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Responsabilidade civil objetiva.

Alcance do disposto no parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil

Responsabilidade civil objetiva. Alcance do disposto no parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil

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Uma atividade lícita, mas potencialmente perigosa, causando dano, pode resultar em responsabilidade mesmo que o agente tenha operado sem culpa.

Resumo: Trata-se de pesquisa doutrinária e jurisprudencial acerca da evolução da responsabilidade civil no Brasil, sintetizando as principais teses sobre a matéria, bem como posições da jurisprudência, visando a demonstrar, ante a nova legislação civil, as tendências para o futuro quanto à responsabilidade sem culpa prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. O fato, e não a culpa, torna-se a cada dia um elemento mais importante para que surja o dever de reparar o dano causado, o que implica radical evolução a respeito da responsabilidade civil. Essa mudança significa que uma atividade lícita, mas potencialmente perigosa, causando dano, pode resultar em responsabilidade mesmo que o agente tenha operado sem culpa. Almeja-se, mediante o presente estudo, identificar hipóteses de atividades submetidas, pela jurisprudência recente, à Teoria do Risco, – ou identificadas como tal pela Doutrina – e que, por sua periculosidade, embora legítimas, tragam em si riscos próprios, ocasionando danos com freqüência, podendo vir a ser enquadradas no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil Brasileiro em vigor, a fim de avaliar as tendências de aplicabilidade e alcance desse dispositivo.

Palavras-chave: Código Civil Brasileiro. Jurisprudência. Tendências. Responsabilidade objetiva. Risco da Atividade. Teoria do Risco.


Introdução

O atual Código Civil Brasileiro, em seu art. 927, parágrafo único, estabelece que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, ou seja, adota critérios de responsabilidade objetiva no âmbito do direito privado.

Isso impõe seu estudo e questionamento, principalmente no que diz respeito à interpretação da intenção do legislador, buscando estudar o alcance da norma em tela, já que sua aplicação importa significativo aumento na probabilidade de responsabilização na medida em que, a partir de agora, em certas espécies de atividade, estar-se-á sujeito a indenizar por dano ainda que se tenha agido sem culpa, o que recomendaria a adoção de maior cautela por parte das pessoas ou empresas que atuem em atividade considerada perigosa.

Tal matéria, submetida aos tribunais, tem sido objeto de entendimento jurisprudencial que, em casos restritos – e ante a dificuldade de a vítima efetuar a prova da culpa – utiliza a teoria do risco como forma de distribuir justiça, o que, doravante, passará a ter maior aplicabilidade como conseqüência da nova regra legal dispondo expressamente sobre a questão.

A responsabilidade civil extracontratual, sob o prisma da teoria clássica, decorre da existência do ato ilícito, da culpa, do dano e do nexo causal, que devem ser provados pela vítima. A teoria da culpa presumida inverteu o ônus da prova, de modo que não mais a vítima teria que comprovar a culpa do agente causador do dano, mas este teria de provar que agiu sem culpa. Já a teoria da responsabilidade objetiva, agora adotada em certos casos, não mais se baseia na culpa, mas meramente na demonstração da existência de nexo causal entre o dano e o agente que praticou a conduta lesiva.

Ocorre que, apesar de utilizar-se dos conceitos de responsabilidade objetiva, o Código não especificou quais são as atividades sujeitas a essa forma de responsabilização, atribuindo tal qualidade àquelas que, por sua natureza, impliquem risco ao direito de outrem. Esse critério de responsabilização, conseqüência do foco constitucional centrado na dignidade da pessoa humana, impõe a necessidade de análise da matéria a fim de identificar atividades que possuem natureza periculosa e que, agora, subsumem-se à égide da nova legislação.

Este é o objeto do presente estudo.


1. revisão de literatura

A vida em sociedade impõe regras de conduta aos seres humanos. No convívio diário, nas relações sociais, no exercício das atividades profissionais, no desempenho e execução do trabalho, na mercancia, enfim, em toda e qualquer forma de relacionamento, as pessoas estão constantemente sujeitas a cometer ou sofrer ações potencialmente danosas. Não por outra razão, os sistemas jurídicos prevêem formas de reparação a serem empreendidas pelo causador do dano em favor daquele que foi lesado.

O Código Civil Brasileiro atual, Lei nº 10.406, de 2002, a exemplo do código revogado, adota como regra geral a responsabilidade com culpa. Segundo a visão tradicional, o dever de indenizar, quando extracontratual, [01] guarda relação com a conduta culposa do agente. Tal modalidade denominada comumente de teoria subjetiva, ou da responsabilidade civil subjetiva, funda-se basicamente no elemento culpa, provada ou presumida, como pressuposto do dever de indenizar, e é largamente utilizada nos sistemas jurídicos em geral. Todavia, a evolução da humanidade, tanto no aspecto dos meios de produção, quanto na busca pela justiça social, produziu inovações no campo jurídico, culminado em novas formas de enfrentar a questão da responsabilidade civil.

A doutrina e a jurisprudência contribuíram significativamente na modificação das normas legislativas, alargando pouco a pouco o campo de aplicação de novas teorias acerca da responsabilidade civil, que, da indispensabilidade de existência de dolo ou de culpa grave, passou paulatinamente a admitir a responsabilização independentemente da existência de culpa, conforme consignada atualmente no Código Civil, a exemplo do parágrafo único do artigo 927, cuja análise é objeto do presente estudo.

Indubitavelmente o Direito está em constante evolução e o conteúdo do dispositivo que ora se investiga já foi mera teoria, tese doutrinária, entendimento jurisprudencial, para, agora, ser analisado como figura do direito civil positivado, de tal modo que se migra de uma "corrente de entendimento", cuja aplicação seria facultativa, para uma regra legal de aplicação geral e obrigatória cuja incidência gera importantes reflexos em diversos setores da economia.

1.1.responsabilidade civil no código de 1916

Washington de Barros Monteiro (1975, p. 386) aponta três aspectos essenciais à responsabilização civil. Os pontos ressaltados por Monteiro são: "a) a existência de um dano contra o direito; b) a relação de causalidade entre esse dano e o fato imputável ao agente; c) culpa deste, isto é, que o mesmo tenha obrado com dolo ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia)".

Fundando-se nos ensinamentos propostos por René Savatier, Sílvio Rodrigues (1975, p. 4), afirma que responsabilidade civil é "a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam".

Acerca dos requisitos inerentes à responsabilização, decifrando o art. 159 do Código Civil Brasileiro de 1916, distingue, o referido autor, quatro pontos, a saber: "a) ação ou omissão do agente; b) culpa do agente; c) relação de causalidade; d) dano experimentado pela vítima". (ibid., p. 14)

Quanto à culpabilidade do agente, assevera que "nos termos da lei, para que a responsabilidade se caracterize, mister se faz a prova de que o comportamento do agente causador do dano tenha sido doloso ou pelo menos culposo". (RODRIGUES, 1975, p. 16)

Rodrigues (ibid., p. 155) conclui que o Código Civil Brasileiro de 1916 "assenta-se na idéia de culpa, pondo ênfase em que a obrigação de reparar o dano causado depende de uma atividade voluntária do agente, de sua imprudência ou negligência", porém, esclarece que, a despeito de a regra geral exigir a presença do requisito culpa, o Código Civil Brasileiro de 1916 admitia, em certos casos, hipóteses excepcionais de responsabilidade civil com base na presunção de culpa, ou mesmo sem culpa, apontando, a propósito, análise empreendida ao então projeto do novo código civil brasileiro, de 1972, cujo teor incluía tal modalidade.

Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 568) analisa a responsabilidade civil utilizando-se do conceito legal estabelecido no art 159 do Código Civil Brasileiro de 1916, que a define como "a obrigação de reparar o dano, imposta a todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem".

Para o referido autor, tal conceito comporta três requisitos fundamentais, quais sejam: 1) a existência de uma conduta contrária ao direito, tanto comissiva quanto omissiva, independentemente da intenção do agente de causar dano; 2) existência de dano, material ou não, patrimonial ou não; 3) relação de causa-e-efeito entre a conduta antijurídica e o dano. Essa seria a responsabilidade por fato próprio, idéia originária acerca da responsabilidade civil. Observe-se que Caio Mario (ibid., p. 570) não insere explicitamente a culpa como ponto fundamental da responsabilidade civil, pois ao tempo em que a reconhece ínsita ao ato ilícito, desde logo a considera "insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente", justificando, com base nisso, o surgimento da teoria da responsabilidade objetiva.

João Manuel de Carvalho Santos (1986, p. 318), forte na lição de Pontes de Miranda, divide em quatro os requisitos da responsabilidade civil por ato ilícito: "a) um ato ou omissão; b) imputável ao réu, salvo casos excepcionais de reparação sem imputabilidade; c) danosos, por perda ou privação de ganho; d) ilícito".

A imputabilidade pode ser considerada um dos elementos constitutivos da culpa (ALONSO, 2000) e consiste no fato de que "a obrigação de reparar o dano causado só existirá quando o ato for perpetrado por pessoa a quem se possa atribuir a livre determinação de sua vontade ou a liberdade de querer" (CARVALHO SANTOS, 1986, p. 318), ou seja, "aquele que não pode querer e entender, não incorre em culpa e, ipso facto, não pratica ato ilícito". (GONÇALVES, 1994, p.10)

Convém ressaltar que, no Código Civil de 1916, a imputabilidade é regra, sendo afastada em certos casos como menoridade, demência, consentimento da vítima, exercício normal de direito, legítima defesa e estado de necessidade, hipóteses em que não subsiste a responsabilidade. (ALONSO, 2000)

Para Carvalho Santos (1986), a imputabilidade não basta para que haja responsabilidade civil. É necessário que o fato seja culposo [02], isto é, contrário ao Direito.

O nosso legislador, não se afastando da doutrina tradicional, conserva a responsabilidade civil com fundamento na culpa, provada ou presumida, não acolhendo a nova teoria da responsabilidade sem culpa, tal como a querem UNGER e outros juristas de não menor porte. [...] Determinando o Código que quem violar o direito, ou causar prejuízo a outrem, ainda que por imprudência ou negligência fica obrigado a reparar o dano, deixa esboçados os lineamentos geras da doutrina a aplicar. E o juiz, em seu prudente arbítrio, verificará em cada caso até onde vai a culpa do agente e quando esta desaparece para os efeitos da responsabilidade civil, confundindo-se com o caso fortuito ou a força maior. O certo é que nosso Direito não admite a responsabilidade puramente objetiva, resultando do mero fato danoso. (CARVALHO SANTOS, 1986, p. 321)

Como visto, na doutrina clássica sobre a responsabilidade civil existem algumas condições essenciais para a responsabilização pelo ato ilícito, tradicionalmente reconhecidas e aceitas, consubstanciada na existência de culpa como pressuposto indispensável ao dever de indenizar. Tal linha de pensamento é consensualmente denominada de teoria subjetiva.

1.2.Críticas à teoria subjetiva da responsabilidade civil

De há muito tempo, críticas têm sido tecidas contra o regime da teoria subjetiva, cuja aplicação não permite, em certos casos, a adequada prestação da justiça. Juristas de renome reuniram inúmeras razões a justificar a insuficiência do critério clássico (teoria subjetiva) de responsabilização civil, dando lugar a outras formas de enfrentar a questão da reparação de danos. Tais críticas abriram caminho às exceções previstas já no código civil revogado, bem como hipóteses vislumbradas na legislação esparsa, que adotam outras modalidades de responsabilização, as quais afastam a necessidade de comprovação de culpa como requisito para obter-se a reparação civil de danos.

Washington de Barros Monteiro (1975) cita três pontos levantados pela doutrina que, à época em que empreendeu tal estudo, demonstravam as tendências de então. [03] São elas: a imprecisão na conceituação do que seja efetivamente culpa; a existência de normas que admitem a responsabilidade sem culpa, a exemplo da Lei n.º 5.316/67 e do art. 1208 do Código Civil de 1916; e, por fim, a excessiva valorização do individualismo jurídico, a representar fonte de injustiças perpetradas pelo sistema da responsabilidade subjetiva.

Silvio Rodrigues (1975, p. 155) aponta os avanços industriais e tecnológicos, a exemplo de maquinismo e automóveis, bem como o crescimento populacional, como fatores que contribuíram para o aumento progressivo no número de acidentes de trânsito e de trabalho, dentre outros fatos danosos que implicam diminuição da segurança da população em geral. Indica como solução ideal para resolver tal problema, a difusão de seguro de forma absoluta, mas reconhece que tal modalidade seria de difícil implementação prática em nosso país (ao menos naquele momento). Isso fez com que a jurisprudência e a doutrina – a fim de impedir que muitas vítimas, ante a impossibilidade de desincumbir-se do ônus da prova, em muitos casos permanecessem sem ressarcimento – buscassem a construção de novas fórmulas jurídicas capazes de propiciar a reparação independentemente de prova da culpa, o que se deu, "inclusive pela preconizada adoção da teoria do risco".

Nessa linha, Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 570) adverte que "a jurisprudência, em todos os países, tem alargado a idéia de culpa, e estendido o princípio da responsabilidade civil, onde não se pode encontrá-la em sentido estrito". Esclarece, o jurista, que os tribunais passaram a privilegiar a vítima, adotando o que se convencionou denominar de culpa presumida, ressaltando, a propósito, a existência de casos em que o dever de indenizar foi reconhecido ainda que a conduta não tivesse caráter de antijuridicidade, é dizer, a responsabilidade passava a ser declarada com base no dever geral não prejudicar.

No exato dizer de Caio Mário (1974), lastreado nas lições de Ruggiero, Maroi, Coli e Capitant, a questão foi assim explicitada:

O fundamento ético da doutrina está na caracterização da injustiça intrínseca, que encontra os seus extremos definidores em face da diminuição de um patrimônio pelo fato do titular de outro patrimônio. Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se o da vítima ou do causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque dos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto que o segundo estava em condições de retirar um proveito, sacar uma utilidade, ou auferir um benefício da atividade que originou o prejuízo. (PEREIRA, 1974, p. 570).

O sistema de responsabilização fundado na noção de culpa como elemento básico da responsabilidade, por ser hipossuficiente para responder aos anseios de justiça social, atraiu críticas importantes da doutrina e jurisprudência, especialmente com o incremento da atividade industrial e surgimento de novas tecnologias. Tais manifestações provocaram a expansão do uso da teoria do risco como remédio para a injustiça, de modo a permitir que o agente que, por intermédio de sua conduta, tivesse criado o risco de produzir dano, devesse de repará-lo, mesmo que não houvesse a presença de culpa.

1.3.Evolução para A responsabilidade Objetiva através da Teoria do Risco

A ocorrência de uma espécie de "transição" no pensamento jurídico culminou, segundo Caio Mário (1974, p. 570-571), para a tese da responsabilidade objetiva, que não exclui, mas convive com a teoria subjetiva, porque "a culpa, como fundamento da responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente. [...] O fundamento da teoria [objetiva] é mais humano do que o da culpa [...pois...] reparte, com maior eqüidade, os efeitos dos danos sofridos".

Observa-se que passou a existir um relativo consenso na doutrina sobre não ser razoável admitir a diminuição patrimonial de uma pessoa pelos atos de outra, pois disto resultaria verdadeira injustiça, tendo-se adotado com o decorrer do tempo algo que Rodrigues (1975) define como paliativos à teoria da culpa, soluções que, segundo ele, seriam menos severas do que aquelas decorrentes da teoria do risco criado. Os paliativos à teoria da culpa são assim exemplificados pelo citado autor: facilitação na prova da culpa; equivalência entre exercício abusivo de direito e ato ilícito; reconhecimento de presunções de culpa; incremento nas hipóteses de responsabilização decorrente do contrato; utilização da teoria do risco em certos casos.

Nessa mesma linha, Carlos Roberto Gonçalves (1994; 2003), ao analisar a evolução do pensamento jurídico acerca da responsabilidade civil, menciona cinco estágios que podem assim ser resumidos: facilitação à prova da culpa por parte da vítima, através de abrandamento do entendimento jurisprudencial; utilização da teoria do abuso de direito como forma de responsabilizar aqueles que, por seu agir, causavam lesão a terceiros em detrimento da finalidade social do direito; utilização da presunção de culpa, que representa, na prática, uma inversão do ônus da prova em favor da vítima, de tal maneira que a esta bastaria provar a ocorrência do dano e o nexo da causalidade, cabendo à parte contrária demonstrar a existência de excludentes; ampliação dos casos de responsabilidade contratual, o que implica vantagem às vitimas; e, finalmente, adoção da teoria do risco, que dispensa totalmente a verificação de culpa, bastando apenas a demonstração da existência de nexo de causalidade entre a conduta e o dano.

Fernando Noronha (2003, p. 434) afirma que a solução para os problemas oriundos da responsabilidade civil encontra-se na resposta "à indagação dos casos em que as pessoas lesadas podem exigir de outra pessoa a reparação dos danos que tiverem sofrido, atribuindo essa obrigação a tal pessoa". A resposta que ele mesmo aponta estaria na investigação dos dois princípios em parte antagônicos, quais sejam: o princípio da culpa e o do risco.

O princípio da culpa seria aquele de acordo com o qual "só deveria haver obrigação de reparar danos verificados na pessoa ou em bens alheios quando o agente causador tivesse procedido de forma censurável, isto é, quando fosse exigível dele um comportamento diverso". (2003, p. 434)

Quanto ao princípio do risco, conclui Noronha (ibid, p. 435) que, "ninguém poderia ser obrigado a suportar danos incidentes sobre a sua pessoa ou sobre o seu patrimônio, desde que tivessem sido causados por outrem, ainda que sem qualquer culpa, ou desde que, em casos especiais, tivessem simplesmente acontecido em conexão com certas atividades desenvolvidas por outra pessoa", de modo que, pela teoria do risco, segundo esse autor, a ênfase é posta na atividade desenvolvida privilegiando o valor da segurança jurídica.

Verifica-se, então, o progresso da teoria subjetiva – na qual o ato ilícito (do qual a culpa é imanente), somado à ocorrência de dano a terceiro e existência de relação de causalidade entre ambos são os requisitos para que haja responsabilização –, para a responsabilidade objetiva com base na teoria do risco da atividade.

1.4.A teoria do risco no direito brasileiro anterior ao atual código civil

Como visto, quando a responsabilidade de reparar advém exclusivamente do fato de o dano ter sido conseqüência de uma atividade potencialmente lesiva de alguém, tem-se a teoria do risco. Em outras palavras, "a responsabilidade desloca-se da noção de culpa para a idéia de risco" (GONÇALVES, 2003, p. 309).

Sergio Cavalieri Filho (2002, p. 166) define risco como sendo perigo, probabilidade de dano, de tal modo que quem atue num ramo considerado perigoso deve assumir os riscos de reparar eventuais danos decorrentes de sua atividade, é dizer, "todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano".

Tal teoria, como era de se esperar, recebeu, e ainda recebe, críticas da doutrina. Não obstante, ainda que em caráter excepcional, foi admitida no sistema jurídico brasileiro, inicialmente em casos raros, para, aos poucos, ir se alastrando.

De fato, há algum tempo eram poucas as hipóteses de responsabilidade civil baseadas na teoria do risco admitidas pela legislação brasileira. De acordo com Sílvio Rodrigues (1975, p. 162), a mais antiga, prevista no art. 26 da Lei n.º 2.681/1912, atribuía às operadoras do transporte ferroviário a responsabilidade quanto aos danos causados aos proprietários existentes às margens das estradas de ferro. Outra hipótese, prevista no Decreto n.º 24.687 - Lei de Acidentes do Trabalho, de 1934, que imputava ao empregador a responsabilidade objetiva "pelo dano experimentado por seu operário e derivado de lesões corporais de que lhe resultasse morte ou ferimento", só podia ser afastada em caso de dolo comprovado do empregado, conforme alteração promovida pelo Decreto-lei n.º 7.036/44.

Neste ponto, Caio Mário da Silva Pereira (1975) e Sergio Cavalieri Filho (2002), na mesma linha, também mencionam a legislação relativa aos acidentes de trabalho como exemplo típico de responsabilidade extracontratual objetiva admitido pela legislação pátria. A propósito, Cavalieri (2002, p.165) afirma que "foi no campo dos acidentes de trabalho que a noção de culpa, como fundamento da responsabilidade, revelou-se primeiramente insuficiente".

A terceira hipótese legal de responsabilização sem indagação de culpa, existente no direito pátrio na década de 70, estava prevista no Código Brasileiro do Ar de 1938 (Decreto n.º 483), o qual estabelecia "a responsabilidade objetiva do proprietário das aeronaves por danos causados em terra, por coisas que delas caíssem, bem como por danos derivados de manobras das aeronaves em terra" (RODRIGUES, 1975, p. 163), ressalvando que existia atenuação legal e até previsão de exclusão do dever de indenizar em caso de culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Tal regra permaneceu no Decreto-lei n.º 32/66 e Decreto-lei n.º 234/67, que posteriormente passaram a regular a matéria. Carlos Roberto Gonçalves (2003, pp. 311-312) cita os mesmos dispositivos apontados por Rodrigues e acrescenta a Lei n.º 6.453/77 (acidentes nucleares) e Lei n.º 6.938/81 (danos ao meio ambiente), citando ainda os artigos 1528 e 1529 do Código Civil revogado.

Carlos Alberto Bittar (2001) acrescenta a exploração de minérios (Código de Minas, Decreto-Lei n.º 1.985/40 e Decreto-Lei n.º 318/67) e as leis sobre comunicações (Direitos Autorais, Lei n.º 9.610/98; Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei n.º 4.117/62 e Decreto-Lei 236/67e Lei de Imprensa n.º 5.250/67).

O Anteprojeto de Código Civil, de 1972, bem como suas diversas redações posteriores, que culminou na Lei n.º 10.406/2002, previa a semente da responsabilidade civil objetiva com aplicação, de modo genérico, da teoria do risco no âmbito civil, conforme dispunha o parágrafo único do art. 986, litteris:

Art. 986 – [...]

Parágrafo único. Todavia haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas. (in RODRIGUES, 1975, p. 164)

Para Sílvio Rodrigues (1975, p. 165), tal hipótese era a materialização direta da teoria do risco, alegando, no entanto, que "o texto é justificadamente tímido, pois a responsabilidade só emergirá se o risco criado for grande e não houver o agente causador do dano tomado medidas tecnicamente adequadas para preveni-lo". Esse autor adverte que o projeto permitia grande flexibilidade de interpretação ao juiz, mas que tal abertura não deveria causar preocupação com arbitrariedade judicial, tendo em conta a existência do duplo grau de jurisdição e do recurso extraordinário, para concluir que "o preceito do Anteprojeto representa um passo à frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade" (ibid., p. 166).

Mais recentemente, o reconhecimento da condição de inferioridade jurídica do consumidor, quando comparado aos fornecedores de produtos e serviços, e a massificação dos contratos, fizeram com que a teoria do risco encontrasse terra fértil nesse campo, de tal modo que o Código de Defesa do Consumidor atribui aos fornecedores de produtos e serviços a responsabilidade objetiva por danos causados aos consumidores.

1.5.As modalidades do risco

Para que se possa avaliar adequadamente a teoria da responsabilidade objetiva decorrente da atividade de risco, entendido este como perigo ou probabilidade de dano decorrente de uma determinada atividade, faz-se necessário identificar as modalidades em que o risco se desdobra.

A doutrina, correntemente, costuma desmembrar o risco em várias modalidades. Noronha (2003) afirma serem, essencialmente, três os riscos de atividade abrangidos pela responsabilidade objetiva inserta no parágrafo único do artigo 927 do CCB, nominando-os em risco de empresa, risco administrativo e risco-perigo, assim sintetizados pelo referido autor:

Quem exerce profissionalmente uma atividade econômica, organizada para a produção ou distribuição de bens e serviços, deve arcar com todos os ônus resultantes de qualquer evento danoso inerente ao processo produtivo ou distributivo, inclusive os danos causados por empregados e prepostos; que a pessoa jurídica pública responsável, na prossecução do bem comum, por uma certa atividade, deve assumir a obrigação de indenizar particulares que porventura venham a ser lesados, para que os danos sofridos por estes sejam redistribuídos pela coletividade beneficiada; que quem se beneficia com uma atividade lícita e que seja potencialmente perigosa (para outra pessoas ou para o meio ambiente), deve arcar com eventuais conseqüências danosas. Na evolução do direito da responsabilidade civil, a idéia do risco-perigo precedeu as do risco de empresa e administrativo, mas, com o desenvolvimento destas, passou a assumir um papel meramente complementar delas. (NORONHA, 2003, p. 486)

Cavalieri (2002), por sua vez, resume em: risco-proveito; risco profissional; risco excepcional; risco integral e risco criado, os quais passamos a analisar.

1.5.1.Teoria do risco-proveito

A responsabilidade teria uma relação direta com o proveito decorrente da atividade realizada, de tal modo que o responsável seria aquele que obtivesse os frutos gerados pela atividade que provocou o dano, é dizer, "onde está o ganho, aí reside o encargo – ubi emolumentum, ibi onus" (CAVALIERI FILHO, 2002, p. 167). Diz o referido autor que tal linha de pensamento encontra críticas pela dificuldade de definir-se o que seja proveito, especialmente porque, se vinculado proveito ao fator lucro ou vantagem econômica, haveria exclusão de responsabilização de todos aqueles que não fossem industriais ou comerciantes. Por outro lado, se mantido à vítima o ônus de provar a existência de proveito, teríamos um retorno ao sistema subjetivo, com todas as dificuldades a ele inerentes, não resultando, portanto, tal concepção, em real evolução.

1.5.2.O risco profissional

"A teoria do risco profissional cuida do risco pertinente à atividade laboral na relação jurídica de vínculo empregatício que se forma entre o empregador e o empregado" (ALONSO, 2000, p. 61).

Tal modalidade, segundo Cavalieiri (2002), pretende justificar o dever atribuído ao empregador de reparar, independentemente de culpa, os danos sofridos pelo empregado no desempenho do trabalho, que, não fosse assim, quase sempre permanecia sem indenização, por conta das dificuldades para realizar provas acerca da culpa de seu patrão, comumente enfrentadas nas ações acidentárias antes do advento das teorias objetivas. Observe-se que Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 310), em leve desacordo com o pensamento de Cavalieri, aponta como exemplo de risco profissional a atividade "desempenhada pelos bancos, nas suas relações com os clientes".

1.5.3.O risco excepcional

A teoria do risco excepcional reconhece certas atividades, como, por exemplo, relacionadas à energia nuclear ou manipulação de materiais radioativos, ou, ainda, redes de energia elétrica de alta tensão, como extremamente perigosas para a coletividade, de tal modo que, em caso de eventual dano, o dever de reparação surge independentemente da qualquer indagação acerca da existência de culpa.

1.5.4.Teoria do risco integral

Colocada no limiar do razoável, e aceita em casos excepcionalíssimos, a teoria do risco integral atribui a obrigação de indenizar pelo simples fato de ocorrência do dano, independentemente da existência de qualquer outro fator, como culpa ou nexo de causalidade. Nessa condição, a responsabilidade pela indenização permanece mesmo ante a existência de "culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior". (CAVALIERI, 2002, p. 169)

Acerca dessa questão, Paulo Sérgio Gomes Alonso (2000, p. 57) alerta, lembrando Alvino Lima, que "a teoria do risco integral é taxada, por aqueles que defendem a responsabilidade subjetiva, de brutal, levando a conseqüências iníquas".

1.5.5.O risco criado

"Se alguém põe em funcionamento uma lícita atividade perigosa, responderá pelos danos causados a terceiros, em decorrência dessa atividade, independentemente da comprovação de sua culpa". (ALONSO, 2000, p. 66)

Pode-se dizer que a teoria do risco criado atribui a responsabilidade decorrente do fato de alguém sofrer dano decorrente de atividade de outrem, sem que se necessite perquirir acerca de que o dano tenha se originado por negligência, imprudência ou imperícia, e sem que haja necessidade de que de tal atividade resulte algum proveito para aquele que criou o perigo. Observe-se que, desse modo, resta afastada a dificuldade apontada por Cavalieri acerca da teoria do risco-proveito, cujo ônus pela comprovação da vantagem (econômica ou não) auferida pelo causador do dano seria causa dificuldades para a vítima e, de certo modo, um retrocesso à teoria subjetiva.

1.6.Críticas à teoria da responsabilidade civil objetiva

Já em 1974, advertia Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 572) que "a teoria do risco ou da responsabilidade objetiva não logrou aceitação legal, e na atualidade encontra a resistência da doutrina, no tocante sua aplicação ampla com que se defendeu o seu préstimo".

De fato, Sergio Cavalieri Filho (2002, p. 169) refere existirem críticas ferozes dos adeptos das correntes subjetivistas contra as teorias de responsabilização objetiva. Para uns, "a demasiada atenção à vitima acaba por negar o princípio da justiça social, impondo cegamente o dever de reparar [...] o risco, por si só, não basta para ensejar o dever de indenizar, porque risco é perigo, é mera probabilidade de dano. Ninguém viola dever jurídico simplesmente porque exerce uma atividade perigosa, muitas vezes até socialmente necessária".

Segundo Cavalieri (2002), uma das críticas mais contundentes às teorias objetivas reside no fato de, sob seus auspícios, não se distinguir entre comportamentos lícitos e ilícitos do agente, o que, pode-se perceber a injustiça, lança na vala comum pessoas com comportamentos absolutamente diferentes.

Não obstante, Fernando Noronha (2003, p. 436) enfatiza que "cada pessoa tem uma esfera jurídica que, precisamente porque é jurídica, deve ser tutelada; por isso, todos nós temos o direito de não ser afetados por atuações de outras pessoas, ainda quando estas procedam com todas as cautelas exigíveis. Os riscos de cada atividade devem ficar com a pessoa que a realiza".

Existe consenso de que a teoria da culpa, em nosso direito, continua a ser fundamental na definição da responsabilidade civil, mas que evoluiu para as novas teorias do risco, que vêm ocupando cada vez mais espaço, culminando, atualmente, num certo ‘equilíbrio’ entre os dois pensamentos.

Ainda prevalece, de um modo geral, o princípio da culpa, mas, tendo em conta a insuficiência desse conceito ante as exigências da sociedade atual, passa-se a considerar cada vez com mais intensidade o fato de que vítimas inocentes não podem ser deixadas ao desamparo diante de prejuízos decorrentes do exercício de certas atividades reconhecidamente perigosas e, por isso mesmo, causadoras de freqüentes danos.

1.7.o parágrafo único do artigo 927 do atual código civil brasileiro

Conforme se depreende da leitura do artigo 927 do Código Civil, abaixo transcrito, há duas hipóteses de reparação independentemente de culpa previstas no parágrafo único do referido dispositivo. A primeira trata das hipóteses previstas em lei, como é o caso, por exemplo, acidentes de trabalho, relações de consumo, Código Brasileiro do Ar, legislação do direito ambiental, atividades nucleares, dentre outros inúmeros casos albergados por legislação específica que, juntamente com as questões de responsabilidade objetiva decorrentes da responsabilidade contratual e da administração pública, identificados, serão postos de lado, pois não estão compreendidos no foco principal do presente estudo.

Efetivamente, é a parte final do citado dispositivo que interessa ao objeto em estudo, qual seja, as atividades de risco que, quando exercidas e uma vez reconhecidas pelo prudente arbítrio do juiz, poderão conduzir ao dever de reparação independente de culpa no caso de produção de algum dano.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Trata-se de hipótese de responsabilidade de cunho objetivo, em que se dispensa a demonstração do elemento culpa, bastando a existência do dano e do nexo causal entre o fato e o dano. Portanto, não há necessidade de se examinar se o ofensor laborou em culpa.

Todavia, nos termos dos princípios que informam o Direito, dentre os quais o da razoabilidade, é preciso ter cautela na interpretação deste dispositivo a fim de evitar exageros capazes de transformar a responsabilidade objetiva, de exceção, à regra.

Para Fernando Noronha (2003) o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil é uma ‘cláusula geral’ de responsabilidade objetiva comum [04].

A propósito, esse autor tece críticas severas ao atual Código, no que toca à responsabilidade civil, afirmando:

[...] temos um Código novo mas que, quanto à responsabilidade civil, nasce velho. Não trouxe regulamentação para algumas situações que eram deixadas ao trabalho criador da jurisprudência (ainda que a lacuna agora seja mais facilmente suprida, com recurso a algumas normas bem amplas que meritoriamente foram incluídas, do tipo geralmente designado por ‘cláusulas gerais’ (e que seriam melhor designadas de normas abertas, elásticas ou flexíveis, por contraposição às normas rígidas tradicionais), das quais é exemplo destacado a do art. 927, parágrafo único, parte final) e, por outro lado, em certas matérias consagra soluções que, se eram as prevalecentes nos tribunais em 1975, foram posteriormente superadas (como é o caso da responsabilidade puramente objetiva dos pais pelos atos danosos de seus filhos, que no final do século XX já era coisa do passado e que agora é de novo imposta, por força dos arts. 932, I e 933). (NORONHA, 2003, p. 549)

Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 313), por sua vez, afirma que tal dispositivo representa "um elogiável avanço em matéria de responsabilidade civil, pois aproxima o nosso Código Civil dos de outros países, que já alcançaram, nesse ponto, estágio superior, como o Código Civil italiano e o Código Civil português".

A relevância da inovação promovida pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil Brasileiro reside no fato de que a responsabilidade objetiva, antes do advento do novo Código Civil, somente ocorria nos casos especificados em legislação especial, o que, agora, já não prevalece, pois "atualmente, mesmo inexistindo lei que regulamente o fato, pode o juiz aplicar o princípio da responsabilidade objetiva [...] quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" (GONÇALVES, 2003, p. 313).

A responsabilidade civil adotada pelo atual Código Civil é, ainda, de cunho subjetivista, pois, em regra, se baseia na culpa do agente, como observado. No entanto, o legislador, atento às lições da doutrina e jurisprudência, afastando-se levemente da teoria subjetiva, introduziu no novo ordenamento a responsabilidade objetiva com base na teoria do risco, com o objetivo de minimizar as injustiças provocadas pelas regras rígidas da teoria da culpa, o que representa algum avanço, sem dúvida.

1.8. atividade de risco, elemento Perigo e interpretação jurisprudencial

De acordo com Alexandre Miguel (2005), as atividades perigosas [05] podem ser identificadas por meio de processos diretos, naturais ou jurídicos, e por exclusão (quando o senso comum facilmente percebe que não se enquadram como não-perigosas). É natural a classificação quando os meios empregados no desempenho da atividade são facilmente identificados como perigosos pelo senso comum (v. g. explosivos, venenos, etc.).

Carlos Alberto Bittar, lembrado por Paulo Sergio Gomes Alonso (2000), para demonstrar tal diferença, exemplifica as indústrias de explosivos, as fábricas de produtos venenosos ou tóxicos, as produtoras de energia elétrica, contrapondo-as às empresas que trabalham com prestação de serviços administrativos, consultorias e outros serviços dessa natureza, cujo desempenho, em princípio, não apresenta risco.

Sustentando-se em conceito apresentado por Carlos Alberto Bittar, Carlos Roberto Gonçalves (2003) considera perigosa aquela atividade que, comparada com outras por intermédio de estatísticas, características técnicas e mesmo pela experiência comum, revela-se potencialmente mais danosa e com maior probabilidade de causar danos. Rui Stoco (2003, p. 812), por sua vez, lembra que o risco criado deve ser "especial e permanente".

Induvidoso que, dentre as atividades desempenhadas pelo homem, umas podem ser consideradas mais perigosas para a saúde, a vida e o patrimônio, que outras. A lei pode qualificar como perigosas determinadas atividades. Entretanto, quando o texto legal não define o que seja atividade perigosa, como sói acontecer com o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, é possível dar-se uma interpretação evolutiva [06] ao dispositivo. Portanto, quem vai dizer quando determinada atividade implica risco para os direitos de outrem é o Judiciário, analisando os diversos casos que lhe forem apresentados. Se o Judiciário entender que se trata de atividade potencialmente perigosa, independentemente da existência de lei especial que assim a considere, poderá aplicar simplesmente o parágrafo único do artigo 927, decidindo que a responsabilidade, no caso sub judice, é objetiva, e impor o dever de indenizar, independentemente de investigação acerca da existência de culpa por parte dos responsáveis pelos danos causados, o que tornará mais justa e equilibrada a relação jurídica entre vítima e agente na medida em que a responsabilidade será analisada tão somente pelo fato (existência do dano) e nexo causal.

A propósito, esclarece Gonçalves (2002, p.50) que, na Itália, segue-se muito o critério estatístico. "Se uma determinada atividade estatisticamente causa danos a muitas pessoas, então ela é considerada uma atividade potencialmente perigosa. Provavelmente, esse critério será adotado também no Brasil".

Nesse contexto, desponta a importância da análise da jurisprudência acerca do assunto, não apenas através do estudo de casos isolados, mas também mediante a investigação estatística dos fatos levados a juízo, pois, a partir do momento em que determinada atividade comece a figurar como fonte de freqüentes disputas judiciais, com significativa ocorrência de prejuízos a terceiros, possivelmente estar-se-á diante de uma atividade de risco. [07]


2.Método da Pesquisa

A pesquisa consiste em investigação do pensamento jurisprudencial recente, a ser executada mediante identificação dos principais acórdãos que versem sobre responsabilidade objetiva e aplicação da teoria do risco no âmbito privado, mediante busca nas bases de dados informatizadas dos tribunais da região sul do Brasil (Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS, Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR) e do Superior Tribunal de Justiça - STJ, disponíveis para consulta através da rede mundial de computadores – Internet.

A seleção dos julgados deu-se através do uso de "palavras-chave" inseridas nas páginas de consulta eletrônica dos tribunais pesquisados, utilizando-se os seguintes verbetes na busca: "responsabilidade civil", "teoria do risco", "risco da atividade" e "parágrafo único artigo 927", excluídos os acórdãos que envolvessem questões tributárias [08] ou a Administração Pública, por não encontrar-se, tal matéria, inserida no objeto em estudo.

Considerando que cada tribunal oferece uma gama diferente de opções de busca, com peculiaridades operacionais que não permitiram aplicar-se exatamente a mesma fórmula a todos eles, foram adotados parâmetros específicos na pesquisa junto a cada tribunal, visando a contornar essa dificuldade técnica, sem prejuízo ao resultado final. Por tal razão, os critérios e parâmetros específicos do método de pesquisa relativos a cada tribunal pesquisado estão descritos adiante, juntamente com a demonstração dos resultados obtidos.


3.RESULTADOs

3.1.Indicativos Doutrinários e Jurisprudenciais

O Conselho da Justiça Federal, nas Jornadas de Direito Civil, buscou interpretar certos dispositivos da novel legislação, tendo exarado diversos enunciados que consubstanciam o consenso então obtido. [09] Sobre a questão do parágrafo único do art. 927, foi editado o Enunciado de n.º 38, a seguir transcrito:

ENUNCIADO Nº 38 - Art. 927: a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade.

Tal enunciado pouco esclarece, deixando a questão em aberto, à mercê dos tribunais, aos quais caberá estabelecer o alcance da expressão risco criado que subjaz no comando acima visualizado, delimitando, assim, a aplicação da responsabilidade objetiva.

Os exemplos adiante mencionados retratam as informações obtidas na pesquisa, indicando várias atividades que podem ser consideradas de risco e, nessa condição, submetidas ao critério da responsabilidade objetiva. Muitas delas, como já afirmado, são abarcadas por legislação especial, enquanto outras são potencialmente enquadráveis na responsabilidade civil objetiva do caso em estudo.

3.1.1.Superior Tribunal de Justiça – STJ

No Superior Tribunal de Justiça a pesquisa foi realizada através do sistema informatizado de consulta à jurisprudência através da rede mundial de informações, Internet [10], utilizando-se os seguintes parâmetros: (responsabilidade civil e (teoria do risco ou risco da atividade) exclusive (estado e tributário [11])).

O resultado apresentou 10 acórdãos, dos quais 5 foram desconsiderados por versarem sobre responsabilidade do Estado. Em resumo, o quadro ficou assim distribuído:

Tabela 1 – STJ – Resumo dos acórdãos por assunto

Descrição

Ocorrências

Percentual

Acidente de Consumo

1

20,00%

Acidente de Trabalho

1

20,00%

Energia Elétrica

1

20,00%

Transporte de Valores

1

20,00%

Transporte Terrestre de Passageiros

1

20,00%

5

100,00%

3.1.2.Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC

A pesquisa levada a efeito junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina [12] foi desenvolvida de modo similar àquela realizada junto ao Superior Tribunal de Justiça, ou seja, empreendeu-se a busca por acórdãos que abordassem de forma explícita e direta a questão em estudo.

Nesse desiderato, foram utilizados os seguintes argumentos de busca: Documentos que contenham as palavras: (responsabilidade civil e (risco da atividade ou teoria do risco)), excluídos os julgados que mencionem os termos (administrativo e integral), por versarem basicamente sobre a responsabilidade objetiva da administração pública, que refoge ao âmbito do presente trabalho.

A busca referente ao período compreendido entre 01/08/2001 e 31/07/2005 resultou em 174 acórdãos que atendiam aos requisitos mencionados, cujo universo classificado por temas ficou assim distribuído:

Tabela 2 – TJSC – Resumo dos acórdãos por assunto

Descrição

Ocorrências

Percentual

Acidente de Consumo

3

1,72%

Acidente de Trabalho

68

39,08%

Acidente de Trânsito

20

11,49%

Acidente durante Exame Vestibular

1

0,57%

Aeronaves

3

1,72%

Ambiental (Hidrelétrica - danos à pesca)

3

1,72%

Atividade Bancária

45

25,86%

Energia Elétrica

1

0,57%

Publicação de nota em jornal de centro acadêmico

1

0,57%

Operação de Retroescavadeira

1

0,57%

Outras Relações de Consumo Diversas

11

6,32%

Seguros

3

1,72%

Transporte de Mercadorias

6

3,45%

Transporte Terrestre de Passageiros

6

3,45%

174

100,00%

A exemplo do que ocorre no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, podem ser encontrados vários precedentes jurisprudenciais nos tribunais pátrios, sobre a incidência da teoria do risco como fundamento de responsabilização por danos. Todavia, em sua grande maioria, os casos analisados versam sobre fatos abarcados pela legislação especial, que concorre com o Código Civil, como é o caso dos transportes aéreo e terrestre de pessoas e de mercadorias, relações de consumo em geral (aí incluídas as decorrentes da prestação de serviços bancários e de seguros), danos ecológicos, energia elétrica e nuclear, sem falar na responsabilidade do Estado, consagradamente objetiva segundo a teoria do risco administrativo, dentre outras.

3.1.3.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS

A página de pesquisa disponibilizada pelo TJRS no sistema informatizado da base de jurisprudência não permite a exclusão de termos, sendo possível apenas a utilização dos operadores ‘E’ e ‘OU’. Tal limitação operacional impede a exclusão dos acórdãos referentes à administração pública (que compreendem a grande maioria dos casos de decisões relativas à responsabilidade objetiva), distorcendo os resultados da pesquisa. Diante disso, visando a contornar tal dificuldade, empreendemos a pesquisa, nesse tribunal, mediante o uso dos seguintes argumentos: "927 parágrafo único", para o período compreendido entre 01/08/2001 a 31/07/2005. Com tais parâmetros, foram obtidos 16 (dezesseis) acórdãos que atendiam aos requisitos, dos quais 15 (quinze) versam sobre acidente de trânsito envolvendo ente público. No entanto, um acórdão aborda a questão da responsabilidade civil objetiva, muito embora haja menção à verificação de culpa, isso porque os fatos ocorreram antes da vigência do novo Código Civil.

A ementa do julgado foi exarada nos termos que seguem:

EMENTA: DANO MORAL. INTOXICAÇÃO CAUSADA POR GÁS EXALADO DE PRODUTO QUÍMICO UTILIZADO POR EMPRESA CONTRATADA PELO CONDOMÍNIO PARA PROCEDER REFORMA EXTERNA NO PRÉDIO. ATIVIDADE DE RISCO. ART. 927 PARÁGRAFO ÚNICO DO NOVO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO AOS MORADORES ACERCA DOS CUIDADOS NECESSÁRIOS QUANDO DA APLICAÇÃO DO PRODUTO. CARACTERIZAÇÃO DE CULPA IN ELIGENDO E IN VIGILANDO. Evidenciado que um dos autores, criança com dois anos de idade, sofreu intoxicação decorrente de produto tóxico utilizado por empresa contratada pelo réu, necessitando a intervenção do Corpo de Bombeiros e a internação hospitalar do menor, caracteriza-se dano moral passível de indenização, cujo valor, restou bem fixado em 50 salários-mínimos, considerando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade em relação ao fato em si. Honorários Advocatícios. Embora compensáveis, são suscetíveis ao redimensionamento. APELO DOS AUTORES PARCIALMENTE PROVIDO. APELO DO RÉU DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70010917151, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Aquino Flores de Camargo, Julgado em 06/04/2005)

Do corpo do referido acórdão destaca-se o seguinte excerto que deixa antever a utilização de produtos tóxicos como atividade perigosa:

[...] Não há dúvida de que o manejo de produtos tóxicos traz em si riscos próprios. Daí por que a jurisprudência, em alinhamento com institutos alienígenas, vinha reconhecendo em tais circunstâncias, uma espécie de responsabilidade objetiva, que veio a ser sufragada na regra do art. 927, parágrafo único, do Novo Código Civil.

E não cabe sequer cogitar de culpa concorrente. Nada há na conduta das vítimas, que possa atenuar a responsabilidade do réu. Tampouco é possível caracterizar o fato como mero aborrecimento. O menor, então com dois anos de idade, viu-se intoxicado, submetido a cuidados hospitalares. Embora não se possa concluir que os problemas posteriores do autor Elizeu Avelino Ribeiro Júnior sejam conseqüência do fato, certo é que o episódio foi marcante, produzindo sérios riscos à sua saúde e verdadeiro pânico aos pais. Isso tem o significado do dano moral. [...] (TJRS – Apelação Cível n.º 70010917151 – 20ª Cam. Cível. Rel.: José Aquino Flores de Camargo. Data Julg.: 06/05/2005).

Foi realizada, ainda, a busca mediante a utilização das expressões "teoria do risco" e "risco da atividade" simultaneamente, da qual obteve-se outros 14 acórdãos, sendo um excluído por referir-se à Administração Pública. O resultado ficou assim distribuído (incluindo o acórdão obtido na pesquisa inicial, acima mencionada):

Tabela 3 – TJRS – Resumo dos acórdãos por assunto

Descrição

Ocorrências

Percentual

Acidente de Trabalho

1

7,14%

Ambiental

1

7,14%

Atividade Bancária

5

35,71%

Cartão de Crédito

1

7,14%

Construção Civil

1

7,14%

Danos através da Internet

1

7,14%

Relações de Consumo Diversas

2

14,29%

Utilização de Produtos Tóxicos

1

7,14%

Venda de Bebidas Alcoólicas

1

7,14%

14

100,00%

3.1.4.Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR

A pesquisa junto sítio eletrônico do TJPR na Internet foi realizada em duas etapas, visando a superar algumas dificuldades encontradas no sistema de busca ali existente. A exemplo do acontecido no caso do TJSP, também aqui não é possível, na pesquisa por verbetes, a utilização de operadores de adição ou exclusão de parâmetros para buscas mais complexas ou refinadas. Desse modo, efetivamos a pesquisa em duas etapas, sendo a primeira realizada com os termos "teoria do risco", que resultou 96 acórdãos, e a segunda utilizando os termos "responsabilidade civil risco da atividade", através da qual foram obtidos mais 25 acórdãos, totalizando 121 julgados, cujo conteúdo das ementas foi individualmente verificado a fim de excluir aqueles que versavam sobre a responsabilidade objetiva da administração pública (61 acórdãos) ou outras matérias estranhas ao objeto em estudo (12 acórdãos).

O resultado ficou distribuído conforme tabela a seguir:

Tabela 4 – TJPR – Resumo dos acórdãos por assunto

Descrição

Ocorrências

Percentual

Acidente de Trabalho

3

6,25%

Ambiental

2

4,17%

Ataque de animal selvagem

1

2,08%

Atividades Bancárias

25

52,08%

Energia Elétrica

3

6,25%

Relações de Consumo Diversas

14

29,17%

48

100,00%

3.2.Análise dos resultados

A seguir, analisamos as atividades que tiveram maior incidência na pesquisa, ainda que em sua maioria, como já afirmado, sejam regidas por leis específicas.

3.2.1.Acidentes de trabalho

Da análise dos dados acima lançados, constata-se que a maior parte dos casos de responsabilidade civil julgados com base na teoria do risco pelo TJSC, nos últimos cinco anos, decorrem de acidentes de trabalho, matéria ocorrente no outros tribunais e também no STJ.

Não por acaso, os acidentes do trabalho são protegidos por seguro obrigatório decorrente de garantia constitucional (CF, art. 7º, inciso XXVIII) e, juntamente com as doenças a eles equiparáveis, contam com regulamentação específica, qual seja, a Lei n.º 6.367/76, que estabelece a obrigatoriedade de as empresas pagarem seguro contra acidentes do trabalho. Tal medida é uma das formas de "socialização dos riscos". Com isso, transfere-se a responsabilidade sobre a indenização do dano por acidente ou doença para a Previdência Social, que independentemente de culpa, pagará o auxílio-doença ou acidentário ao lesado. Desse modo, em princípio, além do pagamento do seguro, a empresa nada desembolsa a mais, a não ser que fique comprovado que agiu com culpa ou dolo para a ocorrência do acidente ou doença.

O entendimento corrente em processos de indenização por acidentes de trabalho é no sentido de que ao empregado incumbe provar a existência do dano, nexo causal deste para com as atividades profissionais e que o empregador agiu com culpa ou dolo para a ocorrência do acidente ou doença do trabalho, sendo certo que, nesse contexto, a empresa teria o direito de pedir a verificação da culpa e investigar se a culpa foi do operário ou se o acidente foi provocado, realmente, por algum tipo de omissão da empresa.

Com a responsabilidade objetiva do artigo 927, parágrafo único, os acidentes de trabalho poderiam vir a ser enquadrados como responsabilidade objetiva, o que limitaria a margem de defesa das empresas, aumentando sua responsabilidade nas eventuais ações de reparação de dano em atividade de risco. No entanto, tal entendimento é questionável em face do disposto no inciso XXVIII do artigo 7º da Constituição Federal, que dispõe como direitos dos trabalhadores, litteris: "seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa" (grifamos).

Cumpre esclarecer que não é nosso objetivo, neste trabalho, discutir se a vigência do atual Código Civil modificou, ou não, a forma como deve ser aplicada a responsabilização por danos decorrentes de acidentes de trabalho. No entanto, considerando ter sido identificada como uma das hipóteses de maior incidência de utilização da teoria do risco na jurisprudência, inegável que a ocorrência de acidentes do trabalho atrai maior probabilidade de, em tais casos, vir a ser aplicado o disposto no parágrafo único do artigo 927 do CCB, resposta que virá com o decorrer do tempo, de acordo com a interpretação dos tribunais, em especial do STF, quando for instado a se manifestar sobre tal dispositivo.

3.2.2.Atividade bancária

Em segundo lugar na lista de maiores incidências encontram-se as atividades bancárias. Induvidoso que os serviços bancários foram abarcados pelo Código de Defesa do Consumidor de modo que, neste particular, o Código Civil "chegou atrasado". Não obstante, serve para "jogar uma pá de cal" sobre a intenção das instituições financeiras de tentar consolidar junto aos tribunais a tese de que a elas não se aplicaria o CDC, tese esta que pretendia exatamente afastar a aplicação das regras de responsabilidade objetiva e de inversão do ônus da prova. Com o novo Código Civil, ainda que não fossem regidos pelo CDC, os serviços bancários estariam submetidos à regra do parágrafo único do artigo 927 do CCB, porquanto doutrina e jurisprudência costumam atribuir às instituições financeiras a responsabilidade civil com base no risco do negócio, seja em fraudes eletrônicas, clonagem de cartões, vítimas de assaltos nas agências e, principalmente, nos casos de inscrição indevida em órgãos de proteção ao crédito.

Vejam-se as ementas de julgados a seguir transcritas:

DANO MORAL. ASSALTO A BANCO. TEORIA DO RISCO DA ATIVIDADE. Revela-se totalmente previsível ao senso comum que, com os atuais níveis de violência, os bancos que não providenciem proteção privada para seus funcionários, ocupantes de cargo de confiança, resultem em culpa (negligência). Em tais condições, tendo o gerente sofrido agressões físicas e psicológicas durante assalto, deve o banco indenizá-lo do dano moral sofrido. Ademais, na sistemática do novo Código Civil, o parágrafo único do art. 927 introduziu a chamada teoria do risco, segundo a qual aquele que cria um risco de dano pelo exercício de sua atividade obriga-se a repará-lo, independentemente de culpa (responsabilidade objetiva), a qual é presumida.

(Processo RO-01414-2004-009-18-00-7, TRT da 18º Região/GO, Rel. Juiz Ialba-Luza Guimarães de Mello. j. 09.03.2005, unânime, DJ 29.03.2005).

RESPONSABILIDADE CIVIL - INDENIZAÇÃO - ABERTURA DE CONTA CORRENTE COM DOCUMENTOS FALSIFICADOS - CORRENTISTA QUE EMITE CHEQUE PARA PAGAMENTO DE PRODUTOS ADQUIRIDOS DA APELADA - NÃO PAGAMENTO DO CHEQUE - CONTA ENCERRADA - RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL OU AQUILIANA DO BANCO - RESPONSABILIDADE QUE DECORRE DO RISCO DA ATIVIDADE EXERCIDA PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - AUSÊNCIA DE CULPA DA APELADA - DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO - RECURSO IMPROVIDO.

"Os bancos respondem pelo risco profissional assumido, só elidindo tal responsabilidade a prova, pela instituição financeira, de culpa grave do cliente ou de caso fortuito ou de força maior" (RT 589/143).

(Apelação Cível nº 0245798-1 (17753), 7ª Câmara Cível do TAPR, Curitiba, Rel. Lauro Laertes de Oliveira. j. 26.11.2003, unânime, DJ 12.12.2003).

A despeito dos entendimentos acima defendidos, existe divergência sobre a questão das atividades bancárias. Calha, a tal respeito, trazer a lume a opinião de Rui Stoco (2005), que em seu artigo Responsabilidade Civil dos Estabelecimentos Bancários e o Código de Defesa do Consumidor, discorda de Vilson Rodrigues Alves, afirmando que este prega a responsabilidade dos bancos independentemente da indagação de culpa, por força da teoria do risco criado, enquadrando todas as atividades dos bancos, inclusive as operações de empréstimo, no conceito de relação de consumo.

Segundo Stoco (2005), "os bancos não exercem atividade de risco ou atividade perigosa que justifique a aplicação dessa teoria, que se traduz em exceção. Nem mesmo por presunção se pode considerar a atividade bancária como ‘atividade de risco’ ou que essas instituições criem riscos aos seus clientes, de modo a ensejar a sua responsabilidade objetiva", de tal modo que, com relação ao cliente, a responsabilidade dos bancos é contratual e com relação a terceiros, sua responsabilidade é extracontratual, isso porque não se pode confundir ‘serviços bancários’, a que se refere o § 2º do art. 3º do CDC, com ‘operações bancárias’, que se incluem em um complexo de atividades multifárias submetidas à regência de diversas leis especiais.

3.2.3.Veículos automotores e acidentes de trânsito

Os resultados da presente pesquisa confirmam a alta incidência de discussões judiciais decorrentes de acidente de trânsito, figurando em terceiro lugar nas ocorrências de utilização das teorias do risco como fundamento de decisão jurisdicional.

Fernando Noronha (2003) analisa a responsabilidade por acidentes de trânsito, que afirma tratar-se de criação essencialmente jurisprudencial, como exemplo de risco-perigo.

Também neste caso o legislador reconhece o risco inerente ao uso de veículo automotor, tanto que prevê a existência de seguro obrigatório como forma de garantir a indenização em casos de acidente. No entanto, forçoso reconhecer que o instituto não atinge seu objetivo, ante o pequeno valor do montante garantido pelo seguro obrigatório.

Carlos Roberto Gonçalves (1994) observa o pensamento jurisprudencial que admite a utilização da teoria do risco como forma de evitar injustiças em alguns casos, conforme se verifica a seguir:

Em matéria de responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente que envolve mais de um veículo, a jurisprudência tem ainda se utilizado do critério da culpa para solucionar os diversos litígios que são instaurados.

No entanto, em casos de atropelamento, sem culpa da vítima, ou de abalroamentos de veículos parados ou de postes e outros obstáculos, tem-se feito referência à teoria do risco objetivo ou do exercício de atividade perigosa, para responsabilizar o motorista ou o proprietário do veículo, afastando-se a alegação de caso fortuito em razão de defeitos mecânicos ou de problemas de saúde ligados ao condutor. (GONÇALVES, 1994, p. 191)

No dizer do citado autor, "sendo o automóvel coisa perigosa, o seu proprietário deve responder pelos danos que possa causar a outrem pelo simples fato de permitir a sua circulação" (GONÇALVES, 1994, p. 196). Para exemplificar, traz um julgado do Tribunal de Alçada Cível de São Paulo que considerou como de risco a utilização de veículo e afastou a hipótese de caso fortuito no estouro de um pneu de automóvel, para impor o dever de reparação ao seu proprietário, conforme segue:

Alegação de caso fortuito em virtude de estouro de pneu – Desacolhimento – A teoria da culpa, em sua colocação mais tradicional (subjetiva), não pode satisfazer os riscos que a utilização do veículo provocou. É preciso, para solucionar determinadas situações, aceitar colocações mais atuais, compatíveis com os riscos da utilização de máquinas perigosas, postas em uso pelo homem. (1º TACSP, Julgados, 80:80 in BITTAR, 1994, p. 192).

Cumpre registrar que, no caso, se está a tratar da ocorrência de um atropelamento sem culpa da vítima, decorrente do estouro de um pneu em perfeitas condições de uso.

Observe-se que tal decisão considerando o automóvel uma ‘máquina perigosa’ utilizou-se da doutrina da teoria do risco como fundamento jurídico sendo de notar que, à época, o direito positivo impunha, em casos que tais, a necessidade de prova da culpa de modo que a ocorrência de caso fortuito era condição suficiente para afastar o dever de indenização. No caso, o julgado poderia ser contestado em recurso especial, pois, salvo melhor juízo, violava preceito legal. No entanto, transportando-se os fatos para os dias atuais, o acórdão deixaria de ser contra legem, em face do previsto no parágrafo único do art. 927 acima transcrito.

3.2.4.Operação de máquinas pesadas e Construção Civil

Apesar da pouca incidência na pesquisa (uma caso envolvendo operação de retroescavadeira e outro envolvendo a construção de um Shopping Center), deve-se frisar que a utilização de maquinário pesado é uma das principais causas de acidentes, tanto no âmbito trabalhista (inclusive as obras de construção civil), quanto naqueles que envolvem a administração pública e as obras de engenharia pesada.

Muito embora a presente pesquisa tenha detectado poucas ocorrências de processos desse tipo, isso se deve muito provavelmente ao fato de que danos provenientes desse tipo de atividade normalmente são questionados nos tribunais trabalhistas, ou em sede de direito administrativo (responsabilidade objetiva da administração pública – que refoge ao âmbito desta pesquisa), ou, ainda, em questões envolvendo a prestação de serviço (relação de consumo) e, na construção civil, conforme o caso, segundo as regras do direito de vizinhança.

EMENTA: CONSTRUÇÃO DE SHOPPING CENTER. ABALO EM PRÉDIO CONTÍGUO. INTERDIÇÃO DA RESIDÊNCIA DOS AUTORES. RESPONSABILIDADE DOS EMPREENDEDORES. CULPA PRESUMIDA. TEORIA DO RISCO. DANOS MORAIS. ELEVAÇÃO. Não se discute que os autores no caso possuíam o direito de não ser afetados pela mega construção empreendida pelas rés. A culpa, no caso, é presumida, cuja descaracterização cabia aos construtores. O Projeto e as técnicas utilizadas, por mais avançadas que fossem, teriam que considerar a presença da vizinhança. Tanto não foram previstas que os prejudicados tiveram que defender seus direitos na Justiça. Ora, não prever fato previsível caracteriza o agir culposo. E se previsto e não acautelado, o ilícito aproximar-se-ia do dolo, ao menos eventual. No entanto, sob outro prisma, a responsabilidade que melhor se adapta à situação ora tratada é a embasada na teoria do risco. A excludente prevista no art. 160, I, do CC de 1916 não pode ser manejada quando caracterizado o abuso de direito. Quanto aos danos morais, não se pode desconhecer a situação de grande constrangimento por que passaram aqueles que, abruptamente, por fato a que não deram causa, viram-se desalojados de suas residências, em face de risco para sua segurança. Danos morais majorados. APELAÇÃO DOS AUTORES PROVIDA, IMPROVENDO-SE A DAS RÉS. (8 FLS D.) (Apelação Cível Nº 70004271383, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ary Vessini de Lima, Julgado em 15/05/2003) (grifo nosso)

3.2.5.Venda de Bebida Alcoólica

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul exarou decisão considerando de risco a atividade de venda de bebida alcoólica, condenando a cervejaria a indenizar cliente alcoolizado e agredido no local por seguranças da empresa.

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. AGRESSOES SOFRIDAS POR CLIENTE EM CERVEJARIA, POR SEGURANCAS, SEM MOTIVO APARENTE. FIXACAO. CRITERIOS DE PRUDENTE ARBITRIO E RAZOABILIDADE DO JUIZ. A prova dos autos forte a demonstrar que o autor fora vítima de agressões injustas dentro do estabelecimento da ré, por prepostos seus. Mera discussão verbal não justifica comportamento agressivo por parte dos seguranças, que chegaram, inclusive, às vias de fato. O dano moral é reputado como sendo a dor, vexame, sofrimento, ou humilhação que, fugindo da normalidade, interfira no comportamento psicológico do indivíduo, causando aflições, angústia e desequilíbrio no seu bem-estar. Sentença confirmada. (6 FLS) (Apelação Cível Nº 70003027398, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Clarindo Favretto, Julgado em 20/12/2001)

Do corpo do referido acórdão extrai-se o entendimento do TJRS:

[...] a empresa ré busca justificar sua conduta alegando ser "natural" que quando embriagadas as pessoas tenham atitudes e reações das mais variadas, tornando-se agressivas, sendo necessário a intervenção dos seguranças contratados pela casa a fim controlar o tumulto que porventura surja, colocando os envolvidos para fora do estabelecimento.

Causa espécie o argumento, na medida em que o próprio estabelecimento, autodenominado como "cervejaria", ao ter por objetivo tão-somente a venda indiscriminada de bebidas alcoólicas, servindo, inclusive, de chamariz aos seus clientes, assume ele próprio os riscos pelos eventos que no seu interior sucederem, quando originadas do excesso de alcoolismo.

A pessoa é responsável pelos riscos que a sua atividade criar quando em desenvolvimento, em proveito próprio. Subsume a idéia de atividade perigosa como fundamento da Responsabilidade Civil. O exercício de atividade que possa oferecer algum perigo a terceiros representa um risco, que o agente assume, de ser obrigado a ressarcir os danos que venham resultar a terceiros, dessa atividade. Ao passo que, no caso concreto, somente a culpa exclusiva da vítima poderia afastar-lhe a responsabilidade. Mas não é o caso.

Assim, não pode justificar a conduta de seus prepostos pelo excesso de embriaguez dos freqüentadores do seu estabelecimento, pois que, por certo, não chegaram já alcoolizados. (grifo nosso)

3.2.6.Responsabilidade objetiva no âmbito da Internet

A utilização da rede mundial de computadores ganha cada vez mais importância no dia-a-dia. Todavia, tal meio de comunicação pode ser utilizado de forma indevida por pessoas inescrupulosas, ou mesmo, diante de uso sem má-fé, causar danos a terceiros.

Os tribunais já começam a atribuir aos provedores de serviços de Internet a condição de exercício da atividade de risco, a atrair a aplicação da responsabilidade objetiva, seja por aplicação do Código de Defesa do Consumidor, seja por força do novel Código Civil.

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL. DECISAO JUDICIAL QUE, EM ACAO DE REPARACAO DE DANOS MORAIS, AFASTA PRELIMINARES DE EXCLUSIVA APLICABILIDADE DA LEI DA IMPRENSA PARA EFEITO DE FIXACAO DO QUANTUM INDENIZATORIO; DE ILEGITIMIDADE PASSIVA PARA A CAUSA; E INDEFERE PEDIDO DE DENUNCIACAO DA LIDE. DANOS MORAIS QUE TERIAM SIDO PRATICADOS POR TERCEIROS COM A UTILIZACAO DE PORTAL DA INTERNET POSTO A DISPOSICAO DOS USUARIOS PELA AGRAVANTE. DESPROVIMENTO DO RECURSO. Inútil, se não estéril e inócua, ante o entendimento jurisprudencial consolidado segundo o qual a indenização por danos morais, mesmo o sejam praticados via imprensa, sujeito não está a obedecer ao tarifamento previsto nos art.s 51 e 52 da Lei de Imprensa, discussão sobre a aplicabilidade, ou não, à hipótese, desse diploma legal. Quem põe na Internet – provedor – um portal a disposição do público, podendo ser acessado indiscriminadamente por qualquer pessoa, corre o risco de ser, ao menos em princípio e em tese, responsabilizado pelo mau uso do serviço de comunicação, inclusive por eventuais danos morais venham a ser praticados contra terceiras pessoas. [...]. (9 FLS) (Agravo de Instrumento Nº 70002884203, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Osvaldo Stefanello, Julgado em 26/09/2001) (grifo nosso)

A fim de melhor ilustrar esta situação, trazemos à baila uma decisão interessante, embora estrangeira, que se refere à responsabilidade dos mantenedores sítios eletrônicos e fóruns de discussão na rede mundial de informações. Poderia tal responsabilidade ser enquadrada na teoria do risco?

Em artigo comentando decisão de um tribunal argentino, Demócrito Reinaldo Filho (2004) analisa a responsabilidade civil objetiva atribuída ao proprietário de um fórum de discussão que foi condenado com base na teoria do risco da atividade, em decorrência de mensagem difamatória inserida por usuário anônimo. Vejamos:

No caso julgado pelos juízes da província argentina, os autores reclamaram indenização por dano moral em decorrência de uma mensagem difamatória, inserida por um usuário anônimo do ´´site´´, que colocou informações atribuindo à mulher do casal uma conduta adúltera, criando para eles uma situação de constrangimento. Os juízes compararam a posição do mantenedor do site com a do difusor da mídia tradicional. Não sendo o editor da matéria, ou seja, a pessoa que fez a fixação da mensagem para conhecimento ao público, o mantenedor do site pode ser responsável na condição de simples difusor da informação. [...] Os juízes argentinos foram além. Contraditoriamente, na segunda parte da decisão construíram um padrão de responsabilidade objetiva para os operadores de site que oferecem serviço de fórum de discussão. Partiram da concepção que o manejo de um sistema informático deve ser entendido como atividade perigosa, de potencial risco para outras pessoas, a exemplo de quem explora o fornecimento de energia elétrica como atividade empresarial. A atividade de processamento de informações de forma automatizada, para eles, reúne características similares aos da produção de energia elétrica, "em razão da potencialização do perigo ínsito em seu emprego". Invocaram o art. 1.113 (segunda parte) do Código Civil argentino 4 para justificar a responsabilidade objetiva do operador do site, dispositivo semelhante ao parágrafo único do art. 927 do nosso Código Civil. 5 Ambos estabelecem uma obrigação independentemente de culpa para os casos em que a atividade causadora do dano implicar riscos para outrem. [...] (REINALDO FILHO, 2004, p. 5)

A autor acima citado afirma que "ao tentar estabelecer a responsabilidade objetiva como padrão para os operadores de website (provedores de conteúdo em páginas web), os juízes argentinos podem ter se excedido", mas reconhece que "a tentativa de equiparar a informática com a energia elétrica - a primeira seria uma nova forma de energia - tem adquirido força entre os juristas latinos" (ibid).

Costumeiramente, a responsabilidade objetiva é utilizada em situações de grande probabilidade de dano à vida ou à saúde de terceiros (como a produção de energia elétrica, de explosivos, de material radioativo, transporte de combustíveis, produtos venenosos ou tóxicos, entre outras), associada a atividades com alto teor de potencialidade danosa, atividades estas que, segundo Reinaldo Filho, "não podem ser comparadas à atividade de um controlador de website" (ibid). Além disso, se o operador de um sítio eletrônico atua em equivalência ao editor da mídia tradicional (uma vez que tem o poder de decisão sobre o que publicar), então é desse seu poder (controle editorial) que resulta sua responsabilidade pelo conteúdo publicado, isso porque a responsabilidade entre jornalistas e respectivos instrumentos clássicos de comunicação (v. g. jornal, rádio, televisão), não é erigida a partir do risco ligado à atividade, mas sim a partir de uma responsabilidade ligada ao elemento subjetivo, qual seja a negligência na conduta e trabalho do profissional dos meios de comunicação.

Prossegue Reinaldo Filho (2004) afirmando que pode haver certas áreas no sítio eletrônico em que o controle editorial praticamente desaparece, sendo as informações postadas diretamente por outras pessoas (usuários - visitantes) que, espontaneamente, inserem suas mensagens em determinada página, sem que sobre tal conteúdo exista qualquer controle prévio. É exatamente o caso dos ‘painéis de mensagens’, ‘quadro de recados’ ou ‘fóruns de discussão’, nos quais o operador somente toma conhecimento do conteúdo depois de publicado, situação em que, somente a partir do momento em que é toma conhecimento do caráter danoso da informação registrada em seu sistema, passa a ter a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para prevenir danos ou retirá-la, sob pena de ser considerado um negligente. A sua responsabilidade tem, portanto, fundamento na culpa, com relevo para o aspecto subjetivo (da atuação do controlador do site).

No entanto, ainda segundo o mesmo autor, existem situações que afastam essa premissa de inexistência de responsabilidade do controlador por mensagens danosas colocadas em serviços eletrônicos de mensagens.

A primeira consistiria em anunciar que adota um código de conduta editorial de controle de conteúdos e que mobiliza esforços para respeitá-lo - situação idêntica à ocorrente no caso julgado pelos juízes argentinos. Nessa hipótese, ele se torna responsável pelos conteúdos que circulam em seu site. Ao atribuir-se o mesmo controle de um editor, deve suportar o mesmo standard de responsabilidade. Também é razoável admitir a responsabilização do controlador quando não se tem possibilidade de identificar o causador direto do ato danoso - situação da mesma maneira verificada no caso julgado.

Lembramos que o operador do sistema informático não é um completo alheio e eqüidistante à transmissão (publicação) da mensagem. Ao contrário: é com o concurso de seu sistema informático que a comunicação eletrônica é tornada possível. Se não pratica ou executa o ilícito, nem por isso deixa de fornecer os meios materiais e físicos (tecnológicos) para a transmissão da mensagem. Embora não seja o responsável pela publicação da informação danosa, é no seu sistema que esta é armazenada, o que, de certo modo e em certa extensão, pode relacioná-lo com ou vinculá-lo ao autor direto do ato. Assim, se não se puder identificar o autor direto do ato, é razoável a defesa da responsabilidade do operador do site.

O mesmo ocorreria no caso em que o autor do dano não estivesse submetido à jurisdição da nacionalidade do operador (quando, por exemplo, residir em outro país). Essa via de responsabilização possibilitaria uma forma de reparar efetivamente as vítimas contra danos decorrentes de conteúdos informacionais ilícitos; atenderia a um critério de Justiça e à própria essência da responsabilidade civil, que busca restabelecer o equilíbrio violado pelo dano.

Sua evolução deve atender a uma necessidade moral, social e jurídica de garantir a segurança da vítima violada pelo ato lesivo. Uma tal conclusão não seria destituída de razoabilidade jurídica, pois o Direito não pode tolerar que ofensas fiquem sem reparação. Essa seria, no entanto, sempre uma responsabilidade secundária, significando a possibilidade de chamar o operador à responsabilização como substituto responsável, diante de uma situação fática que impede alcançá-lo. Não seria nunca uma responsabilidade solidária, no sentido de o ofendido poder escolher contra quem demandar (entre o controlador do site e o autor direto do dano). (REINALDO FILHO, 2004, p. 5).

Após a entrada em vigor do novo Código Civil, segundo o entendimento acima apresentado, os provedores de serviços de comunicação através da Internet podem ser inseridos no contexto de exercício de atividade perigosa e, nessa condição, sujeitos à responsabilização objetiva com base na teoria do risco, quando condutas ilícitas sejam praticadas por terceiros através dos sistemas de comunicação por eles (provedores) disponibilizados.

A identificação dos usuários, rastreamento de mensagens e controle na postagem de informações é questão que enseja preocupação e tem gerado debates, pois envolve, de um lado, o direito de sigilo das comunicações, e, de outro, a prática de atos socialmente reprováveis, muitas vezes criminosos, que merecem ser reprimidos.

Nessa quadra, como forma de evitar a impunidade decorrente do anonimato e coibir o uso indevido da tecnologia, surge a possibilidade de os proprietários ou mantenedores de sítios eletrônicos serem instados a responder diretamente, e por força de sua atividade, quando deixem de prestar informações que identifiquem os responsáveis pelos atos lesivos, ou por eventos ocorridos dentro de seus sistemas.


Considerações finais

A sociedade está em constante movimento e, desse movimento, despontam novas necessidades que induzem ao surgimento de novas tecnologias e serviços os quais, não raro, produzem riscos para a população, em maior ou menor grau. Tal dinamismo social, e econômico, exige paralelamente a modernização do ordenamento jurídico.

As inovações no sistema jurídico são, quase sempre, um reflexo da evolução da jurisprudência em conjunto com as manifestações da doutrina, que, consentâneas com a realidade social, promovem a (re)interpretação da legislação a cada dia, mediante a criação de novas teorias e introdução de novos institutos. Por tal razão diz-se que o direito é dinâmico.

A responsabilidade civil é estudada na doutrina sob o enfoque das teorias subjetiva e objetiva.

A primeira, adotada com regra geral pelo Código Civil brasileiro, tem como seu principal elemento a culpa e exige, grosso modo, os seguintes pressupostos: ação ou omissão, culpa ou dolo, dano e a relação entre a conduta lesiva e a lesão. Sob esse prisma, o agente causador de algum dano será obrigado a repará-lo somente se tiver agido com culpa.

Já a segunda teoria, que vem sendo inserida nas legislações mais atuais, tem como seu principal fundamento o fato lesivo e a necessidade de reparação, dispensando o elemento culpa. Nessa quadra, aquele que, com sua conduta ou no exercício de sua atividade, assumiu o risco de produzir um dano, será responsável pela reparação se o dano efetivamente se confirmar, independentemente de verificação de culpa.

A teoria do risco tem sido utilizada pelos tribunais há algum tempo para inverter o ônus da prova nos processos, como forma de evitar injustiças decorrentes da reconhecida dificuldade de, em certos casos, exigir-se da vítima a comprovação da culpa daquele que provocou a lesão.

O legislador brasileiro, ao regulamentar a questão da responsabilidade civil no atual Código Civil, adotou, no parágrafo único do artigo 927, a teoria do risco, buscando harmonizar o texto legal aos novos tempos de uma sociedade massificada pela exploração econômica. Nesse desiderato, abriu-se espaço para a aplicação da responsabilidade objetiva, ficando ao encargo do magistrado, mediante seu prudente arbítrio, enquadrar os fatos à norma legal, reconhecendo as atividades que reúnem o predicado periculosidade.

A existência de precedentes jurisprudenciais de utilização da teoria do risco sob a égide do código civil revogado serve como parâmetro de aplicabilidade do novo dispositivo legal e, sem dúvida, a reiteração de ações de reparação de danos decorrentes de determinada atividade apontará o alcance da norma.

Da investigação levada a efeito nesta pesquisa constatou-se que, efetivamente, os tribunais mencionam diversas atividades como potencialmente perigosas, muito embora, em grande parte, as ocorrências sejam regidas por legislação especial, como, por exemplo, as relações de consumo e a responsabilidade delas decorrentes (que são reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor), as questões envolvendo danos ambientais, acidentes de trabalho, transportes (aéreo e terrestre), dentre outras.

Não obstante, vislumbram-se também precedentes jurisprudenciais envolvendo reparação de danos decorrentes de atividades não contempladas em legislação específica e que são potencialmente enquadráveis no contexto abrangido pelo parágrafo único do artigo 927 do novo Código Civil, dentre os quais podemos citar: acidentes de trânsito, venda de bebidas alcoólicas, operação de máquinas pesadas, construção civil de grande porte, manipulação de produtos químicos, venenosos ou tóxicos e disponibilização de serviços de Internet que permitam a divulgação de informações por pessoas anônimas.

Conclui-se que, nas hipóteses citadas, e em quaisquer atividades cujos processos de produção sejam perigosos em si, independentemente da natureza do bem que está sendo produzido, cabe a aplicação da Teoria do Risco e a questão da culpa será irrelevante para fixação do dever de indenizar. No entanto, essa questão ainda demandará algum tempo para encontrar pacificação.

Com a vigência do atual Código Civil, tais questões serão em grande parte, seguramente, resolvidas com aplicação do parágrafo único do artigo 927 do CCB. Cabe ressalvar, no entanto, que a adoção da responsabilidade objetiva como regra pode provocar abusos, beneficiando o enriquecimento sem causa.

De todo modo, fica a advertência àqueles que atuem em algum dos ramos profissionais identificados neste estudo, de que podem se defrontar com a situação de serem responsabilizados civilmente mesmo que não tenham agido ilicitamente, nem incidido em culpa no exercício de suas atividades, mas, tão-somente, porque utilizam-se de mecanismos ou procedimentos que geram potencialmente maior probabilidade de causar danos a outrem, ao tempo em que se inserem num contexto social no qual o ordenamento jurídico privilegia a dignidade da pessoa.


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Notas

01 A responsabilidade civil contratual, consistente no descumprimento de uma obrigação assumida por contrato e com o dever de adimpli-la conforme pactuado, refoge ao âmbito deste estudo.

02 Entendida culpa em seu sentido amplo, ou seja, incluindo o dolo (CARVALHO SANTOS, 1986 321).

03 Observe-se que o projeto do novo código civil iniciou sua tramitação no Congresso Nacional em 1972.

04 Noronha distingue a responsabilidade objetiva em ‘comum’ e ‘agravada’. "Em ambas prescinde-se de culpa; as duas têm por fundamento um risco de atividade, mas este é diferente numa e noutra. Na comum exige-se que o dano seja resultante de ação ou omissão do responsável (embora não culposa), ou de ação ou omissão de pessoa a ele ligada, ou ainda de fato de coisas de que ele seja detentor. Na agravada vai-se mais longe e a pessoa fica obrigada a reparar danos não causados pelo responsável, nem por pessoa ou coisa a ele ligadas; trata-se de danos simplesmente acontecidos durante a atividade que a pessoa responsável desenvolve" (NORONHA, 2003, p. 487)

05 Registre-se que em sede de responsabilidade objetiva, a atividade é lícita, ainda que perigosa, diferentemente do que ocorre na responsabilidade subjetiva, na qual "o ato é ilícito e a culpa o seu elemento anímico". (ALONSO, 2000, p. 67)

06 Interpretação evolutiva, de acordo com Luís Roberto Barroso (2003, p.146) "é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes".

07 Tal situação, não raro, acaba por gerar o nascimento de legislação específica para regular determinada atividade, como é o caso, p. ex., dos acidentes de trabalho, aeronavegação, estradas de ferro, etc.

08 No STJ há discussão sobre o valor da alíquota de contribuição social referente ao seguro sobre acidentes de trabalho – SAT, devido por empresas que operem com atividades de risco. Os acórdãos versando matéria dessa natureza são indexados sob o verbete "tributário".

09 "I Jornada de Direito Civil", promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002.

10 www.stj.gov.br

11 A discussão sobre o seguro de acidentes de trabalho - SAT, no STJ, é indexada sob o verbete tributário. Por tal motivo a pesquisa, nesse tribunal, foi realizada utilizando-se essa palavra como critério de exclusão.

12 www.tj.sc.gov.br


Abstract: It is a doctrinal and jurisprudencial research concerning the evolution of the civil liability in Brazil, especially after the Law No. 10.406, of January 10, 2002 - the New Civil Code ("NCC"), synthecizing the main teses, as well as position of the courts, aiming at to demonstrate, in face of the new civil legislation, the trends for the future. Under the Civil Code, which was in force until January 10, 2003, the civil liability is founded on the concept of negligence (subjective liability). However, the NCC admitted the liability of the agent of damage, irrespective of proof of negligence and/or malice, in a comprehensive and general manner, as we see by reading Art. 927, sole paragraph: "Art. 927. The one who, as a result of tort (Arts. 186 and 187), causes damage to a third party, is required to redress it. Sole paragraph. There shall be obligation to redress damage, irrespective of negligence, in the situations established by law, or if the activities regularly conducted by the agent of the damage imply, by virtue of their nature, risk of damage to third parties". Based on the foregoing, the fact, and not the negligence, becomes each day a more important element contributing to the appearing of duty to repair the actual damage. While the subjective liability remains the rule in the NCC, it is important to look at the activities conducted by the agent of the damage, to verify whether the structure and/or nature of the activity it is that causes damage (property, pain and suffering, esthetical, etc.), is potentially hazardous or harmful third parties’ rights, which would justify the adoption of objective liability postulates (liability irrespective of negligence). It is longed for, by means of the present study, to identify hypotheses of activities submitted by the recent jurisprudence to the Theory of the Risk, - or identified as such for the Doctrine - which is inherently dangerous, causing damages with frequency in order to evaluate the applicability of Art. 927, sole paragraph, of NCC.

Word-key: Brazilian Civil Code. Jurisprudence. Trends. Objective civil liability. Risk activities. Dangerous activities.Theory of the Risk.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARALDI, Udelson Josue. Responsabilidade civil objetiva. Alcance do disposto no parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1070, 6 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8474. Acesso em: 19 abr. 2024.