional, o instrumento básico da política urbana (art. 182, § 1º). Para bem cumprir sua função há de abranger as muitas questões compreendidas no desenvolvimento urbano, desde o disciplinamento do regime urbanístico do solo à concepção e execução de políticas setoriais especialmente relacionadas à causa. Certamente entre essas está a política habitacional. Advirta-se, que não se espera, nem se recomenda, que o Plano Diretor esgote assuntos tão complexos. Deve, sim, traçar objetivos, diretrizes e outras balizas que estabeleçam o compromisso com a ação orgânica e sistêmica. Para tanto, precisa conceber as linhas gerais da estratégia, coordenado os agentes envolvidos e estabelecendo os instrumentos a serem utilizados.

A obra "Estatuto da Cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos", parte da mesma perspectiva para considerar que

"O objetivo do Plano Diretor não é resolver todos os problemas da cidade, mas sim ser um instrumento para a definição de uma estratégia para a intervenção imediata, estabelecendo poucos e claros princípios de ação para o conjunto dos agentes envolvidos na construção da cidade, servindo também de base para a gestão pactuada da cidade". [19]

Além de afirmar qual a cidade desejada, através dos objetivos fixados, o Plano Diretor cuidará de assegurar a coerência no trato do desenvolvimento urbano e ambiental, para que as ações sejam concatenadas. A lei que instituir a política habitacional municipal não deixa de ser um aspecto daquela pauta e precisa estar em conformidade com o Plano Diretor, sob pena de se revelar inválida. Em caráter mais pontual, cumpre mencionar também que a utilização de alguns dos instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade – e aqui mencionados – dependem de previsão expressa na lei básica do desenvolvimento urbano.

Importa observar ainda que a inserção do tema - política habitacional - no Plano Diretor é fator capaz de trazer efeitos práticos na elaboração das leis financeiras municipais. Isto porque o Plano Plurianual, as Leis de Diretrizes Orçamentárias e os orçamentos anuais devem ser elaborados de modo a incorporar as diretrizes e prioridades contidas naquela peça de planejamento. [20] Como não é usual ao Plano Diretor conceber ações concretas e auto-executáveis na área habitacional, a bem da verdade esse desdobramento financeiro provavelmente dependerá das outras leis que estabeleçam formas de agir a partir das diretrizes e previsões gerais; ou seja, será necessário editar a política habitacional, bem como programas e projetos, que, devidamente estabelecidos, condicionarão a programação financeira municipal, com o devido respaldo do Plano Diretor.


SEGURANÇA DA POSSE E REGULARIDADE URBANÍSTICA

Vale a pena ressaltar que das considerações acima não se extrai modelo único para atuação municipal.

A propósito, descabe considerar que apenas a aquisição da propriedade confere segurança à posse, havendo outros direitos capazes de satisfazer tal requisito (direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia, direito de superfície, locação etc.). Por seu turno, também não há definição apriorística, no direito nacional, sobre a gratuidade ou onerosidade da relação a ser estabelecida com a família beneficiada pela política habitacional. O direito social à moradia não tem como elemento característico a gratuidade. Cumpre ao Município examinar a melhor alternativa para cada tipo de atuação. Poderá prever a cobrança até mesmo para dar maior fôlego às ações municipais, já que os recursos são sempre escassos.

Em respeito ao princípio da eficiência, deve o Município estruturar sua política habitacional de modo a ter o melhor resultado possível, examinando as frentes em que pode atuar, a partir da realidade em que se encontra a população e dos meios de que dispõe. Em suma, os investimentos públicos e os esforços administrativos devem ser canalizados para viabilizar o maior lastro de atuação municipal, com o melhor resultado possível.

As considerações reforçam a tendência em se afirmar que legalizar e urbanizar adequadamente as áreas ocupadas por população de baixa renda são tarefas exigíveis ao Município, como alguns tribunais já vêm reconhecendo. [21] Afora isso, o dever de o Município em promover o adequado ordenamento territorial, conjugado com suas obrigações perante o direito social à moradia, torna hoje a remoção e o reassentamento de população de baixa renda medidas absolutamente extremas, cuja ocorrência depende de circunstâncias especiais.

A política municipal de habitação precisa, portanto, ser elaborada com a seguinte perspectiva: sempre que for viável, a regularização urbanística é a medida a ser adotada pelo Município diante da ocupação irregular; em outras palavras, exceto em caso de sua absoluta incompatibilidade com outro dever estatal que esteja manifestamente comprometido com a ocupação, como a proteção à saúde pública, a regularização é a única medida aceitável.

Note-se que hoje soa difícil até mesmo invocar qualquer tipo de interesse público para se desconstituir ocupação irregular, especialmente aquela classificável como consolidada, quando os laços sociais já se formaram e as famílias já se organizaram a partir da localização da moradia. Para se desfazer esse quadro, há de ser demonstrada necessidade que soe como um imperativo, sem existir alternativas razoáveis para realização do dever estatal que clama tal providência. De um modo geral, seria altamente polêmico, por exemplo, alegar simplesmente a existência de projeto urbanístico que requeira outra destinação para aquela área, como a instalação de parque industrial ou mesmo o desenvolvimento do turismo e/ou lazer. [23] Em todo e qualquer caso, porém, normalmente será exigível que o próprio Poder Público ofereça solução para a habitação em local próximo ao desocupado ou mesmo que dê condições materiais à família para prover a moradia, conforme, seu interesse em outra localidade.

A regularidade ou irregularidade de uma casa define-se basicamente pelas regras locais, afinal ao Município compete ordenar o parcelamento, uso e ocupação do solo para fins urbanos; consequentemente a chamada regularização deve ser trabalhada na grande maioria dos casos em torno da competência municipal. [24] Normalmente a regularização urbanística ocorre através da instituição de Zona de Especial Interesse Social (ZEIS), com parâmetros urbanísticos específicos, feitos especialmente para a área ocupada

Em condições normais, uma situação de fato que viola as normas de direito público, como são as normas urbanísticas, não pode prosperar. A legalidade, bem como o interesse público, requerem a reparação da ordem jurídica e o desfazimeto daquilo que não se conforma à legislação. Isso lança incertezas sobre a ocupação irregular, gerando insegurança social.

Ocorre que não bastará aqui examinar o cumprimento ou não dos parâmetros urbanísticos estabelecidos, pois há uma série de valores envolvidos, sobretudo em se tratando de área ocupada por população de baixa renda. Como já foi dito, o direito social à moradia, bem como os objetivos de erradicação da marginalização da pobreza e diminuição das desigualdades sociais indicam que a regularização deve ser buscada, sempre que possível, com a manutenção dos moradores de baixa renda no local ocupado. O Estatuto da Cidade, repita-se, é claro nesse sentido e inclusive indica a forma apropriada para ela ocorrer: "mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais". [25]

Nota-se aqui a perspectiva da particularização do nosso Direito, cujas normas, ao menos na hipótese descrita na lei, serão produzidas para o caso concreto; aliás, aqui se firma um elemento ainda mais diferenciado em relação ao Direito Moderno: as normas jurídicas serão definidas a partir da realidade social em que elas incidirão, considerando-se as pessoas envolvidas no fato jurídico, sem partir de uma compreensão uniforme para todos os homens.

Mas uma vez o quadro confirma lições de Boaventura de Sousa Santos, desta feita no sentido de que perante o dinamismo das sociedades capitalistas e o papel do Estado no século XX, "o direito abstracto, formal e universal, recua perante o direito contextualizado, particularista e circunstancial". [26] No caso em exame, há motivos especiais para tanto.

A premissa de editar normas gerais e abstratas (idealismo jurídico) associada à adoção de padrões de qualidade urbana de alto nível (idealismo urbanístico) teve seu reflexo econômico natural: o encarecimento do solo aproveitável. Se considerarmos que boa parte de nossa população sempre viveu com baixíssima remuneração ou mesmo sem remuneração regular não é necessário mais nada para compreender por que os índices de irregularidade urbanística são tão altos no Brasil, a ponto de instigar a discussão sobre o que é regularidade e o que é irregularidade nestas terras. Entretanto, não sejamos ingênuos, considerando o quadro como mero fruto de idealismos, pois decerto a combinação atendeu a importantes expectativas de uma outra parte de nossa sociedade, menor numericamente, mas muito mais importante para a governabilidade do país.

Como é de amplo conhecimento, antes mesmo do Estatuto da Cidade propagar a diretriz da regularização, muitos Municípios já continham em sua legislação previsão semelhante, fosse em Leis Orgânicas, Planos Diretores ou normas mais específicas. Mais do que isso, em alguns deles verificou-se a criação do instrumento que, dentro da lógica do zoneamento, promovia exatamente a edição de parâmetros urbanísticos especiais que traduzissem a realidade das ocupações informais. Modificava-se a legislação para tornar lícito aquilo que pela letra fria da lei seria ilícito.

A referência acima é certamente para as chamadas Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) – em alguns locais são chamadas de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) -, que representam "a flexibilização dos parâmetros urbanísticos quanto ao uso, ocupação e parcelamento do solo, a partir do reconhecimento das tipicidades locais, para facilitação da regularização fundiária do assentamento". [27] Ou seja, o Município identificará como zona especial a extensão territorial ocupada por população de baixa renda, como as favelas ou loteamentos irregulares, de modo a editar índices urbanísticos específicos. Tais regras deverão refletir, na medida do possível, os parâmetros que de fato são vivenciados no local, afastando-se aqueles até então (hipoteticamente) aplicáveis, que deixavam os moradores na ilegalidade. As primeiras experiências nesse sentido remontam ao início da década de 1980, em Municípios como Recife e Belo Horizonte.

Já no tocante à titulação (aquisição de título formal) a participação do Município é mais direta em se tratando de ocupação de imóveis municipais, pois na qualidade de proprietário lhe assiste instituir direitos à população residente, afora o dever de observar o direito à concessão de uso especial para fins de moradia nos termos previstos na Medida Provisória 2220/01.

A propósito registro aqui minha opinião pela inconstitucionalidade do prazo delimitado naquela Medida Provisória para obtenção do direito de uso especial para fins de moradia. Pelo texto legal hoje em vigor, a posse capaz de ensejar o direito em tela não só deveria ser continuada por cinco anos, como também esse período deveria ser completado, no máximo, em 30 de junho de 2001. Sucede que, no texto constitucional que lhe serve de esteio, não há qualquer limite temporal (art. 183, caput e § 1º). Não se afigura, portanto, apropriado à lei ordinária condicionar de modo mais restritivo o que foi assegurado pela Lei Maior de modo mais elástico, especialmente por não se tratar de preceito de eficácia contida (ou restringível), na clássica lição de José Afonso da Silva; [28] francamente, não há nenhuma menção na Lei Maior de que o direito ali assegurado possa ser condicionado por norma infraconstitucional.

Em se tratando de imóvel particular, em tese, poderá recorrer à desapropriação, o que, no entanto, requer capacidade financeira para pagar a indenização correspondente; sendo o imóvel particular ou pertencente a outro ente federativo, há também a alternativa de se aplicar a transferência do direito de construir, caso implementada pelo Município e aceita pelo proprietário (art. 35 do Estatuto da Cidade). No mais, o governo local não tem como diretamente definir a segurança da posse, questão que deverá ser tratada na via judicial, na maior parte das vezes, através da ação de usucapião. Mesmo nesse último caso, o Município, de acordo com seu potencial, pode e deve ser um importante colaborador, orientando os possuidores como proceder, bem como realizando atividades que facilitem o pedido judicial.

É imprescindível a atuação municipal de modo a divulgar os direitos à população, prestando inclusive esclarecimentos técnicos, sobretudo se relacionados ao alcance dos direitos sociais. Questão hoje debatida é se o Município poderia ou mesmo deveria prestar a assistência judiciária, isto é, se os agentes municipais, dentro de suas atribuições públicas, promoveriam ações ou a defesa de interesse particular junto ao Poder Judiciário e em caráter gratuito. A Carta Constitucional atribui ao Estado essa incumbência, quando a pessoa interessada demonstrar a insuficiência de recursos para arcar com as despesas para constituir advogado (art. 5º, LXXIV). Não resta dúvida que a referência ao Estado, ali, é genérica, como entidade que detém (e representa) o Poder Público; assim ó é ao longo de todo o artigo 5º; pela leitura isolada do dispositivo, a inclusão dos Municípios seria plenamente aceitável. A discussão procede, porém, do fato de a própria Lei Maior associar essa obrigação estatal à Defensoria Pública, a ser organizada em nível federal e estadual, dentro de condições especiais (art. 134). A principal indagação é se o exercício de tal atividade, no âmbito estatal, seria exclusivo daqueles entes federativos e, mais especificamente ainda, das respectivas Defensorias Públicas.

Entre os que defendem a extensão da tarefa à Administração Municipal encontram-se Nelson Saule Júnior, Dalmo Dallari e Walter Piva Rodrigues. [29] Todavia é mais tradicional o entendimento pelo qual a Constituição, quando destina uma atribuição a determinado órgão ou entidade, presumidamente o faz em caráter privativo, ao menos dentro da esfera pública. Essa perspectiva foi adotada expressamente em um dos votos que compõem interessante acórdão do Supremo Tribunal Federal, relacionado à assistência judiciária gratuita, posicionamento esse que parece ter orientado os demais votos. [30] Além disso, a defensoria pública está associada diretamente à função jurisdicional do Estado, a qual inexiste em sede municipal.

Dentro desse contexto, parece difícil justificar a atuação dos procuradores municipais em ações judiciais movidas por particulares, mesmo quando presente o interesse social. Nada impede, porém, que o Município celebre convênios com a Defensoria Pública, com Universidades, com a Ordem dos Advogados, com organizações não-governamentais e com as instâncias do Poder Judiciário, objetivando o melhor desenvolvimento dos processos judiciais relacionados ao acesso à terra, tudo em conformidade com seu dever perante o direito social à moradia. Outra alternativa seria o Município agir em nome próprio, tese que pode ser construída até mesmo diante do seu dever de promover a regularização urbanística, que em alguns casos, como no parcelamento, talvez fiquem pendentes da questão fundiária.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cumpre rapidamente registrar que para respeitar os fundamentos e atingir os objetivos de nossa República, toda política pública precisa ser promovida para a emancipação do indivíduo, dotando-o da capacidade para autodeterminação em suas relações sociais, observando, sempre, a legislação aplicável. Só assim se assegura o primado da dignidade da pessoa humana e se busca construir uma sociedade livre e justa, para ficarmos apenas nas condicionantes que mais visivelmente requerem a perspectiva emancipatória.

Tamanho é o hiato entre o plano desejado e as condições materiais hoje presentes, que a prática de medidas compensatórias e parciais se tornam aceitáveis, desde que o agir estatal claramente caminhe rumo à transformação do quadro, progressivamente

Um perigo que a experiência recomenda evitar é a chamada "expulsão branca", onde as intervenções de melhorias e/ou de regularização urbanísticas ou ainda de construção de moradias em pouco tempo ensejam a retirada dos beneficiados, tornando ineficaz todo o esforço público. Normalmente isso se dá exatamente porque às melhorias materiais do espaço urbano não são acompanhadas de políticas que permitam às famílias se integrarem na sociedade em um novo patamar. É preciso melhorar a capacidade delas quanto à produção de renda

Tudo isso leva à compreensão de que a política habitacional não deve ser apenas pensada como a concessão de casa a cada família necessitada, mas precisa estar associada a uma nova forma de inclusão social daquele núcleo familiar. Do contrário, não só os objetivos fundamentais não serão alcançados, mas haverá clara violação do princípio da eficiência.

Importante também que a legislação local seja adequada para ensejar a produção de habitação a preço acessível, pelo menos, para grande parte da população.

Do compromisso em construir uma sociedade livre e do respeito à diferença, enfim, do pluralismo social francamente acolhido em nossa Lei Maior, também se conclui pelo dever de a produção habitacional adequar-se à identidade cultural da comunidade beneficiada. Em vez de conjuntos habitacionais e de urbanizações padronizadas, concebidas em gabinetes, impende à ação pública considerar os elementos culturais da população a ser atendida. A observação evoca, a um só tempo, a dignidade da pessoa humana, como também o dever do Estado em preservar a cultura (art. 215 da CRFB), e alcança situações díspares, que vão do eventual atendimento de demandas de grupos sociais mais homogêneos, como quilombolas ou índios de determinada tribo, à regularização urbanística de áreas que possuem bens culturais ou de valor histórico (como quadras de escolas de sambas em determinadas favelas ou locais onde se exercem manifestações folclóricas há muito tempo).

As normas urbanísticas, a começar pelo Plano Diretor, devem disponibilizar os instrumentos capazes de auxiliar nessa difícil e complexa missão que é assegurar o direito à moradia e, conseqüentemente, a dignidade da pessoa humana. Alguns instrumentos já foram citados aqui, e caberia ainda mencionar a outorga onerosa do direito de construir, como forma de financiar a política habitacional ou mesmo de induzir o mercado para a habitação popular (arts. 28 a 30 da Lei Federal nº 10.257/01); serventia também pode ter o direito de preempção para a aquisição de imóveis utilizáveis para construção de moradias ou na regularização fundiária, embora sua utilização seja muito pontual (arts. 25 a 27 da Lei Federal nº 10.257/01).

A retenção especulativa de imóvel urbano deve ser combatida, e o Estatuto da Cidade progrediu nesse campo, ao disciplinar as condições para implementação das sanções constitucionais previstas para a hipótese: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; [30] IPTU progressivo e desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública (arts. 5º a 8º).

A efetividade do direito social à moradia, que passa pela melhoria das condições habitacionais – melhoria no plano material e no plano jurídico - e o dever de o Município em promover o adequado ordenamento territorial, torna hoje a remoção e o reassentamento de população de baixa renda medidas absolutamente extremas, a depender de circunstâncias de extrema excepcionalidade.

A política municipal de habitação precisa, portanto, ser elaborada com a seguinte perspectiva: sempre que for viável, a regularização urbanística é a medida a ser adotada pelo Município diante da ocupação irregular; em outras palavras, exceto em caso de absoluta incompatibilidade com outro dever estatal que esteja manifestamente comprometido com a ocupação, como a proteção à saúde pública, a regularização é a única medida aceitável.

Inegavelmente o desafio é imenso, desde buscar a compreensão das causas que atuam para compor o quadro atual da habitação até a elaboração e implementação da política habitacional. A complexidade para o Município aumenta porque as questões macroeconômicas, que influenciam brutalmente o acesso à moradia não são definidas no âmbito local e só em raras ocasiões seus efeitos nocivos (desemprego, baixa renda etc.) podem ser significativamente minimizados pelos agentes municipais. Isso não exime o Município de suas responsabilidades constitucionais: cumpre-lhe, inequivocamente, atuar na medida de suas capacidades, e até mesmo buscar ampliá-las, para efetivar o direito constitucional à moradia, servindo de modo orgânico e sistemático aos propósitos e fundamentos da República Federativa do Brasil. Em outras palavras, seu compromisso, sempre e da melhor forma possível, é fazer progredir a realização do homem e da vida social, digna como tem que ser.


Notas

01 Na obra "A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares". Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2004, pág. 149.

02 Idem.

03 Em entrevista concedida ao jornal "Folha de São Paulo" (10/10/04), o Prefeito de Barcelona declarou que, na sua cidade, cerca de 20% (vinte por cento) da habitação é produzida pelo Poder Público, para assegurar o atendimento das camadas mais pobres, demonstrando, portanto, que a intervenção pública em prol da habitação popular não é questão exclusiva dos "países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos".

04 Na obra "Direito Constitucional e Teoria da Constituição". Coimbra: Almedina, 1998, pág. 1045. Há muito já asseverava Ruy Barbosa no sentido de que numa Constituição não haveria cláusulas a que se devesse atribuir "meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições"; todas teriam força imperativa de regras; o que ocorria, porém, era que algumas não se revestiam dos meios essenciais para garantir o exercício imediato de direitos ou encargos: teriam que aguardar que "a legislatura, segundo seu critério, habilitasse esse exercício" (Comentários à Constituição Federal Brasileira" – vol,. 2. São Paulo: Saraiva&Cia, 1933).

05 Na obra "Aplicabilidade das Normas Constitucionais". São Paulo: Malheiros, 1998, págs. 117 a 166.

06 Na obra "A Crítica da Razão Indolente". São Paulo: Cortez, 2002, págs. 160 e 161.

07 Na obra citada, págs. 1050 e 1051.

08 Ver RE 271286 AgR/RS, REsp 684646 / RS, RESp 429570/GO, RMS 17425 / MG, REsp nº 575.998, o primeiro julgado pelo STF, os demais pelo STJ.

09 ADPF 45 - DF

10 Ver AgrRegAI nº 138901/GO e REsp nº 169876/SP, todos julgados pelo STJ.

11 Com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.

12 Na obra "Curso de Direito Constitucional Positivo". São Paulo: Malheiros, 1992, pág. 258. É praticamente idêntica a lição de Alexandre Moraes sobre o tema na obra "Direito Constitucional" (São Paulo: Atlas, 2003, pág. 202).

13 Ver os apontamentos de Luís Roberto Barroso em "Interpretação e Aplicação da Norma Constitucional". Rio de Janeiro: Saraiva, 1996, págs. 218 a 244.

14 Na obra citada, págs. 182 e 183. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma também que, a partir da Constituição, o Estado brasileiro tem obrigação imediata de estabelecer as medidas necessárias para efetivar os direitos econômicos, culturais e sociais, entre os quais se inclui o direito à moradia (no artigo "Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social", publicado na Revista de Direito Público nº 57/58, págs. 253/254)

15 Na obra citada, pág. 204.

16 Por tudo que já foi aqui afirmado, essa competência revela-se também um dever, capaz de ser cobrado até mesmo em via judicial.

17 Em vista dos altos números de irregularidades urbanísticas, sendo por vezes a "cidade ilegal" maior que a "cidade legal", talvez seja mais realista afirmar que a lei busca reger o processo de construção da cidade.

18 Na obra citada, pág. 232.

19 Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001, pág. 42

20 Art. 40, § 1º do Estatuto da Cidade.

21 Ver, por exemplo, a posição do Superior Tribunal de Justiça nos seguintes julgados: REsp 131.697 SP; REsp 292.846/SP, REsp 432.531; REsp 448216;REsp 259.982/SP; REsp 124.714/SP, REsp 194.732/SP.

22 Tal observação se faz aplicável inclusive para delimitar o disposto nos incisos II e IV do artigo 5º da Medida Provisória 2.220/01, a qual faculta ao Poder Público assegurar a concessão de uso especial para fins de moradia em outro imóvel, distinto daquele efetivamente ocupado.

23 Manifestamente, não se pode perder de vista as situações excepcionais, em que normas federais ou estaduais trazem restrições diretas ao aproveitamento do solo, como, por exemplo, em áreas de proteção ambiental ou relacionadas à execução de serviço ou bem público (rodovia, aeroportos etc.); nesse contexto, vivenciado mais em alguns Municípios do que em outros, há uma superposição de normas que pode excluir dos agentes públicos locais a capacidade de, sozinhos, regularizarem a ocupação verificada sobre um terreno; conforme o caso, aí será necessário arranjo delicado entre as entidades federativas envolvidas.

24 Art. 2, XIV da Lei Federal nº 10.257/01

25 Na obra citada, pág. 152.

26 ALFONSIM. Betânia de Moraes in "Direito à Moradia". Rio de janeiro: IPPUR/FASE, 1997, pg.27. O conceito dá conta da expressão mais conhecida a título de ZEIS, exatamente aquela associada à regularização urbanística. Vale considerar que sob a mesma nomenclatura se abriga também a hipótese de alteração de parâmetros em áreas não ocupadas, objetivando facilitar futuros empreendimentos para habitação popular.

27 Ver Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998.

28 Ver "A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares", edição citada, págs. 431 a 435.

29 A referência é ao Recurso Extraordinário nº135.328-SP, publicado na RTJ nº 177/879. O voto em questão é o do Ministro Sepúlveda Pertence. Vale asseverar que o único voto final que claramente diverge nessa questão é o do Ministro Celso de Mello, o qual considerou inexistir exclusividade em favor da Defensoria Pública para desempenhar as missões previstas no artigo 134 da Carta Constitucional. Os demais, se não enfatizam diretamente o monopólio, consideram que a atuação da Procuradoria do Estado, usualmente verificada na falta de defensoria pública devidamente instituída, não atende aos pressupostos constitucionais.

30 O dispositivo constitucional em questão é o artigo 182, § 4º. Literalmente ele não trata da utilização compulsória, mas temos que implicitamente ela está contemplada, afinal a intenção é combater os imóveis não utilizados e subutilizados, além dos não edificados.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marcos Pinto Correia. O direito social à moradia e os municípios brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 900, 20 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7746. Acesso em: 19 abr. 2024.