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Análise jurídica de intervenção humanitária internacional

Análise jurídica de intervenção humanitária internacional

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Este estudo analisa a legalidade das intervenções humanitárias internacionais, colocando frente a frente dois valores amplamente discutidos no âmbito internacional: a soberania estatal e os direitos humanos.

Sumário: Introdução - 1. A soberania estatal frente à necessidade de intervenção humanitária; 1.1.A violação ao princípio da soberania; 1.1.1. A quebra da soberania quando de uma intervenção supra-estatal; 1.2. A legalidade da intervenção humanitária supra-estatal - 2. O direito de intervenção para a proteção dos direitos humanos; 2.1. O direito humano à proteção internacional; 2.1.1 A jurisdição internacional dos direitos humanos; 2.2. A garantia de proteção aos direitos humanos fundamentais; 2.3. A doutrina e as intervenções humanitárias à luz da Carta da ONU - 3. O direito de intervenção supra-estatal em caso de emergência humanitária; 3.1. A legitimidade das intervenções humanitárias; 3.1.1 O artigo 2.7 da Carta da ONU e a jurisdição doméstica dos Estados; 3.1.2 O que se entende por situações de emergência humanitária; 3.2. Teoria Relativista; 3.3. Teoria Universalista - 4. A teoria universalista em resposta ao princípio da soberania; 4.1. A legitimidade da intervenção humanitária supra-estatal para proteger os direitos humanos; 4.2. A proteção dos direitos humanos acima de qualquer suspeita de ilegalidade.


Palavras-chave: Direitos Humanos - Declaração Universal de Direitos Humanos - Intervenção Humanitária - Emergência Humanitária – Soberania.


Resumo

          O principal objetivo deste estudo implica analisar a legalidade das intervenções humanitárias internacionais, colocando frente a frente dois valores amplamente discutidos no âmbito internacional, quais sejam, a soberania estatal e os direitos humanos. Para isto, abordar-se-á a corrente discussão sobre o dilema que se enfrenta quando se trata da intervenção humanitária. Por um lado, há o consentimento, que remonta à idéia da soberania e guia toda e qualquer questão do Direito Internacional. Por outro lado, a garantia da manutenção dos direitos fundamentais do ser humano é tida por alguns como algo que está acima de qualquer norma, seja doméstica ou internacional


Introdução

          O presente artigo trata de analisar o aspecto jurídico das intervenções humanitárias, sobretudo daquelas ocorridas após a Segunda Guerra Mundial.

          Pretende-se, em linhas gerais, apresentar os fundamentos teóricos em que a problemática da intervenção humanitária é embasada, expor alguns conceitos-chave para a abordagem do tema e avaliar as tendências mais atuais dessa discussão.

          A questão coloca em xeque antigas noções de soberania e de jurisdição estatal. Isso porque, para tratar-se de intervenção humanitária, é necessário que se compreenda que não há Estado absolutamente independente, nem se pode invocar a soberania estatal como escudo de proteção para evitar que se proteja e promova os direitos humanos de indivíduos que estão tendo estes direitos violados dentro das fronteiras dos Estados.

          Este entendimento se traduz na noção de que direitos humanos não fazem parte apenas da jurisdição interna dos Estados. Direitos humanos são prerrogativas que todos os indivíduos, em qualquer tempo, devem ter e das quais ninguém pode ser privado sem que haja uma grave ofensa à justiça, que é direito humano devido a todos os indivíduos.

          Com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, foram consagrados valores de cunho universal a serem seguidos por todos os Estados, fundados no respeito da dignidade humana.

          Em verdade, a preocupação crescente com os direitos humanos começou a ser delineada após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo em razão dos horrores do holocausto. A comunidade internacional passou a perceber e a reconhecer que a proteção de direitos é questão de seu legítimo interesse.

          A partir de então, e mais efetivamente após a Declaração Universal, começam a serem criados parâmetros globais de ação dos Estados internacionais e a garantia dos direitos humanos, por serem estes inerentes a todos os indivíduos do planeta, adquiriu status erga omnes.

          Surge então a atual Ordem Mundial, quando a proteção dos direitos humanos se reveste de uma importância jamais idealizada na história do homem. Neste ínterim, reativam-se as controvérsias no que diz respeito às intervenções humanitárias. As preocupações com o respeito à dignidade do indivíduo legitimam o interesse da sociedade internacional, uma vez que o direito humano passa a integrar o patrimônio comum da humanidade.

          Em verdade, por não tratarem os direitos humanos de direitos de jurisdição unicamente interna dos Estados soberanos, não há discussão quanto à legalidade das intervenções de cunho humanitário, de acordo com o art. 2.7 da Carta das Nações Unidas.

          O estudo divide-se em quatro partes. Primeiramente se busca desmistificar o conceito de soberania para o mundo atual. Faz-se uma abordagem histórica do conceito preocupando-se simultaneamente em demonstrar o progresso da noção primitiva de soberania e a noção que é proposta hodiernamente. Fala-se ainda neste primeiro momento a respeito do costume internacional no que tange ao princípio da não-intervenção. Finaliza-se afirmando a legalidade das intervenções humanitárias.

          A segunda parte do estudo versa sobre a importância da ação de intervenção humanitária para a proteção aos direitos humanos. Destaca-se o direito humano à proteção internacional, haja vista que o que acontece com os indivíduos em qualquer parte do mundo não faz parte da jurisdição interna dos Estados apenas. Faz-se alusão à garantia dada pela Carta das Nações Unidas de que não há diferenciação entre os indivíduos e de que todos têm direito à proteção internacional.

          A seguir, delimita-se as situações em que são legítimas as ações de intervenções humanitárias, configurando nestas o maciço sofrimento humano de indivíduos. Acena para a legitimidade das intervenções humanitárias, colocando em embate duas correntes: uma, a Relativista, que basicamente trata das intervenções como uma forma de colonização disfarçada, de países ricos contra países pobres; e a segunda corrente, a Universalista, defendida neste trabalho, que diz ser justa qualquer iniciativa internacional desde que para a proteção e garantia dos direitos humanos.

          A última parte deste trabalho trata de confrontar a Teoria Universalista com a noção de soberania estatal, e a utilização desta soberania como escudo para proteger os Estados de sofrerem intervenção em razão de desrespeito aos direitos humanos. Ainda, finaliza-se o trabalho com a defesa de que a proteção dos direitos humanos está acima de qualquer suspeita de ilegalidade.


1.A soberania Estatal frente a necessidade de intervenção humanitária

          1.1.A violação ao princípio da soberania

          O Tratado de Vestfália, datado de 1648, foi um marco para a sociedade européia daquele século. Na medida em que restabeleceu a paz na Europa, inaugurou uma nova fase na história política daquele continente ao propiciar o triunfo da igualdade jurídica dos Estados. Tal igualdade eliminou o poder supremo da Igreja e conferiu aos Estados o direito e o poder de negociarem livremente como únicos responsáveis nas políticas internacionais.

          No período que antecedeu Vestfália, imperava na Europa a teoria do direito divino, ou seja, de que todo o poder vem de Deus. S. Tomás, citado por Darcy Azambuja, "distingue no poder três elementos: o princípio, o modo e o uso. O princípio do poder reside em Deus, criador de todas as coisas. Mas o modo e o uso vêm dos homens, a fonte humana da soberania é o povo" [01]. Ou seja, Deus era o princípio e a fonte de todo o poder, e um representante divino de Deus dentre o povo, era titular deste poder dito soberano.

          Até o século XV, entendia-se a soberania como um poder perpétuo e ilimitado, que se sujeitava apenas às leis divina e natural. Acreditava-se na necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante, no sentido de os súditos despojarem-se do seu poder soberano e o transferirem inteiramente ao representante divino.

          Mais adiante, no século XVI, alguns autores, com destaque para Thomas Hobbes, passam a publicar idéias que se contrapunham à origem divina do poder, afirmando sua origem popular enraizada num contrato político: "a soberania, que residia primitivamente em todos os homens, passa a ser propriedade da autoridade criada pelo contrato político. Essa autoridade, que pode ser um homem ou alguns homens, é um mandatário com poderes ilimitados, indiscutíveis e absolutos. O contrato que criou o poder, ou o Estado, não pode ser rescindido jamais, porque isso importaria em a humanidade voltar à anarquia do estado de natureza. O Estado é um Leviatã, monstro alado, que sob suas asas poderosas abriga e prende para sempre o homem" [02]

          Nesse contexto, Thomas Hobbes acredita que a soberania é absoluta, uma vez que houve total transferência dos poderes dos súditos para o soberano.

          As definições subseqüentes do termo soberania traziam com muita freqüência o termo ilimitado associado à idéia de soberania. Entendia-se até então soberania como poder irrevogável, absoluto e ilimitado pelo qual qualquer Estado independente é governado. A exemplo, Jean Bodin, francês que viveu no século XVI, prega o poder de uma república como absoluto e perpétuo, excluindo a existência de qualquer outro poder equivalente dentro do Estado e, ainda, nega a existência de um Estado sem poder soberano.

          A idéia de poder supremo e incontestável que estava no seio da soberania fez com que aparecessem pensadores que passaram a discordar desta noção. Discutindo a legitimidade do poder soberano, Leon Duguit analisa a soberania, fazendo uma crítica à sua origem divina, que, segundo ele, utilizando-se da onipotência do termo, o Estado legitima o abuso do poder, já que este vem de Deus.

          Com o passar dos tempos, nota-se uma mudança conceitual do termo soberania conforme as formas de organizações do poder. A mais difundida definição de soberania, adotada por várias Constituições, consagra-se na Europa, mais precisamente em 1789, na Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quando o termo soberania firmou-se trazendo em sua essência características de indivisibilidade, inalienabilidade, imprescindibilidade e unidade [03]

          Soberania é sinônimo de poder que não reconhece outro superior. Os Estados contemporâneos ainda se pretendem soberanos. No Estado Moderno, "a soberania é sempre sócio-jurídico-política, ou não é soberania. É esta necessidade de considerar concomitantemente os elementos da soberania que nos permite distingui-la como uma forma de poder peculiar ao Estado Moderno" [04].

          Um Estado soberano é autônomo, independente e tem poder supremo. "A vontade de um Estado soberano não depende de nenhuma outra vontade. É a vontade suprema garantida, se necessário pela força coatora de que dispõe, pela própria natureza, a entidade estatal" [05]. Ou seja, a soberania se traduz na vontade própria do Estado, que, conseqüentemente, embasa a idéia característica de soberania, qual seja, a de supremacia interna e de independência internacional.

          No mundo atual, no entanto, o princípio da soberania vem sofrendo progressivos desgastes no sentido de atender às necessidades de uma nova ordem jurídica internacional.

          Alguns conceitos tradicionais, dando-se enfoque especial ao conceito de soberania, devem ser substituídos, sobretudo em virtude da nova realidade universal. Não é concebível, nos dias de hoje, referir-se ao termo soberania como um instrumento de poder ilimitado, indelegável, incontestável e intocável. O cenário global da atualidade pede um conceito de soberania que se molde às necessidades mundanas, agregando-se a ela uma concepção de cessão parcial interna ao Estado de seu poder soberano, o que tornaria mais eficaz a soberania externa de países nos grupos do mundo globalizado.

          À luz da ordem jurídica internacional são produzidos, a todo instante, tratados, convenções, realizadas conferências, tudo no sentido de traçar diretrizes para uma colaboração permanente dos Estados, tendo como fim a convivência pacífica global.

          A cessão parcial da soberania interna não implica de forma alguma uma perda do poder soberano, mas sim, embora exercida com limitações, significa uma qualidade ou atributo da ordem estatal.

          A máxima de que "soberania é a autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder" [06] já não é mais aceita para os padrões atuais. Enganam-se aqueles que acreditam que num mundo onde problemas gravíssimos como fome, guerra, genocídio, tortura e em que tantos outros crimes contra a humanidade tornam-se corriqueiros, possa-se falar em independência internacional. A soberania é limitável e deve corroborar com a atual imposição internacional de existência de uma interdependência de fato entre os Estados.

          A vida da sociedade mundial carece de um Estado moderno que se ajuste às necessidades supremas da humanidade, mostrando-se primária a limitação da soberania dos Estados, tornando-a ainda mais relativa à luz do Direito Internacional em nome da paz e do bem comum da nação globalizada.

          Um dos assuntos que vêm causando maior polêmica no que diz respeito à soberania de um Estado é justamente o tema central deste trabalho, qual seja, os direitos humanos.

          Existe hoje por parte de muitos juristas e internacionalistas, como Flávia Piovesan, o entendimento de que o princípio da soberania dos Estados deve ser colocado em segundo plano quando o assunto é defender os direitos humanos de pessoas expostas a sofrimentos e desrespeitos em crises humanitárias sujeitas à proteção internacional.

          Com efeito, no quadro do mundo contemporâneo, no que se refere aos direitos fundamentais da pessoa, os direitos humanos não fazem parte apenas da jurisdição doméstica dos Estados.

          Neste sentido, não há que se falar em violação ao princípio da soberania quando o assunto é garantir a proteção de direitos fundamentais frente à necessidade de defesa e promoção da dignidade da pessoa humana.

          1.1.1 A quebra da soberania quando de uma intervenção supra-estatal

          O Estado surgiu, sobretudo, da necessidade de organização dos indivíduos em comunidades e para a defesa de seus direitos fundamentais. Como leciona Celso Lafer, "O valor da pessoa humana enquanto conquista histórico-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem" [07]

          A esse respeito, deflui o autor supramencionado que enfaticamente defende em sua obra a figura do homem, acima de tudo, como pessoa humana: "cabe mencionar preliminarmente a substituição, em matéria de direitos humanos, do princípio da proteção diplomática, baseado no exercício da competência pessoal dos Estados, pelo da proteção internacional, que busca tutelar os direitos dos indivíduos qua indivíduos e não enquanto nacionais de qualquer Estado. É por esta razão que as Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos, posteriores à II Guerra Mundial, buscam ir além dos interesses específicos dos Estados, criando garantias coletivas. Estas procuram estabelecer obrigações objetivas em matéria de direitos humanos, que são vistas e percebidas como necessárias para a preservação da ordem pública internacional" [08].

          No que concerne às intervenções humanitárias, uma questão que se faz relevante, é saber da existência de um limite de razoabilidade a partir do qual uma violação de direitos fundamentais se faça legitimamente passível de uma intervenção humanitária e, conseqüentemente, torne o Estado no qual a violação está ocorrendo vulnerável à quebra de sua soberania.

          Entende-se que a sociedade internacional já desenvolveu um entendimento comum do que seja uma crise humanitária emergencial evidenciada pela sofisticação do atual regime de direitos humanos, estando ciente, portanto, de que casos excepcionais de sofrimento humano constituem uma exceção legítima ao princípio da soberania.

          Ainda, faz-se necessária uma reconsideração de toda a doutrina de não interferência entre nações internacionais pregada ao longo de séculos de história.

          Não é concebível argumentar que quando de uma situação de grave opressão e de violações graves aos direitos humanos o dever da sociedade internacional como um todo é ficar parado assistindo.

          Cumpre ressaltar que o principal objetivo da Carta das Nações Unidas é a manutenção da paz e da segurança internacional, como bem enfatiza em seu primeiro artigo do Capítulo I, quando trata dos objetivos e princípios da Carta: "Art. 1º. Os objetivos das Nações Unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e para esse fim: tomar medidas coletivas eficazes para prevenir e afastar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão, ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos, e em conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajustamento ou solução das controvérsias ou situações internacionais que possam levar a uma perturbação da paz".

          A preocupação com os direitos da pessoa humana, por certo, já era tema que causava receio antes de ser explicitada na Carta da ONU. No entanto, no que diz respeito à violação destes direitos, é clara a situação de gravames crescentes e incomuns aos titulares de direitos fundamentais da sociedade mundial.

          Inevitavelmente, a idéia de intervenção humanitária, por mais simpática que seja, coloca frente a frente dois conceitos importantes, que carregam em seu significado um universo de peculiaridades a serem tratadas ao longo deste estudo. Trata-se aqui do confronto entre o conceito de direitos humanos e de soberania estatal.

          É inevitável, nesse contexto de intervenção internacional, que se discuta a violação ao princípio da soberania, por séculos tido com o poder absoluto e inatingível. No entanto, é também inevitável que se defenda a quebra deste conceito de soberania frente a desgraças humanitárias, como, por exemplo, as vividas na época do holocausto.

          Como dito anteriormente, não há argumento que justifique uma posição passiva, e, portanto, de consentimento, quando da verificação de agressões humanitárias e gritantes desrespeitos aos direitos da pessoa humana em uma nação estrangeira.

          Por esta razão, entendem-se os direitos humanos como normas de proteção universal que não fazem parte apenas da jurisdição interna dos Estados. Não há que se falar, pois, em proteção ao princípio da soberania em restrição a uma vida humana.

          Nesse sentido, argumenta José Manuel Avelino de Pina Delgado: "Sem dúvida, depois da human right revolution, do ponto de vista do direito internacional positivo, o que os Estados fazem internamente no tocante ao tratamento de seus súditos é de interesse geral da humanidade" [09]

          1.2 A legalidade da intervenção humanitária supra-estatal

          Defender a legalidade das intervenções humanitárias supra-estatais não é tarefa fácil.

          Não existem no ordenamento internacional normas que disponham com clareza sobre o assunto, o que dificulta a sua definição como atitudes legais ou ilegais frente ao aparato judicial do direito das gentes.

          O conceito de intervenção humanitária será discutido repetidas vezes ao longo deste trabalho. Importa dizer neste momento, que intervenção humanitária, sinteticamente, é a intervenção internacional em território nacional motivada, unicamente, pela necessidade legítima de proteção aos direitos humanos de indivíduos que estão sendo desrespeitados maciçamente e por tempo prolongado.

          A discussão sobre a legalidade das intervenções humanitárias remonta a intervenção da OTAN no território do Kosovo, que serve de marco histórico no quadro internacional, pois mesmo sem a aprovação formal do Conselho de Segurança, a intervenção foi realizada.

          Importante diferenciar duas espécies de intervenção humanitária que existem do quadro contemporâneo do direito internacional, quais sejam, a intervenção humanitária unilateral, ou estrangeira, e a intervenção humanitária internacional ou coletiva. As intervenções unilaterais caracterizam-se por serem intervenções praticadas por país ou países estrangeiros nos domínios do território onde violações de diretos humanos estejam acontecendo. Este tipo de intervenção é aquela que precisamente não conta com a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, mesmo que tenha a aprovação da sociedade internacional. Diferentemente, as intervenções coletivas, são aquelas que além de contarem com a aprovação da sociedade internacional, são legitimadas pelo Conselho de Segurança para agir.

          Neste trabalho, apesar de ser ele em torno das intervenções humanitárias internacionais ou coletivas, não são condenadas as intervenções unilaterais, desde que sejam elas instrumentos de resguarde de direitos humanos, como àquelas previamente citadas, ocorridas durante a Guerra Fria

          Grande parte da doutrina hoje defende a idéia de intervenção humanitária como um instrumento de garantia dos direitos humanos, sendo por esta razão, um instrumento legítimo de proteção a estes direitos.

          Com sucedâneo no renascimento do internacionalismo kantiano, filósofos e juristas passaram a defender a legalidade das intervenções para proteger povos de violações maciças aos direitos humanos: "o sábio germânico, ao propor uma moral universal alicerçada no imperativo categórico, estabeleceu as bases de toda a internatinal human rights revolution. O mesmo Kant, recorrendo ainda à idéia estóica de cidadão do mundo, concebeu que o ser humano teria um valor intrínseco, devendo ser respeitado e protegido independentemente de sua nacionalidade ou pertença comunitária (o princípio da dignidade humana)" [10].

          No entanto, os desenvolvimentos dos últimos anos mostraram como o conceito de intervenção humanitária foi totalmente transformado e desviado do seu teor, sendo por muitos, hoje, encarado como sinônimo de guerra e horror.

          Com efeito, intervenção humanitária é um conceito bastante controverso e dá ensejo a intermináveis discussões, seja pelos fundamentos teóricos que a embasam, seja pelo seu trato em situações práticas.

          O período da Guerra Fria significou, no cenário global, um período de esforços da sociedade internacional, que, apesar de manter um relacionamento político truncado em razão da divisão do mundo em dois blocos, mostrou-se preocupada em não deixar que os horrores da guerra se repetissem em qualquer lugar do planeta.

          Um luta contínua para a reconstrução dos direitos humanos foi defendida por internacionalistas de todo o mundo. Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve ficar reduzida à jurisdição doméstica dos Estados, ou seja, não se pode restringir à competência interna exclusivamente, pois se trata, a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, de interesse legitimamente internacional.

          Nesse contexto, na tentativa de redimensionar a importância de proteção aos direitos humanos, são aprovadas em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

          À medida que se foi concretizando a nova perspectiva de proteção de direitos humanos em nível global com a proclamação de tratados mundiais e formação de uma nova concepção doutrinária no sentido de tirar os direitos humanos da jurisdição doméstica dos Estados, foram sendo também instituídos sistemas normativos regionais de proteção humanitária, particularmente, o sistema Americano, o Europeu, o Africano e, ainda, a Liga Árabe.

          O Direito Internacional dos Direitos Humanos começou a ser delineado com a Declaração de 1948 e hoje é assim conceituado por grande parte dos doutrinadores na matéria, tendo por primazia a dignidade da pessoa humana ao passo que, tomando por fundamento este princípio, os sistemas global, regionais e nacionais de proteção aos direitos humanos tendem a complementarem-se e jamais se contraporem.

          Nesse sentido é que se entende a justiça do instrumento de intervenção humanitária. Na medida em que a intervenção tem como escopo a proteção da integridade da pessoa humana, a preservação de sua dignidade e prevenção de violações maciças aos direitos fundamentais, julga-se a intervenção humanitária internacional um instrumento legal e legítimo para ações em Estados soberanos.

          A proteção universal dos direitos humanos é preceito que autoriza os Estados a intervirem para proteger e salvar pessoas de governos tirânicos. Bem verdade é que, "o Estado que não respeita os mais basilares direitos humanos, que oprime e castiga seus súditos, que faz discriminações graves contra parcelas de sua população por motivos étnicos, raciais, sexuais, religiosos e condutas similares, não têm, pelo menos do ponto de vistas moral, direito à soberania, à auto-determinação, à igualdade, entre outros" [11]

          Quando o próprio Estado é responsável pela promoção de políticas públicas exterminadoras, a exemplo das idéias difundidas à época do holocausto e, mais recentemente, sobretudo, as crises humanitárias em África, à sociedade internacional é dada legitimidade para intervir na tentativa de salvar vidas e por fim aos atentados contra as liberdades individuais de cada ser humano.

          O sofrimento humano de uma coletividade e a responsabilidade de garantia dos direitos fundamentais de todo e qualquer ser humano é premissa que está acima de qualquer norma, seja doméstica ou internacional.

          É com fundamento nesta assertiva que se tomam por legais as intervenções humanitárias, no intuito de prevenir ou afastar graves e maciças violações aos direitos humanos frente à omissão do Estado soberano onde estas violações tomam lugar ou mesmo em embate ao governo soberano que vem provocando desrespeitos humanitários ao seu próprio povo.


2 O direito de intervenção para proteção dos direitos humanos

          2.1 O direito humano à proteção internacional

          Os direitos humanos foram sendo reconhecidos ao longo dos séculos ao passo de uma libertação do ser humano e de sua conscientização da importância de ver respeitados seus direitos mais fundamentais.

          Importa dizer que os direitos humanos constituem direitos onipresentes no quotidiano de toda e qualquer pessoa humana e, neste sentido, devem ser protegidos e respeitados pelas comunidades regionais, internacionais e por cada um dos beneficiários destes direitos individualmente. É com propriedade que analisa Antônio Augusto Cançado Trindade quanto ao progresso de uma consciência humanitária no âmbito mundial: "Os direitos humanos têm um lugar cada vez mais considerável na consciência política e jurídica contemporânea e os juristas só podem se regozijar de seu progresso. Implicam eles, com efeito, um estado de direito e o respeito das liberdades fundamentais sobre as quais repousa toda democracia verdadeira, e pressupõem a um tempo um âmbito jurídico pré-estabelecido e mecanismos de garantia que assegurem sua efetiva implementação. Os direitos humanos tendem a tornar-se, por todo mundo, a base da sociedade" [12]

          Pode-se dizer que a real preocupação com os direitos humanos tem como marco inicial a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, documento que é fruto da Revolução Francesa do século XVIII, e que trouxe em seu texto a confirmação dos direitos "naturais, inalienáveis e sagrados do homem", como a liberdade e a igualdade.

          Sem dúvida, por seu caráter revolucionário e, sobretudo, pela importância sem precedentes que foi dada ao homem como titular de direitos fundamentais, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi um dos instrumentos que teve maior influência sobre os redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Contudo, deve-se salientar que grande parte dos direitos que têm proteção assegurada pela Declaração de 1948 emergiram somente durante a 2ª Guerra Mundial, quando o mundo se deparou com os horrores do holocausto e das mais diversas e trágicas formas de violação de direitos humanos cometidas pelo regime nazista. Com efeito, foi daí que as nações de todo o mundo que aderiram a Carta da ONU pautaram pela promoção dos direitos humanos e liberdades fundamentais como um dos principais propósitos a ser defendido pela Organização das Nações Unidas.

          Os direitos humanos adquiriram importância transcendental, haja vista ter ficado nítido para a sociedade internacional que estes direitos não pertencem unicamente à jurisdição interna de nenhum Estado, mas estão além das fronteiras territoriais, uma vez que se tratam de direitos que devem ser protegidos e assegurados por todos os países do mundo

          J. A. Lindgren Alves, ao tratar da falsa concepção ocidental que, não raramente, é dada à Declaração Universal, defende o seu ideal universal ditado pelo próprio nome que lhe foi dado: "As afirmações de que a Declaração Universal é documento de interesse apenas ocidental, irrelevante e inaplicável em sociedades com valores histórico-culturais distintos, são, porém, falsas e perniciosas. Falsas porque todas as Constituições nacionais redigidas após a adoção da Declaração pela Assembléia Geral da ONU nela se inspiraram ao tratar dos direitos e liberdades fundamentais, pondo em evidência, assim, o caráter hoje universal de seus valores. Perniciosas porque abrem possibilidades à invocação do relativismo cultural como justificativa para violações concretas de direitos já internacionalmente reconhecidos" [13]

          Neste ínterim, a importância dada pelo legislador brasileiro quando trata dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição ao garantir taxativamente a prevalência dos direitos humanos no art. 4º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil, reluz o caráter supranacional dado aos direitos fundamentais, que, por esta razão, devem constituir um sistema flexível, já que mesmo estando integrados com a lei maior, não se limitam a ela, sendo receptivos a princípios provenientes de regimes internacionais, inclusive (art. 5º, § 2º, da Constituição da república Federativa do Brasil).

          Tanto é verdade o caráter constitucional dos direitos humanos, que estes foram finalmente integrados à Constituição da República Federativa do Brasil na Emenda Constitucional nº 45, publicada em dezembro de 2004. Reza o art. 5º, §3º da CF/88: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

          Ou seja, com a aprovação deste dispositivo, ficou comprovada a tese defendida de conhecedores dos direitos humanos como Flávia Piovesan e Cançado Trindade, de que os direitos humanos, e todos os tratados e convenções relativos a este assunto que forem aprovados pelas Casas do Congresso Nacional através do devido processo legislativo, são normas de direito com status constitucional.

          Aliás, para o Brasil, esta Emenda Constitucional 45 tem, particularmente, muita importância. Isso porque, o Brasil, como em geral todos os países do Terceiro Mundo, vive em tão amarga pobreza que se cria um cenário perfeito para que as autoridades públicas disponham e abusem sobremaneira dos direitos fundamentais da pessoa humana. Deflui João Baptista Herkenhoff: "A situação de miséria fabrica os ingredientes que favorecem as violações pessoais. Por outro lado, essa situação de miséria é, por siso, a mais grave violação de Direitos Humanos porque é uma violação coletiva" [14]

          A Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, foi consolidada, sobretudo, para estabelecer um padrão comum para todos os povos e nações, uma vez que trouxe em seu seio a universalização dos Direitos Humanos. Portanto, a Declaração dirige o seu conteúdo e a sua validade a todos os povos, a todas as pessoas, não importando o Estado ou nação a que pertençam. A Declaração elevou o indivíduo a sujeito de direito erga omnes.

          Essa noção foi corroborada pela II Conferência Mundial de Direitos Humanos, a Conferência de Viena, em 1993, que reconheceu a universalidade dos direitos definidos pela Declaração Universal, ao passo que definiu a indivisibilidade desses direitos pela unidade do gênero humano.

          Trata-se aqui de libertar-se do relativismo cultural que assombra todas as questões de direitos humanos. O artigo 1º da Declaração de Viena afirma taxativamente que "a natureza universal desses direitos e liberdades está fora de questão", de forma que deixa indisponível o seu teor.

          A proteção aos direitos humanos no âmbito internacional importa, sobretudo, em proclamar que "a universalidade dos direitos humanos é reconhecer a igual dignidade de todos os seres humanos independentemente do espaço territorial onde se encontram." [15].

          2.1.1 A jurisdição internacional dos direitos humanos

          Como leciona com propriedade Canotilho, os direitos fundamentais, "na qualidade de patrimônio subjetivo indisponível pelo poder, são os direitos e liberdades que limitam a lei, não é a lei que cria e dispõe direitos fundamentais" [16].

          A exemplo do Brasil, muitos outros países do mundo passaram a ratificar os tratados internacionais de direitos humanos após a Declaração Universal de 1948.

          Em 1998, o país, mediante o Decreto Legislativo n.º 89, aceitou a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e aderiu ao Estatuto do Tribunal Internacional Criminal Permanente em 07 de fevereiro de 2000, ambos com jurisdição internacional tanto para julgar violações de direitos humanos decorrentes de desrespeito à norma internacional, quanto para julgar crimes contra a humanidade, crimes contra a paz e agressão, genocídio.

          Numa época em que cresce a conscientização da pessoa humana quanto ao respeito de seus direitos fundamentais, com a consolidação de garantias internacionais de proteção, alarga-se a responsabilidade internacional do Estado-Nação.

          Neste início de século, o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos ganhou novo vigor com a consolidação do acesso à justiça pelo indivíduo. O titular de direitos humanos adquiriu capacidade jurídico-processual frente aos processos que tramitam perante os tribunais internacionais de direitos humanos, que têm, como função precípua, a de determinar a responsabilidade internacional de Estados-parte em acusações de transgressões aos direitos humanos.

          Pelo Protocolo nº 11 de 1994, intitulado Reformas à Convenção Européia de Direitos Humanos, a Corte Européia de Direitos Humanos outorgou a todos aqueles indivíduos sujeitos à jurisdição dos Estados-parte a abertura de acesso direto à Corte.

          Também, em 2001, passou a vigir o Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aprovado pela Corte no seu XLIX período ordinário de sessões realizado de 16 a 25 de novembro de 2000, que assegurou a participação ativa e direta de todos os indivíduos-parte em toda a tramitação do procedimento, por meio de denúncias de violações aos direitos constantes da Convenção Americana.

          O Direito Internacional dos Direitos Humanos enfatiza a preocupação que devem ter os Estados e os titulares dos direitos humanos a respeito de como os habitantes de países estrangeiros estão sendo tratados. Sendo assim, cumpre que haja uma redefinição a respeito da matéria que é ou não de jurisdição doméstica dos Estados.

          Os direitos fundamentais dos indivíduos não são apenas de jurisdição doméstica dos Estados. Pelo contrário, constituem uma preocupação legítima da comunidade internacional.

          Neste sentido, a interpretação da Constituição Brasileira nas palavras de Sarlet: "Com efeito, o objetivo precípuo da consagração, pela nossa Carta, do princípio da não-tipicidade na esfera dos direitos fundamentais certamente não é o de restringir, mas sim, o de ampliar e completar o catálogo dos direitos fundamentais, integrando, além disso, a ordem constitucional interna com a comunidade internacional, solução que, aliás, corresponde às exigências de uma ordem cada vez mais marcada pela interdependência entre os Estados e pela superação da tradicional concepção da soberania estatal" [17]

          Os direitos humanos têm tratamento amplamente diferenciado pela Carta Magna do Brasil. Além de estarem listados no rol do art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal de 1988 como cláusula pétrea, os direitos humanos ainda são regulados pelo sistema monista internacionalista quando da aplicação de tratados internacionais que disponham sobre direitos humanos no Brasil.

          No que concerne às técnicas de interpretação, tendo em vista o fim último idealizado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a interpretação mais abrangente possível para a proteção da pessoa humana é o que está em jogo. Elaborou-se então uma máxima, um princípio de melhor proteção à vítima, como critério de aplicação da norma aplicável.

          Com isso, ressalta-se que "a questão de identificar uma norma internacional de direitos humanos não é meramente teórica. Isso porque uma violação de tal norma será reprimida pelas regras regentes da responsabilidade internacional do estado por violação de direitos humanos, levando, muitas vezes, uma determinada conduta estatal a ser analisada perante um Tribunal Internacional de Direitos Humanos" [18]

          Com efeito, a noção de que a proteção de direitos do homem como princípio da ordem internacional geral, quando não se fala em jurisdição doméstica dos Estados, foi reforçada pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que consolidou a legitimidade da preocupação da sociedade internacional com a proteção dos direitos humanos, em que se busca a proteção do indivíduo como indivíduo, sem se mencionar sua nacionalidade.

          2.2 A garantia de proteção aos direitos humanos fundamentais

          Os direitos humanos, como asseverado pela Convenção de Viena, são universais, iguais, indivisíveis e indisponíveis, distinguindo-se de forma relevante, por estas características, dos direitos patrimoniais.

          Contando com a participação de mais de 170 países, a Convenção de Viena de 1993 dá um reforço especial a todos os direitos e liberdades proclamados pela Declaração Universal de Direitos Humanos. Reafirmou o compromisso solene de todos os Estados em proteger e observar a promoção dos direitos humanos dos indivíduos em todas as partes do planeta. Ainda, a Convenção não deixou dúvidas de que nenhum Estado pode dispor de suas obrigações em relação aos direitos humanos, mesmo que não tenha tido participação na Declaração Universal.

          Não são poucos os instrumentos de proteção aos direitos humanos existentes atualmente. Dentre convenções, tratados e constituições do mundo inteiro, fica claro o cuidado com que este assunto vem sendo progressivamente tratado.

          "O Tratado de Paz de Westphalia, de 1648, pode ser considerado o antecedente mais remoto das diferentes declarações que vigoram atualmente no direito internacional" [19] Foi a partir deste instrumento que se tornou obrigatório, em tratados de paz, a inclusão de dispositivos que garantissem a liberdade individual das minorias religiosas residentes em países governados pelos crentes de religião adversa, uma vez que neste instrumento ficou selada, teoricamente, a paz entre católicos e protestantes, que passaram a gozar dos mesmos direitos.

          Aproximadamente um século mais tarde, em 1789, no primeiro ano da Revolução Francesa, a Assembléia Constituinte formada pelos revoltosos, elaborou e aprovou a importante Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em que se proclamou, a priori, que "todos os homens nascem livres e iguais em direitos".

          A partir de fins do século XVIII, adotou-se uma nova postura em relação aos direitos humanos, sendo que todas as Constituições elaboradas desde então primaram, basicamente, por dois princípios, quais sejam: a divisão dos poderes e a defesa dos direitos humanos, este último superior ao próprio Estado.

          Neste sentido, importa ressaltar o teor do art. 16 da Declaração de direitos de 1789: "Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia de direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição".

          O sentimento legítimo de que os direitos humanos necessitavam de defesa ficou positivado pela primeira vez na Revolução Francesa.

          Contudo, o processo de expansão e generalização da proteção dos direitos humanos só veio a acontecer, de fato, dois séculos mais tarde, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

          No teor da Declaração Universal, estava expresso, pela primeira vez, que todos os direitos ali proclamados eram inerentes à pessoa humana e que a ação para a proteção destes direitos não poderia ser privada pela ação do Estado. Entende-se assim, que quando o Estado não fosse suficiente para garantir a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, poderiam e deveriam ser acionados instrumentos internacionais de proteção.

          Este pensamento ganhou força nos anos seguintes à Declaração de 1948, tanto que todas as Constituições posteriores trouxeram em seu seio a importância e a necessidade legítima do respeito aos direitos humanos como princípio constitucional, com destaque para a Constituição Brasileira de 1988, que colocou os direitos fundamentais da pessoa humana no rol das cláusulas pétreas do seu art. 60, IV.

          O sistema das Nações Unidas para a proteção dos diretos humanos contém normas de alcance geral, quais sejam, aquelas destinadas à proteção de todos e quaisquer indivíduos do mundo, de forma genérica e abstrata, e sistemas especiais de proteção, direcionados a grupos particulares de indivíduos, a exemplo dos refugiados.

          Importa ressaltar que o Brasil ratificou a maior parte dos instrumentos de proteção aos direitos humanos do sistema global da ONU, tais como, a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, em 27/03/68; a Convenção para a Eliminação de toda a Discriminação contra a Mulher, em 01/02/84; a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24/09/90; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em 24/01/92, e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 24/01/92.

          Ainda, a par do sistema das Nações Unidas de proteção aos direitos humanos, deixe-se registrado que existem os sistemas regionais, quais sejam, o Sistema Europeu (Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, de 1950), o Sistema Interamericano (Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969), o Sistema Africano (Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, de 1981) e o Sistema Árabe (Carta Árabe dos Direitos Humanos, de 1994).

          2.3 A doutrina e as intervenções humanitárias à luz da Carta da ONU

          Antes da Declaração Universal de Direitos Humanos, o documento que fundou a Organização das Nações Unidas em 1945, a Carta de São Francisco, já trouxe, muito além da iniciativa de pretender instaurar uma nova ordem mundial após os horrores da guerra, a prerrogativa de instaurar relações pacíficas entres as nações.

          Taxativamente, a Carta de São Francisco deixou claro que "o grau de respeito aos direitos humanos transformou-se num dos principais elementos para aferir-se a inserção de determinado país na Comunidade Internacional. Com isso, os direitos humanos deixaram de ser uma questão de domínio reservado dos estados e ganharam o status de tema global, o que significa a necessidade de os Estados soberanos, em tempos de paz, garantirem a efetiva proteção dos direitos humanos da população a fim de conquistarem legitimidade no plano internacional" [20]

          Nas palavras de Flávia Piovesan, "a Carta das Nações Unidas de 1945 consolida, assim, o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas. Definitivamente, a relação de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto das instituições internacionais e do direito internacional. Basta, para tanto, examinar os arts. 1º (3), 13, 55, 56, 62 (2 e 3), da Carta das Nações Unidas" [21].

          Com o processo de internacionalização e proteção dos direitos humanos, iniciado a partir da Declaração da ONU, uma crescente conscientização foi tomando forma no sentido de garantir estes direitos, sendo que foram criados diversos mecanismos regionais que tiveram como fundamento teórico a dignidade da pessoa humana.

          Dentro deste novo quadro que se pintou, da universalidade dos direitos humanos, não mais se admite falar, no que tange este assunto, de jurisdição exclusiva dos Estados, uma vez que os indivíduos não podem ser encarados como propriedade de um governo.

          Contudo, muitos juristas e governantes ainda recorrem ao princípio da soberania do Estado para evitar que outros Estados intervenham no seu território, sob o argumento de que estariam violando o seu direito à não intervenção em assuntos internos.

          Não obstante, a Declaração de 1948 deu ensejo à formação de uma nova ordem mundial, em que a proteção aos direitos dos indivíduos se reveste de uma importância sem precedentes, trazendo à tona debates sobre o direito de intervenção humanitária após a audiência, pelo mundo inteiro, dos horrores da II Guerra Mundial.

          As preocupações humanitárias a partir de então ficaram atreladas à ameaça de paz e à segurança internacional, passando a fazer parte de uma espécie de patrimônio comum da humanidade.

          Neste ínterim, fez-se necessária uma reavaliação pelos órgãos internacionais, de realidades até então tidas como absolutas, quais sejam, a igualdade soberana dos Estados e o direito à não intervenção em assuntos ditos domésticos.

          A Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo VII, prevê o direito de intervenção humanitária e seus limites dentro do Direito Internacional, em casos de situações de extremo sofrimento humano, em que não é possível se manter um mínimo de padrão humanitário, onde as violações de direitos humanos sejam maciças e por atitudes continuadas dos violadores desses direitos por tempo prolongado, salientando-se que o consentimento do Estado receptor da ajuda não se faz necessário e, ainda, sendo o uso da força permitido, unicamente, para assegurar a garantia dos direitos humanos daqueles indivíduos.

          O primeiro grande problema que se vê em uma ação de intervenção humanitária, é a lembrança dos tempos de colonialismo e intervenção (que não de cunho humanitário) que este tipo de ação traz a muitos países, sobre tudo os países menos afortunados.

          A intervenção humanitária, erroneamente, é encarada, muitas vezes, como instrumento de controle e invasão dos países mais ricos nos países pobres, resquício das intervenções do Período Colonial, que se estenderam até o século XIX. Contudo, é importante que se diga que devem ser estabelecidos critérios e limites para que se configure uma legítima situação de necessidade de intervenção humanitária para evitar abusos de Estados e órgãos de Direito Internacional.

          Em verdade, quando se trata de direitos humanos, devem ser abandonadas as noções tradicionais de soberania face às construções internacionais nascidas após a Declaração de 1948 em nome da proteção da dignidade da pessoa humana.

          Pelo mero fato de integrar as Nações Unidas, os Estados aceitam a Declaração Universal dos Direitos Humanos como instrumento legal compulsório, ou, no mínimo como regra jus cogens, que na verdade, segundo a doutrina, em nada diferem quanto a sua validade e eficácia frente ao ordenamento jurídico internacional. Em razão disto, todos os Estados que aderem a ONU "abdicam soberanamente de uma parcela da soberania, em sentido tradicional, obrigando-se a reconhecer o direito da comunidade internacional de observar e, conseqüentemente, opinar sobre sua atuação interna, sem contrapartida de vantagens concretas" [22] Reforça-se, entretanto, a noção de que a Declaração Universal tem caráter erga omnes.

          Pode-se dizer que o período intervencionista da Comissão de Direitos Humanos da ONU iniciou sua atividade em 1967 em virtude de um chamado dos países de Terceiro Mundo que recentemente haviam-se tornado independentes e estavam mobilizados na luta contra o apartheid e o colonialismo e, mais adiante, em 1969, quando Israel ocupa territórios árabes.

          A Resolução 1235 adotada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em 1967, "Questão das violações dos direitos humanos e liberdades fundamentais, inclusive políticas de discriminação racial e de apartheid, em todos os países, com referência especial aos países e territórios coloniais e dependentes", também chamada de procedimento 1235, permitiu o acesso de comunicações individuais de violações de direitos humanos à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Juntamente com este procedimento público, atua a Resolução 1503, também chamada de procedimento 1503, que configura o procedimento confidencial das Nações Unidas e tem como objetivo identificar as comunicações que indiquem um cenário de maciças violações de direitos humanos e garantias fundamentais para um considerável espaço de tempo.

          Diante da crescente conscientização da necessidade legítima de se proteger os direitos humanos e com a progressiva elaboração e adoção de mecanismos de proteção por todos os países do mundo, fica configurada a competência das Nações Unidas em intervir em Estados soberanos frente a concretos de violação, desde que tenha como objetivo único a proteção da dignidade da pessoa humana.


3 O direito de intervenção internacional em casos de emergência humanitária

          3.1. A legitimidade das intervenções humanitárias

          A preocupação com a proteção dos direitos humanos tornou-se legítima após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que positivou a unicidade do gênero humano, deixando em segundo plano a questão da nacionalidade e do país de origem daqueles que estão tendo seus direitos violados.

          É importante destacar que não só os nacionais de uma nação soberana são titulares de direitos humanos. Também os apátridas, que conforme o art. 1º, §1º da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, são "toda pessoa que não seja considerada como nacional seu por nenhum Estado, conforme a sua legislação". Como qualquer indivíduo que tenha a sua nacionalidade reconhecida, o apátrida é titular de direitos e garantias fundamentais.

          Diferentemente dos apátridas, os refugiados são também um grupo de indivíduos para o qual a ONU atenta-se de forma especial, pois, apesar de terem sua nacionalidade reconhecida por seu país de origem e pela comunidade internacional, vivem refugiados em territórios estrangeiros, geralmente por medo de voltarem a seus países onde, via de regra, estavam sendo violentamente agredidos em sua integridade física e moral e onde seus direitos e garantias fundamentais foram "esquecidos" pelos governantes.

          Para além dessas diferenciações, o que importa para este trabalho é a essência da Declaração de 1948, que não distingue os indivíduos em grupo algum. Pelo contrário, em seu art. 1º, a Declaração traz taxativamente: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos."

          No que diz respeito às intervenções humanitárias, importa ressaltar que grande parte da sociedade internacional é contrária às estas ações, sob o argumento de que seriam uma nova forma de colonialismo, fazendo uma analogia às intervenções do século XIX. Ou seja, toda a retórica de direitos humanos estaria presente apenas para legitimar uma real intenção de dominar países mais fracos.

          No entanto, as intervenções humanitárias são ações legais, disciplinadas pela Carta das Nações Unidas, e têm o escopo de legitimamente proteger os direitos humanos das pessoas que os estão tendo estes seus direitos violados.

          Com efeito, a Carta das Nações Unidas foi proclamada com o objetivo de instituir uma Nova Ordem Mundial, impondo uma nítida preocupação com a proteção da dignidade da pessoa humana, preocupação esta que pode ser visualizada já no seu preâmbulo: "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indisíveis à humanidade e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais dos homens e mulheres (...)".

          O atual conceito de intervenção humanitária, que começou a ser delineado durante a Guerra Fria, apresentou à sociedade internacional uma nova perspectiva das relações entre as nações ao questionar o conceito de soberania ao passo que colocou os direitos humanos sob o amparo da jurisdição internacional, que deixou de ser, de uma vez por todas, assunto de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados.

          Faz-se essencial aqui a distinção entre os conceitos de intervenção e ingerência, muitas vezes tomados como sinônimos, em geral, pelos defensores do princípio da não intervenção. Tanto a ingerência quanto a intervenção partem da mesma fonte imediata, qual seja, a igualdade soberana dos Estados. Todavia, o conceito de ingerência é muito mais abrangente, sendo a intervenção uma de suas modalidades.

          A ingerência poderia ser classificada com uma intromissão ilícita em território estrangeiro, quando se tratando de assuntos de competência exclusiva interna de Estados soberanos. Ocasião esta totalmente contrária à situação dos direitos humanos, uma vez que fazem parte da jurisdição da sociedade internacional, tornando lícita, portanto, as chamadas intervenções humanitárias empreendidas dentro dos limites estabelecidos pelo Direito Internacional.

          A Comissão de Direitos Humanos, pelas anteriormente citadas Resoluções de 1235 e 1503, passou a atuar com legitimidade sobre as violações de direitos humanos em todos os países.

          Pode-se afirmar que o sistema universal de proteção dos direitos humanos em conjunto com os sistemas regionais, europeu e interamericano (que são os mais desenvolvidos), forma o chamado regime autorizado de controle sobre as ações dos Estados.

          Da constatação de uma jurisdição universal para os direitos humanos, legítimas são as intervenções humanitárias, pois com o objetivo único de proteger indivíduos das violações aos seus direitos, são ações que agem em prol da paz mundial, objetivo fim da Nova Ordem estabelecida com o advento da Nações Unidas em 1945.

          3.1.1 O artigo 2.7 da Carta da ONU e a jurisdição doméstica dos Estados

          Ao final da 2ª Guerra Mundial, chocado com os horrores da guerra, o mundo se deu conta de que a sobrevivência da humanidade dependia da colaboração de todos os povos da Terra e de que se fazia necessária uma abertura de consciência para o respeito incondicional à dignidade humana, aos direitos humanos.

          A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi criada em 1946, pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC), em cumprimento ao disposto no art. 68 da Carta da ONU: "O Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos direitos do homem, assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho de suas funções."

          A Comissão de Direitos Humanos tem dupla função. Esta comissão deve exercer a atividade de promoção dos direitos humanos, ao passo que se encarrega de elaborar o anteprojeto de todas as declarações e tratados da ONU sobre estes direitos, e de proteção da dignidade humana, atividade esta que foi definida pelas Resoluções 1235, de 1967, e 1503, de 1970, ambas do ECOSOC.

          No entanto, quando se trata de violações aos direitos humanos em territórios nacionais, complica-se a atividade da Comissão de Direitos Humanos. Diz o art. 2.7 da Carta das Nações Unidas: "Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta, este princípio, porém, não prejudicará a aplicação de medidas coercitivas constantes do Capítulo VII".

          O que ocorre é que muitos juristas recorrem a este dispositivo da Carta utilizando-o como uma real evidência de que os Estados não podem e não devem intervir em assuntos, teoricamente privativamente internos, de outros Estados por estarem em flagrante violação ao princípio da não intervenção.

          Traz-se à tona aqui, uma vez mais, a necessidade de entender-se que os direitos humanos não fazem, nem nunca fizeram, parte apenas da jurisdição doméstica dos Estados, a uma por serem regras supra-estatais, a duas por a dignidade humana ser legítima preocupação e proteção da sociedade internacional.

          Cançado Trindade defende ferrenhamente, com respaldo na Declaração Universal de 1948, da ONU, a noção de que direitos humanos são temas de interesse global: "No tocante aos direitos humanos, duas décadas após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 a Conferência de Teerã sobre Direitos Humanos, em uma reavaliação global da matéria, proclamou a indivisibilidade de todos os direitos humanos (direitos civis e políticos, assim como econômicos, sociais e culturais). Seguiu-se a marcante resolução 32/130, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1977, em que se afirmou que se deveriam examinar as questões de direitos humanos de modo global.Esta resolução endossou a asserção da Proclamação do Teerã de 1968 da indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos, a partir de uma perspectiva globalista de todos os direitos humanos, a partir de uma perspectiva globalista, e chamou atenção para a prioridade a ser atribuída à busca de soluções para as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos. Três décadas após a Declaração Universal de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas, tendo em mente as mudanças fundamentais ocorridas na assim chamada sociedade internacional – descolonização, capacidade de destruição em massa, crescimento demográfico, condições ambientais, consumo de energia, dentre outras, - empenhou-se, por meio de sua resolução 32/130, no sentido de superar as velhas categorizações de direitos e de proceder a uma necessária análise global dos problemas existentes no campo dos direitos humanos" [23].

          À sociedade internacional foi dada legitimidade para agir prol da defesa dos direitos humanos e ao se tratar destes, nada importa a nacionalidade ou o país de origem das pessoas que estão tendo seus direitos mais basilares violados.O princípio da soberania fica prejudicado frente à proteção da dignidade humana e não pode ser argüido para impedir a intervenção de países estrangeiros com interesse legitimamente humanitário.

          Esta idéia tanto é fundamentada na Carta das Nações Unidas de 1945, que tem como objetivo fim a paz mundial, quanto é repetidamente proclamada na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. O art. 2.7 da Carta das Nações Unidas diz respeito a assuntos de jurisdição exclusivamente doméstica dos Estados, dentro dos quais não estão os direitos humanos, que, são de jurisdição universal também.

          3.1.2 O que se entende por situações de emergência humanitária

          Este tópico é com certeza o mais polêmico de todo o trabalho. Isto porque a tarefa de se definir o que seria uma situação de emergência humanitária não é fácil, já que não é uma definição objetiva, mas que leva em conta fatores subjetivos.

          Para este estudo, por uma questão de lógica, considera-se situação de emergência humanitária aquela que apresenta dois dos fatores que também estão presentes nos critérios para que se configure a necessidade de uma intervenção humanitária, quais sejam: violação maciça de direitos humanos que esteja ocorrendo por um período de tempo prolongado.

          Emergência humanitária é, pois, uma situação de extremo sofrimento humano provocado ou não pelo governo nacional, mas em que direitos humanos estão sendo violados de forma maciça e por tempo prolongado, e em que o Estado soberano não está agindo de forma a proteger tais direitos e, por isso, e por ser a dignidade da pessoa humana preocupação da sociedade internacional, faz-se legitimamente necessária uma iniciativa de órgãos internacionais.

          Aliás, o exemplo mais recente de emergência humanitária de forma alguma cumpriu o requisito de tempo prolongado, mas, mesmo assim, configurou-se na maior emergência humanitária dos últimos anos. O caso do Sri Lanka, da Indonésia e da Somália é uma situação sem precedentes de calamidade natural, que mobilizou a Organização das Nações Unidas, em que era necessário assistir as populações e distribuir-lhes roupas, comidas, plásticos para se abrigarem, abrangendo de imediato cerca de 100.000 pessoas.

          Simultaneamente, hoje, 27 milhões de pessoas estão vivenciando verdadeira crise humanitária na guerra do Iraque, que sofre problemas de saúde, fome, abrigo, fora o fato de aqueles indivíduos terem que diariamente protegerem-se contra balas de armas de fogo e bombas.

          Outra situação que merece destaque é a do norte da Uganda, onde há anos a guerrilha do Exército de Resistência ao Senhor (LRA) está conduzindo uma verdadeira guerra de agressão contra a população local. Aproximadamente 95% da população vive em campos de refugiados no próprio país, resultado do horror que vivencia a população aterrorizada pelos ataques das guerrilhas.

          Além dessas situações atuais, que são apenas três exemplos de clara ocasião de emergência humanitária, o mundo tem precedentes muito cruéis, a exemplo de Ruanda e do Kosovo, em que se impuseram medidas coercitivas da comunidade internacional, que tem o dever legítimo de proteger os direitos humanos individuais e da coletividade.

          3.2 Teoria Relativista

          Há juristas de Direito Internacional, com destaque para Grigory Tunkin, que são efusivamente contrários à noção de intervenção humanitária, sendo, portanto, defensores ativos do princípio da não intervenção e do princípio da soberania, sempre.

          Diz-se sempre, porque não admitem exceções a estes princípios, uma vez que nem a proteção dos direitos humanos justificaria a intervenção em uma nação soberana.

          Defende Tunkin que as intervenções humanitárias são ilegítimas e ilegais, faltando a estas ações justamente o caráter humanitário, pois se caracterizam por desrespeitar a igualdade soberana dos Estados, disfarçadas pela defesa da dignidade humana e pela mantença da paz e segurança mundial.

          Esse grupo caracteriza-se por se fixar a conceitos éticos fechados e negam, vorazmente, a universalidade dos direitos humanos. Argumentam que toda a tentativa de se padronizar direitos humanos e o que constituiria uma emergência humanitária passiva de receber tratamento universal estaria enviesada culturalmente e, que assim sendo, os Estados mais poderosos atenderiam de forma seletiva às situações de emergência humanitária.

          Ou seja, opondo o princípio da soberania, nenhum órgão internacional poderia interferir na questão dos direitos humanos e na violação destes direitos dentro de uma nação soberana.

          Importa ressaltar que a Corte Permanente de Justiça Internacional, no Parecer Consultivo de 7 de fevereiro de 1923, decidiu que dizer se uma matéria é ou não de competência exclusiva nacional depende das convenções e tratados firmados com relação a esta matéria. "Com efeito, a liberdade do estado de dispor sobre as matérias de seu domínio reservado é também restrita pelos tratados por ele ratificados" [24].

          Contudo, assim não entendem os relativistas.

          Para eles não há justificava que se oponha ao princípio da não intervenção numa nação soberana, sendo que assuntos internos (e para eles direitos humanos são assuntos internos), devem ser decididos dentro e pela jurisdição doméstica.

          A contrario sensu, esta teoria relativista está fadada ao fim. Isto porque está consolidada no Direito Internacional a noção de jurisdição internacional dos direitos humanos, não havendo que se falar em domínio reservado dos Estados quando se trata destes direitos: "O Instituto de Direito internacional, por meio de sua resolução de 13 de setembro de 1989 (sessão de Santiago de Compostela) consolidou o entendimento visto acima, afirmando que nenhum estado pode se subtrair a sua responsabilidade internacional por violação de direitos humanos de pessoa que se encontre sob sua jurisdição, pela alegação de que a matéria é essencialmente assunto de sua jurisdição interna" [25].

          Ainda, dando fundamentação à corrente relativista, Ian Brownlie [26] comenta que de humanitário nada tem a retórica de intervenção humanitária, e que este discurso não passaria de uma desculpa de países ricos para legitimar o fim último de dominar países pobres, dando ensejo à noção de que as intervenções ditas humanitárias em nada difeririam das intervenções do período colonialista.

          Em este estudo, defende-se justamente o contrário da teoria relativista, uma vez que se toma como fundamento a jurisdição universal dos direitos humanos e a preocupação legítima da comunidade internacional no que se refere a sua proteção.

          Este entendimento se traduz na noção de que direito humano é algo que todos os indivíduos, em qualquer tempo devem ter e, do qual ninguém pode ser privado sem que haja uma grave ofensa à justiça, que é um direito devido a todos os indivíduos pelo fato de serem seres humanos.

          3.3 Teoria Universalista

          A teoria universalista, por sua vez, defende basicamente que a comunidade internacional já desenvolveu um senso comum do que seria uma crise humanitária emergencial e que, portanto, tem discernimento dos casos que constituiriam situações características de intervenção para a proteção de diretos humanos que estejam sendo violados em larga escala.

          Delgado, em um trecho de sua obra, derruba a teoria relativista, quando diz: "Além disso, conforme vários teóricos e filósofos da cultura têm continuamente evidenciado, nenhuma sociedade atura abusos em larga escala, até porque o próprio sentido de comunidade seria esfacelado caso largas parcelas de sua população fossem submetidos a sevícias e morticínios disseminados. Assim sendo, um primeiro dado que se poderia anotar é que, mesmo sociedades que defendem uma identidade étnica própria, diferenciada das demais, não autorizaria que os direitos dos seus súditos fossem violados em larga escala. Neste sentido, mesmo que contextualizada, haveria uma mortalidade universal, pois a proteção da população contra abusos desmedidos da autoridade estaria em qualquer sociedade" [27]

          De fato, a legitimidade das intervenções humanitárias vem sendo reafirmada no decorrer dos anos, desde a Declaração de 1948. Neste sentido, Alves: "Erigida gradualmente a partir da proclamação da Declaração Universal em 1948, e reconhecida consensualmente por toda a comunidade internacional no Artigo 4º da Declaração de Viena, a legitimidade da preocupação internacional com os direitos humanos parece ser hoje ponto pacífico" [28].

          Os partidários da teoria universalista, como se presume do próprio nome, defendem a universalidade dos direitos humanos, respaldados pelos vários instrumentos de vocação protetiva de abrangência internacional, a iniciar-se pela própria Carta das Nações Unidas, contando ainda com os mecanismos de abrangência regional, de textos de Convenções e Tratados aprovados pela Assembléia Geral da ONU, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, e da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José, de 1969).

          O universalismo dos direitos humanos foi reconhecido pela Constituição da República Federativa do Brasil, que, em 1988, consagrou que os direitos humanos reconhecidos por tratados internacionais de que o Brasil seja signatário deverão ser incorporados ao ordenamento interno de forma a ter aplicação imediata, além de estarem incluídos no rol dos direitos intocáveis da Constituição de 1988, ou seja, as cláusulas pétreas do artigo 60.

          Defendem os universalistas que não há que se fazer distinções de raça, de religião, de etnia, sexual ou de tendência política quando as violações de direitos humanos são cometidas em massa, contra a totalidade de uma população.

          Deflui Delgado: "Em resumo, existe um direito que todos os seres humanos possuem de não serem tiranizados por seus governantes. Não se está defendendo que os indivíduos possuem apenas estes direitos, porém a preocupação aqui é estabelecer um núcleo basilar de direitos que qualquer sociedade deveria possuir, de tal modo que caso esses direitos sejam violados maciçamente, outros Estados poderiam intervir para proteger as pessoas da opressão" [29]

          Não há dúvidas de que a dignidade da pessoa humana não faz parte dos assuntos de jurisdição exclusiva dos Estados soberanos, bem como a proteção dos direitos humanos é fator chave para a convivência dos povos na comunidade internacional.

          Após o mundo assistir os horrores do holocausto da II Guerra Mundial, consolidou-se o entendimento de que a sociedade internacional não poderia ficar assistindo de braços cruzados às violações de direitos fundamentais e ao sofrimento de toda uma população.

          De fato, legitimados em princípio pela Carta de São Francisco de 1945 e pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, os Estados poderiam e, mais, teriam a responsabilidade de intervir em territórios onde os abusos estivessem tendo lugar.

          A nova ordem mundial firmada a partir de então, trouxe aos direitos do homem declarados em 1948 uma importância sem precedentes.

          As intervenções humanitárias estavam intimamente ligadas à promoção da paz e segurança mundiais, deixando a lado fronteiras e trazendo os direitos humanos legitimamente à proteção internacional.

          O universalismo confirmou-se com a proclamação da Declaração de Viena, que, em seu artigo 5º, enfatiza que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes, e que a sociedade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime.

          É neste sentido a teoria universalista. No intento de elevar os direitos humanos ao patamar supra-estatal, os universalistas, com razão, agarram-se com todas as forças às normas do Direito Internacional hodierno, que confere à dignidade da pessoa humana o caráter internacional, contra a violação da qual não há respeito a princípio, costume ou norma que se justifique.


4 A teoria universalista em resposta ao princípio da soberania

          4.1 A legitimidade da intervenção humanitária supra-estatal para proteger os direitos humanos

          Os direitos humanos declarados em 1948 se constituem em um conjunto de faculdades e garantias que, reunidas, dão significado à dignidade humana, tendo por finalidade o seu respeito, por meio de mecanismos e instrumentos de proteção que visem estabelecer condições mínimas para a sobrevivência digna do homem na Terra.

          Milton Ângelo elenca os princípios intrínsecos ao significado de direitos humanos, quais sejam: "Inviolabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade" [30]

          Por inviolabilidade, entende-se que os direitos humanos não podem ser violados nem desrespeitados por atos de autoridades públicas ou por quaisquer normas infraconstitucionais.

          Os direitos humanos são imprescritíveis, sendo que nunca se perdem estes direitos, pois não esmaecem com o decurso do tempo.

          Não se pode renunciar aos direitos humanos, ao passo que estes são irrenunciáveis e, mesmo, indisponíveis. Com esta mesma idéia encara-se o princípio da inalienabilidade, pois é vedado ao ser humano transferir qualquer destes direitos.

          Há necessidade de instrumentos e mecanismos que regulem estes direitos, inclusive prevendo sanções para quem deles abusar, em respeito ao princípio da efetividade.

          Os direitos humanos são interdependentes e complementares. Há uma interatividade entre os preceitos previstos na Constituição com os outros ramos do direito. São complementares, pois há necessidade de que estes direitos sejam complementados por princípios de direito público e privado, nacionais e internacionais.

          Por fim, os direitos humanos são universais. Como veementemente defendido em todo este estudo, os direitos humanos devem ser defendidos e respeitados por toda a sociedade internacional, sem distinção de país de origem, de nacionalidade, de etnia, de raça, de convicção política ou religião.

          A dignidade do ser humano deve ser respeitada por si só. Por isso, se faz legítima a proteção emanada de órgãos internacionais, que não devem fazer nenhuma das distinções referidas acima.

          Com o processo de internacionalização dos direitos humanos e de sua proteção, uma crescente conscientização foi se integrando na sociedade internacional no que tange a garantias de tais direitos, uma vez que a pessoa humana deixa de ser apenas objeto de Direito Internacional, passando a figurar também como sujeito, uma vez que instrumentos foram sendo elaborados e afirmados pela comunidade tendo como fim a concretização do respeito à pessoa humana.

          Por este entendimento de que a dignidade da pessoa humana não é assunto que diz respeito à jurisdição exclusiva dos Estados, razão pela qual os povos, as populações não podem ser encaradas como propriedade do governo ao qual está submetida, torna-se legítima a preocupação da sociedade mundial com a proteção dos direitos humanos.

          As intervenções humanitárias, intimamente ligadas à noção de paz e segurança mundial, legitimam-se justamente por serem instrumentos da sociedade internacional para garantir que direitos humanos de indivíduos não sejam violados, ou para cessar as suas violações, visando com fim único a proteção da dignidade humana.

          Estas ações são permitidas apenas em situações de maciço sofrimento humano, que estejam ocorrendo por um longo período de tempo, a serem avaliadas pela Comissão de Direitos Humanos e, decidas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que irá deliberar sobre a necessidade ou não de uma intervenção humanitária, pois é o órgão responsável pela manutenção da paz e segurança mundiais, sendo ele o titular do direito de usar medidas coercitivas.

          Ainda, as intervenções humanitárias estão previstas no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que prevê a possibilidade de intervenções em nações soberanas quando o assunto é de jurisdição doméstica dos Estados, situação dos direitos humanos.

          Neste sentido, Delgado: "a interpretação que as Nações Unidas foram consolidando do artigo 2.7, é importante no sentido que ela deixou consagrada, no direito internacional contemporâneo, que os direitos humanos não fazem parte da jurisdição doméstica dos Estados.Sendo assim, se o entendimento é válido para as relações entre as Nações Unidas e seus membros, não se vê como possa ser diferente no tocante às relações entre Estados individuais" [31].

          A Carta das Nações Unidas tem como fim último a defesa dos direitos humanos individualmente desrespeitados e, ao longo da década de noventa esta idéia foi reafirmada pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, defensor da intervenção humanitária a favor das populações sempre que os seus direitos humanos estiverem sendo ameaçados, emergindo uma nova doutrina de soberania do indivíduo face à soberania estatal.

          O que é importante para as Nações Unidas, como asseverado pelo atual Secretário Geral, é a proteção dos direitos humanos, que, por si só, já é subsídio suficiente para legitimar uma intervenção supra-estatal no intento de resguardar e promover estes direitos.

          4.2 A proteção dos direitos humanos acima de qualquer suspeita de ilegalidade

          Uma grande transformação de paradigmas do direito internacional vem acontecendo nas últimas décadas, em razão, principalmente, da Declaração de 1948, que legitimou o universalismo dos direitos humanos.

          Por declarar este universalismo, as Nações Unidas, por meio da Carta de 1945 e da Declaração de 1948, legitimaram também as intervenções humanitárias, que estão legalizadas desde as suas proclamações, tornando impossível que o tratamento de um Estado para com seus súditos seja assunto somente de jurisdição doméstica.

          A legalidade da intervenção humanitária para a proteção dos direitos humanos tem sido corroborada por muitos países do mundo, na medida em que as intervenções humanitárias realizadas a partir do período da Guerra Fria não foram, de modo geral, condenadas por aqueles que entendem serem elas ilegais.

          Inclusive, tais intervenções foram sempre realizadas com a preocupação de adequar-se a posicionamentos anteriores do Conselho de Segurança, "denunciando massacres, genocídios ou violações maciças aos direitos humanos, o que demonstra a vontade destes Estados de ficarem o mais possível dentro da legalidade, a fim de contornar o bloqueio e do veto do conselho de Segurança" [32]

          Além das dezenas de convenções regionais e universais, é importante que se diga, que são reconhecidas outras fontes de direito internacional para os direitos humanos, que se constituem nos princípios e costumes gerais do Direito.

          Por ser um preceito internacional, como defendido ao longo deste estudo, em razão da proteção da dignidade humana, devem-se dispensar conceitos rígidos e, pode-se dizer, Vestfalianos de soberania e de não intervenção em território estrangeiro.

          Esta noção está concretizada pela sociedade internacional, e confirmada pelas Nações Unidas, sendo que face aos direitos da pessoa humana que estão sendo violados, legais as medidas de intervenção humanitária de acordo com o estabelecido pela Carta.

          Desta forma, a partir da análise da prática recente dos Estados, existem alguns critérios a serem observados e que estiveram presentes em todas as intervenções de cunho humanitário recentes.

          Reconhece-se uma intervenção internacional humanitária quando se está diante de situações de graves e maciças violações de direitos humanos, causadas por ação ou omissão comprovada do Estado intervenido. Ainda, para que a intervenção tenha razão de acontecer, as vias diplomáticas já devem ter sido totalmente esgotadas, sendo a ação de intervir a última instância do processo.

          Deve-se atentar para o fato de que as intervenções humanitárias, por se tratarem de casos em que indivíduos precisam de ajuda urgentemente, não se pode demorar a agir, razão pela qual, mesmo quando a ação de intervenção não receber a aprovação final do Conselho de Segurança da ONU em virtude do veto de algum ou alguns dos membros permanentes, quais sejam, Estados Unidos, Rússia, França, China e Grã-Bretanha, esta será reconhecida quando além de deter as características acima elencadas, ainda contar com a aprovação de mais de metade da comunidade internacional.

          Para finalizar, cabe esclarecer que o uso da força em ações humanitárias é sim permitido, desde que seja exclusivamente para proteger os indivíduos ameaçados.


Considerações Finais

          A reflexão proposta neste estudo é na verdade bastante conflituosa na doutrina e nos ordenamentos jurídicos do mundo inteiro. Não é tarefa fácil defender a legalidade das ações de intervenção humanitária. Muito embora hoje se tenha um entendimento mais simpático a este respeito, Estados do mundo inteiro ainda mostram-se apreensivos e mesmo negam qualquer tipo de intervenção dentro de seu território, escudados pelo princípio da soberania.

          Até o século XV, entendia-se a soberania como poder perpétuo e ilimitado, que se sujeitava apenas às leis divina e natural. Mais adiante, no século XVI, autores como Thomas Hobbes passaram a publicar idéias que tripudiavam a origem divina do poder soberano o que começou a fazer com que as pessoas passassem a encarar de forma diferente a intangibilidade e ilimitação do poder, concentrado nas mãos de um único homem.

          Séculos se passaram e o conceito de soberania sofreu progressivos desgastes. Para atender às necessidades do mundo atual, com uma ordem jurídica completamente diferente da vista até o século XVIII, foi necessária uma remodelagem do conceito. Houve progressivamente uma transferência parcial da soberania interna, no sentido de atender às diretrizes traçadas no século passado de colaboração permanente entre os Estados, objetivando uma convivência pacífica global.

          Não há como negar que atualmente tem se concretizado uma constante mudança de paradigmas no Direito Internacional neste sentido. Em razão da defesa dos direitos humanos, o mundo adotou uma nova postura em relação ao que acontece com os seres humanos por todas as partes do planeta, sejam eles nacionais, estrangeiros, apátridas ou refugiados.

          Os direitos humanos são tratados com mais tranqüilidade na segunda parte deste estudo. Estes direitos foram sendo reconhecidos ao longo dos séculos ao passo de uma libertação do ser humano e de sua conscientização da importância de ver respeitados seus direitos mais fundamentais.

          Por serem hoje assunto de legítima preocupação da sociedade internacional, e não mais um assunto de jurisdição unicamente interna dos Estados soberanos, o que se faz em relação os indivíduos estará sempre sob os olhos e cuidados da proteção internacional.

          Somente com o fim da Segunda Guerra Mundial pôde-se mensurar a gravidade do problema de desrespeito à dignidade humana. A agressividade do homem e a total falta de consciência quanto ao sofrimento humano restou configurada no quadro dos horrores do holocausto.

          A criação das Nações Unidas sinalizou as primeiras mudanças quanto ao tratamento humano. A Declaração Universal de 1948 proclama a igualdade de todos os indivíduos e a necessidade de uma união de todos os povos para garantir a proteção dos direitos e liberdades individuais.

          As Constituições de todo o mundo passaram a incluir em seus textos o respeito ao ser humano, com enfoque especial à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que colocou os direitos fundamentais da pessoa como uma de suas cláusulas pétreas e deu, recentemente, com a Emenda Constitucional n.º 45, o status de norma constitucional aos tratados ratificados pelo Brasil sobre a matéria.

          É nesse contexto de crescente preocupação que surgem as intervenções humanitárias, uma vez que o mundo não mais de cruza os braços frente a situações de emergência, em que cuidados e proteção ao ser humano são urgentes

          Tema da terceira parte deste trabalho, as intervenções humanitárias muitas vezes são analisadas à luz do princípio da não intervenção, entendimento balizado pelo reconhecimento da soberania dos Estados, o que levaria a falsa idéia de que estas ações seriam ilegais. No entanto, as intervenções humanitárias são ações legais, disciplinadas pela Carta das Nações Unidas, e têm o escopo de legitimamente proteger os direitos humanos dos indivíduos que estão tendo estes direitos violados.

          Demonstra-se neste momrnto uma nítida mudança de paradigmas na ordem internacional, haja vista que as situações de maciço sofrimento humano têm dado azo à quebra da soberania dos Estados em que estejam ocorrendo violações de direitos humanos, geradas preliminarmente pelo desrespeito a estes direitos.

          A conscientização da necessidade crescente de se estabelecer parâmetros globais de atuação preocupados em assegurar o respeito à dignidade humana foi criando, em nível internacional, o arcabouço legal para as intervenções humanitárias.

          O quarto e último tópico preocupa-se em demonstrar a legitimidade da intervenção humanitária supra estatal para a proteção dos direitos humanos, que, como direitos universais, devem ser defendidos e respeitados por toda a sociedade internacional, sem distinção de país de origem, etnia, raça, direcionamento político ou religião. Com esta convicção, acredita-se que se devem dispensar conceitos rígidos de soberania e de não-intervenção em território estrangeiro.

          A sociedade moderna exige das Nações Unidas e da sociedade internacional como um todo a garantia efetiva dos direitos fundamentais do ser humano, razão pela qual, mesmo aquelas intervenções humanitárias não endossadas pelo Conselho de Segurança da ONU tiveram legitimidade de ação, já que o objetivo era comprovadamente a proteção de direitos humanos. Em verdade, por não se adequarem ao previsto no artigo 2.7, da Carta das Nações Unidas, os direitos humanos fazem parte da jurisdição internacional também, e aqui a legalidade das intervenções humanitárias e a legitimidade da preocupação da sociedade internacional.

          Desta forma, pode-se concluir que, numa análise jurídica das intervenções humanitárias internacionais, legitimamente preocupadas com a defesa e promoção dos direitos humanos, são elas instrumentos que vêem contribuindo efetivamente para a promoção da paz mundial, que é declaradamente o grande objetivo comum dos países signatários da Carta das Nações Unidas.


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Notas

          01 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 35ª ed. São Paulo: Globo, 1996, p.57.

          02 O p. cit., 1996, p. 59.

          03 O p. cit., 1996, p. 59.

          04 REALE, Miguel. Teoria do Estado e do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 139.

          05 PAUPERIO, A. Machado. O conceito polêmico de soberania. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p.17.

          06 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.29.

          7 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 118.

          08 Op. cit,1988, p. 155

          09 DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Regulamentação do Uso da Força no Direito Internacional e Legalidade das Intervenções Humanitárias Unilaterais. Florianópolis 2003, p. 243. Dissertação defendida para a obtenção do título em Mestre na Universidade Federal de Santa Catarina.

          10 Op. Cit., 2003, p. 218-219

          11 Op. Cit., 2003, p. 223.

          12 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 19

          13 ALVES, J. A. Lindgren. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 04.

          14 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos, a construção universal de uma utopia. Aparecida: Santuário, 1997, p. 16.

          15 SILVA, Reinaldo Pereira e. Biodireito: a nova fronteira dos direitos humanos. São Paulo: LTr, 2003, p.25.

          16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 48.

          17 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 131.

          18 RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em Juízo. Comentários aos casos contenciosos e consultivos da corte Interamericana de Direitos Humanos e estudo da implementação dessas decisões no Direito brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 34.

          19 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos Direitos Humanos na Ordem interna e Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 76.

          20 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 59.

          21 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 139.

          22 ALVES, J. A. Lindgren. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 05.

          23 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 42.

          24 RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em Juízo. Comentários aos casos contenciosos e consultivos da corte Interamericana de Direitos Humanos e estudo da implementação dessas decisões no Direito brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 42.

          25 Op.Cit., 2001, p. 43.

          26 BROWLIE, Ian. Principles of Public International Law. 5ª ed. Oxford, UK: Oxford University Press, 1998.

          27 Op. Cit., 2003, p. 220.

          28 Op. Cit., 1994, p. 136.

          29 Op. Cit., 2003, p. 221.

          30 ÂNGELO, Milton. Direitos Humanos. São Paulo: Editora de Direito Ltda, 1998, p. 18.

          31 Op. Cit., 2003, p. 244.

          32 Op. Cit., 2003, p. 328.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Renata Vargas. Análise jurídica de intervenção humanitária internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1165, 9 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8861. Acesso em: 26 abr. 2024.