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A audiência de custódia como direito fundamental do preso e seus benefícios para o processo penal

A audiência de custódia como direito fundamental do preso e seus benefícios para o processo penal

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Resumo: O trabalho abordará os principais aspectos relacionados à audiência de custódia por meio de pesquisas bibliográficas e documentais, analisando a legislação constitucional e infraconstitucional, além da legislação internacional. Serão analisadas as principais características da audiência de custódia, quais os seus objetivos, o fundamento jurídico e, ainda, quais os debates doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema no Brasil. O principal objetivo é demonstrar como o referido instituto é eficiente e necessário para combater a superlotação carcerária, garantir os direitos do preso e a real aplicação da legislação penal. Por ser considerado um tema novo no Direito Penal, as audiências de custódia têm gerado inúmeros questionamentos e debates sobre a sua real utilidade e eficiência. Daí surge a necessidade de uma melhor análise e compreensão acerca do instituto e dos benefícios trazidos pela sua utilização.

Palavras-chave: Audiência de custódia. Direito Brasileiro. Direitos fundamentais. Preso


1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente é analisar o instituto da audiência de custódia no Direito Penal Brasileiro como um direito humano e fundamental constante na própria Constituição e em tratados internacionais os quais o Brasil faz parte. Serão abordados desde o conceito, a previsão normativa, finalidades até a real aplicação do instituto. É importante salientar que vem aumentado a cada dia os debates quanto a eficiência e a necessidade das prisões, uma vez que a população carcerária cresce diariamente e a estrutura prisional do Brasil continua precária.

A pesquisa traz em questão qual o significado, as consequências e os objetivos da prisão no Direito Brasileiro atual, analisando os pontos positivos e negativos da implementação das audiências de custódia. Além disso, será feita uma reflexão acerca do referido instituto ser considerado direito fundamental do preso. Todo o trabalho está voltado para as prisões, suas finalidades e a necessidade de acautelamento estatal.

Atualmente, no Brasil, as condições carcerárias são extremamente precárias e, em muitas das vezes, não garantem o mínimo direito e bem estar do preso. Não é raro encontrar presídios superlotados, em más condições, sujas e até mesmo com bichos em meio aos presos. E, são por tais circunstâncias que é necessária uma mudança, trazendo uma garantia dos direitos humanos dos presos, a proteção das condições mínimas de encarceramento, do cumprimento da lei de da finalidade da prisão. Assim, a audiência de custódia surgiu para solucionar os problemas prisionais brasileiros.

Porém, a utilização desse instituto no Brasil tem gerado inúmeras discussões e conflitos sobre a sua contribuição para o judiciário e sistema prisional brasileiro. Ao mesmo tempo que a audiência de custódia é considerada como direito fundamental do preso e, por isso, é necessária, tal fato esbarra na falta de estrutura e inviabilidade de aplicação desse instituto no judiciário brasileiro.

O sistema judiciário brasileiro carece de normas que regulamentem as audiências de custódia e, principalmente, de recursos que viabilizem a prática. Por esse motivo, muitos doutrinadores têm defendido a não aplicação do instituto com o fundamento na sua desnecessidade, nos poucos benefícios que o seu uso traria e no elevado investimento financeiro que deveria ser feito para possibilitar o trabalho de maneira efetiva.

Essa discussão tem tomado grandes proporções principalmente nos tempos atuais, em que os direitos humanos têm tomado uma certa prioridade e, na medida que vão se internacionalizando, vão se tornando mais fortes e, consequentemente, de cumprimento obrigatório, sempre em busca de uma proteção mais eficiente. Assim, é possível afirmar que tal internacionalização de direitos humanos e, principalmente, da legislação que prevê a existência das audiências de custódia tem contribuído de maneira eficaz para a aplicação do instituto.

Considerando a audiência de custódia um direito humano fundamental, o desrespeito à sua aplicação pode causar uma omissão ou negligência por parte do estado frente a garantia de tais direitos. Ora, sendo o estado considerado garantidor de direitos e, a audiência de custódia um direito fundamental do preso, o estado não poderá desrespeitar as previsões legais, sob pena de desrespeito aos direitos fundamentais e ao seu principal objetivo.

A audiência de custódia, no Brasil, vem tentando combater a superlotação e a desumanização das penas que acontecem nas penitenciárias. A tentativa de apresentar imediatamente os presos ao juiz é a chance de proporcionar uma análise prévia de documentos e de fatos que, em muitas das vezes, poderá contribuir para um sistema prisional melhor. O contato pessoal do preso com as autoridades judiciárias é de extrema importância para a humanização da sua prisão, para que o detento entenda seus direitos e deveres e, também para o efetivo cumprimento da lei, análise de legalidade, entre outros benefícios.

As audiências de custódia visam um sistema prisional melhor, buscando efetivamente a aplicação das normas penais. E, é nesse sentido que o trabalho identificará a situação atual da implantação das audiências de custódia no Brasil. Para tanto, serão analisadas questões históricas tanto no cenário nacional quanto internacional, a consideração do referido instituto como direito fundamental, quais os fundamentos legislativos nacionais que defendem a aplicação das audiências de custódia e, por fim, os motivos que justificam a sua utilização.


2 PRINCIPIOLOGIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

2.1 Princípios da ampla defesa e contraditório

A Constituição Federal Brasileira prevê uma gama de princípios e garantias processuais penais e que devem ser seguidos em todas as esferas do Direito Penal Brasileiro. Além dos princípios elencados no texto constitucional, existem diversos tratados internacionais de direitos humanos que também dispõem sobre os princípios penais que devem ser seguidos. Tais princípios devem ser seguidos em todas as esferas de aplicação do Direito Penal, como por exemplo: no momento da prisão em flagrante, da instauração do inquérito, da audiência de custódia e durante todo o processo penal.

O princípio da presunção da inocência é a base de todo o processo penal. Ele preceitua que todo indivíduo é inocente até que existam provas contrárias e, que somente existe réu após a sentença penal. Outro princípio de extra importância é o contraditório e a ampla defesa. Em conformidade com o art. 5ª, LV, da Constituição Federal é garantido a todos os acusados o contraditório e ampla defesa[1].

Segundo Joaquim Canuto (1973), o princípio do contraditório deve ser compreendido com ciência bilateral dos atos do processo. Assim, o objetivo principal do contraditório está ligado à discussão dos fatos e, ao mesmo tempo, deve ser garantida a ambas as partes a fiscalização recíproca dos atos praticados em todo o processo penal.

Sobre o princípio do contraditório e ampla defesa, ensina Renato Brasileiro de Lima (2019, p. 54)

Eis o motivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubstanciada pela expressão em latim audiatur et altera pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois, portanto, os elementos do contraditório: a) direito à informação; b) direito de participação. O contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.

Como se vê, o direito à informação funciona como consectário lógico do contraditório. Não se pode cogitar da existência de um processo penal eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientificada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária.

Também é entendido como parte do princípio do contraditório e da ampla defesa o direito à participação no processo, oferecendo manifestações contrárias à acusação. Anteriormente, o contraditório era entendido somente como uma reação aos atos praticados no processo penal. Hoje esse pensamento mudou por conta do princípio da isonomia, diante da necessidade de igualar os desiguais algumas práticas processuais também tiveram que ser mudadas. Nesse sentido, leciona Badaró (2008):

(...) quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador.

Desse modo, o contraditório passou a ser uma espécie de garantia de equidade de tratamento, pois de nada vale assegurar o acusado a possibilidade formal de se pronunciar se não de forem dadas condições reais e efetivas para fazê-lo. É necessário manter o equilíbrio entre a acusação e a defesa e, o contraditório é justamente essa “paridade de armas” (NUCCI, 2015).

Conforme entendimento majoritário da doutrina, o uso do contraditório e ampla defesa somente é obrigatório na fase processual, eliminando a fase inquisitória. Isso porque o art. 5º, LV, da CF menciona a obrigatoriedade do contraditório somente em processo judicial ou administrativo com o intuito de obter provas quanto à existência e autoria do crime. Assim, considerando o inquérito um procedimento administrativo com o objetivo de coletar dados acerca da existência e autoria do crime, não será necessário o exercício do contraditório.[2]

Sobre o contraditório, leciona Fernando Capez (2016, p. 96):

A importância do contraditório foi realçada com a recente reforma do Código de Processo Penal, a qual trouxe limitação ao livre convencimento do juiz na apreciação das provas, ao vedar a fundamentação da decisão com base exclusiva nos elementos informativos colhidos na investigação, exigindo-se prova produzida em contraditório judicial, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (cf. art. 155). O legislador manteve, dessa forma, a interpretação jurisprudencial já outrora sedimentada, no sentido de que a prova do inquérito não bastaria exclusivamente para condenação, devendo ser confirmada por outras provas produzidas em contraditório judicial. Ressalva a lei as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Assim, o contraditório permite uma participação dialética na produção de provas dentro do processo judicial. Essa produção se dá por meio de indagações que têm o objetivo de buscar a verdade dos fatos. Assim, a partir de tais opiniões adversas o limite de cognição do magistrado é ampliado e a certeza da autoria e existência dos fatos também aumentam.

2.2 Princípios basilares do direito processual penal

Além do contraditório, outro princípio basilar do processo penal é o da ampla defesa. Tal princípio refere-se ao direito de autodefesa e de defesa técnica do acusado, o direito de ter assistência jurídica integral aos hipossuficientes. Desse modo, a ampla defesa decorre da obrigatoriedade do acusado ter uma defesa no processo judicial em qualquer momento processual, ou seja, após qualquer manifestação do Ministério Público, é obrigatório que o juiz dê ao acusado a oportunidade de se defender (DE LIMA, 2019, p. 152)[3].  

Outros princípios também são essenciais ao direito penal, a fim de garantir o cumprimento da lei e os direitos do acusado. Também são considerados princípios basilares do processo penal o princípio da imparcialidade do juiz, da igualdade processual, da demanda, da disponibilidade ou indisponibilidade, da oficialidade, da verdade formal, do impulso oficial, da lealdade processual, da publicidade, economia processual, celeridade processual, duplo grau de jurisdição, entre outros princípios (CAPEZ, 2016, p. 54).[4]

O princípio de grande importância para o Direito Processual penal e que garante ao acusado o direito de silêncio é o princípio da não autoincriminação. Conforme o art. 5º, LXIII, da CF, após ser informado de seus direitos, o preso poderá manter-se calado frente os questionamentos feitos pela autoridade, sob pena de macular a ilicitude da prova já produzida. Ou seja, o acusado poderá confessar ou informar dados sobre o crime, porém, caso entenda que a sua fala seja prejudicial à sua defesa, ele poderá manter-se em silêncio[5].

O silêncio do acusado não poderá ser considerado como presunção de culpa e, sobre ele também não poderão recair penalidades. Inclusive, a não observância e informação ao preso de seu direito de silêncio pode gerar nulidade e a desconsideração de todas as informações obtidas antes da manifestação ou silêncio, causando inúmeros danos à investigação e ao processo penal.

A não autoincriminação é um direito do acusado, advindo da dignidade da pessoa humana, onde ele não será obrigado a oferecer provas e nem corroborar para a produção de provas em seu desfavor. De maneira específica, no que tange à audiência de custódia, o princípio da não incriminação também deverá ser observado. Nesse ato, deve ser dada uma atenção especial à explicação ao preso do seu direito de silêncio. Além da não autoincriminação, a audiência de custódia deve observar os preceitos legais para que o ato não seja considerado nulo e que tal fato não prejudique as provas produzidas até então (NUCCI, 2015).

Nesse mesmo sentido, afirma Renato Brasileiro (2019, p. 74):

Impõe-se, pois, que qualquer pessoa em relação à qual recaiam suspeitas da prática de um ilícito penal seja formalmente advertida de seu direito ao silêncio, sob pena de ilicitude das declarações por ela firmadas. Deve constar expressamente do auto de prisão em flagrante, por conseguinte, a informação a respeito do direito ao silêncio conferido ao indiciado, “reputando-se como não formulada se dela não houver qualquer menção”.

Vale ressaltar que o preso deve ser advertido formalmente quanto ao seu direito de silêncio, porém, a sua eventual entrevista à imprensa, antes ou depois do interrogatório, que sejam gravadas sem a ciência do acusado não podem ser consideradas provas, uma vez que estão revestidas de ilicitude. Tal situação tem gerado inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais, devendo sempre a autoridade advertir o preso do seu direito de silêncio, sob pena de sofrer as consequências jurídicas de suas declarações.

2.3 Direitos fundamentais do preso e a audiência de custódia como direito fundamental

Os direitos fundamentais são reconhecidos internacionalmente e restam positivamos na ordem interna de cada Estado. São considerados direitos fundamentais aquelas garantias inerentes ao ser humano e que limitam o poder do estado. De acordo com Siqueira Junior e Oliveira (2010, p. 24):

Os direitos humanos reconhecidos pelo Estado são denominados de direitos fundamentais, vez que via de regra são inseridos na norma fundamental do Estado, a Constituição. (...) Com o intuito de limitar o poder político estatal, os direitos humanos são incorporados nos textos constitucionais, apresentando-se como verdadeiras declarações de direitos do homem, que juntamente com outros direitos subjetivos públicos formam os chamados direitos fundamentais. Essa categoria de direito é na realidade uma limitação imposta aos poderes do Estado. Os direitos fundamentais são essenciais no Estado Democrático: formam a sua base, sendo inerentes aos direitos e liberdades individuais.

A Constituição Federal Brasileira elenca em seu artigo 5º, diversos direitos fundamentais do preso, são eles:[6]

  1. Direito à preservação da integridade física e moral (art. 5º, XLIX), da CF);
  2. Direito da detenta de amamentar seu filho (art. 5º, L, da CF);
  3. Direito e acesso ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF);
  4. Direito ao contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, da CF);
  5. A proibição de provas ilícitas (art. 5º, LVI, da CF);
  6. Presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF);
  7. Não submissão à identificação criminal quando o indivíduo for identificado civilmente (art. 5º, LVIII, da CF);
  8. Não ser preso senão em virtude de flagrante ou decisão fundamentada, salvo nos casos de transgressão militar ou crimes militares (art. 5º, LXI, da CF);
  9. Direito de comunicação imediata à autoridade judiciária e a família após a prisão (art. 5º incisos LXII e LXIII, da CF);
  10. Direito ao silêncio (art. 5º, LXIII, da CF);
  11. Direito de conhecer a identidade dos responsáveis pela sua prisão (art. 5º, LXIV, da CF);
  12. Direto ao relaxamento imediato da prisão ilegal (art. 5º, LXV, da CF);
  13. Direito à liberdade quando a legislação permitir liberdade provisória com ou sem fiança (art. 5º, LXVI, da CF);
  14. Direito à assistência judiciária gratuita quando o acusado não possuir condições financeiras para arcar com as custas processuais e advogado particular (art. 5º, LXXIV, da CF);
  15. Direito à indenização por erro judiciário (art. 5º, LXXV, da CF);

Daí é possível concluir que o direito à audiência de custódia é um direito fundamental, uma vez que a própria Constituição Federal reconhece, mesmo que implicitamente, tal garantia em seu artigo 5º, LXII e LXIII. Ademais, o art. 2º do mesmo instituto legal prevê que os direitos e garantias constitucionalmente expressos não excluem outro derivamos de regimes e princípios adotados por tratados internacionais.

O fato da Constituição Federal não ter previsão expressa das audiências de custódia, outras maneiras de reconhecimento surgem, como por exemplo, o reconhecimento em tratados internacionais em que o Brasil faça parte. O art. 5º da CF, §3º prevê a possibilidade de que os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos recebam valor equiparado a emendas constitucionais, desde que aprovadas em quórum qualificado.[7]

Desse modo, a Constituição Federal passou a ter uma função constitucional-garantidora, buscando uma maior aplicação e reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais. Porém, embora o próprio texto constitucional reconheça normas de direito fundamental previstas em tratados internacionais, muitas polêmicas têm surgindo em âmbito doutrinário e jurisprudencial. O entendimento majoritário confere às normas internacionais uma supralegalidade, ou seja, reconhecem a superioridade das normas de direito fundamental internacional frente às normas do Código de Processo Penal. E, com base nesse fundamento, o instituto da audiência de custódia foi inserido no direito brasileiro, apesar se não apresentar previsão expressa na legislação pátria.


3 CONCEITO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Segundo Mesquita (2015, p. 04), as audiências de custódia são consideradas direitos do acusado, em situação de prisão em flagrante, de ser conduzido sem demora à presença de um juiz para que este decida sobre a manutenção da sua prisão. Na audiência estarão presentes o preso e seu defensor, o juiz e o representante do Ministério Público.

A audiência terá como principal objetivo analisar os principais aspectos ligados à prisão, principalmente no que tange a sua legalidade e necessidade. Na oportunidade também serão analisadas possíveis irregularidades, como por exemplo, a ocorrência de maus tratos e demais prejuízos aos direitos do preso. Nas audiências de custódia, as decisões ficarão limitadas somente a aspectos formais da prisão, não podendo ser analisado o mérito do crime (CAPEZ, 2016, p. 56).

Nas palavras de Mesquita (2015, p. 05), a audiência de custódia pode ser definida como:

(...) um mecanismo de humanização, que visa o combate e prevenção à tortura e aos maus-tratos à pessoa presa, ao mesmo tempo em que serve de garantia de controle judicial sobre a necessidade e legalidade das prisões provisórias, já que há muito se busca encontrar um meio de prévio e célere para controle das mesmas, ou de reduzir a sua ocorrência, ou mesmo de expandir a aplicação de meios alternativos ao encarceramento.

A audiência de custódia está prevista no direito processual penal de diversos países pelo mundo, também sendo objeto de diversos tratados internacionais que visam a produção dos direitos humanos da pessoa presa. Dentre os diplomas legais que fundamentam a utilização do referido instituto no direito processual penal brasileiro é o tratado de Pacto de São José da Costa Rica e, determinadas previsões constitucionais e processuais penais.

3.1. Histórico e previsão legal da audiência de custódia

Em 1992, A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, passou a dispor, em seu Art. 7º, item 5, que toda pessoa detida deveria ser conduzida à presença do juiz ou qualquer outra autoridade autorizada a exercer funções judiciais para ser julgada em tempo hábil e posta em liberdade, caso não resulte dano ao resultado do processo.

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal [...] 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Apesar das audiências de custódia estarem previstas na convenção ratificada pelo Brasil, mesmo após o ano de 1992 o referido instituto não foi incorporado ao Código de Processo Penal, tampouco era utilizado no dia a dia processual. Vale ressaltar que o CPP (Código de Processo Penal) foi criado em 1941, época da ditadura, onde o regime político era extremamente autoritário e previa dois extremos: a prisão e a liberdade. Na época, caso o infrator fosse preso em flagrante, este continuaria preso durante toda a fase processual na mesma modalidade de prisão (DE LIMA, 2019, p. 154).

De acordo com o CPP a exceção era a liberdade, tendo como regra a prisão. Tal fato gerou inúmeros questionamentos e discussões doutrinárias ao longo do tempo, o que motivou algumas mudanças no CPP. No ano de 2011, foi criado um projeto de lei nº 554/2011, com o propósito de alterar o disposto no art. 306, do CPP, prevendo o prazo máximo de 24h para que o preso fosse apresentado a autoridade judicial competente.

O projeto de lei, previa a alteração do art. 306, do CPP da seguinte maneira:

§1º. No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º. Na audiência de custódia de que trata o §1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310. § 3o. A oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º. A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5o. A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.

Antes mesmo da aprovação do Congresso Nacional, diante de vários questionamentos o Conselho Nacional de Justiça em união com vários Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais passaram a adotar resoluções e provimentos com o propósito de implementar as audiências de custódias, já previstas da Convenção Americana de Direitos Humanos. Como exemplo tem-se o estado de São Paulo, que editou o Provimento Conjunto de nº 03/2015 determinando que o infrator preso seja apresentado a autoridade judiciária no prazo máximo de 24h após a sua prisão (DE LIMA, 2019, p. 155).

Somente em 2019 o referido instituto foi incorporado ao Código de Processo Penal, por meio da Lei nº 13.964/19 e alterou o texto do artigo 310 para a seguinte forma:

Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:

I - relaxar a prisão ilegal; ou

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

§ 1º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.

§ 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.

§ 3º A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.

§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva. 

Assim, as audiências de custódia surgiram no ordenamento jurídico brasileiro como uma maneira de agilizar uma audiência após uma prisão, seja ela de qualquer modalidade (flagrante, preventiva ou temporária). A audiência de custódia permite o contato imediato do preso com o Ministério Público, o juiz e seu defensor, seja ele público, dativo ou particular.

3.2. Implantação da audiência de custódia no Brasil e seus procedimentos

De acordo com Renato Brasileiro, (2019 p. 156), as audiências de custódia são uma espécie de contato “sem demora” do preso com o judiciário. O autor, em sua obra, também faz uma breve análise do uso do referido instituto em outros países. Vejamos:

Em prática em inúmeros países, dentre eles Peru, Argentina e Chile, a audiência de custódia tem 2 (dois) objetivos precípuos: 1) coibir eventuais excessos como torturas e/ou maus tratos; 2) no caso específico da prisão em flagrante, conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para fins de convalidação judicial (CPP, art. 310), é dizer, para ter mais subsídios quanto à medida a ser adotada - relaxamento da prisão ilegal, decretação da prisão preventiva (ou temporária), ou imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 310,1, II e III), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP.

            Um dos principais objetivos da audiência de custódia é reduzir a superpopulação carcerária, uma vez que o contato mais próximo com o preso e com o caso concreto, proporciona ao juízo um melhor nível de ciência e, consequentemente, melhor fundamentação na tomada de decisões. Assim, é possível que nos casos onde a privação da liberdade é prescindível, o juiz autorize a liberdade do acusado e evite a superlotação em presídios nacionais.

Apesar da Lei dispor que o prazo para a apresentação do preso ao juiz é de 24h, tal assunto ainda é motivo de grande controvérsia na doutrina e jurisprudência brasileira. Muitos doutrinadores entendem que o prazo de apresentação do preso deve ser imediato, ou seja, sem demora, mas não em 24h improrrogáveis, uma vez que cada caso deve ser analisado com a sua particularidade, além de levar em consideração a fragilidade do sistema judiciário brasileiro. Nesse sentido, leciona Renato Brasileiro de Lima (2019, p. 156):

Há grande controvérsia acerca do prazo para a realização da audiência de custódia. O Pacto de São José da Costa Rica não determina a apresentação “imediata” da pessoa presa, mas, sim, que a pessoa presa seja conduzida “sem demora” à presença de um juiz. Conforme precedentes de Cortes Internacionais de Direitos Humanos, “sem demora” pode ser considerado “poucos dias”, a ser analisado caso a caso, e não 24 horas improrrogáveis (...) Aliás, curiosamente, quiçá por reconhecer a existência de um crônico quadro de fragilidade institucional (...) No cenário do possível, do exequível, do realizável, enfim, por reconhecer que o prazo de 24 (vinte e quatro) horas não é factível, partilhamos do entendimento no sentido de que a audiência de custódia deve ser realizada num prazo mais compatível com a realidade brasileira, qual seja, em até 72 (setenta e duas) horas

De acordo com o autor, apenas no segundo semestre de 2012 foram efetuadas 8.108 prisões em flagrante em São Paulo, ou seja, mais de 90 prisões diárias. Desse modo, para ele, o prazo de 24h para a realização da audiência necessita ser maior, uma vez que o transporte demanda tempo, a logística de escolta é demorada, entre outros procedimentos que, se realizados em grande quantidade demandam prazo superior a 24h. Porém, embora o prazo da audiência de custódia pudesse ser maior, o autor defende que o laudo pericial de corpo de delito dos presos deve ser feito impreterivelmente em 24h, sob pena de desaparecerem eventuais vestígios ou marcas de torturas (DE LIMA, 2019, p. 158).

A resolução nº 213, do CNJ orienta o magistrado como deve ser a entrevista do preso no momento da audiência:

I – esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas;

II – assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;

III – dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;

IV – questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;

V – indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;

VI – perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;

VII – verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que: a) não tiver sido realizado; b) os registros se mostrarem insuficientes; c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado; d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando-se a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito;

VIII – abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante; IX – adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;

X – averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar

Desse modo, é inadmissível na audiência de custódia produção de provas ou a antecipação da instrução. Segundo a doutrina, caso o magistrado optasse pela antecipação da instrução penal, ele violaria o princípio da imparcialidade e assumiria a figura de juiz inquisidor, exercendo uma atividade incompatível com a sua de garantidor das leis. Muitos doutrinadores também afirmam que durante a audiência o juiz deverá formular perguntas sobre a vida do preso, como por exemplo, local de residência, profissão, estado civil e outras informações que considere necessárias para avaliar a situação econômica do preso e decidir se será concedida a liberdade provisória com ou sem fiança. Portanto, momento da audiência de custódia somente tem com finalidade avaliar as circunstâncias da prisão

Segundo Renato Brasileiro (2019, p. 950), caso ocorram algumas das situações listadas no art. 185, §2º, do CPP é permitido que a audiência de custódia ocorra por meio eletrônico, através de videoconferência ou outro meio tecnológico de transmissão de vídeo e áudio em tempo real, desde que seja possível observar os direitos fundamentais do preso. Vale ressaltar que em sua maioria, as audiências de custódia são presididas por juízes de plantão e, as decisões proferidas por eles não carretam prevenção. Por isso, após a decisão do juiz de plantão em audiência de custódia, o processo seguirá o procedimento normal de distribuição.

O autor ensina ainda que a audiênci-a de custódia se resume no juízo preliminar sobre a legitimidade da prisão, na necessidade da sua manutenção, possibilidade de relaxamentos ou substituição por outras penas. Embora o juiz possa reconhecer a atipicidade da conduta com o objetivo de relaxar a prisão, tal decisão não pode ser equiparada a uma decisão de mérito (DE LIMA, 2019, p. 952)

Nesse mesmo sentido, o STF julgou um recurso de Habeas Corpus da seguinte maneira:

Vigésima primeira Ata de Publicação de Acórdãos, realizada nos termos do art. 95 do RISTF.

HABEAS CORPUS 157.306 (842)

ORIGEM : 157306 - SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

PROCED. : SÃO PAULO

RELATOR :MIN. LUIZ FUX

PACTE.(S) : ---------

IMPTE.(S) :----- (296848/SP)

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão : A Turma, por maioria, denegou a ordem, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Falaram: o Dr. Marcelo Feller pela Paciente, e a Dra. Cláudia Sampaio Marques, Subprocuradora-Geral da República, pelo Ministério Público Federal. Presidiu, este julgamento, o Ministro Luiz Fux, Vice-Presidente no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, 25.9.2018.

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E DE CORRUPÇÃO DE MENOR. ARTIGO 288 DO CÓDIGO PENAL E ARTIGO 244-B DA LEI Nº 8.069/90. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. EXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE JUÍZO ACERCA DO MÉRITO DE EVENTUAL AÇÃO PENAL. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”.

2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes.

3. O habeas corpus, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal vigente (Art. 656 do CPP).

4. A audiência de apresentação consubstancia-se em mecanismo de índole constitucional dirigido a possibilitar ao juízo natural formar seu convencimento acerca da necessidade de se concretizar qualquer das espécies de prisão processual, bem como de se determinar medidas cautelares diversas da prisão, nos termos dos artigos 310 e 319 do Código de Processo Penal, porquanto não reserva espaço cognitivo acerca do mérito de eventual ação penal, sob pena de comprometer a imparcialidade do órgão julgador.

5. A separação entre as funções de acusar defender e julgar é o signo essencial do sistema acusatório de processo penal, porquanto a atuação do Judiciário na fase pré-processual somente se revela admissível com o propósito de proteger as garantias fundamentais dos investigados (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón Teoría del Garantismo Penal. 3ª ed., Madrid: Trotta, 1998. p. 567).

6. In casu, o juízo plantonista apontou a atipicidade da conduta em sede de audiência de apresentação, tendo o Tribunal de origem assentado que “a pretensa atipicidade foi apenas utilizada como fundamento opinativo para o relaxamento da prisão da paciente e de seus comparsas , uma vez que o MM. Juiz de Direito que presidiu a audiência de custódia sequer possuía competência jurisdicional para determinar o arquivamento dos autos. Por se tratar de mero juízo de garantia, deveria ter se limitado à regularidade da prisão e mais nada, porquanto absolutamente incompetente para o mérito da causa. Em função disso, toda e qualquer consideração feita a tal respeito – mérito da infração penal em tese cometida – não produz os efeitos da coisa julgada, mesmo porque de sentença sequer se trata”.

7. O trancamento da ação penal por meio de habeas corpus é medida excepcional, somente admissível quando transparecer dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade. Precedentes: HC 141.918-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, Dje de 20/06/2017 e HC 139.054, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 02/06/2017.

8. O habeas corpus é ação inadequada para a valoração e exame minucioso do acervo fático probatório engendrado nos autos.

9. Ordem denegada.

Desse modo, embora apresente resultados bastante satisfatórios ao sistema prisional brasileiro, o instituto da audiência de custódia tem encontrado inúmeras dificuldades para a sua implantação e, consequentemente, para o aproveitamento das vantagens trazidas por ela.


4. Críticas e obstáculos à realização de audiências de custódia no país

Embora a utilização das audiências de custódia no Brasil apresente inúmeros benefícios para o direito brasileiro, a sua implantação gera muitas divergências doutrinárias. O principal obstáculo para a não utilização desse instituto a análise de custo e benefício, fundamentando que os benefícios trazidos são poucos e os custos muito elevados.

Além disso, muitos doutrinadores afirmam que pelo fato do Brasil não apresentar uma estrutura judiciária de qualidade, os resultados desejados pelo instituto não serão alcançados da forma como se espera. Assim, muitos doutrinadores têm disseminado o seu descrédito e apontado que o aumento no número de prisões não tem relação com a cultura de encarceramento ou de falha de estrutura judiciária, mas sim, relação com questões sociais que favorecem o crescimento da criminalidade.

Para Cassiolato (2014) a população carcerária brasileira é realmente muito elevada, porém, grande parte desse número decorre de questões sociais, como por exemplo, desigualdade social, preconceitos, falta de oportunidades, entre outros fatores. Para o autor, o elevado número de presos não deriva da falta de condições e instrumentos processuais, mas sim, única e exclusivamente de questões sociais.[8]

Outro ponto de extrema importância levantado pelos doutrinadores é o etiquetamento social, segundo Barbosa (2015, p, 25):

Em outras palavras, a audiência de custódia é reflexo de uma política com discurso humanista, mas com manutenção da prática do labeling approach, pois de nada adianta o juiz ver ou "olhar no olho" do conduzido, se tem uma mentalidade de entiquetamento. A capacitação deveria ultrapassar a esfera da forma, do procedimento, e alcançar uma política minimalista de alterações estruturais com vistas à expansão da liberdade, aumentando as ferramentas para a manutenção da presunção de inocência, o que também é previsto no art. 8, item 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Além disso, o renomado doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2015) enumerou uma série de argumentos que considera obstáculos para a implementação da audiência de custódia no Brasil.

Em suma: a) durante 23 anos, o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é o mesmo; somente agora, alguns descobriram que o Brasil o descumpre seguidamente; b) se é um direito humano fundamental, em todos os lugares onde não há audiência de custódia, os flagrantes devem ser imediatamente relaxados, pouco importando o caso concreto; c) se juízes precisam conversar com o réu para dar-lhe algum benefício, devemos transportar o interrogatório novamente para o início da ação penal; d) o projeto-piloto em S. Paulo (é interessante um experimento com direito humano fundamental indisponível…) vale-se do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais), onde os juízes são designados e removíveis a qualquer tempo; e) o sistema no Brasil não consegue transportar réus para as audiências, mas certamente haverá um imenso número de agentes (policiais?) para levá-los todos os dias à frente do juiz; f) a audiência de custódia, se tão importante, deveria estender- se ao Tribunal, para que também o desembargador/ministro possa conversar com o réu e sensibilizar-se; g) se a avaliação da autoridade policial não vale nada, visto que o preso precisa ir à frente do juiz, o destino dos delegados vai mudar completamente; passarão a sair às ruas para investigar e, prendendo, leva-se direto ao juiz; o auto de prisão em flagrante é inútil; h) os defensores, hoje, da audiência de custódia, como um direito fundamental, demoraram a acordar para isso (apenas 23 anos); mas já que o fizeram e estão despertos, convém levar logo ao STJ e ao STF a questão, por meio do habeas corpus para padronizar para todo o Brasil se sim ou se não a audiência de custódia; h) não há essa previsão no CPP; o STF tem a tendência de equiparar tratados a lei federal; de todo modo, mesmo que se considere a referida Convenção acima de qualquer lei, segundo nos parece, quem deve legislar sobre o procedimento nacional a ser adotado para a audiência de custódia é o Poder Legislativo e não o CNJ, nem qualquer Tribunal Regional ou Estadual. A isto se chama legalidade, que vem sendo vilipendiada por um número excessivo de portarias, resoluções, provimentos e similares, originários dos mais diversos órgãos, sem o menor apego à função do legislador em matéria de direito criminal. Enfim, o mito dessa audiência é que ela é essencial para tirar presos provisórios do seu calvário.

Segundo Nucci (2015) a audiência de custódia não passa de um mito, onde os benefícios trazidos por ela estão muito aquém da expectativa. Esse também é o sentimento de diversos julgadores que defendem a ideia de que a audiência de custódia e o contato pessoal com o preso não muda em nada a análise sobre a legalidade da prisão e eventual liberdade do acusado. Desse modo, diversos são os posicionamentos acerca da aplicabilidade da audiência de custódia, suas vantagens e desvantagens.

4.1 Vantagens da audiência de custódia

A aplicabilidade das audiências de custódia divide as opiniões dos doutrinadores. Muitos considerado o instituto muito vantajoso para o procedimento penal, como por exemplo Aury Lopes Junior e Caio Paiva (2014). Para os autores, inúmeras são as vantagens trazidas pelas audiências de custódia, como por exemplo, tornar o processo penal brasileiro compatível com os tratados internacionais de direitos humanos, reduz a superlotação carcerária e promove a humanização da prisão através do contato entre juiz e preso.

Segundo Mesquita (2015, p. 11), além da diminuição da população carcerária, o instituto diminui ilegalidade das prisões, prisões desnecessárias e demais erros formais em relação às prisões de maneira eficiente. Além disso, o autor também afirma que a humanização do processo penal torna a prisão mais eficiente, uma vez que é requisito essencial para a realização da audiência a presença de seu advogado, garantindo assim o princípio constitucional do contraditório e ampla defesa. Na mesma oportunidade, caso o juiz entenda pela liberdade do acusado, poderão ser definidas medidas cautelares diversas de prisão.

Embora apresente inúmeras vantagens, os doutrinadores reconhecem o longo e árduo caminho que deve ser seguido para que os resultados desse instituto sejam efetivamente os desejados. Segundo Aury Lopes e Caio Paiva (2014), para que as audiências de custódia realmente produzam seus efeitos, devem ser seguidas algumas regras, como por exemplo, a apresentação dos presos em qualquer dia da semana, incluindo fins de semana e feriados, o judiciário deverá apresentar uma estrutura compatível com as atividades que serão exercidas e o controle constante dos resultados dessa experiência. Assim, afirmam os autores que o instituto é capaz de trazer inúmeros benefícios ao processo penal, porém, são necessários esforços para que os resultados sejam eficientes.


5 CONCLUSÃO

Após inúmeras análises legislativas e bibliográficas é possível perceber a existência de conflitos e questionamentos sobre a aplicabilidade das audiências de custódia no direito brasileiro. Porém, embora o instituto apresente elevado custo financeiro e demande uma estrutura judiciária capaz de atender as suas necessidades, os resultados trazidos por ele são eficientes.

A audiência de custódia se tornou uma forma de solução da superlotação carcerária e, além disso, um método de humanização da prisão. A partir da análise rápida acerca da legalidade da prisão e dos direitos do preso, verificada a desnecessidade da prisão, o juiz poderá conceder liberdade ao preso. Além disso, o tratamento direto e pessoal permite uma maior eficiência da legislação penal, que busca a prevenção de delitos. Outro ponto de bastante importância é o respeito aos direitos fundamentais do preso pelo Estado, fazendo jus ao seu papel de garantidor de direitos.

Assim, mesmo que o instituto demande uma série de requisitos para a sua aplicabilidade, as vantagens trazidas por ele valem a pena, sendo possível afirmar que a audiência de custódia deve ser usada e é uma grande aliada ao procedimento penal brasileiro.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de jun de 2020.

[2] BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de jun de 2020.

[3] DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 7. Ed. Salvador: Juspodivm, 2019.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[5] BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de jun de 2020.

[6] BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de jun de 2020.

[7] BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de jun de 2020.

[8] CASSIOLATO, Bruno Luiz. Considerações sobre audiência de custódia: pontos positivos e negativos. Disponível em: http://www.apamagis.com.br/website/Ler. php?type=1&id=33994. Acesso em: 10 de jun de 2020.



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