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Ensaio sobre o fenômeno jurídico da regressão de regime

Ensaio sobre o fenômeno jurídico da regressão de regime

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Sumário: 1. Introdução. 2. Execução da pena privativa de liberdade: o sistema progressivo. Um breve escorço. 3. Hipóteses legais de regressão. 3.1 Prática de crime doloso. 3.2 Prática de falta grave. 3.3 Incompatibilidade do regime pela somatória de pena em condenação de crime anterior. 3.4 O uso de aparelhos de telefonia celular em estabelecimentos penitenciários. 4. As garantias fundamentais: contraditório e ampla defesa.


1 – Introdução

          A execução penal é o derradeiro compartimento do sistema penal1, responsável pela concreção das conseqüências jurídico-penais do delito2, após o acolhimento, em definitivo, da pretensão punitiva estatal cristalizada em título executivo judicial condenatório.

          A fim de prevenir a ordem e os mais importantes bens jurídicos das condutas humanas típicas, ilícitas e culpáveis que rompem os limites da tolerância social, não basta que a fragmentária ultima ratio do ordenamento jurídico preveja um comportamento proscrito e a ele comine uma sanção, pois eventuais rupturas sociais causadas pela desinteligência dos homens são previsíveis e demandam do Estado a atuação concreta da lei penal, através de um processo no qual se colima o decreto condenatório.

          Neste momento, os agressores dos bens mais estimados da sociedade são censurados pelo Estado-juiz, operando a transgressão como fundamento e limite da ação punitiva estatal, proporcional à magnitude do delito e da culpabilidade3.

          Nesta esteira, teoriza o Direito Penal que a imprescindível e justa reação jurídica ao injusto culpável é a resposta estatal retributiva do mal causado pelo delinqüente; um desigual objurgado imerso no meio social afligido. Despojá-lo de certas liberdades com o intuito de ressocializá-lo é um dos fins da pena: impedir sua degeneração, incutir-lhe a noção de comportamento preventivo e oportunizar a reconquista da condição de igual perante seus pares, também são efeitos esperados.

          Conceitualmente, a pena4 revela-se como a privação de bens jurídicos, dos mais caros ao indivíduo – como a liberdade, a outros também sensíveis – como direitos e patrimônio, aplicável, na medida da lei e pelos órgãos jurisdicionais pré-constituídos, àquele que viola uma norma penal incriminadora.

          Sua execução é fenômeno enfeixado em normas constitucionais, cujo conteúdo garantidor gravita em torno de esteios humanitários, como a dignidade da pessoa humana, sendo sua relevância político-criminal palmar, havendo-se a lei em desvelar-se à garantia de sua individualização e intranscendência, conforme preceitua a Carta da República de 19885 que, em ato de legítima recepção, reconhece-as como corolários dos comandos principiológicos da responsabilidade penal subjetiva e da culpabilidade.

          A disciplina do tema fica ao encargo das normas gerais do Código Penal, de conformidade com as quais deverão ser executadas as espécies de penas admissíveis no Brasil. Contudo, é a Lei de Execução Penal (LEP) – Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984 – quem estabelece as regras concretas e específicas para a execução penal.


2 – Execução da pena privativa de liberdade: o sistema progressivo. Um breve escorço.

          Durante a elaboração da sentença penal condenatória, deve o magistrado, trilhando as fases da dosimetria da pena6, fixar o regime inicial de cumprimento da pena que, para se conformar ao objeto deste artigo, deve ser considerada unicamente a privativa de liberdade, pois as demais formas de coerção penal7 não são executadas sob as regras do sistema progressivo.

          Os regimes de cumprimento de pena – fechado, semi-aberto e aberto8 - direcionam-se para maior ou menor intensidade de restrição da liberdade do condenado9 e, uma vez iniciado o cumprimento da coima privativa do status libertatis, permite-se, em razão da adoção, pelo nosso ordenamento, de um sistema progressivo, a transferência do condenado10 para um regime menos ou mais rigoroso11.

          Neste contexto, não seria de todo forçoso afirmar que a lei indica ao condenado a senda para a conquista paulatina de sua liberdade. Fixar os requisitos condicionantes da retomada gradual da liberdade12, significa agraciar o sentenciado com o segredo da abertura da porta que o conduz a um regime menos severo. Ao impor-lhe a reprimenda, o Estado dá, ao apenado tolhido da liberdade, a mobilidade legal suficiente de executá-la de modo a abreviar sua privação.

          Entretanto, a progressividade da execução da pena privativa de liberdade revela um caminho de mão dupla: a progressão e a regressão de regime. Enquanto na progressão evolui-se de um regime mais rigoroso para outro menos rigoroso, na regressão dá-se o inverso13.

          Nas hipóteses legais de regressão de regime, permite-se que aquele que esteja cumprindo a pena privativa de liberdade em regime aberto seja transferido para o regime semi-aberto ou mesmo fechado, ou que o sentenciado a regime semi-aberto passe ao regime fechado14.


3 – Hipóteses legais de regressão de regime.

          O radical normativo disciplinador é o artigo 118 da Lei de Execução Penal15 que, em seu caput, introduzindo o perfil do instituto, prescreve, nas hipóteses em que discrimina, a submissão da execução da pena privativa de liberdade à forma regressiva com a transferência do condenado para qualquer dos regimes mais rigorosos (sic), inferindo-se daí, como já assinalado, a permissão legal de transferência do acoimado em regime aberto para o regime semi-aberto ou, diretamente, para o regime fechado (regressão per saltum).

          Ponto interessante, e digno de nota, refere-se ao sujeito condenado pela prática de crime punido com pena de detenção. De acordo com o caput do artigo 33 do Código Penal, a pena de detenção deve ser cumprida em regime aberto ou semi-aberto, devendo o magistrado, no momento da condenação, observar com rigor esta determinação legal para fins de fixação da pena. Entretanto, durante a execução da reprimenda de detenção, o sentenciado, se der causa à regressão de regime, pode cumpri-la em regime fechado, com autorização legal constante da parte final da regra penal precitada.

          3.1 – Prática de crime doloso.

          Em sua primeira hipótese, determina a lei a regressão de regime para o condenado que praticar fato definido como crime doloso. O verbo empregado pela lei para caracterizar a ação indesejada, cujo resultado rende ao sentenciado o retorno à situação prisional desfavorável, denota que o simples início da execução da conduta delituosa, isto é, a colocação em marcha dos meios escolhidos para o alcance do fim almejado, é a causa suficiente para a decretação da regressão de regime.

          Não há que se perquirir acerca da necessidade de eventual indiciamento ou processamento contra o autor do injusto culpável. Nem há de se exigir a consumação do delito ou a espera pelo trânsito em julgado do decreto condenatório.

          Neste sentido, a 5º Turma do STJ, em julgado da lavra do eminente Ministro relator Felix Fischer, assim ementou o Resp 601836/RS:

          "PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. REGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL. PRÁTICA DE CRIME DOLOSO. ART. 16 DA LEI Nº 6.368/76. O art.118, inciso I, da Lei de Execução Penal estabelece que o apenado ficará sujeito à transferência para o regime mais gravoso quando praticar fato definido como crime doloso ou falta grave. In casu, o apenado foi preso em flagrante pela prática, em tese, do delito previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, quando do gozo do benefício da saída temporária, razão pela qual se mostra cabível a regressão de regime. Recurso provido".

          Ainda, o mesmo colegiado, sob a relatoria do douto Ministro Gilson Dipp, pronunciou-se no Resp 766611/RS:

          "CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. FALTA GRAVE. FATO DEFINIDO COMO CRIME DOLOSO. TRÂNSITO EM JULGADO. DESNECESSIDADE. REGRESSÃO DE REGIME. RECURSO PROVIDO.

          I – O cometimento de fato definido como crime doloso, durante o cumprimento da pena de reclusão em regime semi-aberto, justifica a regressão cautelar do regime prisional inicialmente fixado.

          II – A configuração da falta grave independe do trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

          Acompanhando o posicionamento e acrescentando idéia paralela de que a determinação judicial de regressão de regime não viola o princípio da presunção de inocência16, a Sexta turma do STJ, no Resp 564971/RS exarou o entendimento de que ao que se extrai da letra da lei, ao condenado que incide nas disposições dos incisos I e II do 118 da Lei nº 7.210/84, é imposta a regressão ao regime de cumprimento de pena mais gravoso, não havendo falar em violação do princípio da presunção de inocência, uma vez que a permanência do apenado em regime menos rigoroso implica, à evidência, o cumprimento das condições impostas, dentre as quais, as restrições de não praticar fato definido como crime doloso ou mesmo falta grave.

          E vinca que não há exigir, em tais casos, trânsito em julgado da condenação pela nova infração, na exata razão de que reduziria a um nada a efetividade do processo de execução, exigindo-se, por isso mesmo, um quanto de certeza suficiente quanto ao crime e sua autoria, bem certificada pelo recebimento da denúncia.

          É de se registrar, ainda, que o inciso em comento refere-se à prática de crime doloso, não tendo sido abrangida a prática de crime culposo e de contravenção penal. Mas isto não quer significar que a execução de pena privativa de liberdade, nestes dois casos, permanecerá irretocável. Veja-se ponto interessante que viceja.

          A Lei de Execução Penal, no parágrafo primeiro, de seu artigo 118 – dispositivo de ampla abrangência - prevê a sanção ao sentenciado que comete delito culposo ou liliputiano. Tome-se a seguinte hipótese: sentenciado que, em cumprimento de pena em regime aberto, pratica um injusto culposo ou um crime anão.

          Como se está a falar de uma das formas de cumprimento de pena, cujo conteúdo não é objeto de análise exaustiva por este ensaio, notas superficiais a seu respeito serão traçadas, a se iniciar afirmando que, ao regime aberto de cumprimento de pena destinam-se os condenados aptos a viver em semiliberdade, ou seja, aqueles que, por não apresentarem periculosidade, não desejarem fugir, possuírem autodisciplina e senso de responsabilidade, estão em condições de dele desfrutar sem pôr em risco a ordem pública por estarem ajustados ao processo de reintegração social17.

          Neste regime, a execução da pena dá-se em casa de albergado ou estabelecimento adequado – leia-se, regime domiciliar – de modo a permitir ao sentenciado uma experiência de liberdade concreta, e não apenas simulada, pois tem oportunidade de viver e de trabalhar como um homem livre, embora ainda esteja cumprindo pena18.

          Ora, se nesta prisão aberta o apenado pratica um crime culposo ou uma contravenção penal, o fracasso de sua ressocialização é evidente. Tais condutas são incompatíveis com as regras norteadoras do período de prova a que se sujeita o condenado. São comportamentos inesperados daqueles que almejam o retorno ao convívio no meio social do qual foram segregados por terem agido gravemente violando os bens mais relevantes da coletividade. Neste sensível momento, o cometimento de infrações penais desta natureza de modo nenhum homogeneíza-se com os fins da pena ou, nas acertadas palavras da lei, frustra os fins de sua execução. Daí, revelando-se a sanção acima prometida, a possibilidade jurídica de regredi-lo ao regime mais severo, consoante previsão do parágrafo primeiro, do artigo 118 da LEP19.

          3.2 - Prática de falta grave

          Por sua vez, a prática de falta disciplinar pelos condenados dá causa à aplicação de sanções disciplinares20, previstas na lei, sem prejuízo da ação penal, se o fato também constituir crime. A intensidade da falta é graduada em leve, média e grave, sendo que sobre esta, além da sanção disciplinar correspondente, incide o fenômeno da regressão de regime, conforme determina o inciso I, do artigo 118 da LEP.

          Para o fim da punição, a lei considera a falta tentada como se consumada fosse21.

          O artigo 50 da Lei nº 7.210/84, enumera, exaustivamente, as hipóteses de falta grave cometidas pelo condenado à pena privativa de liberdade. Em virtude da compreensão cristalina que se obtém da mera leitura de algumas dessas hipóteses, nestas, dispensar-se-á o aprofundamento.

          São faltas graves à pena privativa de liberdade:

          I – incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina;

          Participar significa colaborar com o movimento de subversão utilizando meios materiais ou morais, enquanto que incitar tem o sentido de induzir, excitar, estimular os companheiros à prática de atos que atentem contra a ordem na ambiência prisional. Mesmo que o movimento não ocorra, a falta grave restará consumada. Ainda, de nada importa o fim almejado pelo movimento para a configuração e consumação da falta grave22.

          O STJ, no julgamento do HC 25225/PR, queda-se jungido à linha decisória que o perfila anos a reio:

          "EXECUÇÃO PENAL. ROUBO. RÉU QUE LIDEROU REBELIÃO EM PRESÍDIO. REGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE. COMETIMENTO DE FALTA GRAVE. O cometimento de falta grave justifica a regressão de regime prisional. Precedentes. Ordem denegada".

          Consigne-se que o Código Penal, em seu artigo 354, tipifica o crime de motim de presos, cominando pena de detenção de 06 meses a 02 anos, além da pena correspondente à violência, cujo preceito primário tem a seguinte descrição: amotinarem-se presos, perturbando a ordem ou a disciplina da prisão.

          II – fugir;

          Malgrado a clareza de redação do dispositivo legal, vale o comentário de que a fuga do estabelecimento penitenciário, bem como sua tentativa, configura falta grave23, não importando se, durante o período em que permanecer evadido, por ele forem praticados atos de violência ou atos danosos ao patrimônio, além de ser indiferente se o sentenciado foi auxiliado na fuga.

          Não desconstitui a natureza disciplinar grave da fuga, o retorno voluntário do condenado ao presídio, conforme se posicionou a Quinta turma do STJ, no julgamento do HC 37.236/SP.

          III – possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrém;

          IV – provocar acidente de trabalho;

          V – descumprir, no regime aberto, as condições impostas;

          Tangente ao tema, o descumprimento, no regime aberto, das condições impostas caracteriza falta grave a operar a regressão.

          As condições gerais e obrigatórias do regime aberto, sem prejuízo das especiais a serem fixadas pelo juízo da execução ou da condenação, estão elencadas no artigo 115 da Lei de Execução Penal e são as seguintes: a) permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga; b) sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados; c) não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial e d) comparecer a juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for determinado.

          VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V do art. 39 desta Lei.

          Os comandos mencionados dão conta de que desobedecer ao servidor, desrespeitar a qualquer pessoa com quem deva ter relacionamento ou deixar de executar o trabalho, as tarefas ou ordens recebidas são causas de regressão de regime.

          O artigo 52 do Estatuto da Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 10.792/2003, prescreve que prática de crime doloso constitui falta grave, acrescentando essa hipótese ao rol acima discriminado. Desta forma, o sentenciado que praticar crime doloso, além de ver-se regredido à qualquer dos regimes mais rigorosos, também será punido disciplinarmente pela falta grave cometida, sem prejuízo da ação penal cabível.

          Em nome do espírito acadêmico, acresça-se que, se do fato ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, o condenado estará sujeito à aplicação de sanção disciplinar de inclusão no regime disciplinar diferenciado (RDD)24, a ser determinada pelo juiz competente a pedido do diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa, sempre precedida das manifestações do Ministério Público e da defesa.

          3.3 - Incompatibilidade do regime pela somatória de pena em condenação por crime anterior.

          Para melhor inteligência desta específica hipótese, é relevante fincar alguns pontos do momento processual penal da aplicação da pena.

          O magistrado, na configuração da pena, deve estabelecer o regime inicial de seu cumprimento, observando-se, dentre vários, os seguintes critérios legais25: para a pena definitiva maior do que 08 anos, fixa-se o regime inicial fechado; para o condenado não reincidente à pena definitiva que repousa entre 04 a 08 anos, o regime inicial será o semi-aberto; e, por fim, para o condenado não reincidente à pena definitiva menor do que 04 anos, aplica-se o regime aberto, salvo disposição especial em legislação extravagante26.

          De acordo com o inciso II, do artigo 118 da Lei de Execução Penal, o sentenciado que sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, tornar incabível o atual regime, será regredido ao regime a ser determinado pelo resultado da soma ou unificação das penas27.

          Doutrinador de referência nacional em matéria de execução penal, o culto professor Maurício Kuehne leciona que a condenação por fato pretérito à execução em curso, por si só, não induz à regressão, eis que, se a somatória não inviabilizar a permanência do réu no regime em que se encontre, a regressão não se operará28.

          3.4 – O uso de aparelhos de telefonia celular em estabelecimentos prisionais.

          Pululam nos veículos de comunicação de massa, notícias dando conta do acesso fácil e irrestrito de aparelhos de telefonia celular aos condenados que cumprem pena em estabelecimentos prisionais. O instrumento eletrônico tem servido à satisfação dos desejos pessoais dos reclusos, bem como meio de facilitação da comunicação entre indivíduos encarcerados em distintos estabelecimentos penais com a finalidade de, em unidade de desígnios, planejar, arquitetar e consumar, concomitantemente, movimentos subversivos da ordem e disciplina de vários destes estabelecimentos, além de promover, fora dos limites dos presídios, atos atentatórios à segurança da sociedade e de seus indivíduos.

          Esta é uma hipótese que, por não constar do exaustivo rol do artigo 50 da LEP, não caracteriza falta grave.

          Enfrentando o tema, não quanto ao mérito, mas tão-somente quanto ao conflito de competência legislativa sobre matéria de execução penal instaurado entre União e Estado membro, recentemente manifestou-se a Quinta Turma do STJ, no HC 49.163/SP29:

          "O rol previsto no art. 50 da LEP é taxativo, pois ao legislador local cabe apenas definir as faltas de natureza média e leve (art. 49 da LEP), excluído enumerar as faltas graves. Ora, na espécie, o Estado de São Paulo extrapolou o comando do art. 49 da LEP, visto que estabeleceu como sendo falta grave o porte de aparelho de telefonia celular ou seus componentes do interior dos presídios. Logo, a Turma concedeu a ordem para que seja retirada a anotação da falta na folha de antecedentes e no roteiro de penas do paciente".

          Há de muito o país padece a nocividade da atividade legislativa inflacionária e testemunha, mais uma vez, o enésimo exemplo da produção de leis sob o efeito do bramido público. A título informativo, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 136/200630 que visa a alterar a Lei de Execução Penal para, no rol das faltas disciplinares grave, acrescentar o inciso VII ao seu artigo 50 a fim de considerar falta grave a conduta de "ter em posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar que permita a comunicação com outros presos ou com ambiente externo".


4. As garantias fundamentais: contraditório e ampla defesa.

          Diz o Estatuto da Execução Penal, no parágrafo 2º, de seu artigo 118 que, nos casos de regressão de regime determinada pela prática de crime doloso ou falta grave, frustração dos fins da execução em regime aberto ou não pagamento, quando possível, de pena pecuniária cumulativamente imposta, deverá ser ouvido, previamente, o condenado.

          Não há como tocar na temática sem referenciar sua matriz constitucional, responsável pelo grande impulso dado ao estudo do processo, à luz dos direitos fundamentais. O tema, afeto à disciplina processual, é vasto e, tocando-o tangentemente, segue-se em breves notas.

          A tutela constitucional do processo caracteriza-se por ser garantista e expressiva da idéia de que o sistema processual sustenta-se na noção do devido processo legal. Em seu aspecto formal, o due process of law exprime o entendimento de que ninguém pode ser privado da vida, da liberdade ou do patrimônio senão em processo ou procedimento nos quais se materializam todas as exigências e formalidades da lei, dentre as quais se encontram o contraditório e a ampla defesa que, assim como o princípio basilar do processo, estão previstos expressamente na Lei Maior, no título destinado aos direitos e garantias fundamentais, permitindo-se, daí, rotulá-los como direitos fundamentais processuais, inabaláveis à ação do legislador constituinte, eis que são cláusula pétrea.

          A Carta Federal, promulgada 04 anos após a edição da Lei nº 7.210/84, ampliando a proteção da precitada norma infraconstitucional – que se limitou a assegurar a prévia oitiva do condenado antes de regredi-lo - reservou, ao lado do contraditório, a garantia da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral31.

          Ora, de nada adiantaria o contraditório sem a presença de figura que lhe é conexa: a ampla defesa, porquanto não há contraditório sem defesa e não há defesa sem contraditório. No brilhante ensinamento do professor Delosmar Mendonça Jr., o contraditório é o instrumento de atuação do direito de defesa, ou seja, esta se realiza através do contraditório32.

          Ademais, o comando constitucional, nos termos em que se expressa, não diferenciou a aplicabilidade da garantia ao tipo de processo, se judicial - civil ou penal – ou administrativo, abrangendo, desta forma, os procedimentos que acolhem os incidentes da execução penal.

          Esta rasa análise fenece ao argumento de que o teor do dispositivo constitucional em comento, segundo respeitável doutrina e jurisprudência, robustece-se substancialmente com a moderna compreensão do contraditório como o direito fundamental à participação em contraditório33: noção aprimorada, resultante do processo de sua evolução conceitual cujo início partia do binômio: informação e reação.

          Destarte, e agora no campo da execução penal, o juiz da execução não pode decretar de imediato a regressão do regime, pois há necessidade de instauração de procedimento incidental34, no qual será ouvido em contraditório o sentenciado, sendo admissível a produção de provas.

          Assim, em se tratando de medida definitiva, o Estado-juiz, antes de decretar a regressão de regime, sob pena de configurar constrangimento ilegal remediável via Habeas Corpus, deverá assegurar ao condenado a oportunidade do contraditório e ampla defesa no sentido amplo e efetivo que lhes imprime a Carta Política, seguindo os autos, então, ao Ministério Público para elaboração de parecer.

          Neste sentido, entendimento pacífico do STJ consubstanciados nos Resp 77.4957/RS, Resp 765988/RS, Resp 771096/RS, RHC 17924/PR, HC 21141/RJ, RHC 16899/SP, HC 42415/SP, Resp 685537/RJ, HC 41164/SP, Resp 681884/RJ e HC 27544/RJ.

          Malgrado ululante, em se tratando de condenação definitiva por crime doloso, dispensa-se a oitiva prévia.

          Como derradeira observação, em abono do caráter acadêmico deste ensaio, consigna-se que das decisões judiciais proferidas em sede de execução penal, inclusive a decretação de regressão de regime, cabe recurso de agravo sem efeito suspensivo35.


NOTAS

          1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 1997, p.70.

          2 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p.513.

          3 ob. cit. p. 523.

          4 A Constituição Federal do Brasil dispõe que "não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis" (art. 5º, XLVII).

          5 Neste ponto, a Magna Carta, insculpindo os valores cardeais da execução penal, ao lado dos densos e fundantes comandos axiológicos da culpabilidade, da humanidade e da intranscendência, assegurou sua individualização, cabendo à lei sua regulamentação, conforme art. seu 5º, XLVI.

          6 A despeito da discussão doutrinária relativa ao número de fases que comporiam a tarefa judicial de aplicação da pena, o Código Penal, em seu artigo 68, adotou o critério trifásico, também denominado critério Nelson Hungria que decompõe a dosimetria da pena em: a) fixação da pena base (circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal), b) incidência de agravantes e atenuantes e, c) causas especiais de aumento ou diminuição da pena.

          7 Conforme magistério do culto mestre Zaffaroni, as espécies de sanções penais são denominadas manifestações da coerção penal, admitida sua divisão em material e formal, sendo que, nesta, encontra-se, isoladamente, a figura jurídica da medida de segurança.

          8 Para o entendimento e diferenciação dos regimes de cumprimento de pena, vide artigo 33, §1º, alíneas "a", "b" e "c" do Código Penal e artigos 87 a 95 da Lei de Execução Penal que tratam dos estabelecimentos penais para cumprimento de pena.

          9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 8ºed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.430.

          10 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 540.

          11 A reforma penal de 1984 adotou o sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, conforme se constata da disposição do artigo 33, §2º do Código Penal: "As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, (...)". Registre-se que, malgrado ainda permaneça a disposição literal "segundo o mérito do condenado" no Diploma Penal, a Lei nº 10.792/2003 comprometeu a real avaliação judicial sobre o cumprimento do requisito subjetivo do apenado para o deferimento da progressão de regime, eis que, uma vez banidos o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Avaliação, a verificação da habilitação subjetiva do sentenciado ao benefício compete ao diretor do estabelecimento prisional ao atestar o bom comportamento carcerário do recluso.

          12 Sobre a forma pela qual desenvolve-se a progressividade da execução da pena privativa de liberdade, reza o art. 112 da Lei de Execução Penal: "A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinado pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão".

          13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 8ºed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 431.

          14 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p.543.

          15 Art. 118 da LEP: "A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave; II – sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne incabível o regime".

          16 Ainda sobre o não induzimento à violação da presunção de inocência, o mesmo STJ no RHC 18344/PR.

          17 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei 7.210/84. 9.ed. São Paulo: Atlas. p.255.

          18 PIMENTEL, Manoel Pedro. Sistemas penitenciários. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 639, p.271.

          19 Art. 118, parágrafo primeiro da LEP: "O condenado será transferido do regime aberto se, além das hipóteses referidas nos incisos anteriores, frustrar os fins da execução ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta". Relativo à parte final deste parágrafo, preconiza-se que o condenado solvente deve efetuar o pagamento da pena pecuniária nos termos do artigo 164 e seguintes da LEP. Com a alteração do artigo 51 do Código Penal e a revogação do artigo 182 da Lei de Execução Penal pela Lei nº 9.268/96, grande desinteligência a respeito da execução da pena de multa foi instaurada. O panorama conflitante do tema nos apresenta, atualmente, que o não pagamento do valor da pena pecuniária pelo condenado solvente não a converte em pena privativa de liberdade, pois a multa será considerada, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, dívida ativa, aplicando-se-lhe os preceitos relativos à dívida pública da Fazenda, cuja ação será promovida pelo órgão responsável do Fisco, conforme têm se manifestado a Corte Suprema e o Superior Tribunal de Justiça, a despeito de corrente minoritária que defende o Ministério Público no pólo ativo da ação executiva, ao argumento de que a multa não perderia seu caráter penal. Abordada a questão atinente ao pólo ativo da execução da pena pecuniária imposta, convém frisar que o seu não pagamento não dá causa à regressão, tendo em vista a nova redação do artigo 51 do Código Penal.

          20 As espécies de sanções disciplinares são, segundo artigo 53 da Lei nº 7.210/84: advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos, isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo e inclusão no regime disciplinar diferenciado (RDD).

          21 Art. 49, parágrafo único da Lei nº 7.210/94.

          22 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei 7.210/84. 9.ed. São Paulo: Atlas. P. 137.

          23 Neste sentido, STJ, Sexta turma, no HC 43569/RJ.

          24 Vide artigos 53, V e 54 e parágrafos da Lei nº 7.210/94.

          25 Art. 33, §2º, alíneas "a", "b" e "c", combinado com art. 59, todos do Código Penal.

          26 Há certas leis que excepcionam as regras do Código Penal para a fixação de regime inicial de cumprimento de pena para certos delitos como, por exemplo: Lei nº 9.034/95 (lei de combate a organizações criminosas), Lei nº 9.613/98 (lei de "branqueamento de capitais") e Lei nº 9.455/97 (lei do crime de tortura). De forma semelhante, há posicionamentos pretorianos que também causam semelhante efeito excepto, como se visualiza nos verbetes 718 e 719 da súmula do STF. Neste ponto, é importante repisar que, no julgamento do HC 82.959-7, relator Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º, do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, que determinava a fixação do regime integralmente fechado para os crimes hediondos e equiparados.

          27 Art. 111 da Lei nº 7.210/84: "Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição".

          28 KUEHNE, Maurício. Lei de Execução Penal Anotada. Curitiba: Juruá. 1999. p.269.

          29 Vide informativo de jurisprudência do STJ nº 284.

          30 As justificativas apresentadas pelo autor do projeto, Senador César Borges, ao projeto de Lei nº 136/2006 são as seguintes: injustificável ausência de previsão do uso de aparelho de telefone celular no rol das faltas disciplinares graves de nossa Lei de execução Penal; uso do telefone celular para comandar e articular ações criminosas a partir de estabelecimentos penais e a recente onda de violência no Estado de São Paulo, em que o PCC alvejou várias instituições públicas e privadas da capital, toda ação orquestrada a partir das penitenciárias pelos líderes da organização criminosa.

          31 Art. 5º, LV da Constituição Federal do Brasil.

          32 MENDONÇA Jr, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Ed., 2001, p.55.

          33 DIDIER JR., Fredie. Direito Processual Civil, Bahia: Ius Podium. 2004. p.25.

          34 A Lei de Execução Penal regula o procedimento judicial na fase da execução da pena nos artigos 194 a 197.

          35 Art. 197 da Lei nº 7.120/84.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANONI, Lísias Camargo Andrade. Ensaio sobre o fenômeno jurídico da regressão de regime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1090, 26 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8563. Acesso em: 18 abr. 2024.