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A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão.

Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea

A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão. Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea

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PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil Constitucional – dignidade afetiva – direito à sucessão – reconhecimento de paternidade.

RESUMO: Com o advento da Constituição de 1988, foram introduzidos novos elementos do direito civil brasileiro, os quais romperam com o sistema patrimonialista até então vigente, possibilitando uma aproximação maior com a realidade, principalmente no caso de reconhecimento de paternidade extemporânea, quando o afeto, o carinho e a convivência mútua já estão sedimentadas.


SUMÁRIO: Introdução; 1. Código Civil e a proteção do bem material; 2. A Constituição e a introdução de valores sentimentais no direito de família; 3. O papel do afeto no conceito de família; 4. Família e dignidade da pessoa humana; Conclusão: a) pela manutenção da filiação sócio-afetiva e a desconsideração da filiação genética para fins jurídicos; b) pela possibilidade da filiação sócio-afetiva participar da sucessão como herdeiro legítimo e sua conseqüente exclusão da sucessão por filiação biológica; c) a responsabilização dos bens da paternidade biológica por danos causados pelo abandono afetivo; e; Referências.


INTRODUÇÃO

Pelas mudanças sociais ocorridas nos últimos tempos, as quais têm refletido sobremaneira no direito de família, o ordenamento jurídico pátrio houve por bem abraçar e introduzir novos valores, muitos dos quais abstratos, como o afeto, o amor, a felicidade, possíveis, agora, principalmente, pela constitucionalização da família, o que veio a prestigiar o indivíduo como ser sentimental, desvinculando-se das amarras legalistas e objetivas do homem como bem material.

Nesse sentido, temos visto o surgimento de decisões nos tribunais, em direito de família, valorando esses atributos abstratos, fundamentando-os nos princípios constitucionais e na dignidade da pessoa humana, dizendo o direito àqueles casos em concreto, embora um tanto quanto cautelosas com as rápidas mudanças sociais.

A vida nos tem mostrado que nos casos de reconhecimento de paternidade tardia, quando o filho, por muitos anos, já houvera sido inserido em autêntica família, onde lhe constam as figuras da formação clássica, tais como mãe, pai, irmãos, avós, etc., o filho biológico se mostra, na maioria das vezes, avesso à substituição das antigas figuras construídas pelo afeto, pelas agora reconhecidas judicialmente.

Corroborado a isso, há nítido bloqueio de construção de qualquer sentimento afetivo por parte do reconhecido, tendo em vista os próprios valores sociais e cristãos da família, onde há somente um pai, uma mãe. Somado a isso, é verificada a incompreensão dos motivos que resultaram no reconhecimento tardio da filiação. E o mesmo se dá em relação ao pai ou mãe reconhecidos que, menos, mas também, acabam por não conseguir gerar sentimentos fraternais para com o filho reconhecido, tendo em vista a não participação de toda a sua formação. Não houve convivência. Sem contar com a temerária desagregação de sua família de origem.

Partindo dessas proposições, procuraremos demonstrar a desarmonia entre o atual direito da sucessão legal, inserido no direito de família, e o reconhecimento da paternidade extemporânea, o qual valoriza o sentimento.


O CÓDIGO CIVIL E A PROTEÇÃO DO BEM MATERIAL

O desenvolvimento da indústria e do comércio, resultado do crescimento populacional acelerado do século XIX, teve como uma de suas conseqüências o acúmulo de riquezas para uma recém surgida classe social que exigia do Estado segurança e proteção para seus bens.

Nesse contexto, reclamou-se a queda do absolutismo monárquico e o florescimento da doutrina liberal, a qual vislumbrou na propriedade individual, concebida como direito subjetivo por excelência, a garantia da pessoa contra os abusos do poder político.

No caso do Brasil, vimos o Código Civil como seguimento de ideais individualistas e voluntaristas que, consagradas pelo Código de Napoleão, foram incorporadas pelas codificações do século XIX. Embora em vigor a partir de 1º de janeiro de 1917, o projeto do Código Civil brasileiro foi elaborado por Clóvis Bevilaqua em 1889, no mesmo rumo, portanto, do movimento legislativo que caracterizou o século XIX. (Tepedino, 2006, p. 22).

Na esteira dos movimentos legislativos, temos a plenitude da força dos códigos, não se permitindo qualquer distanciamento de sua letra, uma vez que ela é completa e absoluta, abarcando caso a caso os fatos da vida real.

Como se sabe, a Escola da Exegese, re-elaborando o princípio da completude de antiga tradição romana medieval, levou às últimas conseqüências o mito do monopólio estatal da produção legislativa, de tal sorte que o direito codificado esgotava o fenômeno jurídico, em todas as suas manifestações. Assinalou-se o fetichismo da lei e, mais ainda, o fetichismo do Código Civil para as relações de direito privado [...]. (Tepedino, 2006, p. 24).

Ao direito privado estava configurado o Código Civil como seu ordenamento maior. A ele cumpriria garantir a atividade privada e em particular ao sujeito de direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutáveis nas suas relações econômicas que refletiram em todos os rumos do direito privado, inclusive no direito de família.

A valorização do aspecto patrimonial da vida pode ser percebida com facilidade, o que é possível com a leitura do referido diploma legal, especialmente na parte que trata do Direito de Família. Os artigos, em sua maioria, dizem respeito ao patrimônio da família, de forma direta ou indireta. Uma rápida análise mostra que a preocupação do legislador foi maior no que diz respeito à proteção da entidade familiar e do patrimônio que a acompanhava. A ampla proteção ao aspecto da legitimidade da união e dos filhos nela nascidos demonstra que, embora liberal, o Estado conduziu à proteção de um aspecto por ele considerado relevante: o patrimonial. (Carbonera, 2000, p. 294).

Nesse universo, o da liberdade e autonomia privada, era o Código Civil que fazia às vezes de Constituição, estabelecendo as diretrizes e propiciando, através delas, plena liberdade àquele que representava o valor fundamental da época liberal: o indivíduo livre e igual, submetido apenas à sua própria vontade. (Moraes, 2003, p. 102-103).

Porém, enfatizando a preocupação do liberalismo tão-somente com o patrimônio, verificamos que antes do período legalista do direito, havia possibilidade de reconhecimento de filhos incestuosos ou adulterinos. No entanto, tal acontecimento foi proibido, tendo em vista o valor do bem material, da propriedade, em detrimento da pessoa.

No período colonial, filhos naturais tinham o mesmo direito dos legítimos. Os ilegítimos, oriundos de relações incestuosas ou do adultério, podiam ser reconhecidos com uma permissão especial do rei. Mas, durante o século XIX e com o início da preocupação com o destino das propriedades familiares, medidas consideradas liberais começaram a ser tomadas, praticamente impossibilitando os pais de reconhecerem seus filhos ilegítimos. Apesar de argumentarem que essas leis eram importantes para manter a paz das famílias, a ordem e a moralidade pública, no fundo era a garantia da propriedade que interessava. (Grinberg, 2001, p. 46).

Destarte, fica claro o direcionamento legislativo para a propriedade e, por ilação, a justificativa de qual a razão somente os filhos legítimos faziam parte daquela unidade familiar de produção. Em conseqüência, entre a verdade jurídica e a social poderia não existir correspondência.

Porém o conteúdo dessa família não se esgotava nas noções de patriarcado, hierarquia, matrimonialização e manutenção do vínculo. O aspecto patrimonial também se destacava. A constituição e a proteção do patrimônio na esfera familiar têm sua importância revelada com a análise dos dispositivos legais do Código Civil brasileiro, especialmente no que diz respeito às formas de regime de bens ou, ainda, à necessidade de outorga para a alienação de bens imóveis, cuja propriedade é de pessoa casada. (Carbonera, 2000, p. 281-282).

Relativamente à família, verificamos que o Código Civil, tanto o de 1916 e um pouco menos o de 2002, fez clara opção pelo ter, pela propriedade, colocando o ser em posição inferior, ou quase que não lhe atribuindo valores ou cuidados, seguindo a tendência observada em muitos dos Códigos Civis vigentes à época, inclusive o Código Civil brasileiro.

Desta forma, ainda vemos recentes decisões que enfatizam a desigualdade entre os filhos, relegando o afeto existente entre as pessoas, apoiando-se em conceitos materialistas:

ANULAÇÃO. PARTILHA. HERDEIRO ADOTIVO PRETERIDO. A questão consiste em saber se a filha adotada sob a antiga redação do art. 377 do CC/1916 (que excluía dos direitos sucessórios o filho adotado quando o adotante tivesse filhos legítimos) tem direitos na partilha em que a de cujus faleceu quando em vigor a CF/1988. Ressaltou o Min. Relator que, após a CF/1988, não mais se tolera qualquer distinção entre filhos havidos ou não do casamento ou por adoção. Outrossim, não há alteração do pedido ou causa de pedir com a inclusão, no pólo passivo da demanda, de novas pessoas, maridos e esposas dos réus originalmente nominados na inicial. Quanto à prescrição, considerou-a vintenária como decidido e consagrado na jurisprudência assente. Note-se que o Tribunal a quo julgou válida a anulação da partilha, pois a herdeira não participou do inventário, inexistindo coisa julgada contra ela, deixou, contudo, incólumes as doações efetivadas antes da nova constituição. A Turma não conheceu do recurso, pois não houve violação do art. 377 do CC/ 1916 nem do art. 6º da LICC. Precedentes citados: REsp 32.853-SP, DJ 27/5/1993, e REsp 114.310-SP , DJ 17/2/2003. REsp 260.079-SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 17/5/2005. (g.n.)

Noutro lugar, Pietro Perlingieri (1997, p. 4), relata a influência francesa recebida pelo Código Civil italiano, asseverando que o diploma de 1865, "caracterizava-se especialmente por colocar no centro do ordenamento a propriedade imobiliária da terra: na manutenção e no incremento desta, é predominantemente inspirada a disciplina da família e das sucessões causa mortis.".

Ainda, cabe a colocação de Michelle Perrot, quanto ao caráter patrimonialista da própria constituição familiar: "[...] a família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido. A família é um fluxo de propriedades que dependem primeiramente da lei". (Funções da família in. História da vida privada: da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo: Companhia da Letras, 1991, v.4, p. 105, apud Carbonera, 2000, p. 282)

Por fim, temos que o atual Código Civil seguiu as linhas mestras do Código anterior. E não poderia ser diferente. Como regra disciplinadora e ordenadora por natureza das relações privadas, possui em sua essência regras eminentemente patrimonialistas que, visam dar proteção aos bens e, em direito de família, visa a manutenção e transmissão desses aos seus herdeiros.

De qualquer sorte, viu-se com altivez no século XX uma intensificação de processo intervencionista chamado de constitucionalismo, o qual acabou por subtrair do Código Civil inteiro setores da atividade privada, mediante um conjunto de normas que não se limita a regular aspectos especiais de certas matérias, disciplinando-as integralmente.

O processo de que se fala é finalmente consagrado, no Brasil, pela Carta Constitucional de 1988, a qual inaugura uma nova fase e um novo papel para o Código Civil, a ser valorado e interpretado juntamente com inúmeros diplomas setoriais, cada um deles com vocação universalizante. (Tepedino, 2006, p. 29).

Agora, o operador do direito trabalha com princípios constitucionais, como normas jurídicas privilegiadas para a reunificação do sistema interpretativo, evitando, assim, as antinomias provocadas por núcleos normativos díspares, correspondentes a lógicas setoriais nem sempre coerentes.

Por outro lado, o legislador especial, por mais frenética que seja a sua atividade legiferante, não consegue atender à torrente de novas situações geradas no seio da realidade econômica, situação agravada pelo envelhecimento do Código Civil, sendo fundamental, por isso mesmo, que possa o magistrado decidir os conflitos atinentes às situações não ainda regulamentadas, com base nos valores constitucionais. (Tepedino, 2006, p. 32).

Dessa forma, o Código Civil perde, definitivamente, o seu papel de Constituição do direito privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas do direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional.

Por conseguinte, o próprio direito civil, através da legislação extra-codificada, desloca sua preocupação central, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes. (Tepedino, 2006, p. 28).


A CONSTITUIÇÃO E A INTRODUÇÃO DE VALORES SENTIMENTAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Com o processo de urbanização, os costumes foram sendo substituídos e a grande prole deu lugar a um número cada vez mais reduzido de filhos. Além disso, houve a possibilidade de maior convívio entre estes e os pais, dando margem a um relacionamento mais próximo, pautado na preocupação de um membro da família com os demais, permitindo a abertura de espaço para o afeto, bem como indicando um início de modificação no modelo tradicional de família. Desta forma, o enxugamento da família acabou contribuindo para que ela pudesse se tornar uma comunidade mais coesa, com maior proximidade entre seus membros. (Carbonera, 2000, p. 283).

Corroborando com essa mudança social, a Constituição de 5 de outubro de 1988, inaugura uma nova fase do direito civil, alterando, sobremaneira, a base da direito de família, que, abandonando seu caráter privado-patrimonislista, passa a atender, a buscar e satisfazer anseios da pessoa, como membro inerente da família.

Na outra face, vê-se que o texto Constitucional, sem limitar as relações privadas e civilísticas, dá maior eficácia aos institutos codificados, revitalizando-os, mediante nova tábua axiológica. É a constitucionalização do direito civil.

[...] enquanto o Código dá prevalência e precedência às situações patrimoniais, no novo sistema de Direito Civil fundado pela Constituição a prevalência é de ser atribuída à situações existenciais, ou não patrimoniais, porque à pessoa humana deve o ordenamento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, dar a garantia e a tutela prioritárias. Por isto, neste novo sistema, passa a ser tuteladas, com prioridades, as pessoas das crianças, dos adolescentes, dos idosos, dos consumidores, dos não-proprietários, dos contratantes em situação de inferioridade, dos membros da família, das vítimas de acidentes anônimas. (Moraes, 1998, p. 127).

Como visto anteriormente, o Direito Civil, em seu facho família, acabava por prejudicar a pessoa, em seu subjetivismo existencial, em lugar de proteger. A Constituição da República cuidou de alterar isto ao estabelecer a igualdade de filhos de qualquer origem. Finalmente a relação pais e filhos, ingressou de forma plena no terreno da igualdade jurídica, campo onde se torna possível a valorização das pessoas e de seus sentimentos.

Neste ponto é importante observar que, embora anteriormente pudesse existir vontade do genitor para o reconhecimento do filho ilegítimo, motivado seja por questão de consciência ou por afeto, a proibição jurídica imperou por tempo significativo. Com o abrandamento do rigor legal, a esfera do desejo pessoal e do sentimento aumentou e o afeto definitivamente ganhou espaço nas relações paterno-filiais. (Carbonera, 2000, p. 288-289).

Utilizando-se, como exemplo do instituto do casamento, o qual se aproveita plenamente no foco de nosso trabalho, vemos inconcebível atribuir à lei jurídica a determinação de afeto entre pessoas e, por conseqüência a família, requisito inerente da afinidade e aproximação sentimental, mas o Direito tão-somente intervém para regular socialmente esses efeitos humanos decorrente da união, declarando as relações que surgem da constituição do ente social que se formou.

Desta maneira, o afeto e a família são comumente referidos como dados, como fatos, embora sejam abstrações de difícil determinação. Ambos estão presentes em todos os momentos de nossa vida, e, especificamente com relação ao afeto, é preciso lembrar que não diz respeito apenas àquilo que denominamos de "amor", mas, sim, a todos os sentimentos que nos unem.

Silvana Maria Carbonera, destaca o panorama buscado pelo conceito de família, protegida pela Constituição Federal:

A família ganhou dimensões significativas e um elemento que anteriormente estava à sombra: o sentimento. E, com ele, a noção de afeto, tomada como um elemento propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra pessoa ou pessoas, se fez presente. Diante disto, o Direito paulatinamente curvou-se e demonstrou, através da legislação e da jurisprudência, a preocupação com este "novo" elemento, mesmo que inicialmente de forma indireta. (2000, p. 286).

Neste sentido, quando finalmente rompemos com as definições biológicas e formas de família, concebendo a mesma como uma comunidade de afeto, a abstração dos termos nos leva a buscar elementos identificáveis nas práticas e na simbologia dos grupos sociais, que nos permitem reconhecer relacionamentos que possam ser nomeados de "família sócio-afetiva".

Se anteriormente as relações de família estavam impregnadas com a noção de legitimidade, com o passar do tempo pode se observar a contestação jurídica de extensão. Filhos ilegítimos passaram a ingressa na esfera da família jurídica. Primeiro aqueles designados de naturais, em razão de terem sido concebidos por pessoas não casadas e sem impedimento para tanto. Depois os adulterinos, após a dissolução da sociedade conjugal do genitor. Finalmente aos incestuosos foi aberto o acesso à filiação jurídica, consagrada de forma expressa pela Lei 7.841/89, que pôs fim expressamente à vedação de seu reconhecimento, derradeiro resquício da proibição. (Carbonera, 2000, p. 288).

A interposição de princípios constitucionais nas vicissitudes das situações jurídicas subjetivas significa uma alteração valorativa do próprio conceito de ordem pública, tendo na dignidade da pessoa humana o valor maior, posto ao ápice do ordenamento. Se a proteção aos valores existênciais configura momento culminante da nova ordem pública instaurada pela Constituição, não poderá haver situação jurídica subjetiva que não esteja comprometida com a realização do programa constitucional. (Tepedino, 2006, p. 42).

[...] promover um "direito judicial dos princípios constitucionais do direitos de família". A aplicação dos preceitos constitucionais deveria ser feita com habilidade e, sobretudo, com a ousadia necessária a todos os que operam o direito de forma não dissociada da realidade. Isto somente pode ser feito se o operador do direito se mantiver atento às transformações sociais e seus efeitos na esfera jurídica. (Carbonera, 2000, p.275).

De fato, quando a atual Constituição da Federal estabelece com fundamento da República a dignidade da pessoa humana e por alcance o afeto, o sentimento do ser humano, o constituinte opta por superar a individualismo, ou seja, a concepção abstrata do homem, que marcou o tecido normativo codificado, passando a eleger a pessoa, na sua dimensão humana, como centro da tutela do ordenamento jurídico.


O PAPEL DO AFETO NO CONCEITO DE FAMÍLIA

A moderna concepção jurídica de família, gradativamente construída, deslocou-se do aspecto desigual, formal e patrimonial para o aspecto pessoal e igualitários. Como conseqüência, a importância dos interesses individuais dos sujeitos da família, isto é, da busca da felicidade como mola propulsora, provocou a valorização da vários elementos anteriormente secundários, dentre os quais se encontra a afetividade.

Com a valorização das pessoas, seus interesses também o foram. Desta forma, os anseios relacionados a uma família construída sobre novos parâmetros se fizeram sentir e receberam ampla proteção constitucional, tendo a dignidade e a igualdade como princípios orientadores, assim como a possibilidade de tentar tantas vezes quantas forem necessárias a formação de uma família feliz.

Lembramos que o papel do afeto é constitutivo das relações interpessoais que formam a família. As pessoas se unem ou se separam em razão do afeto. Assim, sua existência deve importar principalmente àquele que estão nelas interessados.

Nesse contexto, o afeto deve ocupar lugar de destaque e merece maior atenção da área jurídica, pois como bem coloca Maria Berenice Dias, "[...] amplo é o espectro do afeto, mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerar conseqüências que necessitam se integrar ao sistema normativo legal". (Carbonera, 2000, p. 277).

Tal preocupação já pode ser localizada na doutrina que trata das atuais tendências do Direito de Família, onde o afeto já ocupa um lugar significativo, sendo este um ponto relevante, pois demonstra seu gradativo ingresso na esfera jurídica. A análise da jurisprudência também indica que, neste ponto, os julgadores já estão cientes do valor do afeto nas relações de família. Da mesma forma, a preocupação com o aspecto afetivo também já se faz sentir na legislação. (Carbonera, 2000, p. 277-278).

A adequação feita pela Carta Constitucional acabou revelando novos contornos jurídicos da família contemporânea. Baseada nos desejos de seus membros em satisfazer seus interesses de realização afetiva e crescimento pessoal, a noção de família foi ampliada e a proteção a todas as entidades familiares produziu efeitos benéficos há muito desejados.

Ademais, com a instalação da igualdade e da liberdade na família, o vínculo jurídico passou a ceder parte de seu espaço à verdade sócio-afetiva. Felicidade e afeto demarcaram seu espaço na noção jurídica de família em todas as esferas, a exemplo do que há havia acontecido na realidade sócia. "Da família matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente porque afeto não é um dever de coabitação uma opção, um ato de liberdade. Da margem para o centro: os interesses dos filhos, qualquer que seja a natureza da filiação, restam prioritariamente considerados."(Fachin, 1996, p. 98).

Assim, a família contemporânea é tomada como a "comunidade de afecto e entre-ajuda", espaço onde as aptidões naturais podem ser potencializadas e sua continuidade só encontra respaldo na existência do afeto. (Oliveira; Muniz, 1990, p. 11).

É a família eudemonista, pois traduz o meio onde "acentuam-se as relações de sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais" (Oliveira; Muniz, 1990, p. 54).

A preocupação procede, uma vez que o afeto é um elemento indispensável para a formação da pessoa. Isto redundou no fato de que, embora continuem existindo famílias nos moldes patriarcais, a recepção de outras formas abriu espaço para famílias fundadas no afeto e no desejo de estar junto, forma uma comunhão de vida e fazendo com que este seja seu elemento central.

Mas só podem conviver pessoas que têm afeição e respeito mútuo, sendo ambos necessários para a continuidade da relação familiar. Somente a existência do afeto faz com que pessoas restrinjam sua esfera de liberdade, renunciando a determinados desejos, para que outras também possam crescer e se desenvolver, pois o desenvolvimento de uma produz efeitos benéficos a todas. Em que pese soar estranho tratar de renúncia ou restrição a liberdade ao mesmo tempo em que se fala de dignidade e igualdade, somente podem ser dignas e iguais as pessoas que respeitam as outras, e isto acontece de forma voluntária quando se unem em virtude do afeto. Se assim não fosse, certamente não estaríamos falando de família, onde as pessoas decidem permanecer unidas por vontade própria, buscando a realização própria e dos demais, respeitando a esfera da dignidade e da liberdade de cada sujeito. (Carbonera, 2000, p. 296).

O aspecto sócio-afetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente mais incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efetivamente são os pais. A incerteza presente na posse de estado de filho questiona fortemente a certeza da tecnologia. Ademais a verdadeira paternidade decorre mias de amar e servir do que de fornecer material genético. (Carbonera, 2000, p. 304).

São certeiras as palavras de Eduardo de Oliveira Leite (1994, p. 120): "[...] se posso obrigar alguém a responder patrimonialmente pela sua conduta (alimentos ao filho) não posso obrigar, quem quer que seja, a assumir uma paternidade que não deseja.

Não se pode ignorar: ao mesmo tempo em que se torna possível conhecer a origem genética pela tecnologia, o afeto também ganha espaço e contornos jurídicos, revelando os pais do coração. Como bem aduz João Baptista Villela, o aspecto biológico cede espaço ao comportamento. A figura paterna é reconhecida pelo amor, desvelo e serviço com que se entrega ao bem da criança. Verdade e mentiras, noções relativas que se revelam conforme o momento e o enfoque apresentado. (Carbonera, 2000, p. 304-305).

Desta forma, a construção de um novo sistema de filiação emerge como imperativa, posto que a alteração da concepção jurídica de família conduz necessariamente à mudança da ordenação jurídica da filiação (Carbonera, 2000, p. 305), e o afeto, neste sentido, deve ocupar lugar de destaque. .

A doutrina tem se dedicado a estudar o afeto nas relações familiares, inclusive elevando-o ao patamar de princípio da afetividade, advogando a idéia de que:

O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, em fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. (Lobo, 2004, p. 1).

Ainda,

A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto. (Lobo, 2004, p. 1).

Assim, estamos diante da valorização da pessoa na família, em sentido diverso do encontrado no Código Civil brasileiro, nitidamente transpessoal. Esta valorização está coerente com as linhas gerais da Constituição Federal, uma vez que o artigo 1º, III, consagra como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, a proteção à pessoa, recebendo status constitucional, deve ser princípio orientador no seu tratamento em todas as esferas. A proteção aos componentes da família não constitui exceção à regra, o que conduz à sua priorização em relação ao grupo.


FAMÍLIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

É importante consolidar a noção de família como uma comunidade, constituída em razão da vontade, onde as pessoas buscam a realização pessoal própria e daqueles que a cercam.

Como dito acima, o afeto, que começou como um sentimento unicamente interessante para aqueles que o sentiam, passou a ter importância externa e ingressou no meio jurídico. Possui, mais do que nunca, extremo valor jurídico nas relações familiares, sendo instrumentalizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente garantido (CF, art. 1º, III).

Cabe a nós destacarmos a importância do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista, entre outros, pela intimidade existente com o direito de família constitucionalizado. Tal princípio exerce importante função instrumental integradora e hermenêutica na ordem jurídica como um todo e, especialmente, no direito de família como veremos.

[...] na medida em que serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico. De modo todo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana [...] acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico-sistemático. (Sarlet, 2002, p. 83).

Constata-se, pois, um importante papel do princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive nas relações intersubjetivas. O critério hermenêutico, servindo como fundamento basilar para solução de algumas questões controvertidas.

Dentre as funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional. Confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana. (Sarlet, 2002, p. 79).

Ainda, possui caráter cogente, comparado em importância e abrangência ao direito à vida, precedendo ambos aos demais princípios capitulados no caput do art. 5º. Não é admissível o direito à vida dissociado da dignidade sem o comprometimento do Estado de Direito. Porém, o direito à vida encontra exceção, art. 5º, inciso XLVII, alínea "a", onde a pena de morte é permitida em caso de guerra declarada, não cabendo exceção à dignidade. (Nascimento, 2004, p. 15).

Desse modo, entendemos que cabe ao poder público não apenas se abster de violar a dignidade de cada uma das pessoas, mas também atuar positivamente no sentido de efetivar e proteger a dignidade de cada um e, conseqüentemente, de todos os particulares. Nesse sentido, como já destacado e argumentado acima, há a função legislativa que deve ser exercida e preenchida com o fito de construir uma ordem jurídica que permita a efetiva implementação da dignidade da pessoa humana.

A dignidade constitui a um só tempo pressuposto e condição para que se viva em sociedade, e exige limitação ao poder de toda autoridade ou mesmo pessoa de atingi-la ou desrespeitá-la, ainda que a pretexto de zelar pelo bem estar de todos.

A dignidade da pessoa humana, na perspectiva das relações intersubjetivas cria dever geral de respeito pela pessoa (como valor intrínseco), consistente num conjunto de deveres e direitos recíprocos, de natureza material, voltados ao resguardo e à promoção dos bens indispensáveis ao desenvolvimento da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, também vista sob o enfoque das relações intersubjetivas, merece ser reconhecida e devidamente tutelada pela ordem jurídica na perspectiva de igual respeito e igual consideração de toda pessoa humana, tanto pelo Estado, como pela sociedade. Desse modo, imprescindível se faz compreender a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva inter-relacional e comunicativa, "constituindo uma categoria de co-humanidade de cada indivíduo (Mitmenschilichkeit dês individuums), de tal sorte que, na esteira da lição de Peter Haberle, a consideração e reconhecimento recíproco da dignidade pode ser definida como uma espécie de ‘ponte dogmática’, ligando os indivíduos entre si". (Gama, 2003, p. 145-146).

Destarte, acreditamos que a Constituição elevou a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento da sua personalidade ao posto máximo do ordenamento jurídico, constituindo opção metodológica oposta a do individualismo das codificações.

A pessoa humana, no que se difere diametralmente da concepção jurídica de indivíduo, há de ser apreciada a partir da sua inserção no meio social, no âmbito de sua convivência e desenvolvimento pessoal, que é no seio da família em que vive.

Por outro lado, tampouco há que se falar apenas em "direitos" (subjetivos) da personalidade, mesmo se atípicos, porque a personalidade humana não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas sim através de uma complexidade de situações jurídicas subjetivas, que podem se apresentar, sob as mais diversas configurações: como poder jurídico, como direito potestativo, como interesse legítimo, pretensão, autoridade parental, faculdade, ônus, estado – enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante. (Moraes, 2003, p.118).

Daí sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do ordenamento constitucional e, portanto, também em via judicial. Eis aí a razão pela qual as hipóteses de dano moral são tão freqüentes, porque a sua reparação está posta para a pessoa como um todo, sendo tutelado o valor da personalidade humana. Os direitos das pessoas estão, assim, todos eles, garantidos pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e vêm a ser concretamente protegidos pela cláusula geral de tutela da pessoa humana. Em seu cerne encontram-se a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade. Nesse sentido, deve-se inibir ou reparar, em todos os seus desdobramentos, a conformação de tratamentos desiguais – sem descurar da injustiça consubstanciada no tratamento idêntico aos que são desiguais [...]. A cláusula geral visa proteger a pessoa em suas múltiplas características, naquilo "que lhe é próprio", aspectos que se recompõem na consubstanciação de sua dignidade, valor reunificador da personalidade a ser tutelada. Assim, cumpre reconhecer que, evidentemente, também se abrigam sob o seu manto os demais direitos que se relacionam com a personalidade, alguns deles descritos pelo próprio legislador constituinte no artigo 5º da Constituição Federal. (Moraes, 2003, p.127-128).

Visto que a dignidade está intimamente ligada à vida e à liberdade, como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas, inclusive nas relativas à família, nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, entendemos, juntamente com Maria Celina Bodin de Moraes, (2003, p.120) que a primeira deverá prevalecer em todos os aspectos, obedecidos, assim, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como o valor cardeal do sistema.


CONCLUSÃO

O dinamismo social implica em freqüentes e corriqueiras adaptações do ordenamento jurídico aos fatos da vida. No entanto, tais alterações, devido à grande velocidade em que elas ocorrem, não são automáticas. Cabe, assim, aos operadores do Direito acomodar esses novos valores sociais reais, à norma em abstrato.

O sistema jurídico como um todo tem a função de possibilitar sejam reconhecidos fatos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relações entre as pessoas, seres humanos fundamentalmente organizados para viverem uns em meios a outros.

Dessa forma, o direito de família, por tratar diretamente com os autores dos fatos sociais, tem se voltado inteiramente para um subjetivismo integrador das atividades sentimentais, emocionais e porque não volitivas dessas relações. Tal fato somente pôde ocorrer após a constitucionalização do direito de família.

Neste sentido, formando-se uma família que respeite a dignidade de seus membros, a igualdade nas relações entre eles, a liberdade necessária ao crescimento individual e a prevalência das relações de afeto entre todos, ao operador jurídico resta acatar e reconhecer os fatos humanos.

Considerando o panorama da problemática trazida à análise e nas apresentadas linhas acima, relativamente ao reconhecimento da paternidade biológica extemporânea ou tardia, concebendo esta nos casos em que já houve a construção da personalidade e dos valores humanos em pessoa inserida em autêntica família, onde lhe constem as figuras da formação familiar clássica, tais como mãe, pai, irmãos, avós, etc.,

Ainda, atendendo ao fato de que o filho biológico se mostra, na maioria das vezes, avesso à substituição das antigas figuras construídas pelo afeto, pelas pessoas agora reconhecidas judicialmente, o que acarreta evidente bloqueio de construção de qualquer sentimento afetivo por parte do reconhecido, tendo em vista os próprios valores sociais e cristãos da família; a incompreensão dos motivos que resultaram no reconhecimento tardio da filiação. E o mesmo se dá em relação ao pai ou mãe reconhecidos, vez que não houve convivência entre esses sujeitos.

Acabamos por concluir os seguintes pontos:

a) pela manutenção da filiação sócio-afetiva e a desconsideração da filiação genética para fins jurídicos

A noção de afeto, como um elemento concreto a ser considerado nas relações de família, foi ingressando gradativamente no jurídico, assim como outras tantas: liberdade, igualdade, solidariedade. Isto se deve às transformações pelas quais ela passou, especialmente quanto ao deslocamento do centro de preocupações: da instituição família para aqueles que a compõem.

A partir do momento em que o sujeito passou a ocupar uma posição central, era esperado que novos elementos ingressassem na esfera jurídica. E foi o que se observou com relação ao afeto.

A vontade de estar de permanecer junto a outra pessoa revelou-se um elemento de grande importância tanto na constituição de uma família, assim como em sua dissolução. As pessoas passaram a se preocupar mais com o que sentiam do que com a adequação de seus atos ao modelo jurídico.

Ademais, o Direito não deve decidir de que forma a família deverá ser constituída ou quais serão suas motivações juridicamente relevantes. Em se tratando de relações familiares, seu campo de atuação deve se limitar ao controle da observação dos princípios orientadores, deixando às pessoas a liberdade quanto à formação e modo de condução das relações.

O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Após o advento constitucional superou-se todas essas amarras, dando-se um salto na proteção do ser humano e de sua dignidade.

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. Como visto, a história do direito civil e do direito de família e à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima.

A restauração da primazia da pessoa humana, em detrimento do caráter biológico ou patrimonial nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.

A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas da humanidade, a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais.

Aí observamos, na história do direito de família, na medida da redução da patrimonialização, a progressiva valorização do indivíduo como ser humano sujeito das relações existenciais, que acaba por autorizar, baseado nos princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais princípios constitucionais, a manutenção do status de filho criado por família não biológica, desconsiderando por completo o vínculo genético. Somente as informações genéticas, para fins de saúde e preservação da vida humana, seriam consideradas e preservadas.

b) pela possibilidade da filiação sócio-afetiva participar da sucessão como herdeiro legítimo e sua conseqüente exclusão da sucessão por filiação biológica

Como examinado, o desenvolvimento científico, que tende a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. A identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

Dessa maneira, entendemos que desde a infância até o final da vida do filho, estará sendo atendido o conteúdo do art. 227 da CF, o qual prega o dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.

Destarte, estando atendidos os valores humanos abstratos, pela inserção e vivência em determinada família, mesmo a não biológica, e, novamente baseado no princípio da dignidade das pessoas humana e os demais princípios constitucionais, entendemos deva ser autorizada a manutenção do status de legitimidade ao filho criado por família não biológica, e plenamente possível a legitimação para a sucessão dos bens de sua família, visto a convivência e eventual colaboração da construção do patrimônio familiar. Ao revés, cremos estar impossibilitada a sucessão genética, tendo em vista não fazer parte do conceito de família, constando-se alheio sentimental e materialmente ao conceito de família, caso do reconhecimento extemporâneo da filiação.

Por fim, cabe destacar, mais uma vez que a ausência de regulamentação não pode ser argumento para não proteção da família. A falta de previsão legislativa para uma gama de relações não implica em impossibilidade de tutela, que pode ser prestada através dos diversos mecanismos existentes, fundamentados, dentre outros, na vida digna do ser humano, com amplamente debatido acima.

c) a responsabilização dos bens da paternidade biológica por danos causados pelo abandono afetivo

Temos que tribunais estão reticente no reconhecimento de danos morais, tendo como causa o afeto, o sentimento não dispensado nas relações familiares, como demonstra o julgado abaixo:

AÇÃO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PAI. FILHO. ABANDONO AFETIVO. A Turma, por maioria, conheceu do recurso e deu-lhe provimento para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono afetivo, como dano passível de indenização. Entendeu que escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que, tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo, nesse sentido, já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil. REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005.

Porém, entendemos ser totalmente cabível no âmbito do direito de família e autorizado no atual ordenamento jurídico pátrio, a concessão de pagamento de pecúnia, em casos que claramente esteja comprovada e não ter sido suprida a necessidade afetiva do autor, por qualquer outra forma.

A Constituição prega fundamentalmente o dever da família, e aqui perfeitamente ela considerada entre genitor(a) e filho, mesmo não vivendo sob o mesmo teto, assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.

Ainda e mais uma vez, deverão propiciar o atendimento do princípio da dignidade da pessoa humana, assegurando-lhe o melhor desenvolvimento da personalidade possível.

Logo, advogamos a idéia de que embora a Lei Maior faça referência expressa à violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, não o vemos como ordenações taxativas. O que interessa é a circunstância de haver um princípio geral que estabeleça a reparabilidade do dano moral, independentemente do prejuízo material. Tal entendimento pode ser melhor analisado na obra de Eduardo A. Sambrizzi (Daños en el derecho de família. Buenos Aires: La Ley, s.d.).

Desta forma, a incidência desse princípio abrange todas as possibilidades de lesão ao livre desenvolvimento da pessoa em suas relações sociais, incluindo aquelas de cunho mais marcadamente patrimonial, mas que também podem trazer efeitos destrutivos à dignidade, como cremos no caso de reconhecimento de paternidade extemporânea.

Conclusivamente, nesses casos entendemos deva ser ignorada a parte sucessória do direito de família, visto que, embora biologicamente descendente, o filho reconhecido está alheio ao conceito de família, o que implica na transmutação da reparabilidade do dano sofrido para o direito das obrigações, tendo tal transcendência, como pano de fundo, o sentimento de afeto.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLICARPO, Douglas. A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão. Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1256, 9 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9257. Acesso em: 25 abr. 2024.