Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/9813
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Considerações acerca das extorsões realizadas por via telefônica, através da simulação de um seqüestro

Considerações acerca das extorsões realizadas por via telefônica, através da simulação de um seqüestro

Publicado em . Elaborado em .

A conduta já designada como "disque-seqüestro" adequa-se precisamente à figura típica de que trata o art. 158 do Código Penal, qual seja, o crime de extorsão.

1. NOÇÕES GERAIS

Nos últimos anos vem sendo disseminada no Brasil a prática de uma nova modalidade de extorsão. Trata-se do golpe ironicamente chamado de "disque-seqüestro", que, apenas no ano de 2006, foi registrado sete mil setecentas e sete vezes junto aos órgãos policiais fluminenses, paulistas e mineiros.

Tal espécie de extorsão, como cediço, se dá através de contatos telefônicos através dos quais, simulando-se o seqüestro de um ente querido da vítima, mediante grave ameaça, constrange-se a mesma a perpetrar algum ato capaz de propiciar vantagens econômicas ao sujeito ativo do crime e/ou a terceiros (normalmente exige-se pagamento em dinheiro ou a habilitação de créditos para telefone celular).

Antes aplicada quase que exclusivamente por presidiários, esta prática extorsiva hoje já encontra alguns adeptos extramuros. Apenas setenta por cento das noventa e oito pessoas indiciadas em 2006 pelo crime em estudo fazia parte do contingente penitenciário. Porém, ainda estima-se que mais de noventa por cento das ligações continuem partindo do interior de presídios.

Inspirada em outras espécies de golpes telefônicos criados há aproximadamente cinco anos por sentenciados da penitenciária fluminense Carlos Tinoco da Fonsenca, esta extorsão vem sendo aperfeiçoada de modo a se tornar cada vez mais aterrorizadora. As vítimas que antes quase sempre eram escolhidas de modo aleatório, comumente hoje são escolhidas e pesquisadas de modo percuciente. Atualmente, não raras são às vezes em que o delinqüente, a fim de escolher o momento e o "modus operandi" mais eficazes, antes de desfechar o golpe, colhe informações sobre a vítima, seus parentes, hábitos e rotina, valendo-se previamente de ligações aparentemente inofensivas, ou até mesmo indo a campo, isto é, seguindo-a nalgumas ocasiões. Por incrível que pareça, tamanho é o poder de coativo desses delinqüentes que, segundo estimativas, vinte por cento (20%) das vítimas chegam a efetivamente pagar o falso resgate.

Ligando durante a madrugada, falando rapidamente na terceira pessoa do plural, valendo-se de falsos pedidos de socorro ecoados ao fundo, exigindo valores relativamente baixos e procurando a todo custo impedir que a vítima tente entrar em contato com o ente querido supostamente seqüestrado, estes agentes aumentam sobremaneira o seu "poder de fogo". Especialistas apontam que diversos fatores contribuem para tornar o golpe mais convincente. Talvez o principal deles esteja relacionado com a sensação de insegurança que hodiernamente vige no Brasil, e que se acentua através das coberturas mirabolantes dadas pela imprensa aos crimes mais bárbaros. A fala rápida, durante a madrugada, acompanhada por gritos de socorro ao fundo, prejudica significativamente a capacidade de discernimento da vítima. A afirmação de que a pessoa supostamente seqüestrada terá um fim trágico acaso seu celular venha a tocar, a vítima venha a falar com alguém ou desligue o telefone, faz com que muitas vezes sequer se tente verificar a realidade do seqüestro. Pedidos de "resgate" relativamente baixos (em média, R$ 4.000,00) tornam o golpe mais ágil, de modo a possibilitar que a vítima efetue o pagamento antes de ter tempo para procurar a polícia ou o ente supostamente seqüestrado. A fala realizada na terceira pessoa do plural, dando a idéia de que há mais pessoas envolvidas no crime, aumenta a credibilidade dos dizeres proferidos pelo bandido. E a combinação de tudo isso cria o clima de terror perfeito para o golpe que, dessa forma, muitas vezes se torna suficientemente crível.

O golpe em comento assume diversas roupagens. Na medida em que determinada estratégia passa a ser popularmente conhecida e, por conseguinte, torna-se menos verossímil, criam-se outras. A par daquela dantes mencionadas, na qual se simula um seqüestro, e de suas inúmeras variáveis, outras igualmente aterrorizadoras já são conhecidas. Tem-se notícia de casos em que o agente, através de contato telefônico, afirmando haver sido contratado para seqüestrar e matar a vítima, procura extorqui-la, dizendo que mediante o pagamento de determinadas vantagens econômicas poderá desistir daqueles planos. Há ainda notícia de outras práticas delituosas efetuadas pela via telefônica que, contudo, aproximando-se mais do estelionato do que da extorsão, excedem os limites deste estudo, e, portanto, nele recebem apenas breves menções, em subitem próprio.


2. CAPITULAÇÃO

A conduta que mais acima foi designada como "disque-seqüestro" adequa-se precisamente à figura típica de que trata o art. 158 do Código Penal, aqui transcrito in verbis: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. E o mesmo se diga quanto ao comportamento daqueles que, como já dito, afirmando-se contratados para seqüestrar e matar a vítima, procuram extorqui-la.

Da percuciente análise daquele tipo penal, e em consonância com o abalizado escólio de E. Magalhães Noronha (1998, p. 266) extrai-se que, para a configuração do crime de extorsão, são necessários quatro requisitos: o emprego de um meio coativo (violência ou grave ameaça); o estado de coação do sujeito passivo; a ação ou omissão deste; e o objetivo de obter vantagem econômica indevida. E conforme a partir de agora se demonstrará, todos eles se fazem presentes na conduta sub examine.

No que diz respeito ao emprego de meios coativos, impende inicialmente observar que em momento algum a norma em estudo exige que o agente tenha a real intenção de concretizar o mal prometido, ou que tenha efetiva condição de fazê-lo. Consoante leciona Júlio Fabrini Mirabete (1991, p. 221), a utilização do verbo "constranger" denota claramente que basta que a ameaça realizada seja idônea para subjugar, ao que tudo indica, um homem médio (há julgados que entendem pela necessidade de que a ameaça empregada seja apta para intimidar especificamente o sujeito passivo do crime).

E não há dúvida de que a conduta em comento atende com precisão o requisito ora tratado. Isso porque o delinqüente em questão, ao dizer-se em poder de um ente querido da vítima, e disposto a matá-lo, ou ainda, ao afirmar haver sido "contratado" para matá-la, indubitavelmente se vale de um dos meios de coação a que se refere o tipo penal, qual seja, a grave ameaça. E não se duvide da idoneidade coativa desses meios, pois que, como já dito, se aproximadamente vinte por cento das vítimas dos golpes em questão chegam "a se curvar diante dos criminosos", certamente as técnicas por eles empregadas são no mínimo potencialmente capazes de atingir um homem de diligência média. A esse respeito, aliás, vale observar que se tem notícia até mesmo de um policial civil que recentemente teria caído no golpe, não obstante já o conhecesse bem.

Para a caracterização da extorsão, contudo, não basta que a vítima aja sob coação. Mister é que a ela seja posta em estado de coação, ou seja, venha a agir ou se omitir em função do meio coativo empregado, objetivando, assim, evitar a concretização do mal prometido. Observe-se que razões diversas podem levar uma pessoa sob coação a proporcionar a outra vantagens econômicas. Por exemplo, causas variadas podem levar um pai ceder aos anseios de seu filho, dependente químico, que mediante grave ameaça, exige o numerário necessário para a quitação de dívidas contraídas para a aquisição de drogas. Pode ele agir em razão da grave ameaça, a fim de impedir a concretização do mal prometido, como também pode, sem levar a sério a ameaça, agir por piedade, ou por receio de que a sua prole venha a ser morta por seus credores. Apenas na primeira dessas hipóteses estar-se-á em estado de coação, de modo a permitir a configuração do crime em estudo.

Uma vez realizada essa necessária distinção, resta saber se as vítimas da conduta em testilha, ao cederem aos intentos criminosos de seus coatores, o fazem em real estado de coação. E a resposta a essa indagação, na quase totalidade das vezes, será irrefragavelmente afirmativa, haja vista que na conjuntura em que se dão as condutas ora tratadas, praticamente inimaginável é a existência de outras razões que pudessem levar a vítima a proporcionar aos seus constrangedores a vantagem econômica exigida, máxime se se considerar que, via de regra, inexiste entre os sujeitos passivos e ativos desta infração qualquer relacionamento prévio.

A par dos elementos supra-referidos, a configuração do crime de extorsão exige ainda que a vítima venha a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. E na hipótese vertente, não há dúvida de que tal requisito se faz presente, haja vista que nela exige-se justamente que o sujeito passivo adote determinadas condutas comissivas, normalmente relacionadas com a realização de um pagamento em dinheiro, ou com a habilitação dos créditos necessários à utilização de telefones celulares pré-pagos.

Por fim, para que um comportamento se encaixe dentro dos limites da norma penal aqui abordada, imprescindível é que os comportamentos exigidos da vítima, tal e qual ocorre in casu, se destinem à obtenção de uma vantagem econômica indevida. De inquestionável conotação econômica são as vantagens usualmente exigidas nas práticas aqui tratadas, pois que, como já dito, quando nelas não se exige diretamente o pagamento de um montante em dinheiro, pretende-se o fornecimento de algo que o valha. Igualmente incontestável é o fato de que tais vantagens se mostram indevidas, porquanto exigidas em face de pessoas com as quais não se tem nenhuma relação obrigacional lícita. A eventual existência dessa relação entre os sujeitos da conduta poderá, conforme o caso, afastar a configuração da extorsão, implicando em exercício arbitrário das próprias razões.


3. DISTINÇÃO

A fim de evitar eventuais equívocos que ainda possam pairar sobre a classificação jurídica das condutas em debate, oportuno é sejam apontadas as razões pelas quais não há de se falar, na espécie, em estelionato, roubo ou constrangimento ilegal.

Nas modalidades de extorsão em estudo, o agente, ao simular o seqüestro de um ente querido da vítima, ou dizer-se contratado para matá-la, inquestionavelmente se vale de uma fraude, na medida em que não se encontra em condição de levar a cabo o mal prometido e, no mais das vezes, nem mesmo tem a intenção de fazê-lo (não há seqüestro algum, não foi contratado para nada, na maioria das vezes está preso, e nem mesmo sabe com quem está falando). Daí a similitude existente entre estas condutas e aquelas de que trata o art. 171 do Código Penal.

Contudo, a fraude que aqui é empregada tem uma finalidade ligeiramente diversa. No estelionato, a farsa utilizada age no sentido de viciar a vontade do sujeito passivo do delito, fazendo com que ele, iludido, venha a voluntariamente entregar a coisa. Já nos casos em tela, emprega-se um meio fraudulento voltado a atemorizar a vítima, de modo a obrigá-la a realizar a entrega exigida, contra a sua vontade. Constata-se, pois, que a finalidade mediata das fraudes empregadas num e noutro caso é a mesma, qual seja, a entrega de coisa economicamente apreciável. Já as finalidades imediatas, ao revés, são absolutamente distintas, porquanto ao passo em que na primeira hipótese pretende-se viciar a vontade do sujeito passivo, convencendo-o, na segunda o agente pretende sobrepor sua vontade a do sujeito passivo, subjugando-o.

Tanto nas espécies de extorsão aqui tratadas, quanto em alguns tipos de roubo, obtém-se vantagem indevida, mediante grave ameaça. Entrementes, a forma pela qual tal obtenção se dá em cada uma dessas hipóteses é bastante distinta.

Considerando que, ao tratar do roubo, o nosso estatuto repressivo emprega o verbo subtrair, constata-se que para a configuração desse crime, o próprio delinqüente deve pegar para si a coisa pretendida, ou ainda, segundo de há muito se tem entendido, exigir que tal coisa lhe seja entregue in continenti pela vítima, de modo a impedir que esta possa optar por um ou por outro comportamento. Vale dizer, no roubo a vantagem injusta pretendida de qualquer forma será alcançada, posto que se por ventura a vítima optar por não entregá-la, o próprio agente irá tomá-la (a decisão da vítima é praticamente irrelevante).

Já ao disciplinar a extorsão, aquele mesmo diploma utilizou o verbo constranger, evidenciando, dessa forma, que em tal modalidade delituosa o comportamento da vítima é que determina a obtenção, ou não, da vantagem almejada. Assim é que, na extorsão, há um lapso temporal entre o ato por meio do qual o agente exige da vítima a adoção de um determinado comportamento, e o momento em que o proveito econômico colimado será alcançado. E é justamente esse lapso que confere à vítima um certo poder decisório, isto é, a faculdade se submeter à vontade do coator, ou insurgir-se contra a mesma, assumindo o risco de que o mal prometido venha a ser concretizado. Nota-se, pois, que na extorsão a obtenção ou não da vantagem econômica pretendida dependerá de uma escolha da vítima, porquanto se por ventura ela vier a resistir aos comandos daquele que a constrange, este não terá condição de, de per si, auferir de logo a vantagem que pretende.

Sendo assim, e considerando que tanto na conduta aqui entitulada como "disque-seqüestro", quanto nos supramencionados casos em que o sujeito ativo se faz passar por um matador contratado para exterminar a vítima, confere-se a esta um considerável poder de decisão, nos moldes daquele explicitado no parágrafo anterior, verifica-se que tais condutas, estremando-se do crime de roubo, se amoldam precisamente àquela descrita no art. 158 do Código Penal.

Assim como ocorre no constrangimento ilegal, na extorsão há uma ofensa à liberdade pessoal que se perfaz mediante violência ou grave ameaça. Porém, a ofensa realizada em cada uma dessas infrações destina-se a fins completamente distintos. Ao passo em que na extorsão pretende-se uma vantagem econômica ilícita, no constrangimento ilegal são almejados fins diversos, não inseridos nos demais tipos penais que se perfazem através de um constrangimento (estupro, atentado violento ao pudor, concussão, exercício arbitrário das próprias razões etc.). Trata-se, pois, de um crime subsidiário, de um verdadeiro soldado de reserva.

Com efeito, considerando que tanto quando se simula um seqüestro, nos moldes anteriormente explicitados, quanto quando se exige o pagamento de uma determinada quantia como condição para que a vítima não venha a ser assassinada, se tem em vista a obtenção de uma vantagem economicamente apreciável, não há falar-se, na espécie, em constrangimento ilegal, mas sim em extorsão. Em tais hipóteses, a prática daquele crime fica afastada pela aplicação do princípio da subsidiariedade.


4. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

O momento em que se dá a consumação do delito de extorsão é por demais controvertido. Alguns, dentre os quais E. Magalhães Noronha (1998, p. 272) e Cláudio Heleno Fragoso (1976, p. 342), sustentando tratar-se de crime material, entendem que sua consumação só ocorre quando há a obtenção do proveito injusto, isto é, quando o sujeito ativo do delito passa a ter a posse tranqüila da coisa. Já Nelson Hungria (1980, p. 74/75), Júlio Fabrini Mirabete (1991, p. 222), Damásio Evangelista de Jesus (1979, p. 340), Celso Delmanto (1991, p. 281) e Paulo José da Costa Júnior (1996, p. 482), tendo-o como crime formal, sustentam haver consumação a partir do momento em que o sujeito passivo do crime se curva diante do ativo, fazendo, deixando de fazer ou tolerando que se faça alguma coisa. Vêem, pois, a obtenção ou não daquele proveito como ato de mero exaurimento do crime, a ser considerado apenas no primeiro momento da dosimetria da pena.

Verifica-se, pois, que conforme se adote uma ou outra corrente, ter-se-á como consumados os crimes em comento a partir do momento em que a vítima, respondendo aos comandos do delinqüente, vier a tomar as atitudes tendentes a conferir ao mesmo a vantagem patrimonial exigida, ou tão somente quanto tais vantagens vierem a ser efetivamente auferidas. Note-se que em entre cada uma dessas hipóteses há uma significativa diferença, porquanto perfeitamente possível é que, não obstante à tomada daquelas atitudes, o sujeito ativo destes ilícitos não venha a alcançar a vantagem esperada. Tal pode se dar, por exemplo, quando a vítima vem a efetivamente habilitar em favor do infrator presidiário os créditos telefônicos exigidos, mas este sequer chega a desfrutar do produto de seu crime, em razão da apreensão de seu telefone celular, durante uma vistoria policial realizada em sua cela momentos antes daquela habilitação de créditos.

Uma outra conseqüência relevante decorre daquele dissentimento doutrinário. Se se entender que os crimes sobre os quais ora se discorre são materiais, ter-se-á que aquele que, por exemplo, após a realização do constrangimento da vítima, vier a atuar tão somente para apanhar o dinheiro que por ela foi deixado em um local previamente determinado responderá pelo crime, como partícipe ou co-autor, conforme se aplique, respectivamente, no que diz respeito ao concurso de agentes, o critério objetivo-formal ou o objetivo-subjetivo, também conhecido como teoria do domínio final do fato. Por outro lado, acaso se tenha aqueles crimes como formais, por eles o referido agente não responderá, na medida em que sua atuação será tida como posterior ao momento consumativo. Não haverá falar-se, pois, em concurso de agentes, mas sim em crime autônomo de favorecimento real (art. 349 do Código Penal).

Desse modo, à guisa de conclusão, observa-se que, de acordo com posição que vier a ser adotada pelo interprete, considerar-se-á como tentado ou consumado o crime nas hipóteses em que, não obstante a vítima já tenha cedido aos comandos de seu coator, às vantagens disponibilizadas ele não chega a ter acesso efetivo, assim compreendido, como já dito, aquele caracterizado pela posse tranqüila da coisa. Lado outro, independentemente da posição doutrinária empregada, tem-se que os crimes em tela são apenas tentados sempre que a vítima, percebendo a inveracidade dos dizeres proferidos pelo delinqüente, não se intimida com as ameaças proferidas e, por conseguinte, não chega a efetuar o pagamento exigido.


5. CAUSAS ESPECIAIS DE AUMENTO DE PENA

Nos dois parágrafos do art. 158 do Código Penal são previstas diversas hipóteses de aumento de pena. Contudo apenas uma delas parece interessar ao presente estudo. Trata-se da relacionada ao cometimento do crime por duas ou mais pessoas. As demais majorantes, dizendo respeito apenas às hipóteses em que há violência real ou o emprego de armas, são incompatíveis com as modalidades de extorsão ora abordadas, porquanto as mesmas, como já visto, são perpetradas por meio telefônico, e, portanto, incompatível com o emprego de armas, e apenas com a utilização de violência ficta, ou seja, de grave ameaça.

Ao tratar da majorante em comento, valendo-se de uma fórmula diversa da empregada nos arts. 155 e 157 do Código Penal, o legislador se referiu ao crime cometido por duas ou mais pessoas, e não ao perpetrado em concurso de agentes. E disso decorre uma significativa diferença. No roubo e no furto, para a incidência da majorante, basta que haja mero concurso de agentes, ou seja, tendo-se como base, na distinção entre participação e co-autoria, o critério objetivo-formal, suficiente é que duas ou mais pessoas concorram de qualquer modo para o crime, quer como co-autoras, quer de modo que a atuação de uma possa ser vista como um mero ato de participação em relação à conduta da outra. Lado outro, no crime de extorsão, para que a pluralidade de agentes possa implicar em aumento de pena, mister é que ao menos dois deles tenham praticado o ato executivo do delito, ou seja, tenham constrangido a vítima, ostentando, dessa forma, ainda segundo o reportado critério objetivo-formal, a condição de co-autores do injusto.

Assim é que aos crimes em comento só será aplicada a majorante supracitada acaso dois ou mais agentes venham a participar efetivamente das conversas telefônicas por meio das quais se procura constranger a vítima. E tal se dá com bastante freqüência, haja vista que, como se disse alhures, não raras são às vezes em que, enquanto um agente conversa com a vítima no telefone, outro, passando-se pelo ente querido seqüestrado, grita ao fundo por socorro, dizendo estar sendo submetido às mais terríveis crueldades. Isso sem falar na possibilidade de que dois ou mais agentes venham a efetivamente a conversar com a vítima, a fim de transmitir a idéia de que o pseudo-seqüestro foi perpetrado por diversas pessoas. Ao revés, não incidirá a causa especial de aumento de pena em debate quando, por exemplo, um dos dois agentes envolvidos no crime vier a atuar apenas no sentido de colher informações sobre a família da vítima, ou recolher o valor do resgate exigido.


6. OCORRÊNCIA DO EVENTO MORTE

Diante da grande eficiência das práticas aterrorizadoras empregadas pelos autores destes crimes, imensurável é o nível de tensão ao qual são submetidas suas vítimas que, nalguns casos excepcionais, podem não suportar tamanha emoção, vindo a sofrer, por exemplo, um enfarto fatal. Tal é justamente o que ocorreu com a aposentada Mércia Mendes de Barros, na cidade paulista de São Caetano do Sul, no dia 19 de fevereiro de 2007.

Uma vez verificada aquela possibilidade, oportuno é indagar se, em casos como este, deve o autor da extorsão responder pela morte ocorrida? E a resposta a essa indagação haverá de ser obviamente negativa, na medida em que, segundo a sistemática adotada em nosso sistema repressivo, a responsabilidade penal é sempre subjetiva, ou seja, pressupõe a existência de dolo ou culpa.

A princípio, se a partir de uma concepção exclusivamente naturalística se pretendesse pura e simplesmente aplicar ao caso em análise a norma insculpida no art. 13 do Código Penal, certamente ter-se-ia o sujeito ativo da extorsão em análise como responsável pela morte operada, uma vez que a mesma se encontra dentro da linha de desdobramento causal do constrangimento praticado. Isso porque, aplicando-se ao caso sub examine o processo hipotético de eliminação de Thyren, chegar-se-ia à conclusão de que sem a prática da conduta delituosa em questão a morte da vítima certamente não ocorreria como ocorreu. Tem-se, pois, a conduta delituosa perpetrada como uma concausa relativamente independente da morte ocorrida, concomitante à mesma, e, portanto, inserida dentro do âmbito de imputação de que trata a norma penal aludida.

Todavia, para que um determinando resultado seja imputado àquele que lhe deu causa não basta a existência de um nexo etilógico meramente naturalístico. Mais do que isso, por força do disposto no parágrafo único do art. 18 de nosso Estatuto Repressivo, imprescindível é que a par daquela relação de causa e efeito, haja dolo, ou ainda, nos casos previstos em lei, culpa. Daí falar-se, em nosso sistema, em nexo causal normativo (nexo normativo = nexo naturalístico + dolo ou culpa).

Na hipótese exposta, bastante óbvia é a inexistência de dolo, haja vista que a prática da extorsão em comento revela única e tão somente a intenção de, por meio de um constrangimento, provocar uma lesão patrimonial. Em tal hipótese, não se vislumbra, pois, a existência da intenção de provocar o evento morte, a assunção do risco de provocá-lo, e muito menos a consciência de que o mesmo se verificará.

E o mesmo se diga quanto à culpa, que pressupõe a existência de uma previsibilidade objetiva inexistente in casu. Ora, em circunstanciais normais, um homem de diligência média jamais poderia esperar que uma violenta emoção pudesse levar aquele que por ela é arrebatado ao óbito. Tal resultado, sendo deveras excepcional nessas circunstâncias, não há de ser ordinariamente previsto.

À mesma conclusão se chega através da aplicação da teoria da imputação objetiva. De acordo com essa teoria, na aferição do nexo causal eventualmente existente entre uma conduta e um resultado, a par da existência daqueles elementos causais naturalísticos apurados através do processo hipotético de eliminação já mencionado, outros requisitos devem se fazer presentes. E um deles se refere justamente à previsibilidade do resultado ocorrido, que deve constituir um desdobramento previsível da conduta. Assim é que, também de acordo com a teoria da imputação objetiva, o sujeito ativo das práticas extorsivas em estudo não pode, a princípio, responder pela morte que eventualmente venha a causar ao, através de um contato telefônico, proferir suas ameaças, eis que a ocorrência de tal evento jamais pode ser tida como um dos desdobramentos previsíveis da prática de uma ameaça.

De qualquer forma, convém observar que quiçá seja possível que, excepcionalmente, a morte ocorrida nas circunstâncias dantes apontadas possa ser atribuída ao autor das modalidades de extorsão em comento. Quer com base na teoria da equivalência dos antecedentes causais, quer com base na teoria da imputação objetiva, tal se dará quando, em vista das excepcionalíssimas circunstanciais verificadas no caso concreto, se puder ter a morte ocorrida como um desdobramento previsível da conduta extorsiva realizada. E nessas hipóteses não se responderá pela modalidade de extorsão qualificada pela ocorrência do evento morte (art. 158, § 2º, do Código Penal), mas sim, por extorsão simples (art. 158 do Código Penal), com pena eventualmente majorada (art. 158, § 1º, do Código Penal), e homicídio culposo (art. 121, § 3º, do Código Penal), em concurso formal (art. 70 do Código Penal). Isso porque, consoante a lição de Fernando Capez (2005, p. 164), aquela qualificadora só se faz presente quando a morte ocorrida resulta da violência empregada, e não de grave ameaça.

Por fim, impende observar que, guardadas as devidas proporções, tudo que aqui foi dito acerca da morte que eventualmente pode vir a ser contraída pela vítima pode ser aplicado aos casos em que esta venha a sofrer apenas lesões corporais.


7. GOLPES SIMILARES

Há inúmeras práticas criminosas de índole patrimonial que podem ser realizadas através de contatos telefônicos. Algumas delas, como já se mencionou anteriormente, não se perfazendo através de uma grave ameaça, não hão de ser vistas como modalidades de extorsão. Tal é o caso dos reportados golpes criados por sentenciados da penitenciária fluminense Carlos Tinoco da Fonsenca, há aproximadamente cinco anos, e que ainda hoje são vistos com freqüência.

Convencendo as vítimas de que elas foram sorteadas em alguma promoção, os autores deste golpe as orientam a adquirir um determinado número de créditos para telefone celular pré-pago, e repassar-lhes os respectivos códigos de acesso, sob o argumento de que o prometido prêmio só será entregue depois de concluída essa operação.

Aquela conduta, assim como muitas de suas diversas variáveis, adequando-se precisamente à descrição da figura previsto no art.171, caput, do Código Penal, configura indubitavelmente o crime de estelionato. Vejamos: ao convencer a vítima de que o fornecimento dos códigos supramencionados implicará na percepção do prêmio prometido, o agente a induz em erro, mediante meio fraudulento; ao utilizar os créditos telefônicos disponibilizados através da posse daqueles códigos, o agente obtém vantagem econômica ilícita; e ao privar a vítima dos créditos por ela adquiridos, o agente acarreta à mesma um prejuízo de índole patrimonial.

Derradeiramente, oportuno é salientar que a fraude aqui empregada, conforme já asseverou, age no sentido de viciar a vontade do sujeito passivo do delito, fazendo com ele, iludido, venha a voluntariamente entregar a coisa. Já nas modalidades de extorsão abordadas neste estudo, meio fraudulento empregado presta-se a causar temor, de modo a obrigar a vítima a, contra a sua vontade, realizar a entrega exigida.


8. CONTINUIDADE DELITIVA

A rentabilidade das modalidades de extorsão em estudo se deve muito mais à quantidade de golpes aplicados do que a qualquer outro fator. Considerando que, conforme mais acima já se observou, apenas vinte por cento das vítimas destas práticas chegam efetivamente a propiciar ao delinqüente a vantagem econômica por ele almejada, e que esta, via de regra, é relativamente baixa (em média exige-se R$ 4.000,00), chega-se à conclusão de que para que seja auferida através destes crimes um valor tido como satisfatório, necessário se faz sejam os mesmos reiteradamente praticados. Daí a necessidade de que neste estudo se discorra a respeito da continuidade delitiva.

Ex vi do disposto no art. 71 do Código Penal, há crime continuado "quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, de maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro".

Com efeito, diante da dicção legal, vê-se que para que se possa aplicar a regra concursal em comento em favor daquele que vier a se valer, por diversas vezes, das práticas extorsivas abordadas no presente estudo, imprescindível se fará o preenchimento dos seguintes requisitos: sejam todos os crimes praticados tidos como da mesma espécie; e sejam eles praticados nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras similares, de modo a permitir a idéia de que os ulteriores constituem um continuação do primeiro (unidade de desígnios).

Não há, na doutrina, uma posição universal acerca do que sejam crimes da mesma espécie. De um lado, tem-se aqueles que, na esteira do posicionamento jurisprudencial predominante, sustentam que crimes da mesma espécie são aqueles previstos no mesmo tipo penal, sendo aí compreendidos indistintamente os qualificados, simples ou privilegiados, como também os tentados ou consumados. Na outra banda, tem-se aqueles segundo os quais a continuidade delitiva não se dá apenas entre crimes que se abrigam em um mesmo artigo de lei, mas também entre aqueles que, não obstante tratados por dispositivos distintos, se assemelham por seus elementos objetivos e subjetivos. Vale dizer, consoante a lição de Cláudio Heleno Fragoso (1995, p. 498), ofendem "o mesmo bem jurídico e se apresentam, pelos fatos que os constituem ou pelos motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns".

Conforme já se destacou, tanto no golpe por meio do qual se simula a realização de um seqüestro, a fim de extorquir a vítima, quanto naquele em que, com esse mesmo desiderato, o agente a ameaça, dizendo-se contratado para matá-la, há a configuração de um crime de extorsão, nos moldes descritos pelo art. 158 do Código Penal. Destarte, qualquer que seja o entendimento adotado, indubitável é que para os fins de que trata o art. 71 daquele mesmo diploma legal, tais crimes hão de ser vistos como da mesma espécie.

Dúvida existirá quanto à existência ou não de continuidade nas hipóteses em que, sob semelhantes condições, um agente vier a alternar-se entre a prática de alguma das modalidades de extorsão aqui debatidas e a do estelionato tratado no subitem anterior. Nessa hipótese, de acordo com a primeira das posições doutrinárias apresentadas, não haverá de se falar em crime continuado, haja vista que tais condutas, sendo capituladas em tipos penais completamente distintos, não hão de ser vistas como da mesma espécie. Já para a segunda corrente apresentada, quiçá se possa entender pela configuração daquela continuidade in casu, porquanto as duas práticas delituosas em questão ofendem preponderantemente o patrimônio, visam a obtenção de vantagens ilícitas e têm em comum o emprego de um meio fraudulento. Ainda de acordo com essa segunda corrente, igualmente sustentável é a idéia contrária, ou seja, a inaplicabilidade da regra contida no art. 71 do Código Penal ao caso vertente. A uma porque, ao passo em que na incriminação do estelionato, tem-se em vista apenas a proteção do patrimônio, na incriminação da extorsão, tutela-se além do patrimônio, a liberdade e a incolumidade pessoais. E a duas porque, conforme já se asseverou, as fraudes empregadas num e noutro caso têm finalidades imediatas completamente distintas. A utilizada no estelionato em tela atua no sentido de corromper a vontade da vítima, levando-a a voluntariamente entregar a coisa pretendida. Já aquela de que se lança mão nas práticas extorsivas em apreço, age no sentido de aterrorizar, de modo a obrigar a vítima a realizar a entrega exigida contra a sua vontade.

Contudo, para que se possa falar em crime continuado não basta que os crimes praticados sejam da mesma espécie. Mister é, outrossim, ao menos que sejam executados da mesma forma e sob as mesmas condições de tempo e lugar, de modo a transmitir a idéia de que os posteriores constituem uma continuação do predecessor.

Há uniformidade quanto ao modo de execução quando se emprega nas diversas práticas delituosas meios semelhantes. Tal é precisamente o que ocorre entre as duas modalidades de extorsão aqui tratadas, que se diferem apenas quanto ao teor das ameaças empregadas (em ambas se age através de um contato telefônico no qual são proferidas ameaças tendentes a atemorizar a vítima, levando-a, assim, a proporcionar ao sujeito ativo do ilícito uma vantagem econômica indevida).

Se por um lado essa similitude afigura-se evidente quando se tem em vista apenas as reportadas práticas extorsivas, o mesmo não pode ser dito quando as mesmas são combinadas com a espécie de estelionato sobre a qual anteriormente se discorreu (subitem 2.7.). Neste caso sérias dúvidas existirão, haja vista que embora em ambas as hipóteses (estelionato e extorsão) o agente se falha de uma fraude, conforme um pouco acima se salientou, a mesma desempenhará um papel bastante diverso em cada um desses crimes (ora atuará no sentido de viciar a vontade da vítima, ora atuará a fim de à mesma se sobrepor). De qualquer forma, impende notar que tanto a variação de comparsas, quanto o fato de em um crime se agir só, e no outro, em concurso de agentes, implicará em distinção quanto ao modus operandi, de modo a inviabilizar a configuração da continuidade delitiva.

No que pertine ao aspecto temporal, entende-se que há continuidade delitiva quando entre as diversas práticas delituosas há uma periodicidade tal que indique a existência de um certo ritmo entre as ações sucessivas. Segundo a jurisprudência dominante, isso ocorre quando entre os diversos crimes praticados há um intervalo não superior a trinta dias. Dessa forma, observa-se que para que se possa aplicar a regra de que trata o art. 71 do Código Penal em favor dos autores dos crimes em estudo imprescindível será que o interregno existente entre cada fato tentado ou consumado não exceda a trinta dias e seja relativamente uniforme, de modo indicar a existência do ritmo supra-referido.

De acordo com o entendimento jurisprudencial e doutrinário dominante, tem-se como praticados sob as mesmas condições de lugar os crimes perpetrados em uma mesma cidade, ou em cidades vizinhas. Segundo a teoria da ubiqüidade, adotada pelo Estatuto Repressivo Pátrio (art. 6º), considera-se como local da prática do crime tanto aquele em que se deu a ação ou omissão típica, quanto aquele onde se produziu ou deveria ser produzido o resultado.

Destarte, vê-se que para que haja o preenchimento do requisito espacial ora tratado, será necessário que todas as extorsões contidas em uma mesma série sejam praticadas no mesmo local, ou seja, na mesma cidade ou em cidades vizinhas. E considerando o critério da ubiqüidade adotado em nosso sistema, tal se dará em duas hipóteses: quando todas as extorsões forem realizas através de telefonemas realizados a partir de um mesmo local (local da ação / São Paulo, por exemplo) e para ele mesmo dirigidos (local onde o resultado deve ser produzido / São Paulo, por exemplo); ou, em se tratando de crimes plurilocais, quando as diversas extorsões contidas na mesma série se derem através de telefonemas realizados a partir de um mesmo local (local da ação / Rio de Janeiro, por exemplo) e dirigidos para um mesmo local, diverso daquele de onde partiu a ligação (local onde o resultado deve ser produzido / Belo Horizonte, por exemplo).

Por outro lado, não se poderá falar em continuidade, ante à falta daquele requisito espacial, tanto nos casos em que as ligações por meio das quais as extorsões em questão forem realizadas a partir de locais diversos (local da ação / ora a ligação parte de Campinas, ora parte de Brasília), quanto nas hipóteses em que elas, embora realizadas através de um mesmo local, sejam dirigidas a pessoas que se encontrem em locais diferentes (local onde o resultado deve ser produzido / telefonando do Rio de Janeiro, ora o agente busca vítimas em Vitória, ora as busca em Poços de Caldas).

Por fim, impende observar que nossa lei penal, ao tratar das condições objetivas que devem se assemelhar para que haja a configuração da continuidade delitiva não se contenta em pura e simplesmente elencá-las. Ao às mesmas se referir estabelece que em razão dessa necessária similitude, devem os crimes "subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro". E na interpretação dessa locução surge uma séria divergência doutrinária e jurisprudencial.

Uns, entendendo que a continuidade delitiva se baseia em concepções puramente objetivas, sustentam que para a sua configuração basta a verificação da similitude dantes apontada, independentemente de qualquer consideração acerca da unidade de desígnios, ou seja, da intenção de que os crimes ulteriores constituam uma continuação do primeiro. Para eles, aquela semelhança, por si só, faz com que os crimes subseqüentes sejam havidos como continuação do primeiro.

Já outros, partindo da idéia de que a continuidade delitiva se baseia tanto em elementos objetivos quanto em subjetivos, entendem que a par da homogeneidade objetiva supramencionada, deve haver uma unidade de desígnios, isto é, a intenção de que os crimes subseqüentes constituam uma continuação do primevo. E para eles, tal intento se revela quando em suas diversas práticas criminosas o agente se vale das mesmas relações e oportunidades, ou seja, quando age em um único contexto ou em situações que se repetem ao longo de uma relação que se protraia no tempo. Justamente nesse aspecto reside, segundo sustentam, a distinção entre a habitualidade criminosa, que há de ser coibida com rigor, e a continuidade delitiva, que tanto abranda os rigores da lei. São adeptos desta corrente Damásio Evangelista de Jesus (1985, p. 682), Anibal Bruno (1956, p. 678), e Fernando Capez (2005, p. 487).

Se se partir daquela concepção puramente objetiva, bastante freqüente será a aplicação da regra contida no art. 71 do Código Penal em proveito dos autores das práticas extorsivas aqui debatidas, em caso de reiteração, posto que comumente se verificará a existência de uma homogeneidade objetiva entre elas. Já se se partir da concepção objetivo-subjetiva também apresentada, na grande maioria das vezes ter-se-á como inaplicável a regra em estudo aos autores daquelas práticas extorsivas reiteradas, que como delinqüentes habituais, passarão a ser vistos como indignos da benesse.

É que via de regra, aquele que vier a reiterar-se na prática das formas de extorsão em tela dificilmente valer-se-á, ao perpetrar cada conduta, das mesmas relações e oportunidades. Cada um de seus crimes resultará, portanto, de impulsos volitivos autônomos.

Considerando que, no mais das vezes, não há entre os sujeitos ativos e passivos destes crimes qualquer relação prévia (empregatícia, de amizade, amor, confiança etc.), não é de se pensar que, em cada uma das práticas delituosas em questão o agente esteja a se aproveitar das mesmas relações, de modo a indicar a existência de uma unidade de desígnios. Já tendo-se em conta que para a prática das espécies de extorsão ora abordadas basta que se tenha a disposição um aparelho telefônico, vê-se que a todo tempo tem-se condição de levar a cabo tais delitos. Não há falar-se, pois, no caso em testilha, no aproveitamento das mesmas oportunidades. Lamentavelmente as oportunidades necessárias para a prática de tais delitos se dão a todo momento, até mesmo para uma expressiva parcela da população carcerária.

Por fim, é de se observar que, acaso se entenda pela configuração da continuidade delitiva nas hipóteses em que se reiterar na prática das espécies de extorsão em foco, dever-se-á observar, na fixação da pena, não a regra insculpida no caput do art. 71 do Código Penal, e sim aquela de que trata o parágrafo único desse mesmo dispositivo. Assim é que, em vista da grave ameaça empregada nesses crimes, do fato de que eles são essencialmente dolosos e, em regra, dirigidos contra vítimas diferentes [01], no caso em análise, ressalvado o disposto nos arts. 70, parágrafo único [02], e 75 [03], ambos do Código Penal, dever-se-á aplicar a pena de apenas um dos crimes, e elevá-la até o triplo, considerando, para tanto, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, os motivos que o conduziram à prática criminosa, e bem assim, às circunstanciais em que a mesma se deu.


9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tudo aquilo que foi exposto diz respeito a apenas uma das novidades autóctones surgidas no mundo do crime, o "disque-seqüestro". Há muitas outras que, a par daquela, hodiernamente vêm assolando a população brasileira. Tal é o caso, por exemplo, das figuras popularmente conhecidas como "arrastão carioca" e "seqüestro-relâmpago".

A verificação do constante surgimento de novas modalidades criminosas, sejam elas locais ou alienígenas, está a evidenciar o contínuo processo de evolução pelo qual vem passando o "mundo do crime". Na medida em que se avança na eficiência das técnicas persecutórias tendentes a coibir uma determinada prática criminosa, surgem diversas outras, em um movimento que retrata a existência de uma espécie de migração dos delinqüentes rumo a algo que seja igualmente lucrativo e menos arriscado.

Não obstante à imprecisão e insuficiência dos dados disponíveis, um bom exemplo desse movimento migratório pode ser verificado através da análise da queda no número de extorsões mediante seqüestro propriamente ditas [04] registradas nos últimos anos, e pelo paulatino aumento do número de "seqüestros-relâmpago" e extorsões perpetradas através de um pseudo--seqüestro ("disque-seqüestro"). A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, por exemplo, informa que entre o ano de 2001 e o de 2006 houve, naquele Estado, uma redução de 59,9% no número de ocorrências de tal modalidade de extorsão (Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/; acesso em 09 de abril de 2007). Já a do Rio de Janeiro informa uma redução de 70% nesse mesmo período [05]. Por outro lado, na Cidade de Curitiba, por exemplo, de acordo com dados fornecidos pelo Ministério Público do Estado do Paraná (Disponível em: http://celepar7cta.pr.gov.br/mppr/noticiamp.nsf/ 9401e882a180c9bc03256d79 0046d022/f886bbf6997fae9903256f18005bd8aa?OpenDocument; acessado em 09/04/2007), entre julho e setembro de 2004, registrou-se um aumento de 275% no número de ocorrências de "seqüestro-relâmpago", em relação com as médias apuradas nos cinco meses anteriores. Apenas no ano de 2005, lá foram formalmente registradas 3240 ocorrências desse crime. Já nos três maiores estados brasileiros, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, apenas no ano de 2006, foram registras sete mil setecentas e sete ocorrências de "disque-seqüestro".

Diante dos dados apontados, surge uma indagação: Qual será a causa daquela drástica queda do número de extorsões mediante seqüestro? Com certeza tal não se deveu ao advento da lei 8072/1990, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, que tanto recrudesceu a resposta penal conferida aos autores desses delitos, porquanto entre o advento dessa norma (1990) e o ano de 2001, o número de registros desse crime só fez aumentar.

Através de uma rápida consulta aos noticiários dos últimos tempos, que não param de relatar o crescente sucesso da ação dos grupos policiais "anti-seqüestro", e bem assim, a constante evolução dos mesmos, tem-se a impressão de que essa queda deve ser atribuída muito mais à evolução das técnicas policiais tendentes a coibir tal prática criminosa, do que a qualquer outro fator. Tudo isso a evidenciar o acerto da máxima segundo a qual o que evita o crime não é a severidade das penas impostas, e sim a certeza da punição.

Por outro lado, tem-se a idéia de que o aumento vertiginoso do número de ações conhecidas como "seqüestros-relâmpago" e "disque-seqüestro" se deu em razão de uma nova escolha realizada pelos criminosos. Sem maiores pretensões de fundo estatísico [06] ou criminológico [07], e até mesmo assumindo-se o risco de errar, advoga-se aqui a idéia de que em razão das crescentes dificuldades enfrentadas para a realização de uma extorsão mediante seqüestro propriamente dita, muitos delinqüentes estão evitando se arriscar nessa audaciosa prática, e optando pelas vias menos ousadas e também bastante lucrativas do "seqüestro relâmpago" e do "disque-seqüestro". Acerca disso, observe-se que data a partir da qual se deu a queda no número de ocorrências daquela prática criminosa parece coincidir, de certa forma, com a do advento destas duas últimas. Conforme já se mencionou, a redução apontada começou a ser verificada a partir do ano de 2002. Por outro lado, as primeiras ocorrências de "seqüestro relâmpago" e "disque-seqüestro" foram registradas, respectivamente, no final da década de noventa, e no ano de 2002.

Verifica-se, desse modo, a existência de uma espécie de dinâmica do crime, regida por forças relacionadas à maior ou menor possibilidade de punição. Quanto mais se avança no sentido de coibir determinada prática criminosa, maior é a tendência de que seus autores contumazes rumem para alguma outra, que implique menores riscos de punição, e seja igualmente vantajosa. Não há, pois, como se esperar que a "guerra contra o crime" tenha um fim. Sempre que o Estado vier a "vencer alguma batalha", logrando relativo êxito na coibição de uma determinada prática criminosa, tal e qual vem ocorrendo em relação à extorsão mediante seqüestro, algumas outras surgirão, como é caso do "disque-seqüestro" e do "seqüestro-relâmpago".

Tudo isso está a evidenciar a permanente necessidade de investimentos humanos e materiais nos órgãos policiais, ministeriais e judiciais, pois que para acompanhar o ritmo de desenvolvimento das práticas criminosas, os mesmos precisarão se submeter a uma constante e acelerada evolução. Por melhores que sejam as leis penais e processuais existentes, a deficiência que venha a ocorrer em qualquer desses três elos do aparelho repressor estatal resultará na "perda de sucessivas batalhas".

Dessarte, ao impulso das considerações acima expendidas, chega-se à conclusão de que no combate ao crime, tal e qual hodiernamente vem sendo afirmado aos quatro cantos, leis penais severas pouco adiantam. Conquanto por vezes se façam necessárias algumas alterações legislativas, a solução do problema está relacionada, antes de mais nada, ao constante trabalho de aprimoramento humano e material dos três elos através dos quais o Estado exerce o seu jus puniedi, quais sejam, as Polícias, o Ministério Público e o Judiciário. E para que sejam obtidos saldos positivos nas sucessivas e infindáveis batalhas que virão, impende, portanto, que todos esses órgãos estatais disponham de um contingente suficiente de profissionais, e que estes sejam adequada e incessantemente preparados, valorizados, fiscalizados e equipados. Isso tudo sem falar na constante necessidade de crescimento econômico e investimentos sociais inteligentes, tendentes a conferir às classes sociais desfavorecidas ao menos a perspectiva de, através do esforço pessoal lícito, ascender economicamente a um patamar social em que se façam presentes os bens materiais imprescindíveis ao resguardo da dignidade humana.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1956. t. 2

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2005.

COSTA JÚNIOR, Paulo José. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1996.

Crime seqüestro relâmpago. Veja. ed. 1990. São Paulo, p. 76-77, 10 jan. 2007.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3. ed. São Paulo: Renovar, 1991.

FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal – Parte Especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. v. 1.

FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal – Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

GALVÃO, Fernando; ROGÉRIO GRECO. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999.

HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal. 4. ed. São Paulo: Forense, 1980. v. 7.

JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1985. v.1.

JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1985. v.2.

JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal – Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 1979. V. 2.

LINHARES, Juliana. Terror pelo telefone. Veja. ed. 1996. São Paulo, p. 38-45, 21 fev. 2007.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. V. 1.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. V.2.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 1.


Notas

01 Dificilmente o autor de um dos delitos em questão procuraria atingir a mesma vítima mais de uma vez.

02 Concurso material benéfico: "Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste código".

03 Limite das penas: O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não poderá ser superior a trinta anos.

04 Como tal entenda-se aquelas marcadas pela existência de ao menos dois sujeitos passivos, e pela manutenção de um deles em cativeiro.

05 Através da base de dados pesquisada, não é possível precisar se tais números se referem tão somente às sobreditas extorsões mediante seqüestro propriamente ditas, ou também àquelas em que se tem apenas um sujeito passivo que sequer chega a ser mantido em cativeiro, popularmente conhecidas como "seqüestros relâmpago".

06 Com base apenas nos dados fornecidos pelas secretarias de segurança pública e congêneres sequer é possível chegar a uma conclusão segura acerca da freqüência com que se dão as práticas injustas em comento. A uma porque é da sabença de todos que uma expressiva parcela das pessoas que são vitimadas por esse crimes não chega a registrar formalmente a ocorrência. A duas porque, conforme mais adiante se demonstrará, a prática entitulada como "seqüestro relâmpago" ora é tida nas estatísticas policiais como extorsão mediante seqüestro, ora é vista como um caracterizadora de um concurso material entre roubo e extorsão mediante seqüestro e ora é classificada como um concurso material entre extorsão e roubo marcado pela privação de liberdade. E finalmente, a três, porque os dados estatísticos criminais, quando efetivamente disponibilizados ao público, no mais das vezes reúnem em um mesmo grupo, por exemplo, todos os crimes violentos contra o patrimônio, ou todos os crimes violentos letais e intensionais, de modo a inviabilizar a necessária distinção.

07De acordo com Israel Drapkin Senderey, a criminalogia como "um conjunto de conhecimentos que estudam os fenômenos e as causas da criminalidade, a personalidade do delinqüente e a sua conduta delituosa e a maneira de ressocializa-lo".


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Guilherme Eugênio. Considerações acerca das extorsões realizadas por via telefônica, através da simulação de um seqüestro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1395, 27 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9813. Acesso em: 19 abr. 2024.