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O caso da Guerra Civil da antiga Iugoslávia e a Implantação do Tribunal Penal Internacional

O caso da Guerra Civil da antiga Iugoslávia e a Implantação do Tribunal Penal Internacional

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Apontamentos sobre a guerra civil que assolou a ex-Iugoslávia e que propiciou a instauração de uma corte ad hoc para julgamento dos crimes contra a humanidade, de guerra e genocídio cometidos por ocasião daquele conflito.

Resumo: O presente artigo promoverá  uma análise da Guerra Civil na antiga Iugoslávia (“terra dos eslavos do sul” na língua servo-croata). Partindo do pressuposto de que a integração dos povos eslavos foi artificial, conseguida principalmente a partir da liderança carismática de Josip Broz, o Marechal Tito, e do estabelecimento de um regime ditatorial baseado no medo, sob um misto de opressão e liberdade, eis a tentativa empreendida a fim de coagir pessoas com profundas diferenças históricas e político-culturais a viverem juntas, eliminando, assim, qualquer foco de resistência. Ocorre que, a morte de Tito, aliada à grave crise econômica, bem como a decadência do sistema comunista, fizeram surgir um nacionalismo exacerbado, reacendendo o ódio étnico nos Bálcãs, território que constitui um verdadeiro caldeirão étnico e social. Razão pela qual, dentro dessa “colcha de retalhos”, eclodiu a Guerra Civil da Iugoslávia, o conflito mais sangrento já ocorrido na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Tanto que foi responsável pelo desmantelamento da República Federal Socialista da Iugoslávia. Diante do quadro devastador que se revelara, a Organização das Nações Unidas resolveu intervir nos conflitos. Todavia, tarde demais. A Iugoslávia já se encontrava banhada de sangue. Com o intuito de apascentar os ânimos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas instituiu o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Nada obstante alvo de críticas, decorridas mais de duas décadas de sua criação, a Corte cumpriu o seu papel em termos preventivo e reprovador, desencorajando a prática de condutas como as perpetradas no território dos Bálcãs.

Palavras-chave: Iugoslávia. Comunismo. Guerras de Secessão. Organização das Nações Unidas. Tribunal Penal Internacional. Slobodan Milosevic.

Sumário:1. Introdução – 2. O Nascimento de um País: A criação da Iugoslávia. 3. O Ressurgimento dos Conflitos. 4. A desintegração da Iugoslávia: 4.1. Guerras da Independência da Eslovênia e da Croácia; 4.2. Guerra da Bósnia-Herzegovina; 4.3. Guerra do Kosovo 5. A Implementação de uma Corte Penal para Julgar os Culpados. 6. Conclusão . 7. Referências.


1 Introdução

O estudo da Guerra Civil na antiga Iugoslávia (“terra dos eslavos do sul” na língua servo-croata) não poderia ser feito sem a abordagem dos fatores que levaram à “montagem” de um país cujas diferenças étnicas e sociais entre os territórios que o compõem são a palavra-chave para entender os conflitos que adviriam.

Composta pela união de seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro e Macedônia), além de duas províncias autônomas (Kosovo e Voivodina - ambas vinculadas à Sérvia), a República Federal Socialista da Iugoslávia foi criada no pós-guerra.

Governada com mão-de-ferro por Josip Broz, o Marechal Tito, durante 35 anos, sob um regime comunista, é instigante entender como, através de um regime ditatorial baseado no medo, sob um misto de opressão e liberdade, ele conseguiu convencer pessoas com profundas diferenças históricas e político-culturais a conviverem, sem quaisquer resitências ou tentativas de secessão.

Por outro lado, é lastimável ver como a morte do Marechal Tito, acrescida de outros fatores políticos e sociais, fez com que os comunistas começassem a perder o controle do país, assim como reacendera o ódio étnico nos Bálcãs. E, a partir daí, para a eclosão de conflitos cada vez mais violentos foi um passo.

O sentimento de nacionalismo étnico foi se tornando exacerbado entre os variados povos que compunham a nação iugoslava, permitindo o ressurgimento de líderes ultranacionalistas que se ampararam nas massas para conquistar o poder político. Com isso, começou a aflorar em eslovenos, croatas, bósnios e kosovares a ideia de fundar o seu próprio país.

A Eslovênia e a Croácia foram as primeiras repúblicas a anunciar sua independência, dando origem à Guerra da Eslovênia, que durou 10 Dias, e à Guerra da Croácia, respectivamente.

Posteriormente, a Bósnia-Herzegovina foi a terceira república da antiga Iugoslávia a declarar independência. No caso da Bósnia, a guerra foi muito mais violenta que as anteriores, com atrocidades que ultrajaram o sentimento de humanidade e perplexidades que estão além da imaginação. De massacres a genocídos, inclusive com a existência de campos de concentração, a Guerra da Bósnia ensaguentou as terras bálcãs com o de pior que o ser humano – se é que alguém que comete tais atos possa assim ser chamado – pode causar à sua espécie. Tanto que a referida Guerra sequer tinha sido encerrada quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou uma Corte Internacional específica para julgar as barbáries que assolaram a Iugoslávia desde janeiro de 1991.

Por derradeiro, foi a vez de Kosovo anunciar sua independência, originando outro violento conflito que também viria a ser abarcado no âmbito de competência do recém-criado Tribunal.

Assim, um a um, cada qual ao seu modo e momento oportuno, os conflitos acima elencados deram origem à desintegraçao da Iugoslávia.

Decorridas quase duas décadas e meia da implementação de um órgão judicial com a incumbência de julgar os atos bárbaros praticados na Iugoslávia, é feita uma reflexão acerca da assertividade (ou não) na conduta da Organização das Nações Unidas ao baixar a Resolução 827/1993. Assim, até hoje o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia foi amplamente criticado, porém também elogiado, por seu caráter pioneiro, ao ser o primeiro Tribunal criado após a Guerra Fria.

Em suma, é sobre essa análise que se debruçará a abordagem a ser desenvolvida no presente artigo científico.


2 O Nascimento de um País: A criação da Iugoslávia

Posteriormente ao término da Segunda Guerra Mundial, a união de seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro e Macedônia), além de duas províncias autônomas (Kosovo e Voivodina - ambas vinculadas à Sérvia), deu origem à República Federal Socialista da Iugoslávia. 

Entre  1945 a 1980, o país foi governado com mão de ferro pelo ditador Josip Broz, o Marechal Tito, responsável por instituir o regime comunista no território dos Bálcãs.[2]

A reorganização da Iugoslávia, pautada nesse modelo ideológico com o escopo de irmanar e unir os povos dos Bálcãs, veio acompanhada pela instituição de um comunismo independente e não alinhado ao modelo soviético e de uma ditadura. A existência de uma ditadura facilitou o combate às tentativas de separatismo, alimentadas pelas divisões internas.

Para Brukner (apud MATHIAS e AGUILAR, 2012, p. 446):

a Iugoslávia só existiu em razão do comunismo e a utilização do medo da restauração dos massacres da guerra e, após 1948, o medo da União Soviética com quem Tito havia rompido. Na verdade, a variedade étnica que compõe as terras da península balcânica, considerada um caldeirão social devido às várias etnias que a povoam, “a feracidade dos rancores e porque cada comunidade oscilou entre a amnésia e a vontade de revanche”. Com o fim da era de Tito os sérvios, liderados por Slobodan Milosevic “engendraram novos medos” aos povos iugoslavos.

Desta forma, a severidade na gestão da Iugoslávia por parte de Tito, não permitindo a eclosão de quaisquer conflitos, apresentava como escopo o intuito de manutenção da unidade política e social do país. Todavia, a integração dos povos eslavos foi artificial, conseguida principalmente a partir da liderança carismática de Josip Broz, Tito, e do estabelecimento de um regime ditatorial com a finalidade de coagir as pessoas com profundas diferenças históricas e político-culturais a viverem juntas, eliminando, assim, qualquer foco de resistência.

Valendo-se de um misto de opressão e liberdade, o Marechal Tito manteve os povos unidos até sua morte em 1980. Em outras palavras, por ora, a Iugoslávia foi capaz de resistir por 35 anos às diferenças entre os povos que a formavam. Contudo esse arrojado intuito não perdurou para sempre.


3 O Ressurgimento dos Conflitos

A morte de Tito, em 1980, aliada à grave crise econômica pela qual passava a Iugoslávia, com desemprego, inflação e dívida externa em seu ápice, reacenderam o ódio étnico nos Bálcãs.

Ademais, a decadência do sistema comunista ao longo da década seguinte (culminando com a queda do muro de Berlim, em 1989), fez com que os comunistas começassem a perder o controle do país. Com isso, divergências do passado começaram a se agravar. O palco se tornou favorável para vários tipos de discursos, do nacionalismo sérvio à crença de que era chegada a hora para eslovenos, croatas, bósnios e kosovares fundarem seu próprio país.

O nacionalismo exacerbado, a inconsistência social e política e a decadência econômica foram os principais fatores que permitiram o ressurgimento de líderes ultranacionalistas que se ampararam nas massas para conquistar o poder político de várias formas e possibilitou a ocorrência das guerras travadas entre as repúblicas.

De acordo com Aguilar (apud MATHIAS; AGUILAR, 2012, p. 447):

A morte do líder e os acontecimentos na antiga União Soviética que levariam a implosão do leste europeu fizeram com que os dirigentes do Partido Comunista Iugoslavo fundassem partidos e disseminassem ideais nacionalistas, com a única finalidade de manter a estrutura de poder. Dessa forma, “se a farsa do comunismo manteve a federação dos eslavos do sul, a farsa do nacionalismo manteve o poder nas  mãos de seus orquestradores.”

Com a crise do bloco socialista, no final dos anos 1980, uma nova fase teria início na História da Iugoslávia. Nesse contexto, a antiga Iugoslávia presenciou a eclosão de quatro conflitos ocorridos durante a dissolução da República Socialista Federativa da Iugoslávia. Eles compreenderam a Guerra da Independência Eslovena (1991), a Guerra da Independência Croata (1991-1995), a Guerra da Bósnia (1992-1995) e a Guerra do Kosovo (1998-1999).


4 A desintegração da Iugoslávia

Diante desse cenário, a desintegração da República Federal Socialista da Iugoslávia mostrava-se irreversível, conforme muito bem exposto por Mathias e Aguilar (2012, p. 443):

No início dos anos 1990 a Iugoslávia era um país com dois alfabetos (cirílico e latino), três línguas (esloveno, macedônio e servo-croata), quatro religiões (católica, ortodoxa, muçulmana e judaica), cinco nacionalidades (eslovena, croata, sérvia, muçulmana e macedônia) além de várias minorias nacionais como húngaros, búlgaros, albaneses, etc., e seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bósnia Herzegovina, Macedônia e Montenegro). Foi nessa colcha de retalhos que se deu a guerra civil do final do século XX.

4.1 Guerras da Independência da Eslovênia e da Croácia

Em 25 de junho de 1991, depois de um plebiscito, os parlamentos da Eslovênia e da Croácia declaram a independência. A decisão desagradou Slobodan Milosevic, eleito presidente da Sérvia em 1989, que não aprovava a autonomia das duas repúblicas. Foi deflagrada, então, uma sangrenta guerra civil com o escopo impedir a secessão.

O primeiro alvo de Milosevic foi a Eslovênia, numa guerra de “tiro curto” que durou 10 dias. Depois de algumas bombas e ameaças, um acordo foi firmado pelo governo esloveno e a Iugoslávia. Em 8 de julho de 1991, a Iugoslávia firmou acordo de paz com a Eslovênia. Superada a questão da Eslovênia, ato contínuo, entretanto, o exército iugoslavo – sob o comando de Milosevic – focou seus esforços na Croácia e, com a ajuda das milícias sérvias locais, passou a ocupar um terço de seu território.[3]

Entre 31 de março de 1991 e 12 de novembro de 1995, Croácia e Sérvia travaram, no território croata, uma batalha que deixou mais de 23 mil mortos, e cicatrizes em ambos os povos.[4]

A guerra, que teve início paralelamente à declaração de independência da Croácia, colocou frente a frente o exército croata (inicialmente constituído por apenas 1,5 mil homens), as milícias rebeldes sérvias que viviam na Croácia (e eram contra a independência), e as forças do exército iugoslavo (JNA), liderado pelo presidente sérvio, Slobodan Milosevic. O líder embasava seu discurso intervencionista na necessidade de evitar que as minorias sérvias tivessem seus direitos suprimidos, ao mesmo tempo em que buscava “manter a união” das repúblicas que constituíam a Iugoslávia. Em suma, para salvar os sérvios que moravam em outros países, Milosevic estava disposto a tudo, inclusive invadir territórios e matar pessoas.[5]

A Comunidade Européia e a ONU intervieram no conflito, que perdurou até janeiro de 1998, quando os territórios ocupados pelos sérvios foram entregues definitivamente à administração croata.[6]

No início de 1992, a comunidade internacional reconheceu a independência croata, eslovena e das outras repúblicas, reduzindo a Iugoslávia às regiões da Sérvia, Montenegro e Bósnia.[7]

4.2 Guerra da Bósnia-Herzegovina

Seguindo os passos da Eslovênia e da Croácia, a multiétnica república da Bósnia-Herzegovina – então habitada por bósnios muçulmanos (44%), sérvios ortodoxos (31%) e croatas católicos (17%) – foi a terceira república da antiga Iugoslávia a declarar independência. Num referendo realizado em 29 de fevereiro de 1992, a maioria da população votou a favor da soberania, enquanto os sérvios, em sentido contrário, não levaram tal independência a sério, posto que defendiam a permanência da Bósnia na Iugoslávia e decidiram estabelecer, dentro da Bósnia, sua própria República. Razão pela qual, deram início aos confrontos na capital Sarajevo, criando um cenário no qual integrantes de diferentes culturas e religiões se aniquilavam mutuamente.[8]

Nesse conflito, conhecido como Guerra da Bósnia, a limpeza étnica foi um dos principais objetivos. Sendo que não existiam "mocinhos e vilões": de ambos os lados envolvidos as atrocidades praticadas foram imensuráveis. Contudo bósnios e croatas foram as maiores vítimas, haja vista que as tropas sérvias eram muito melhor armadas.

Em nome da referida limpeza étnica, foram perpetrados os mais atrozes atos, desde massacres coletivos a estupros sistemáticos de mulheres bósnias, que, de acordo com a lei vigente, tendo filhos de pais sérvios, dariam à luz a crianças “sérvias legítimas”.[9]

A esse repeito, defende com maestria Zarkov (apud Agostinho, 2013, p. 15/16):

a guerra da Iugoslávia não foi um conflito entre grupos étnicos, mas sim um meio pelo qual essas etnicidades foram produzidas e diferenciadas, através dos corpos, físicos e simbólicos, de homens e mulheres. Os corpos femininos foram, nesta perspectiva, transformados em metonímias das diferentes partes étnicas em disputa, funcionando, assim, como campos de batalha onde os corpos masculinos disputaram a guerra. A violação do corpo feminino inimigo representa, assim, uma humilhação do inimigo masculino, uma enunciação performativa, bem como uma estratégia de perpetuação da etnicidade do agressor e de aniquilação das futuras gerações da etnicidade outra.

A Guerra na Bósnia-Herzegovina durou três anos, oito meses e oito dias. Começou em 6 de abril de 1992 (data em que o país foi admitido como membro da ONU) e só acabou em dezembro de 1995, com a assinatura do Acordo-Quadro Geral para a Paz na Bósnia-Herzegovina, também conhecido como Acordo de Dayton, em Paris.

O conflito deixou aproximadamente 100 mil mortos. Entre as vítimas, 40 mil civis. Cerca de 50 mil mulheres bósnias foram estupradas e 1,5 milhão de pessoas ficaram desabrigadas ou refugiadas. Foi o primeiro caso de genocídio na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Campos de concentração também se tornaram comuns.[10]

A situação em Sarajevo chamou a atenção da comunidade internacional, que, atônita, acompanhava os principais momentos e imagens chocantes do conflito conflito que dilacerava os Bálcãs. A população civil da Bósnia estava sendo dizimada, praticamente ao vivo, diante das câmeras das inúmeras redes de televisão. 

Diante dessa conjuntura, o presidente dos EUA, Bill Clinton, conquanto violando acordos internacionais, começou a armar tropas da Croácia, que acabaram por vencer os sérvios em Krajina.[11]

Tal vitória forçou os líderes da Sérvia, da Croácia e da Bósnia a buscarem uma negociação de paz, selada em novembro de 1995: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia seriam países independentes, enquanto a Iugoslávia seria formada por Sérvia (incluindo Kosovo e Voivodina) e Montenegro (que em 1996 se tornou independente).

4.3 Guerra do Kosovo

Contudo, mesmo assim, depois de os Bálcãs estarem supostamente em paz, um problema ainda não havia sido solucionado: a questão de Kosovo.[12]

Desde o fim da guerra na Bósnia, em 1995, a tensão entre albaneses separatistas e sérvios aumentou. Em 1996, os albaneses da província autônoma de Kosovo, de maioria albanesa, localizada ao sul da sérvia, formaram o Exército de Libertação de Kosovo (ELK) e passaram a lutar por sua independência. E, em 1998, os confrontos entre as forças de segurança sérvias e o Exército de Libertação de Kosovo (ELK) se intensificaram.[13] Motivo pelo qual estourou mais um sério conflito separatista e étnico na região: a Guerra de Kosovo.

Quando os separatistas já controlavam parte da província, o governo central da Iugoslávia, sob o comando de Slobodan Milosevic, acabou com a autonomia de Kosovo, fechou o parlamento e colocou suas tropas em ação. Cerca de um milhão de albaneses deixaram suas casas em direção a países vizinhos, expulsos pelos sérvios. Após uma tentativa fracassada de assinar um acordo de paz com os sérvios, em março de 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)  interferiu no conflito e, por 78 dias, bombardeou impiedosamente a Iugoslávia.[14] Em média, os países da OTAN gastaram US$ 64 milhões por dia de conflito, o que permite perceber o enorme e moderno aparato bélico usado. Milosevic foi obrigado a se render. Um ano depois, o líder sérvio foi preso e entregue ao Tribunal de Haia, para ser julgado por seus crimes.[15]

Desde então, Kosovo passou a ser uma região protegida pelas Nações Unidas e pela OTAN (cerca de 28 mil soldados foram deslocados para a província). Até que, em fevereiro de 2008, o governo de Kosovo declarou finalmente, sua independência, sem que tal atitude tenha sido aceita pela Sérvia.[16]

Tal episódio gerou conflitos diplomáticos no que se refere ao reconhecimento do novo país. Os EUA e parte da Comunidade Europeia apoiam Kosovo, mas a Rússia e a Espanha apoiam a Sérvia, pois temem que o exemplo separatista kosovar estimule grupos separatistas em seus próprios territórios.[17]

Como resultado desta série de episódios, a Iugoslávia deixou de existir como Estado, oficialmente, em 2003. O novo país passou a se chamar Sérvia e Montenegro. Em 2006, porém, as duas nações também se separaram, após referendo popular, criando os hoje independentes países da Sérvia e de Montenegro. Nos dias atuais, portanto, todas as antigas repúblicas que formavam a ex-Iugoslávia são países independentes, incluindo Kosovo.


5 A Implementação de uma Corte Penal para Julgar os Culpados

Nesse contexto, pela Resolução da ONU nº. 827, em 25 de maio de 1993, sob a pressão da comunidade internacional, com a Guerra da Bósnia ainda ocorrendo, o Conselho de Segurança da ONU, incapaz de acabar com a guerra, estabeleceu oficialmente o Tribunal Penal Internacional para a extinta Iugoslávia.

Sediado em Haia, nos Países Baixos, este Tribunal ad hoc (literalmente, “para isso”, isto é, com a finalidade de julgar as atrocidades cometidas durante as guerras que assolaram esse território) foi o primeiro exemplo contemporâneo de estabelecimento de um tribunal penal internacional, bem como possui competência para julgar quatro categorias de crimes praticados no território da ex-República Federal da Iugoslávia a partir de 1º de janeiro 1991, durante uma série de conflitos, que resultou na sua divisão política e territorial, senão vejamos: a) graves violações às Convenções de Genebra de 1949; b) violações às leis e costumes da guerra (art. 3º); c) crimes contra a humanidade (art. 5°); e, d) genocídio (art. 4º).

Oportuno mencionar que a jurisdição do Tribunal foi estendida para crimes cometidos durante o conflito no Kosovo em 1998 e 1999, sendo que sua sentença máxima é a prisão perpétua.[18]

O art. 2º da Resolução 827/1993 da ONU, que o estabeleceu, não define data limite para o término da atuação desse Tribunal. Esse dispositivo se restringe a mencionar que essa data será posteriormente determinada pelo Conselho de Segurança. Ou seja, irá encerrar seus trabalhos quando todos os casos que estiverem sob sua jurisdição forem devidamente julgados. Por isso que o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia ainda continua em pleno exercício de sua função única, qual seja, acusar as pessoas responsáveis por violações graves das leis humanitárias internacionais cometidas no território da ex-Iugoslávia.

Vale ressaltar que este Tribunal somente julga pessoas, estabelecendo, como norma fundamental, a responsabilidade pessoal, não havendo responsabilidade penal de pessoas jurídicas.[19]

Aliás, esse é um traço característico do referido Tribunal. Isto porque o sujeito ativo de crimes internacionais (a exemplo de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra)  são indivíduos, sobretudo chefes de Estado e comandantes de exércitos. Daí a responsabilidade penal pessoal. Ainda que em nome do Estado que representam ou da corporação que lideram, o fato é que os autores são pessoas físicas e é isso que deve ser considerado, sob pena de imperar a impunidade.

Muito embora tenha sido alvo de críticas no que se refere a sua competência para julgar os acusados, posto que o Tribunal foi criado por Resolução do Conselho de Segurança da ONU e não mediante um tratado internacional,[20] o mesmo inovou ao prever a punibilidade de delitos praticados durante conflitos armados internos, os quais não eram tutelados pela legislação penal internacional até então.

Outro dos méritos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia reside no fato de prever a punibilidade para oficiais do alto escalão do Estado por atos praticados no exercício de suas funções oficiais, independente de desfrutarem de quaisquer imunidades.

Dentre os indiciados perante o Tribunal, o julgamento de maior destaque, todavia, foi o de Slobodan Milosevic, ex-presidente da Iugoslávia, conhecido como “o carniceiro dos Balcãs”, acusado de cometer genocídio e crimes contra a humanidade na Bósnia e crimes contra a humanidade em Kosovo e na Croácia, em razão de uma campanha de “limpeza étnica” realizada durante os 13 anos que se manteve no poder. Primeiro ex-chefe de Estado a sentar-se no banco dos réus de um Tribunal Internacional, o julgamento de Milosevic foi apontado como um marco no campo jurídico internacional, posto que nunca um ex-presidente de um país havia sido julgado antes por crimes que afrontam a comunidade internacional.[21]

Tendo em vista que Milosevic não era acusado de cometer homicídio com as próprias mãos, restou à acusação demonstrar sua responsabilidade de comandante dos processos de limpeza étnica e do planejamento dos crimes contra a humanidade ou, sabendo deles, nada fazendo para impedi-los. Argumento que, de fato, veio a ser comprovado ao longo do processo.

Em 11 de março de 2006, Milosevic foi encontrado morto em sua cela, no centro de detenção do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Alguns reclamam que isso não é justo, posto que ele morreu como Chefe de Estado e político e não como um criminoso. “A morte em circunstâncias obscuras do ditador”, antes de ser julgado por seus atos bárbaros, “frustrou grande parte das esperanças a respeito do julgamento, no entanto o falecimento no cárcere” do responsável pelos maiores genocídios na Europa depois da Segunda Guerra Mundial “pode ainda ser visto como um exemplo e uma advertência, para os governantes de todo o mundo, de que não estarão fora do alcance da justiça internacional”.[22]

Além de Slobodan Milosevic, o Tribunal julgou Ratko Mladic e Radovan Karadzic (esses dois últimos acusados de genocídio no cerco de Sarajevo e de realizar o massacre de 8.000 homens e meninos na cidade bósnia de Srebrenica, em julho de 1995), respectivamente o antigo Presidente da República Socialista da Sérvia e Presidente da República Federativa da Iugoslávia entre 1997 e 2000; Chefe do Exército servo-bósnio da República Srpska; e o Presidente da República Srpska.

Radovan Karadzic foi condenado a 40 anos de reclusão, enquanto Ratko Mladic teve seu veredicto final em novembro de 2017, com a condenação à prisão perpétua.

No total, 161 pessoas foram presas e julgadas, dos quais cerca de 77% era de etnia sérvia. Desses 161, 18 indivíduos foram absolvidos, 80 sentenciados, 13 tiveram seus casos transferidos para outro país (Croácia, Bósnia ou Sérvia), 36 procedimentos terminaram (seja devido às acusações terem sido retiradas ou pela morte dos acusados durante o processo) e, quando da elaboração deste artigo, 12 ainda estavam em desenvolvimento.[23]

De acordo com o relatório da OTAN em 2006, de modo geral a experiência do Tribunal foi bastante positiva:

Criou um precedente na justiça penal internacional e lançou as bases para a criação posterior do Tribunal Penal Internacional. Ele acusou um chefe de Estado em exercício, Slobodan Milosevic, pela primeira vez. Tem contribuído para o desenvolvimento do direito internacional humanitário e definiu os seus conceitos-chave: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Ele lançou luz sobre alguns dos episódios mais negros na história recente da Europa e tem dado às vítimas uma voz. Por fim, tem contribuído, direta e indiretamente, para o reforço do Estado de direito e do sistema legal nos países dos Bálcãs.[24]

Em que pesem as críticas, via de regra, a experiênca angariada com o Tribunal Penal Internacional para a ex Iugoslávia foi extremamente proveitosa, haja vista que ao mesmo tempo em que respondeu com a devida punição os agentes responsáveis pelos atos monstruosos praticados durante a Guerra Civil da Iugoslávia, desencorajara a prática de atrocidades semelhantes às que escreveram com poças de sangue as páginas da História recente do território dos Bálcãs.

Nesse sentido, pertinente a concepção de Natasha Zupan (apud CARNEIRO, 2016, p. 50), para quem o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia é concebido como

Um dos mecanismos-chave – se não o mecanismo-chave– de justiça de transição desenvolvido pela comunidade internacional. O Tribunal tem objetivos de longo-alcance, que incluem [trazer] pessoas responsáveis por sérias violações da lei humanitária internacional no território da antiga Iugoslávia desde 1º de janeiro de 1991 à justiça; [prover] justiça às vítimas; [coibir] futuros crimes; e [contribuir] para a restauração da paz ao promover a reconciliação na antiga Iugoslávia.


6 Conclusão

Um dos maiores dramas da Europa Oriental no final do século XX teve como palco a Iugoslávia.

As guerras da Iugoslávia, ocorridas entre 1991 e 1999, compreendem a Guerra de Independência Eslovena (1991), a Guerra de Independência da Croácia (1991-1995), a Guerra da Bósnia (1992-1995) e a Guerra do Kosovo (1996-1999), e são consideradas os conflitos mais violentos que assolaram o território europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Nada obstante a Iugoslávia se encontrasse oficialmente unificada, sob a estigma da “montagem” de um país regido por uma ditadura severa e opressora, o fato é que as pessoas não estavam unidas como uma nação, devido à diversidade étnica e social existente. Nesse sentido o posicionamento de Paulo (2012):

Devido à variedade étnica, a unificação impediu que o sentimento de nação se desenvolvesse pelo território iugoslavo, ocasionando inúmeras divergências tanto no campo social quanto no político.

A existência desse caldeirão de etnias transformava em uma “colcha de retalhos” o território iugoslavo. Motivo pelo qual é forçoso concluir que a Iugoslávia só existiu por conveniência, tratou-se, pois, de uma construção ideológica meramente para fins políticos. Destarte, a República Federal Socialista da Iugoslávia foi constituída e preservada unicamente enquanto foi possível tirar poveito dela, tornando-se um estorvo quando não mais se adequou aos propósitos para os quais fora criada, isto é, quando a secessão se tornou a única alternativa às províncias e Estados que a compunham.

A menina Zlata Filipovic (apud MATHIAS; AGUILAR, 2012, p. 448), habitante de Sarajevo quando a guerra começou, com muita propriedade, apresentou em seu livro sua visão da guerra:

O tempo inteiro tento entender essa sacanagem que é a política. [...] Tenho a impressão de que política quer dizer sérvios, croatas, muçulmanos. Homens. Que são todos os mesmos. Que se parecem todos. Que não têm diferenças [...] Entre meus colegas, entre nossos amigos, em nossa família, há sérvios, croatas, muçulmanos. O resultado é um grupo muito variado de pessoas e eu jamais soube quem era sérvio, quem era croata, quem era muçulmano. Hoje a política enfiou o nariz na estória toda. Marcou os sérvios com um S, os muçulmanos com um M e os croatas com um C. A política quer separá-los. E para escrever estas letras ela usou o pior, o mais negro dos lápis. O lápis da guerra, que só sabe escrever duas palavras: infelicidade e morte.

Talvez por isso, ainda hoje, as feridas não cicatrizaram por completo. As cenas aterrorizantes da guerra ainda estão muito vivas na memória de quem assistiu a essa barbárie. Sobre o período da guerra, há os que aconselham: “O melhor é esquecer”. No entanto, nem todos conseguem. E alguns simplesmente não querem.

Nessa toada, Tito buscou uma irmandade e unidade entre os eslavos, porém não conseguiu estruturá-la devido às feridas existentes ainda não cicatrizadas.

Por outro lado, segundo já exposto anteriormente, as guerras que ocorreram na Iugoslávia não se trataram de conflitos entre grupos étnicos, mas sim de uma guerra multi-étnica que se disputou, também, através dos corpos, lançando-se mão da violência sexual. Assim, os estupros eram sistemáticos e buscavam a chamada “limpeza étnica”.

Como se vê, cometer crimes internacionais requer não só generalização e sistematização, mas também que o mundo inteiro olhe e não faça nada. Começar a agir desde já é de fundamental importância para que um dia haja justiça contra os mais terríveis e asquerosos crimes já praticados contra a humanidade. Portanto, a experiência angariada com o Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia foi amplamente válida e aceita.

De fato, deve-se tentar. Tentar e se tentarmos juntos e por muito tempo esse dia chegará. Porventura crer em tal seria utopia? Que seja. Já dizia Eduardo Galeano que a utopia, conquanto nunca seja alcançada, possui exatamente essa finalidade: fazer com que não deixemos de caminhar.


7 Referências

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PAULO, Guilherme Barbon. A guerra civil na ex-Iugoslávia e a evolução do Tribunal Penal Internacional. In: Conteúdo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.40981&seo=1>. Acesso em: 05 ago. 2017, 18:18.

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Notas

[2] O pós-guerra fez o Marechal Tito ser aclamado como grande vitorioso após resistir à investida alemã, sendo então alçado pela população à categoria de líder da Iugoslávia.

[3]  LOCH, 2015.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] GUERRA..., [20--].

[7] PAULO, 2012.

[8] LOCH, op. cit..

[9] Ibid.

[10] LOCH, op. cit..

[11] TURCI, 2008.

[12] Ibid.

[13] GUERRA..., op. cit..

[14] Ibid.

[15] TURCI, op. cit..

[16] Ibid.

[17] Ibid.

[18] CARNEIRO, 2016.

[19] TIVERON, 2005.

[20] Sua competência e idoneidade também foram discutidas, devido ao Tribunal estar estabelecido em Haia, nos Países Baixos, e não estar presente no local dos acontecimentos e por ele ser ponto de influência das potências ocidentais que poderiam se utilizar de meios políticos nos julgamentos dos acusados. (PAULO, op. cit.)

[21] FURTADO, 2013.

[22] Ibid.

[23] Ibid.

[24] Ibid.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Rosemary Gonçalves Martins. O caso da Guerra Civil da antiga Iugoslávia e a Implantação do Tribunal Penal Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6096, 10 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79641. Acesso em: 19 abr. 2024.