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Usucapião de imóvel hipotecado sob a ótica do novo Código Civil

Usucapião de imóvel hipotecado sob a ótica do novo Código Civil

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É possível usucapir imóvel hipotecado? Se o for, mantém-se ou não o gravame hipotecário? O cessionário de contrato de mútuo pode usucapir o imóvel hipotecado em favor do credor? A arrematação ou adjudicação em razão de hipoteca impedem a usucapião?

Resumo

O presente estudo tem como finalidade analisar a possibilidade e as implicações da declaração de usucapião tendo por objeto imóvel hipotecado, visualizando tais institutos sob a ótica das disposições do novo Código Civil. Abordam-se, igualmente, os efeitos da sentença que declara a usucapião, tratando-se do princípio da retroatividade e de suas diversas implicações em relação à hipoteca. Além disso, são esmiuçadas algumas situações peculiares envolvendo o tema, tais como cessão de direitos, adjudicação e arrematação.

Palavras-chave: Usucapião. Hipoteca. Sentença. Arrematação.


1 Introdução

Nas últimas décadas, a hipoteca tem sido o direito real de garantia mais amplamente utilizado para a concessão de crédito destinado à aquisição imobiliária, fato que tem aumentado consideravelmente no Brasil o número de imóveis gravados com ela. Isso fez tornarem-se mais comuns os casos onde se pleiteia o reconhecimento de usucapião sobre imóveis hipotecados, seja por meio de ação ou como matéria de defesa, fazendo surgir dúvidas a respeito dessa situação.

É possível usucapir imóvel hipotecado? Se o for, mantém-se ou não o gravame hipotecário? O cessionário de contrato de mútuo pode usucapir o imóvel hipotecado em favor do credor? A arrematação ou adjudicação em razão de hipoteca impedem a usucapião?

O presente estudo, analisando os aspectos mais relevantes dos institutos da hipoteca e da usucapião, tem como objetivo responder esses e outros questionamentos, à luz da doutrina e das disposições legais que regem a matéria, com foco especialmente nas alterações promovidas pelo novo Código Civil.


2 A hipoteca convencional no CCB/02: características gerais, prescrição e preclusão

Considerando que o presente estudo tem como objeto analisar os casos de usucapião sobre imóvel hipotecado, faz-se indispensável, primeiramente, analisar o conceito e as principais características do instituto da hipoteca. Além disso, é relevante verificar suas hipóteses legais de extinção, especialmente as suas relações com a prescrição, bem como sua preclusão.

2.1 Conceito e características gerais da hipoteca convencional

Pode-se dizer que a hipoteca é uma espécie de direito real de garantia através da qual se grava um bem imóvel de propriedade do devedor, ou de outrem, de forma a garantir o cumprimento de uma obrigação principal. Dessa forma, tem-se que ela sempre será acessória e dependente do cumprimento de uma obrigação determinada.

O instituto é assim definido por Clóvis Bevilacqua (1956, p. 113):

"Hipoteca é um direito real, que recai sobre imóvel, navio ou aeronave, alheio, para garantir qualquer obrigação de ordem econômica, sem transferência da posse do bem gravado para o credor".

É ela destinada a gravar bens imóveis e seus acessórios, ao contrário do penhor, que é exclusivamente afeto a coisas móveis. No entanto, é possível a constituição de hipoteca sobre bens por natureza móveis que, por ficção jurídica, sejam considerados como imóveis, tal como ocorre com as aeronaves e os navios, cuja disciplina o CCB/02 remete a legislação especial. Igualmente, cabe a instituição do gravame sobre o "domínio direto, o domínio útil, as estradas de ferro, e os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham" (Art. 1473).

Contudo, não obstante o gravame inscrito sobre o imóvel hipotecado, o outorgante da garantia mantém a posse e a propriedade sobre ele, podendo exercer todas as faculdades inerentes ao domínio, o que não ocorre no caso do penhor. Neste, o bem dado em garantia mantém-se de propriedade do devedor, mas fica na posse do credor, somente sendo restituído após a quitação da dívida.

De fato, a hipoteca (e os demais direitos reais de garantia, por natureza) são direitos restringentes do domínio, mas não limitativos dele (MIRANDA, XX, p. 76). O devedor, ou o terceiro que presta a garantia, mantêm plenas todas as faculdades inerentes ao domínio sobre a coisa hipotecada, sem limitação, mas fica ele restringido, vez que resta o gravame constante do registro de propriedade do bem, valendo erga omnes.

Dessa maneira, a hipoteca possibilita a circulação dos bens por ela gravados, já que estes podem ser livremente alienados. O próprio Código Civil dispõe que "é nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado", sendo, no entanto, lícito convencionar-se o vencimento antecipado da dívida nesse caso (Art. 1.475). Contudo, não obstante a alienação, transmite-se o gravame instituído sobre o bem, subordinando-se a ele o terceiro adquirente.

A razão disso é que a hipoteca, enquanto direito real, prevê ao credor o direito de seqüela, ou seja, a faculdade de buscar a coisa em mãos de quem quer que a detenha. Sobre o tema, é interessante a definição de Caio Mário da Silva Pereira (1994, p. 270), o qual assim conceitua tal atributo:

"A efetividade do direito de seqüela revela-se no momento em que o credor tem de excutir a coisa nas mãos de terceiro. Mas, se se patenteia nesse instante, certo é que já existia como decorrência da hipoteca, o que levou Clóvis Beviláqua a dizer que se conserva latente enquanto o imóvel se encontra em poder do devedor, revelando-se ostensivo com a sua transmissão."

Em realidade, no momento em que a hipoteca grava o bem e adquire publicidade, ela se torna exeqüível contra qualquer pessoa que venha a adquirir o domínio do bem. Esse adquirente, em razão do direito de seqüela, não poderá eximir-se da execução do gravame, salvo em casos pontuais de relativização do instituto, dos quais alguns se tratarão adiante.

A respeito disso, Pontes de Miranda (1958, t. XX, p. 57) refere que

a seqüela é mais do que a executabilidade, porque qualquer credor pode executar os bens que se achem no patrimônio de quem deve. A seqüela permite penhorar-se o que está no patrimônio de que não deve. O titular do direito de hipoteca tem a pretensão a executar o bem de que se trata, onde quer que se ache e ainda que nada deva o proprietário (ou enfiteuta) ou possuidor próprio.

Assim, para que se constitua de forma regular a hipoteca, e para que ela seja oponível erga omnes, característica inerente aos direitos reais, é indispensável o seu registro junto à matrícula do imóvel dado em garantia (Art. 1492 do CCB/02), devendo ser avençada em escritura pública [01]. Isso porque a hipoteca tem como característica a publicidade, ou seja, a possibilidade de qualquer terceiro ter dela conhecimento, subordinando-se a seus efeitos.

Esse registro, além de dar publicidade, estabelece a prioridade no caso de haver mais de uma hipoteca gravando o imóvel, ou seja, a hipoteca registrada por primeiro tem prioridade sobre as demais, no caso de ser levado o bem à excussão. Nessa hipótese, o produto da alienação judicial do bem deverá atender integralmente ao crédito garantido pela primeira hipoteca; somente após isso, caso restem ainda valores, passar-se-á a satisfazer o crédito da segunda hipoteca, e assim sucessivamente.

Note-se, ainda, que a hipoteca obedece ao princípio da especialização, devendo constar dos contratos que a instituem o valor do crédito, o prazo fixado para pagamento, a taxa de juros e a descrição do bem dado em garantia, sob pena de ineficácia da avença (CCB/02, Art. 1424). Isso impede a instituição de hipoteca geral e irrestrita sobre todo o patrimônio do devedor, outrora permitida, uma vez que para a sua validade deve ser referido cada bem em que se grava a garantia, considerado individualmente.

Igualmente, a hipoteca, como direito real de garantia, é indivisível, ou seja, o imóvel dado em garantia fica integralmente sujeito ao resgate da dívida, de maneira que o pagamento parcial do débito não exonera parte do imóvel hipotecado (CCB/02, Art. 1.421). Saliente-se que essa indivisibilidade não diz respeito à coisa dada em garantia, ou à dívida garantida, as quais podem até ser divisíveis, mas, sim, ao vínculo real. Mesmo havendo pagamento parcial da dívida, a hipoteca continua a recair sobre a coisa inteira e seus acessórios, os quais ficam sujeitos à excussão integral pelo restante do valor devido. Conseqüência disso, por exemplo, é que não é possível aos herdeiros remir parcialmente a hipoteca na proporção dos seus quinhões (CCB/02, Art. 1.429), salvo a sua totalidade, sub-rogando-se o remitente quanto aos demais.

Da mesma forma, é importante salientar que a hipoteca, enquanto garantia que pode levar determinado bem à excussão, impõe que, para poder validamente instituí-la, o seu prestador tenha plena legitimidade para alienar a coisa. Em outras palavras, só pode gravar determinado bem com hipoteca convencional aquele que seja dono da coisa, devendo ter também capacidade para tanto.

Assim, a capacidade é, igualmente, elemento essencial para a validade do ato, sendo imprescindível a outorga uxória no caso do devedor ser casado, exceto para o regime da separação absoluta de bens (art.1.647). No caso do regime de participação final dos aqüestos, caso os cônjuges tenham convencionado a livre disposição dos bens particulares, poderá haver a constituição de hipoteca sobre eles, sem necessidade de autorização do outro consorte (Art. 1656 do CCB/02). Da mesma forma, em se tratando de pessoa jurídica, deverá estar prevista a possibilidade de instituir o gravame no seu ato de constituição, devendo o representante legal ter poderes suficientes para tanto.

2.2 A hipoteca frente à prescrição e as modificações trazidas pelo CCB/02

Assim dispõe o CCB/02 a respeito das formas de extinção da hipoteca:

Art. 1.499. A hipoteca extingue-se:

I - pela extinção da obrigação principal;

II - pelo perecimento da coisa;

III - pela resolução da propriedade;

IV - pela renúncia do credor;

V - pela remição;

VI - pela arrematação ou adjudicação.

Tais modalidades, ressalte-se, são meramente exemplificativas, havendo, além delas, outras expressamente previstas no Código Civil ou decorrentes de sua interpretação sistemática, como se verá em determinados casos de usucapião, por exemplo. Veja-se, também, que no CCB/1916 eram elencadas como causas de extinção, além daquelas reproduzidas na nova lei, a sentença passada em julgado e a prescrição (Art. 849).

Em relação à sentença judicial, é de se ver que, não obstante sua supressão no texto legal, mantém-se plenamente válida como causa extintiva, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF/1988: Art. 5º, XXXV).

Quanto à prescrição, é de se notar que quando ela for relativa à obrigação principal, ela sempre acarretará a extinção da hipoteca, vez que "vale o registro da hipoteca, enquanto a obrigação perdurar" (art. 1.498). Note-se que a prescrição não extingue a obrigação principal, mas a torna inexigível, extinguindo tão somente a pretensão de cobrá-la. No entanto, em se tratando de hipoteca, se a obrigação principal está prescrita, não haverá mais pretensão à execução da garantia acessória, acarretando, pela redação da norma referida, a sua extinção [02].

O Código de 1916, como referido, trazia no art. 849, VI, a prescrição como uma das hipóteses legais de extinção da hipoteca, inciso que foi suprimido na redação do CCB/02. Tal prescrição, contudo, dizia respeito à ação real hipotecária, e não à prescrição da obrigação principal. Em ocorrendo a prescrição da ação real, haveria a extinção da hipoteca em si, o que não extinguiria a pretensão de cobrar obrigação principal, que se submeteria ao seu prazo prescricional próprio.

Para Pontes de Miranda, essa prescrição da ação real teria sido elevada a suporte fático da preclusão da hipoteca mesma, por força da norma em questão (1958, tomo XX, p. 303):

Ao completar-se o tempo da prescrição em vez de só se encobrir a eficácia da pretensão, o direito de hipoteca preclui. Portanto, a ação executiva hipotecária extingue-se, em vez de apenas prescrever. (...) Uma vez que se considerou a prescrição da pretensão causa da extinção do direito (Código Civil, 849, VI), a alegação de prescrição da ação com efeito de preclusão do direito é alegação de preclusão, por conseguinte objeção, e não exceção. Não há momento em que não mais se possa opor a prescrição, porque, aí, a prescrição foi elevada à categoria de suporte fáctico da preclusão.

Têm-se, assim, duas preclusões do direito de hipoteca: a preclusão pela prescrição da ação real e a preclusão por se ter atingido o prazo de vinte anos sem prorrogação.

Entretanto, tal prescrição não teria o condão de extinguir a hipoteca no caso de o bem ser do próprio devedor, pois esta estaria subordinada à prescrição da obrigação principal, em razão do caráter de acessoriedade da garantia (art. 830 do CCB/16, atual art. 1.498). Por isso, ela só poderia ser invocada por eventual terceiro adquirente do imóvel hipotecado. Esse é o pensamento de Clóvis Bevilácqua, que assim escreve (1956, v. II, p. 299):

A hipoteca, sendo direito real, a ação que origina está incluída nessa regra [a do Art. 849, VI, do CCB/1916], em relação a terceiros; mas não em relação ao devedor, porque a hipoteca é direito acessório e, conseqüentemente, a sua existência se acha, intimamente, ligada à obrigação, cuja execução assegura, e a sua prescrição para o devedor será, naturalmente, a da obrigação.

O fato é que essa questão perdeu força com a vigência do novo Código Civil, visto que, nele, o prazo prescricional da pretensão real hipotecária jamais será inferior ao das ações pessoais relativas à obrigação principal, por força da norma geral do art. 205, ao contrário do que ocorria com o código antigo (CCB/1916, Art. 177). No caso de dívida líquida, por exemplo, o prazo prescricional em relação à obrigação principal é de cinco anos (Art. 206, § 5º, I), mantendo-se os dez anos para a ação real.

Por essa razão, passou a ser redundante manter a prescrição da pretensão executiva hipotecária, que é ação real, como causa de extinção da hipoteca, visto que, antes dela, necessariamente haverá a prescrição da pretensão relativa à obrigação principal, extinguindo, por conseqüência, a garantia acessória. Ademais, ainda que haja eventuais causas de suspensão da prescrição quanto à obrigação principal, tal suspensão abrangerá, igualmente, a garantia acessória, na forma do art. 1.498 do CCB/02.

Assim, em razão da modificação dos prazos prescricionais no novo Código Civil, tornou-se inócuo elencar a prescrição como causa de extinção da hipoteca, vez que as ações que tutelam as pretensões reais jamais terão prazos prescricionais menores do que as pessoais.

Por fim, vale dizer que, na hipótese de prescrição como causa extintiva no Código de 1916, não pode ser enquadrada a prescrição aquisitiva, que ocorre na usucapião. Esta espécie de prescrição, como se verá, é relativa à pretensão que visa garantir a posse da coisa, e não a eventual inércia relativa à execução da hipoteca.

2.3 Preclusão da hipoteca

Como já referido, é da essência da hipoteca que constem dos contratos que a instituem o valor do crédito, o prazo fixado para pagamento, a taxa de juros e a descrição do bem dado em garantia, sob pena de ineficácia da avença. Em havendo o vencimento da dívida, pelo não cumprimento da obrigação ou por qualquer outra causa, nascerá para o titular do direito real a pretensão de excutir o bem e satisfazer o seu crédito.

No entanto, nada obsta que, mediante acordo entre as partes, haja a dilatação do prazo contratual estabelecido para a obrigação, podendo, igualmente, ser pactuada a dilatação do prazo da hipoteca, mediante simples averbação. No tocante à garantia, o art. 1.498 do CCB/02 fixa em 20 anos o prazo máximo de validade a contar do contrato que a institui. Após esse termo, deve ser a hipoteca prorrogada (Art. 1.498), sendo que o art. 1.485 do CCB/02 fixa em 30 anos [03], a contar da data do contrato, o prazo máximo de prorrogação. Para ultrapassar esse prazo, será necessária a lavratura de novo título e novo registro, mantendo-se, contudo, a precedência do anterior (Art. 1485).

Caso não seja prorrogada a hipoteca, atingido o prazo de 20 anos ocorrerá a sua preclusão, ainda que subsista a obrigação principal. Veja-se que esta preclusão é apenas da garantia, não se confundindo com eventual prescrição relativa à obrigação principal, que extinguirá também eventual pretensão de cobrança do débito, tornando igualmente inexigível a garantia acessória.


3 A usucapião no direito brasileiro

3.1 Breve histórico e conceito

A usucapião não tem uma origem precisa, acreditando-se que ela tenha sido praticada pelos gregos e posteriormente migrado para o direito romano, antes mesmo da Lei das XXII Tábuas, que se referiu a ela proibindo a usucapião de coisas roubadas. Há quem sustente que sua origem deu-se junto ao povo hebreu, em razão de uma referência a ela no Livro dos Juízes, cap. 11, versículo 26 (NEQUETE, 1981, p. 12).

No direito clássico, a usucapio requeria posse mansa por todo o período aquisitivo e justo título. Posteriormente, dado que a usucapio não se aplicava aos imóveis provinciais, possuídos por peregrinos, foi criada a praescriptio longi temporis, uma fórmula (prescrição) judicial utilizada como meio de defesa contra eventuais ações possessórias, fundada na posse prolongada. Atribui-se a Justiniano a posterior unificação dos dois institutos, simplificando-os e fixando, como prazo, 10 anos entre presentes e 20 entre ausentes, bem como 3 anos para as coisas móveis (PETIT, 1924, p. 275).

Por fim, o Imperador Teodósio introduziu uma nova modalidade de usucapião, que independia de boa-fé e justo título, extinguindo toda e qualquer ação de rei vindicatio se houvesse posse ininterrupta por 30 anos, sendo chamada de praescriptio longissimi temporis.

Hodiernamente, pode-se definir a usucapião como um meio originário de aquisição da propriedade e de outros direitos (usufruto, uso, habitação e enfiteuse [04]), os quais, de maneira geral, transferem-se ao usucapiente desde que decorrido lapso temporal de posse com animus domini, sem qualquer oposição, preenchidos os requisitos legais.

Diz-se que ela é um meio ‘originário’ porque não há propriamente a transmissão da propriedade por parte do antigo dono, ou seja, o direito de propriedade adquirido pela usucapião não deriva do direito de outrem. Por isso, através da usucapião, não se adquire a propriedade de ‘alguém’ determinado. O direito é que, preenchidos os requisitos legais, outorga a propriedade ao possuidor.

Sobre o tema, assim escreveu Pontes de Miranda (1958, t. XI, p. 117)

"Não se adquire, pela usucapião, ‘de alguém’. Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originariamente se adquirir; não, para se adquirir de alguém. É bem possível que o novo direito se tenha começado a formar, antes que o velho se extinguisse. Chega momento em que esse não mais pode subsistir, suplantado por aquele.".

Além disso, é de ser ressaltado que a usucapião não é decorrente de uma "renúncia tácita" ao direito de propriedade, ou uma decorrência do abandono. Isso porque a propriedade e todos os direitos que dela emanam não se extinguem, de per se, pela não fruição. A respeito disso, Nascimento (1984, p. 10) escreve que

"nem da inércia se pode presumir uma manifestação de vontade tácita de abandonar ou renunciar o imóvel nem se pode qualificar a mesma inércia como fundamento único do usucapião. Ninguém perde a posse pelo não-uso".

Em realidade, o direito de propriedade – e as pretensões dele decorrentes – são por essência, imprescritíveis, salvo se se constituir uma situação contrária a esse direito, capaz de ensejar a sua extinção (PEREIRA, 1994, IV, p. 4), como é o caso da usucapião, por exemplo. De fato, como refere Lafayette (1940, p. 155), o que ocorre na usucapião é um fenômeno duplo. De um lado, a prescrição age como forma geradora de direitos em favor do usucapiente; de outro, como conseqüência, tem-se a extinção do direito do antigo proprietário em fade de sua inércia.

Em realidade, há uma nítida diferença entre a prescrição extintiva e a usucapião, chamada de pretensão aquisitiva. Na prescrição extintiva, a inércia do titular não extingue o direito em si mesmo, havendo tão somente a extinção da pretensão de exigi-lo (AMORIM FILHO, 1961). Prova disso é que o devedor que paga dívida prescrita não terá direito à repetição do indébito alegando prescrição. Diverso, contudo, é o que ocorre no caso da prescrição aquisitiva. Nesta, a inércia do proprietário na defesa de sua posse, além de extinguir sua pretensão, faz nascer simultaneamente um novo direito em favor do usucapiente, havendo a própria extinção do direito do antigo dominus (NEQUETE, 2005). Outro aspecto é que a prescrição extintiva só pode ser alegada por meio de exceção, enquanto que a prescrição aquisitiva pode ser também alegada em ação.

Nesse sentido, em relação ao reconhecimento judicial da usucapião, questiona-se se é necessário requerimento expresso da parte interessada ou se poderia o juiz, ex officio, declará-la. A questão não apresentava maiores complicações, vez que na redação do CCB/1916 o reconhecimento da prescrição dependia de pedido expresso da parte, tendo sido essa regra reproduzida na redação original do CCB/02, no art. Art. 194. Ocorre que tal artigo foi revogado pela Lei 11.280, de 16/02/2006, tendo sido modificado o § 5º do art. 219 do CPC, o qual passou a determinar que "o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição".

A respeito disso, pode-se dizer que, no caso da usucapião, tal disposição é inaplicável, vez que, como referido, não se trata de simples prescrição extintiva de eventuais pretensões possessórias, essa, sim, passível de declaração ex officio. A declaração de usucapião tem o efeito positivo de declarar determinado possuidor o proprietário da coisa, ainda que seja alegada em sede de exceção. Além disso, para a realização do suporte fático da usucapião, é indispensável que haja animus domini por parte do possuidor, só podendo ser reconhecido esse aspecto em seu favor mediante requerimento seu (NEQUETE, 2005, p. 10).

3.2 Modalidades e requisitos essenciais da usucapião de bem imóvel

Em se tratando das espécies de usucapião, a lei brasileira disciplina, atualmente, cinco modalidades, havendo requisitos particulares para cada uma delas, que variam de acordo com a finalidade a que se destinam. Há quem desdobre tais espécies em sete, em razão de possibilidades de redução nos prazos da usucapião extraordinária e ordinária, mas parece mais adequado falar apenas em cinco, já que essas modalidades seriam "subespécies" não autônomas. Assim, tem-se hoje no direito brasileiro a usucapião extraordinária, ordinária, especial urbana, especial rural e coletiva (esta última prevista no Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001).

Saliente-se, ainda, que o novo Código Civil reduziu consideravelmente os prazos para usucapião, especialmente considerando aspectos relativos à destinação social da propriedade, dando "uma maior ênfase no caráter dinâmico da propriedade, como instrumento de realização da dignidade da pessoa humana" (DEBS, 2003, p. 33).

Em todas as modalidades, tem-se como requisito essencial a posse cum animo domini, da qual adiante se tratará. Igualmente, todas as modalidades colocam como requisito que a posse seja pública, ininterrupta e sem oposição durante todo o lapso temporal exigido.

Por isso, à usucapião, enquanto fenômeno que contém em si a prescrição, aplicam-se as regras previstas para o devedor de obrigações em geral, havendo a interrupção ou suspensão do lapso temporal em todas as hipóteses previstas para tanto, uma vez que "estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião" (CCB/02, art.. 1.244). Nesse particular, verifica-se que não poderá ocorrer prescrição aquisitiva entre descendentes e ascendentes durante o poder familiar, marido e mulher na constância do casamento, etc. (CCB/02, Arts. 197 a 200). Igualmente, não poderá ocorrer usucapião de fração ideal por condômino em face dos demais, a menos que haja a posse exclusiva do imóvel (RT 472/82-84).

Além disso, como referido, a posse que se requer para a consecução da usucapião deve ser qualificada com o móvel de ser dono, com o animus domini. Dessa forma, não se considera posse ad usucapionem aquela do mero detentor, do locatário, do comodatário e de qualquer pessoa que tenha conhecimento de que não é proprietária e assim exerça a sua posse. Veja-se que tal aspecto é fundamental para que se possa configurar a usucapião, não bastando que haja simples prova da posse. O que se deve provar é a posse ad usucapionem.

No tocante aos requisitos do justo título e da boa-fé, estes são apenas requeridos para a hipótese legal da usucapião ordinária. O justo título, segundo NASCIMENTO (1984, p. 94), pode ser conceituado como o ato jurídico escrito público ou particular, externamente, hábil para transferir o domínio ou outro direito real limitado, mas que se encontra carente de alguns dos requisitos essenciais para operar, eficazmente, a transferência. Em outros termos, é o que tem a natureza extrínseca de transladar o direito real, só não o fazendo por ocorrência de uma falha ou defeito.

Dessa forma, mesmo em não sendo regularmente o dono da coisa, o possuidor exerce a sua posse como se o fosse, com base no título que possui. O título existe, mas por alguma razão resta prejudicada sua validade e eficácia [05]. É o que ocorre nos casos, por exemplo, de contrato de compra e venda de imóvel por instrumento particular (ressalvadas as exceções legais), e nos casos de venda a non domino, neste caso faltando o requisito da legitimidade.

Quanto à boa-fé, esta vem a ser uma decorrência do justo título, ou seja, a crença do possuidor de que é dono, ou o desconhecimento do vício que o impede de sê-lo. Veja-se que a lei cria uma presunção juris tantum de boa-fé ao portador de justo título, sendo desnecessária sua comprovação fática (CCB/02, Art. 1.201).

Da mesma forma, a boa-fé deve dar-se durante todo o período da usucapião, ao contrário do direito romano, para o qual era irrelevante a má-fé superveniente [06]. Contudo, é irrelevante que o início da posse tenha sido de má-fé, desde que posteriormente se tenha convertido em boa-fé. Isso porque não é aplicável ao direito brasileiro a regra romana (retomada pelo direito canônico) mala fides superveniens nocet, a qual exige que a posse tenha boa fé desde o seu início (cf. MIRANDA, 1958, XI, p. 120).

Quanto a outros requisitos, é de se notar que algumas espécies de usucapião exigem requisitos específicos quanto à destinação do imóvel, tais como o estabelecimento de moradia dos possuidores, o investimento em obras produtivas, a destinação produtiva do imóvel, além exigir não serem os possuidores proprietários de outro imóvel.

3.3 A natureza jurídica da usucapião e da sentença que a declara

Muitas são as teorias a respeito da natureza jurídica da posse, questionando-se se ela é apenas fato, ou fato e direito, discussão essa que o âmbito do presente estudo não permite adentrar. Contudo, há que se consignar que a posse, considerada em si mesma, é um fenômeno que se dá primordialmente no mundo dos fatos, vez que ela não se funda exclusivamente em um direito. No caso da posse exercida como decorrência da propriedade, o direito que se está a exercer é o de propriedade, através do exercício de fato da posse. Sobre o tema, com muita propriedade escreveu Clóvis Bevilácqua (1956, v. I, p. 39):

Não direi que [a posse] seja um direito real, porque, na sistemática do direito civil pátrio, não há outros direito reais, além dos declarados no art. 674 do Código Civil [de 1916]; mas, segundo acima se disse, um direito especial – a manifestação de um direito real, seja a propriedade ou um de seus desmembramentos. A posse é estado de fato. Se a lei a protege, é visando à propriedade de que ela é manifestação.

No entanto, em se tratando de usucapião, a posse vem a ser um dos elementos da sua hipótese abstrata, transformando a posse, fato stricto sensu, num dos pilares do seu suporte fático. Assim, com a realização da hipótese prevista na lei, preenchidos os requisitos da usucapião, dá-se o nascimento de um fato jurídico. Sobre o fenômeno, assim escreve Melo (1982, p. 28):

"O elemento nuclear do suporte fático tem sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico, quer dizer, a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fáctico suficiente à incidência da norma jurídica".

Por essa razão, a usucapião, em concretizando seu suporte fático, é fato jurídico que independe de declaração judicial. Esta, quando for requerida, tem apenas como conseqüência a sua publicidade, permitindo-se formalizá-la mediante o seu registro, facilitando o exercício do novo direito de propriedade. Assim, no momento em que foram, no plano dos fatos, preenchidos os requisitos legais, ela se consuma ipso iure.

Sobre o tema, assim refere Câmara Leal (apud NEQUETE, 1981, p. 18):

"A argüição da prescrição não a cria, nem lhe dá eficácia, apenas a invoca, como fato consumado e perfeito, a ele preexistente. Argüir a prescrição não é determinar a sua eficácia, mas exigir que esta seja reconhecida, por isso que a prescrição já existia e havia operado os seus efeitos extintivos."

Nesse sentido, consumada a usucapião, ela poderá ser alegada como defesa (Súmula 237 do STF), sendo considerado esbulho ou turbação qualquer ato de outrem que ofenda a posse de quem completou o prazo para usucapir. Neste caso, contudo, não será a sentença hábil ao registro no Ofício Imobiliário (RT 548/189), salvo no caso de usucapião especial e urbano (Leis 6.969/81 e 10.257/01), conforme ensina Negrão (2006, p. 960).

Assim, no tocante aos efeitos da sentença que reconhecer a usucapião, é de se verificar que ela terá efeito preponderantemente declaratório, visto que o Direito apenas reconhece o que já se consumou no mundo dos fatos. Sílvio Rodrigues, contudo, afirma que tal sentença tem efeito constitutivo, e não declaratório, em razão de o possuidor ter mera expectativa de direito antes dela (2003, p. 113). Tal entendimento, contudo, não parece estar de acordo com a natureza da usucapião, vez que o efeito constitutivo advém da consumação dos requisitos da usucapião, e não da sentença que o declara. Com razão escreve NASCIMENTO (1984, p. 168) sobre o tema:

A sentença, na ação de usucapião, é meramente declaratória e serve como título para haver o registro imobiliário em nome do autor da ação. O efeito constitutivo se dá independentemente da sentença, bastando estarem reunidos os requisitos exigidos pela lei. A sentença tem, entre outros efeitos, o de, possibilitando a inscrição no Registro de Imóveis, permitir a disponibilidade do bem.

Pontes de Miranda, corroborando esse entendimento, traz como exemplo legislativo a Constituição de 1946, que, ao falar da usucapião, já referia expressamente seu efeito declaratório [07]. Além disso, acrescenta o tratadista um efeito mandamental da sentença (1958, t. XI, p. 148), ao ser determinado o seu registro junto à matrícula do imóvel, o que consta do CPC, art. 945, com a finalidade de dar publicidade à usucapião contra terceiros e permitir ao usucapiente a disposição da coisa.


4 A usucapião de imóvel hipotecado

4.1 Possibilidade de usucapião sobre bem hipotecado

Quanto aos bens passíveis de usucapião, é de se ressaltar que jamais poderão ser adquiridos por esse meio aqueles que forem fora do comércio, ou aqueles que forem públicos, já que contra estes não corre a prescrição [08] (Art. 2º do Dec. 22.785/33, hoje havendo vedação expressa à usucapião na CF/88, Art. 183, § 3º e no CCB/02, Art. 102.). Nesse sentido, a Constituição de 1988 foi absoluta, vedando qualquer possibilidade de usucapião de bens públicos, antes permitida em alguns casos.

Registre-se que os bens de entes da administração indireta que tenha regime de direito privado não se enquadram, em princípio, nessa categoria (§ 1º, inc. II do art. 173 da CF/88). Contudo, há alguns julgados declarando não ser possível a usucapião de bens de empresas públicas, justificando-o com base no objetivo social da empresa [09], argumento que se torna mais relevante ainda quando o imóvel objeto de usucapião tiver sido adquirido com recursos provenientes do Sistema Financeiro da Habitação ou do FGTS, dos quais a empresa seja agente financeiro.

Quanto a imóveis que estiverem pendentes de hipoteca, ou gravados com outros ônus reais, é de ser salientado que não há qualquer óbice a sua aquisição por usucapião. Isso porque qualquer gravame que tenha sido instituído por ato negocial ou por qualquer outro ato jurídico não torna o bem insuscetível de prescrição aquisitiva, meio originário de aquisição, especialmente em relação ao terceiro usucapiente que não foi sequer parte do negócio. Serpa Lopes (2001, p. 694), quanto aos bens inalienáveis nesses casos, refere que:

Se, porém, a sua inalienabilidade de um ato negocial ou de outro ato jurídico qualquer sob a cobertura do Direito Privado, como no caso de pactos antenupciais, dote, doação, legado, cláusulas testamentárias, o usucapiente é res inter alios acta, e porque a sua aquisição é de caráter originário, nenhum empecilho pode encontrar nessa incomercialidade, porquanto entre o usucapiente e o proprietário contra quem ele adquire não existe a menor relação de sucessoriedade.

Além disso, é de se ressaltar que a usucapião, enquanto fato jurídico, não pode ser obstada por registro de eventual gravame, até porque é da sua essência contrariar o que está registrado na matrícula do imóvel, vez que isso é matéria de direito, e não de fato. Caso o registro da propriedade ou de eventual direito real de garantia sobre o imóvel fosse preponderante sobre a usucapião, esta jamais poderia existir, pois, a despeito dos fatos, prevaleceria como proprietário aquele que tivesse em seu favor a titularidade formal. Nesse sentido escreve, com propriedade, Pontes de Miranda (1958. t. XX, p. 311):

A posse não está no mundo jurídico; é acontecimento do mundo fáctico. O que produz a usucapião é a posse. O possuidor, como tal, não tem de estar a par do que se passa no registro, que é local de atos jurídicos; portanto, espaço do mundo jurídico. Por isso, adquire-se o domínio a despeito do registro e ainda que se conheça o registro.

Em realidade, como referido supra, a hipoteca é um direito real de garantia que tem como característica permitir a livre circulação do bem gravado, sendo irrelevante para efeitos de usucapião que sobre ele penda a garantia. O que se discute, no entanto, são os efeitos dessa declaração de usucapião em relação à hipoteca gravada, tema controvertido que se busca adiante elucidar.

Por fim, é de se ressaltar que, não obstante ser a usucapião meio de aquisição da propriedade e de direitos reais, tais como usufruto, uso, habitação, ela não é hábil à aquisição do próprio direito real de hipoteca, vez que nesse caso, como supra referido, o titular da garantia não exerce qualquer tipo de posse sobre a coisa gravada. Eventual credor do proprietário da coisa gravada poderá até usucapir a coisa, mas jamais usucapirá a hipoteca em si mesma, conforme bem expõe NASCIMENTO (1984, p. 65):

Entre os direitos reais de garantia, imprescritível é a hipoteca. Nesta, o bem hipotecado permanece na posse do devedor hipotecário, que é o proprietário, visto que não há transferência da posse. O credor, que pretendesse adquirir a garantia hipotecária por prescrição aquisitiva, teria contra si um destes dois elementos: ou não teria a posse do bem e, por isso, jamais usucapiria porque usucapião é posse prolongada no tempo; ou teria a posse mas jamais usucapiria a hipoteca, porque a posse do credor é elemento estranho e descaracterizador da hipoteca. A posse mantida poderia justificar a aquisição de qualquer outro direito real, menos o de hipoteca..

4.2 Posições divergentes em relação aos efeitos da usucapião sobre a hipoteca

A questão que surge é se, declarada a usucapião, continuarão pendentes sobre o imóvel eventuais hipotecas sobre ele gravadas. Veja-se que, durante o período anterior à declaração judicial da usucapião, vigorará a presunção de validade do gravame, já que constará ele do registro do imóvel, não havendo maiores controvérsias a respeito. O que se impõe verificar é a situação posterior à declaração, ou melhor, os efeitos dela, sendo irrelevante dar-se ela no âmbito da defesa do executado, na excução da coisa dada em garantia, ou no momento em que eventual possuidor requerer judicialmente o reconhecimento da prescrição aquisitiva.

Em outras palavras, o que se impõe verificar é se eventual sentença que reconheça a aquisição da propriedade por usucapião declarará extintas, necessariamente, eventuais hipotecas incidentes sobre o bem ou as manterá gravadas, não obstante o caráter originário da aquisição operada. A questão, como se verá, apresenta várias divergências na doutrina.

No direito romano, vigorava a idéia de que eventuais garantias reais mantinham-se sobre o bem usucapido, não obstante a aquisição da propriedade por pessoa diversa da do devedor. Isso porque a usucapião, não obstante forma originária de aquisição da propriedade, incidia sobre o bem no estado em que se encontrava, mantendo-se intactos os ônus sobre ele incidentes, a semelhança do que ocorria na mancipatio e na in jure cessio, conforme refere PETIT (1924, p. 272):

Está en la misma situación que si hubiese adquirido la cosa por mancipatio o in jure cessio, porque la adquiere tal como estaba en el patrimonio del antiguo propietario, con todas las ventajas que le estaban unidas, pero también com todas las cargas de que está gravada; de este modo las hipotecas y las servidumbres establecidas sobre la cosa no se extinguen por efecto de la usucapión.

A única exceção encontrada no direito romano seria a remota hipótese de haver justo título e boa-fé de um terceiro possuidor da coisa em relação ao próprio credor hipotecário, no caso, por exemplo, de este efetuar uma venda a non domino do bem gravado. Neste caso, o possuidor poderia invocar como defesa a praescriptio longi temporis contra o credor, já que este foi quem lhe outorgou o justo título (PETIT, 1924, p. 305).

Do direito pátrio, Lafayette (1940, p. 185 e ss.) refere que, se o usucapiente possuiu a coisa como sua, sem qualquer impugnação de eventuais titulares de direitos reais sobre a coisa, a declaração de usucapião tem como conseqüência a extinção de tais gravames. No entanto, se os terceiros que tinham direitos reais sobre a coisa continuaram a exercê-los, ou se o possuidor sabia da existência desses direitos, adquire a coisa, mas subsistem os ônus reais preexistentes" (idem).

Azevedo Marques posiciona-se pela manutenção do gravame no caso de usucapião do bem, referindo que ele o acompanha em qualquer caso de aquisição, incluindo-se a usucapião (1925, p. 163):

Por conseguinte, inscrita e, portanto, tornada pública a hipoteca, ninguém, sob qualquer pretexto, pode ignorá-la; e quem adquirir o imóvel, seja por compra, herança, doação, ou outros títulos, inclusive a prescrição aquisitiva, adquire-o com ônus real da hipoteca, ou outro qualquer inscrito.

Pontes de Miranda entende que, se a usucapião é fenômeno que se dá exclusivamente no mundo dos fatos, e com ela se adquire o domínio, não há porque se manterem eventuais gravames pendentes sobre o bem, pois eles fazem parte do mundo jurídico, e para o adquirente são irrelevantes. Assim escreve o tratadista (1958, t. XX, p. 311):

A extinção da hipoteca pela aquisição por usucapião, livre de gravame o bem, é independente do prazo preclusivo para extinção das hipotecas, que se fixou no art. 817 do Código Civil. Pode o prazo estar precluso, ou não.

Aliás, passa-se o mesmo a respeito das servidões que se podem adquirir sobre o bem gravado.

O terceiro adquirente que nega a existência da hipoteca ou a sua validade ou eficácia põe-se na situação de quem vai adquirir por usucapião o bem, sem gravame, por ser sem reconhecimento desse gravame a sua propriedade.

Clóvis Bevilacqua tem opinião semelhante. No entanto, não coloca a usucapião em si como fundamento da extinção da hipoteca, mas a prescrição da ação hipotecária, que possuía, pelo código anterior, prazo idêntico ao da usucapião ordinária. Escreve o civilista que a hipoteca estaria extinta por prescrição, que poderia dar-se (1956, v. II, p. 304):

quando um terceiro adquire, como livre, um imóvel hipotecado e o possui por dez ou vinte anos, sem interrupção nem contestação, ignorando a existência do gravame. Para esse adquirente, prescreveu a ação hipotecária.

Ou, em outros termos, o terceiro adquiriu a non domino o bem hipotecado, achando-se de boa-fé, contando o tempo para adquirir o imóvel e tendo título justo. Com a sentença que reconhecer o usucapião, extingue-se a ação hipotecária, do credor, porque o adquirente se tornou proprietário livre desse bem.

Tal opinião tem fundamento, mas não resolve os casos em que os prazos prescricionais da usucapião sejam menores do que os previstos para a ação real, tal como ocorre no caso de usucapião especial, que é de apenas cinco anos.

Da mesma forma, outros autores também se posicionam pela extinção do ônus hipotecário com a declaração da usucapião, com argumentos semelhantes (VENOSA, 2006, p. 583, e PEREIRA,1994, por exemplo).

4.3 A hipoteca e a retroatividade dos efeitos da declaração de usucapião

Analisando os efeitos da declaração de usucapião, verifica-se que a subsistência ou não da hipoteca não pode ser definida de maneira uniforme para todas as situações, de forma absoluta, como ensinam muitos doutrinadores.

Em realidade, o aspecto mais relevante para definir a questão deve obrigatoriamente passar pela análise do momento em que a usucapião efetivamente se opera. Em outras palavras, é necessário saber-se efetivamente quando é que a propriedade do usucapido se extingue e a partir de que momento adquire o usucapiente o domínio da coisa possuída.

Como já referido, a usucapião é um fato jurídico, fenômeno que se opera no mundo dos fatos, e que o direito apenas reconhece, possuindo a sentença natureza eminentemente declaratória. Assim, no momento em que é declarada a usucapião, o que se reconhece é que o possuidor já era proprietário, antes mesmo de completar o prazo previsto na hipótese legal.

Ora, se para usucapir é necessária a posse cum animo domini, essa posse deve existir desde o primeiro dia em que se iniciou a contagem do prazo legal, o que permite afirmar que desde que a coisa foi possuída dessa forma, o usucapiente pode ser considerado proprietário. Por essa razão, diz-se que a sentença que declarar a usucapião o faz com efeitos ex tunc, ou seja, os efeitos dessa declaração retroagem ao termo inicial da posse ad usucapionem.

A respeito desse efeito da sentença, Pontes de Miranda, analisando a usucapião prevista na Constituição de 1946, é expresso ao afirmar que "a sentença a que se refere o art. 156, § 3º, é declaratória e seus efeitos, ex tunc" (1958, t. XI, p. 150). Igualmente, no direito português, a questão foi expressamente positivada no Código Civil de 1966, que dispõe em seu art. 1.288 que "invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse".

No direito brasileiro, quem parece ter analisado a questão de maneira mais completa e adequada foi Lenine Nequete (1981, p. 51), ao trazer como indício da retroatividade da declaração de usucapião o disposto no art. 272 do CCB/1916 (reproduzido no art. 1.661 do CCB/02), que declara que "são incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento". Ora, se tais bens não se comunicam, isso se dá porque a lei os considera adquiridos desde a data inicial da causa, que na hipótese legal em questão seria anterior ao casamento.

Isso é, mutatis mutandis, exatamente o que ocorre no caso da usucapião, que tem como causa a posse qualificada com os requisitos legais. Tal situação se evidencia sobremaneira no caso da usucapião ordinária, vez que nela o possuidor terá justo título desde o início da posse, sendo que a usucapião terá o efeito de consolidar tal título e transmitir-lhe a propriedade. Assim, declarada a aquisição, ela surte efeitos retroativos, considerando-se o usucapiente proprietário desde o início da referida posse.

Como decorrência disso, tem-se que os frutos percebidos durante o período prescricional serão sempre de propriedade do usucapiente, ainda que sua posse seja de má-fé, visto que, em sendo declarado proprietário ex tunc, fica elidida essa característica da posse, não se aplicando o disposto no art. 1.216 do CCB/02. Além disso, convalidam-se eventuais direitos reais constituídos pelo usucapiente durante o lapso prescricional, visto que é reconhecida sua legitimidade para fazê-lo nesse período (Art. 1.420, § 1º).

Esse entendimento, no entanto, é criticado por Nelson Luiz Pinto (1991, p. 135 e ss.), para quem os efeitos da sentença que declara a usucapião retroagem à data de consumação dos requisitos, e não à data do início da posse. Alega ele que a sentença declaratória só poderia retroagir à data da constituição do direito ou da ocorrência do fato que se declara. Ora, o fato declarado pela sentença é, essencialmente, a posse qualificada por determinado período, e não apenas a consumação da usucapião, que, como já analisado, dá-se ex lege. Dessa forma, não há razão para não declarar o usucapiente proprietário desde o início da posse, mesmo porque a sentença declara necessariamente que ele agiu cum animo domini desde esse momento. Do contrário, o antigo proprietário seria considerado como tal durante período em que o imóvel foi possuído pelo futuro usucapiente, podendo ser inclusive responsabilizado por danos decorrentes da coisa nesse período, o que não se afigura lógico.

Quanto a eventuais direitos reais gravados no imóvel, incluída aí a hipoteca, o princípio da retroatividade impõe verificar se tais ônus foram constituídos antes ou depois do início do período do lapso temporal da usucapião.

Caso tenha sido instituída a hipoteca depois de iniciado tal lapso, tem-se que a usucapião do imóvel terá como efeito intrínseco a sua extinção, vez que, se declarado o usucapiente proprietário ex tunc, no momento em que foi inscrita a garantia, o seu prestador não mais pode ser considerado como proprietário da coisa, tornando-a insubsistente, por força do art. 1.420 do CCB/02:

Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca..

Entretanto, se o gravame foi constituído antes de iniciada a posse ad usucapionem, não há como considerá-lo extinto pela simples consumação da usucapião. A hipoteca estará subordinada, exclusivamente, a sua perempção e às demais hipóteses de extinção.

Isso porque a hipoteca, como já referido, é direito real de garantia que se liga à coisa, e a acompanha, permitindo ao credor valer-se do direito de seqüela para excuti-la das mãos de quem quer que se encontre. Isso ocorre tanto no caso de transmissão da coisa gravada quanto no caso de sua aquisição por usucapião. Ressalte-se que a manutenção do gravame não tem como fundamento, nesse caso, a transmissão do bem, dado que isso não ocorre na usucapião, que é forma originária de aquisição. Tal situação é decorrente da característica real da hipoteca, que fica vinculada à coisa usucapida, tanto que a ação hipotecária é de cunho eminentemente real, e não pessoal, podendo ser direcionada inclusive a pessoa que não seja devedora da obrigação principal.

Em realidade, ninguém pode usucapir mais do que o próprio bem, sendo que os gravames nele validamente constituídos dele fazem parte, não havendo razão para desconsiderar tais direitos reais em face do reconhecimento do domínio a terceiro, até porque se ligam à coisa, e não ao titular que os tenha constituído. É situação semelhante ao que ocorre com as obrigações propter rem, as quais jamais serão extintas pelo reconhecimento da prescrição aquisitiva, vez que estão vinculadas ao bem em si, independentemente do seu dominus.

Nesse aspecto, quanto à extinção da hipoteca constituída durante o lapso temporal da usucapião, é de se dizer que não há qualquer lesão ao direito do credor. Isso porque, no momento em que aceitou o bem gravado como garantia, deveria ter-se certificado de que não pendia sobre ele alguma causa anterior que lhe pudesse alterar a titularidade do domínio, vindo, assim, a elidir a legitimidade do sujeito passivo hipotecário. Além disso, poder-se-ia, até mesmo, exigir do devedor que comprovasse sua legitimidade, bem como a inexistência de situação prévia contrária a ela, inclusive com a interrupção de eventual prazo prescricional em curso.

A respeito disso, referindo-se a dispositivos do CCB/1916, Lenine Nequete (1981, p.. 57) ensina que:

consumada a usucapião, o possuidor, como já se viu, reputa-se proprietário desde o começo da sua posse, e, conseqüentemente, não podem prevalecer contra ele os ônus constituídos, posteriormente, por quem nesse interregno perdeu a titularidade do domínio. A ofensa que assim se faz ao direito do credor, por outro lado, não repugna, pois estava em seu poder diligenciar para interromper a prescrição.

(...)

Em suma, estabelecida ao depois de iniciada a prescrição do imóvel, perece a hipoteca, consumada a usucapião; e, constituída antes, pode ela extinguir-se (prescrição extintiva) nos termos do art. 849, IV, do CC, em relação ao adquirente, nos mesmos prazos e nas mesmas condições estipuladas para a prescrição extintiva dos direitos reais (CC , art. 177), aplicados adequadamente os arts. 550 e 551, do referido diploma.

No mesmo sentido, escreve RIBEIRO (2003, p. 1.407):

Aquela hipoteca existente antes do início do exercício da posse pelo usucapiente perdurará e poderá extinguir-se, em relação ao terceiro adquirente, nos mesmos prazos e condições estipulados para a prescrição extintiva de direitos reais, observadas as disposições dos arts. 550 e 551 do Código Civil de 1916 (arts. 1.238 e 1.242 do novo Código Civil).

Iniciada, porém, a posse ad usucapionem sem qualquer gravame, mas vindo o proprietário verdadeiro a constituir ônus sobre o imóvel em época posterior, não reclamando até que se complete o lapso prescricional, a aquisição se dará livre.

Outro aspecto relevante para o entendimento ora esposado é que é da essência da hipoteca que o credor hipotecário não tenha a posse da coisa. Assim, não tem ele legitimidade para valer-se de nenhum dos instrumentos possessórios disponíveis para impedir eventual consolidação da usucapião que se opera sobre o bem hipotecado. Mais do que isso, o credor hipotecário não tem sequer direito a se opor à posse de qualquer terceiro no imóvel, até porque a posse é decorrente do direito de fruição da coisa, que emana da propriedade do devedor, mantida pela hipoteca.

Algo que poderia fazer o credor hipotecário para interromper a prescrição aquisitiva seria, a título de terceiro interessado, interpor eventual protesto contra o ocupante do imóvel (CCB, Art. 202), a fim de evitar a consolidação da usucapião, como lhe assiste o art. 203 do CCB. Essa situação, considerando a sistemática da hipoteca, parece deveras esdrúxula, pois não é razoável que tenha o credor, a quem assistem todas as prerrogativas dos direitos reais de garantia, que velar pela regularidade da posse do bem dado em garantia, até porque lhe faltaria legitimidade.

Melhor alternativa seria, segundo PINTO (1991, p. 142), considerar eventual início de posse ad usucapionem como causa para vencimento antecipado da dívida, sendo considerada a posse em questão como "depreciação da coisa", com base no inciso I do Art. 1.425 do CCB. Igualmente, poder-se-ia considerar o início da posse cum animo domini como uma forma de vencimento antecipado por analogia ao disposto no Art. 1.475, § único do CCB/02, que prevê a possibilidade de convencionar o vencimento antecipado da dívida hipotecária em caso de alienação do bem com ela gravado. Contudo, o fato é que tais hipóteses seriam de difícil instrumentalização prática, vez que não haveria, ainda, o reconhecimento judicial da usucapião.

Por essas razões, não há como se reputar a usucapião como causa hábil de extinção da hipoteca regularmente constituída antes do início do respectivo lapso temporal. Tal entendimento, além de lesar injustificadamente o direito do credor, pode permitir até mesmo a fraude por parte do devedor, que poderá efetuar a alienação irregular do imóvel, como forma de possibilitar que o terceiro comprador venha a ser declarado usucapiente do bem, elidindo a garantia.


5 Situações especiais

Adotando o princípio da retroatividade da declaração da usucapião, faz-se pertinente analisar algumas situações comumente verificadas na prática, envolvendo usucapião e contratos habitacionais, de modo a verificar as suas implicações.

5.1 O cessionário de contrato de mútuo com pacto adjeto de hipoteca

Em boa parte dos casos que tratam de usucapião de imóvel hipotecado, vêem-se possuidores que, ao requerer a sua declaração de domínio, o fazem na qualidade de cessionários de contratos de mútuo garantidos por hipoteca sobre o imóvel a ser usucapido. No mais das vezes, trata-se de cessão feita por instrumento particular, sem a anuência do agente financeiro, através dos chamados contratos "de gaveta".

Sobre esse aspecto, é de se ressaltar que a Jurisprudência tem reconhecido a legitimidade desses cessionários no tocante à quitação do imóvel, não lhes sendo, contudo, permitido discutir cláusulas contratuais, vez que não foram partes da avença original [10]. No mesmo sentido, algumas leis têm possibilitado em alguns casos a regularização dessas transferências, de modo a não deixar desamparado o cessionário de contrato habitacional, como, por exemplo, a Lei 10.150, de 21/12/2000.

No entanto, o fato mais relevante em relação à usucapião é destacar que a posse do cessionário terá, via de regra, as mesmas características da posse do cedente. O disposto nos arts. 1.206 e 1.207 do CCB/02 permite, por analogia, chegar-se a tal conclusão:

Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres.

Art. 1.207. O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais.

Assim, ainda que a cessão contratual propriamente dita não tenha validade, vale a cessão da posse, que se mantém, de fato, com a mesma natureza. Como ressaltado supra, a posse é fato, e, como tal, não se descaracteriza por eventual nulidade do título que a fundamenta. Refira-se, ainda, que a posse do cedente se dá como uma emanação da propriedade, visto que ele é o dono do imóvel, não obstante o gravame.

Assim, o adquirente adquire a posse cum animo domini, com a consciência de que está adquirindo a coisa como proprietário, ainda que o seu título não seja hábil a transferir-lhe o domínio, vez que lhe falta requisito essencial de validade e eficácia. No entanto, no momento em que é cessionário do contrato de mútuo garantido pela hipoteca, passa à condição de devedor da obrigação principal, igualmente ciente do gravame que pende sobre a coisa.

Dessa forma, não haverá qualquer óbice à declaração de usucapião, vez que a posse cum animo domini é decorrente da própria natureza da alienação operada. No entanto, ainda que se altere a titularidade do bem, permanecerá a hipoteca, visto que inscrita anteriormente à posse do adquirente, podendo o credor hipotecário excutir a coisa das mãos do usucapiente/cessionário.

No caso de reconhecimento da usucapião, poderá inclusive haver o vencimento antecipado da obrigação garantida, desde que convencionada, por analogia ao disposto no Art. 1.475, § único do CCB/02, que prevê a possibilidade de convencionar o vencimento antecipado da dívida hipotecária em caso de alienação do bem com ela gravado, conforme já referido.

5.2 Cessionário de promessa de compra e venda

Diversa, contudo, será a situação do possuidor que tenha obtido a posse mediante cessão de contrato de promessa de compra e venda, visto que a posse lhe foi transmitida não com base no domínio, mas com base em expectativa de sê-lo, mediante o adimplemento total do preço do imóvel. O promitente comprador jamais foi dono da coisa, sendo titular, apenas, de direito real à aquisição da coisa na hipótese do art. 1.417 do CCB/02, desde que registrada a avença. É de se ressaltar que o novo CCB inovou nessa matéria, criando verdadeira nova espécie de direito real (Art. 1225, VII).

Dessa forma, ao ser cessionário da posse do promitente comprador, o possuidor tem plena consciência de que não é dono da coisa, podendo sê-lo, contudo, caso totalize o pagamento da obrigação pendente ou se implemente outra qualquer condição ou termo. Nesse caso, terá ele direito a exigir do promitente vendedor a outorga de escritura definitiva, ou requerer judicialmente a adjudicação da coisa (art. 1418).

Por essa razão, enquanto exercer a posse na qualidade de cessionário de contrato de promessa de compra e venda, falta ao possuidor o animus domini, não podendo pretender a usucapião do bem possuído. Desse modo, em havendo eventual inadimplemento de obrigação pactuada, poderá o promitente vendedor pleitear a resolução do contrato, bem como a reintegração na posse do imóvel, descabendo por completo a alegação de usucapião por meio de exceção.

Ressalte-se, contudo, que se o promitente comprador aliena o bem como se seu fosse, opera-se uma típica venda a non domino, não havendo razão para desconsiderar eventual animus domini do terceiro aquirente, vez que sua posse, ainda que por dolo do alienante, é adquirida com a crença de que emana da propriedade adquirida. Neste caso, poderá haver por parte desse possuidor a usucapião, preenchidas as hipóteses legais, mas não lhe assistirão quaisquer das prerrogativas que assistem ao promitente comprador.

5.3 Usucapião em relação à arrematação e à adjudicação

Como visto, a hipoteca é um gravame que pende sobre o imóvel, via de regra, até que desapareça a obrigação principal ou até que ocorra a sua perempção no prazo legal, sem renovação. Nesse aspecto, é de se repisar que não cabe ao devedor usucapir a própria hipoteca, vez que é direito real imprescritível para essa finalidade, não lhe cabendo, igualmente, pretender usucapir a própria coisa como forma de livrar-se do ônus, porque ela, no mais das vezes, já é sua.

No entanto, no momento em que a hipoteca é levada a cabo, tendo como última conseqüência a arrematação ou a adjudicação do bem, transmuda-se a situação. Antes, o titular do imóvel hipotecado exercia a posse como uma decorrência do domínio; agora, não sendo mais o dono, detém-na na qualidade de esbulhador, nascendo para o novo proprietário a rei vindicatio, o poder de imitir-se na posse da coisa arrematada ou adjudicada, mediante ação reivindicatória.

Dessa forma, um outro efeito correlato da arrematação ou adjudicação é a possibilidade de, transferida a titularidade da coisa, dar início ao prazo da prescrição aquisitiva em favor do antigo proprietário expropriado. Em realidade, o antigo proprietário expropriado, ou seu sucessor na posse, passam à qualidade de meros ocupantes do imóvel, faltando-lhes, em princípio, requisito para a usucapião.

No entanto, ainda que tenha ele sofrido a desapropriação forçada pela execução, poderá, em determinadas circunstâncias, manter o animus domini, operando-se a usucapião em desfavor do arrematante/adjudicante. É claro que não poderá alegar em seu favor justo título ou boa-fé, podendo-se valer exclusivamente das hipóteses legais de usucapião que não contiverem tais requisitos, incluídas aí as modalidades de usucapião especial e extraordinário.

No caso em questão, é de se frisar que não penderá sobre o bem nenhum resquício da hipoteca anteriormente gravada, visto que, com a arrematação ou adjudicação, operou-se a sua extinção. Caso o possuidor da coisa no momento da execução hipotecária não seja o original prestador da garantia, tal situação não se altera, uma vez que, caso ele venha a usucapir a coisa, não subsistirá o ônus, visto que extinto.

Por essa razão, é altamente relevante que o credor busque, quando do procedimento de execução hipotecária, a intimação de eventual possuidor do imóvel, mesmo que já se tenha consumado a usucapião. Isso porque, em sendo o imóvel arrematado ou adjudicado sem qualquer intimação, poderá esse possuidor requerer, no dia seguinte, o reconhecimento de domínio, caso preencha os requisitos, tornando-se proprietário do bem livre de qualquer ônus.

Se o Art. 698 do CPC impõe a necessidade de intimação do credor hipotecário no caso de praça do imóvel por terceiros, pelos mesmos fundamentos se mostra salutar a intimação do possuidor da coisa. Isso permitirá que este possa manejar eventuais embargos de terceiro no prazo do art. 1.048 do CPC, caso entenda que se tenha consumado a usucapião, sendo plenamente legitimado para tanto, conforme vem reconhecendo a Jurisprudência do STJ [11]. Se o possuidor não tiver ainda consumado o prazo para a usucapião, a sua intimação em sede de execução cumprirá a finalidade de interromper tal prazo, dando-lhe ciência inequívoca da titularidade do bem e desqualificando a sua posse.

Na hipótese se serem manejados embargos de terceiro sob a alegação de usucapião, neles haverá a discussão a respeito da prevalência da usucapião ou da arrematação, observando-se a data de início da posse ad usucapionem, a data de inscrição do gravame e o princípio da retroatividade, conforme já referido. Caso não sejam eles manejados tempestivamente, não obstante a intimação, ter-se-á como perfeita a arrematação, sem qualquer óbice ao seu registro e às medidas tendentes à imissão na posse do novo proprietário. Ressalve-se que poderá o possuidor discutir a questão em ação ordinária [12], mas essa, via de regra, não suspenderá o curso da execução hipotecária.

Quanto à questão da imissão de posse do arrematante/adjudicante, a Lei 5.741/71, que trata de execução hipotecária de dívidas vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação, prevê, no art. 4º, § 1º, a expedição de mandado de desocupação caso o imóvel hipotecado esteja ocupado por terceiros. Tal procedimento, diga-se, é amplamente reconhecido pela Jurisprudência do STJ, que não vislumbra afronta a garantias processuais dos terceiros [13]. No entanto, como referido, tal prerrogativa não afasta a conveniência da intimação prévia do possuidor do imóvel.


6 Conclusões

A partir do que foi exposto, podem ser consolidadas as seguintes conclusões:

(a) A hipoteca, uma vez registrada, é direito real de garantia que se reveste de todas as características inerentes a tal categoria, especialmente a oponibilidade erga omnes e o direito de seqüela, que permite excutir a coisa gravada, inclusive nas mãos de terceiros adquirentes.

(b) Em razão da modificação dos prazos prescricionais no novo Código Civil, tornou-se inócuo elencar a prescrição como causa de extinção da hipoteca, vez que as ações que tutelam as pretensões reais jamais terão prazos prescricionais menores do que as pessoais.

(c) A usucapião é meio originário de aquisição da propriedade com efeito duplo: de um lado, a prescrição age como forma geradora de direitos em favor do usucapiente; de outro, como conseqüência, tem-se a extinção do direito do antigo proprietário em face de sua inércia.

(d) A usucapião, em concretizando seu suporte fático, é fato jurídico que se consuma ipso iure, independente de declaração judicial. Esta, quando for requerida, tem apenas o efeito de dar-lhe publicidade e permitir o registro da propriedade adquirida, facilitando sua disposição. Por isso, a sentença que a declara tem efeitos preponderantemente declaratórios e ex tunc, retroagindo para o momento inicial da posse ad usucapionem.

(e) A existência de hipoteca sobre determinado bem imóvel não tem o efeito de impedir eventual incidência de usucapião, desde que preenchidos os requisitos legais, visto que qualquer gravame que conste do registro do imóvel não altera, por si só, a qualidade da posse do usucapiente.

(f) Pelo princípio da retroatividade, se no momento de inscrição da hipoteca já estava em curso o lapso temporal para a usucapião, a sua consumação tornará extinta a garantia. Caso a hipoteca tenha sido inscrita anteriormente ao início da posse, manter-se-á o gravame, não obstante a declaração de usucapião.

(g) É possível ao cessionário de contrato de mútuo usucapir o bem sobre o qual pende hipoteca, mantendo-se, contudo, o gravame, podendo inclusive haver o vencimento antecipado da obrigação garantida, desde que convencionada, por analogia ao disposto no Art. 1.475, § único do CCB/02.

(h) O promitente comprador ou eventual cessionário de promessa de compra e venda não possuem animus domini capaz de ensejar a declaração de usucapião, detendo, apenas, direito real à aquisição da coisa, desde que adimplida a obrigação constante da avença (condição) ou ocorrido eventual termo nela previsto.

(i) Impõe-se, na execução hipotecária, a intimação de eventual terceiro possuidor do imóvel, como forma de evitar posterior declaração de usucapião em seu favor que venha a se sobrepor à arrematação ou à adjudicação, visto que estas são causas de extinção da hipoteca.


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Notas

01 É possível, no entanto, a sua estipulação por instrumento particular, nos casos de contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, na forma do art. 61, § 5º, da Lei nº 4.380/64, com as alterações da Lei 5.049/66.

02 "Em sendo o contrato de hipoteca um pacto acessório extingue-se quando prescreve a obrigação principal." (Apelação Cível Nº 70003263993, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 23/06/2005, Publ. 01/07/2005)

03 Na redação original do CCB/02 constavam 20 anos, tendo sido alterado para 30 por força da lei 10.931/2004. Dessa forma, buscando harmonizar os artigos em questão, por "renovada", deve-se entender "prorrogada" a hipoteca até o prazo de 30 anos. A efetiva "renovação" só será necessária após esse prazo.

04 Embora o Novo Código tenha vedado a instituição de novas enfiteuses, não há qualquer óbice à usucapião sobre as ainda existentes.

05 Para Pontes de Miranda o título nulo não pode ser considerado como justo título, mas apenas o anulável (1956, v. XI p. 140).

06 Cf. NASCIMENTO ( 1984, p. 102). No mesmo sentido: "A prescrição ordinária requer a posse titulada e a boa fé, não só ao se iniciar a prescrição, mas em todo o decurso do tempo". (STF, RF 119, 117, j. em 2/01/1948)

07 Art 156 - A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados. (...) § 3º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

08 Consigne-se, contudo, o pensamento de Wagner Inacio Freitas Dias, que defende, com base na função social da propriedade, a possibilidade de usucapião de bens públicos que não estejam sendo destinado a uma finalidade pública (Da possibilidade (constitucional) de usucapiao sobre bens publicos. A revisao de um pensamento em face do Codigo Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 101 , n.377,p. 223-234, jan./fev. 2005.)

09 TRF da 2ª Região, Apel 9802083704, Rel. SERGIO FELTRIN CORREA, DJU 22/12/2004, p. 103.

10 REsp 229417/RS, DJ DATA:07/08/2000, p. 00112 Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. em 09/05/2000, 4ª Turma.

11 REsp 73458/SP, DJ 20.05.1996 p. 16715, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, j. em 25/03/1996, 4ª Turma.

12 REsp 150893/SC, DJ 25.03.2002 p. 269, Rel. Min. ARI PARGENDLER, j. em 11/12/2001, 3ª. Tuma.

13 REsp 266.062, Rel. Min. Castro Meira, j. em 10/08/04, DJU 20/09/04, p. 220


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LÓPEZ, Éder Maurício Pezzi. Usucapião de imóvel hipotecado sob a ótica do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1393, 25 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9792. Acesso em: 26 abr. 2024.