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Direito e fronteira: os primeiros impactos do fechamento da tríplice fronteira - Brasil, Argentina e Paraguai - em decorrência da pandemia de covid-19

Direito e fronteira: os primeiros impactos do fechamento da tríplice fronteira - Brasil, Argentina e Paraguai - em decorrência da pandemia de covid-19

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As políticas nacionais e municipais de bloqueio foram de extrema ineficiência no enfrentamento da crise sanitária no território da tríplice fronteira, não tendo sido capazes de atender às necessidades reais deste território.

Sumário: 1 Introdução; 2 O Direito de Emigrar e a Questão Fronteiriça; 3 O Fechamento de Fronteiras no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 4 COVID-19: O Fechamento das Fronteiras Terrestres em Foz do Iguaçu; 5 Reflexos do Bloqueio à Tríplice Fronteira; 6 Considerações Finais; 7 Referencial Bibliográfico  

RESUMO: Independentemente do momento em que é proposto, o fechamento das fronteiras sempre se faz um tema polêmico e cheio de particularidades. Em função da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, uma das primeiras ações tomadas pelos Estados foi, justamente, ordenar o bloqueio de suas fronteiras com intuito de se proteger da disseminação do vírus. Neste cenário, o presente artigo objetiva conhecer os principais impactos e primeiras consequências do fechamento da tríplice fronteira do Sul, que liga Brasil, Argentina e Paraguai, com atenção especial às cidades de Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú e Ciudad del Este. Para isto fora realizada uma pesquisa qualitativa de natureza descritiva que está amplamente embasada em fontes doutrinárias e documentais acerca do tema, bem como, em instrumentos públicos nacionais e internacionais, e em manchetes jornalísticas formuladas no ano de 2020, durante a vigência da crise sanitária. Mediante a análise de referidas disposições foi possível constatar que o fechamento das fronteiras terrestres em Foz do Iguaçu causou graves impactos econômicos e sociais a todas as cidades envolvidas, bem como, prejuízos no acesso à saúde e educação na tríplice fronteira. O atual cenário demonstra a necessidade de se investir em políticas públicas eficazes que atuem em efetivos diálogos com a realidade fronteiriça, e operem a junção entre nações em benefício das cidades gêmeas que não sobrevivem separadamente.

Palavras-Chave: Fronteira, Covid-19, Primeiros Impactos.


1 Introdução

A liberdade de locomoção do ser humano e seu direito de migrar são exercidos desde sempre. No entanto, apesar de ser, atualmente, um direito formalmente consagrado, a migração comporta limites que envolvem e garantem a soberania estatal e a organização entre Estados.

Assim, é facultado a cada nação dispor acerca de sua política migratória, podendo esta ser mais abrangente ou até mesmo optar pelo enrijecimento. No entanto, uma série de questões devem ser levadas em consideração no momento de ponderar acerca da entrada de imigrantes em território nacional, principalmente em regiões fronteiriças.

Referidas localidades possuem importância fundamental para a clareza da mobilidade especial entre nações e são verdadeiras representações da miscigenação humana, cultural e social entre os povos, além de possuir especial valor e características econômicas e políticas em função de sua localização territorial. Levando em consideração estas particularidades das regiões fronteiriças, as localidades onde se encontram tríplices fronteiras podem ser consideradas ainda mais vulneráveis.

A tríplice fronteira do Sul que liga Brasil, Argentina e Paraguai é considerada uma das mais dinâmicas do mundo devido ao fato de ligar três cidades de porte médio com grande representatividade no setor comercial e turístico. Sendo assim, o intenso fluxo de pessoas entre Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú e Ciudad del Este se faz vital à sobrevivência destas cidades, fato que torna o fechamento das fronteiras terrestres um assunto de grande preocupação.

Recentemente, a atual pandemia causada pelo novo coronavírus, com início no fim de 2019, desencadeou uma série de medidas que objetivam conter a propagação da Covid-19. Uma das primeiras ações tomadas pelos Estados foi, justamente, o fechamento de suas fronteiras nacionais, devido ao fato dos migrantes serem vistos com um perigoso vetor de contaminação.

É justamente sob este prisma que o presente artigo visa trabalhar. Assim, objetiva-se conhecer quais os primeiros reflexos e principais consequências do fechamento das fronteiras terrestres na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai em função da pandemia Covid-19.

Para isto, a presente narrativa buscou se embasar em referenciais bibliográficos e documentais acerca da questão fronteiriça e do cerramento de divisas, com ênfase especial à tríplice fronteira do Sul (Brasil, Paraguai e Argentina), bem como, na análise de instrumentos legais, estudos direcionados e fontes jornalísticas acerca da realidade ocasionada pelo novo coronavírus na região em destaque.

Sendo assim, o presente trabalho encontra-se dividido, para além desta introdução, em um breve estudo acerca do direito de emigrar e a questão fronteiriça, bem como, sobre as disposições legais do ordenamento jurídico brasileiro acerca do fechamento de fronteiras.

Após este necessário embasamento teórico, o artigo narra o fechamento das fronteiras terrestres no município de Foz do Iguaçu, estabelecendo os principais reflexos de referido bloqueio à região da Tríplice Fronteira para, por fim, tecer considerações e evidenciar o referencial bibliográfico utilizado na confecção deste estudo.

2 O Direito de Emigrar e a Questão Fronteiriça

O fenômeno migratório ocorre na humanidade desde o seu surgimento, visto que a migração é um resultado natural da expansão dos povos no planeta. Sendo assim, o mundo no qual vivemos hoje é o resultado de todos esses fluxos migratórios, de brassagens imemoráveis e sempre renovadas de populações, de mestiçagens de todos tipos[2].

Conforme pleiteia o artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é direito de todo ser humano, deixar qualquer país, inclusive o seu próprio ou a esse regressar[3]. Isto é, ao indivíduo é defeso abandonar qualquer país que se encontre e regressar ao seu de origem, a qualquer tempo.

Tem-se nas disposições legais ou informativas que garantem e legitimam o direito de emigrar um tema importante, polêmico e de grande repercussão internacional. Isso porque o fluxo migratório interfere diretamente em questões econômicas, políticas e geográficas dos países. Com isso o grande desafio é garantir instrumentos legais, administrativos e informações sobre migração que contribuam para minimizar o problema da ilegalidade das migrações internacionais[4].

No entanto, nem toda migração beira a ilegalidade. Há que se falar, ainda, nos fluxos migratórios cujo principal objetivo não é constituir residência em outro país, sendo as regiões fronteiriças grandes exemplos de tal situação. Em Foz do Iguaçu, no estado do Paraná, um grande número de brasileiros, argentinos e paraguaios atravessam diariamente as fronteiras territoriais de seus Estados motivados por uma variedade de fatores que, em geral, se resumem na busca de benefícios que são ofertados pelo outro país. Neste sentido:

A permeabilidade da fronteira está na utilização alternativa, por parte dos demandantes, de serviços ofertados num ou noutro lado da fronteira nacional, sobretudo de transportes, saúde, educação, comunicação, entre outros. Já a rigidez está presente na separação do espaço em duas soberanias, com todas as suas diferenças significativas quanto a fatores tais como normas, sistemas administrativos, preços e produtividade.[5]

Todos os dias brasileiros atravessam para o Paraguai em busca de melhores preços em mercadorias, oportunidades de negócios, emprego no centro comercial, para estudar, ou até mesmo para abastecer seus automóveis, visto que a gasolina no país vizinho é mais barata. Todos os dias paraguaios atravessam para o Brasil em busca de opções diferentes de lazer, empregos, saúde, entre outras séries de motivos que tornam essa conexão indispensável à população de ambas nações.

No mesmo sentido justifica-se a entrada e saída de migrantes em Puerto Iguazú, na fronteira entre Brasil e Argentina. Ademais, a pequena cidade componente da província de missiones também oferece atrativos, principalmente no âmbito turístico, que motivam a circulação de pessoas em sua fronteira.

Exatamente por esse motivo, a questão fronteira engloba uma série de fatores que vão desde a soberania estatal, passando por aspectos relacionados ao direito internacional, até chegar nos princípios, valores e moral internacionalmente garantidos. Assim, apesar de na teoria o fechamento da fronteira, caso necessário, seja algo relativamente fácil de ocorrer, na prática esse assunto mostra-se bem mais complexo.

3 O Fechamento de Fronteiras no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O padrão ideal que garante ao indivíduo o seu direito à livre circulação e, consequentemente, o seu direito de emigrar, é o mesmo que estabelece limites ao exercício deste direito. Neste sentido, a Declaração dos Direitos Humanos traz em seu artigo 29, in verbis:

1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.[6]

Referida disposição é basilar ao enrijecimento de políticas migratórias. Isto é, o Estado no exercício de sua soberania pode criar mecanismos que dificultem, limitem ou até mesmo restrinjam o direito de ir e vir. Assim, a livre circulação de pessoas acaba sofrendo certa contenção quando colide com a soberania estatal.

Diante desta interpretação, torna-se claramente possível a adoção de mecanismos de defesa pelo Estado, como o fechamento das fronteiras, a fim de defender seus interesses. De forma mais clara e direta o artigo 4º do Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, de 2010, dispõe:

O Conselho de Estados e de Governo ou, na falta deste, o Conselho de Ministros das Relações Exteriores poderá estabelecer, em caso de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, entre outras, as medidas detalhadas abaixo [...] b. Fechamento parcial ou total das fronteiras terrestres incluindo a suspensão ou limitação do comércio, transporte aéreo e marítimo, comunicações, fornecimento de energia, serviços e suprimentos.[7]

No entanto, mesmo que seja defeso ao estado operar o fechamento de fronteiras, alguns analistas e operadores de direitos afirmam que o fechamento da fronteira seria proibido por tratados de direitos humanos de que seria parte o Brasil[8]. Apesar de não apontarem com clareza onde se encontra suposta proibição, estes estudiosos defendem que o fechamento das fronteiras se materializa em uma afronta aos direitos humanos e a cooperação internacional entre os povos, um verdadeiro retrocesso à humanidade.

Acerca do tema a ministra Rosa Weber já se posicionou dizendo que, a depender da situação, o fechamento das fronteiras pode "configurar, além de descumprimento do dever de proteção assumido internacionalmente, ofensa à cláusula constitucional asseguradora do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF)[9]. No entanto, a Ministra é incisiva ao afirmar que o fechamento possui natureza executiva, sendo possível apenas quando praticado pelo chefe do Estado.

Desta forma, o que se aufere de todo o conteúdo exposto é que apesar do fechamento de fronteiras ser possível, legal e de competência única do chefe de Estado, esta é uma questão sensível que demanda uma série de cuidados. Assim, ao se decidir pelo cerramento de fronteiras internacionais, é preciso levar em consideração fatores econômicos, políticos e sociais que são basilares e fundamentais, tanto para o exercício da soberania nacional, quanto para preservação e manutenção dos direitos humanos.

4 COVID-19: O Fechamento das Fronteiras Terrestres em Foz do Iguaçu

No fim do ano de 2019, a população mundial se viu imersa a uma crise saúde pública causada pela pandemia do novo coronavírus. Originário de Wuhan, na China, o COVID19 assolou a humanidade de uma forma rápida e inesperada. Desde então, esta situação tem gerado pânico em todo âmbito global, sendo considerada uma das crises mais graves dos últimos séculos.

O alto índice de contágio da doença fez com que uma série de medidas fossem adotadas afim de conter sua disseminação. A principal recomendação dos órgãos competentes é o isolamento social. Por este motivo, muitos Estados adotaram o fechamento total dos locais que comportam um grande número de pessoas, causando uma série de efeitos negativos em todos os setores que circundam a vida social, como saúde, educação, economia, entre outros.

Para conter a circulação de pessoas e tentar controlar o vírus internamente, diversas nações espalhadas pelo mundo optaram pelo fechamento de suas fronteiras. A República Argentina, mediante o decreto nº 274, optou pelo fechamento das fronteiras terrestres com intuito de proteger seus cidadãos e residentes contra o coronavírus.[10] Sendo assim, no dia 16 de março de 2020 a ponte Tancredo Neves foi fechada antecipadamente, para circulação de carros e pessoas[11].

Já a Ponte da Amizade, que liga Brasil e Paraguai, comporta em média a passagem de cerca de 100 mil pessoas por dia.[12] Esse número preocupante fez com que houvesse grande pressão por parte de ministros, governantes e entidades de saúde, pedindo pelo bloqueio das fronteiras. [13]

A Ponte da Amizade foi definitivamente fechada em 18 de março de 2020 por decreto do presidente paraguaio Mario Abdo Benítez. O bloqueio impedia paraguaios e estrangeiros residentes de deixarem o país, sendo permitido apenas a saída de estrangeiros em situação irregular, mediante o pagamento de multa, caminheiros e paraguaios em tratamento médico no Brasil.[14]

Após o fechamento, cerca de 60 paraguaios ficaram presos na ponte da amizade por terem sido barrados de entrar em seu próprio país, bem como, de retornar ao Brasil. Sem outra alternativa, estas pessoas precisaram dormir no correr de pedestres da ponte, em situação precária, aguardando pela liberação de entrada pelo governo paraguaio.[15]

Apesar do Paraguai ter fornecido comida e banheiros químicos para sanar as necessidades básicas destes indivíduos[16], é inaceitável a situação à que estes foram expostos, principalmente em um momento que requer distanciamento social. Neste sentido:

Chamados por alguns meios de refugiados sanitários, homens, mulheres e famílias inteiras aguardam durante dias na Ponte da Amizade a liberação de 14 espaço nos albergues públicos para a realização da quarentena obrigatória. A situação viola uma série de direitos humanos básicos desses cidadãos entre eles o direito à vida e os expõe a uma situação ainda maior de risco ao contágio, devido à aglomeração na ponte e a ausência de possibilidades mínimas de higienização.[17]

Este descaso para com a vida humana não foi a única consequência negativa do fechamento da fronteira que liga Brasil e Paraguai. Uma série de questões foram negativamente influenciadas em Puerto Iguazú, Ciudad del Este e Foz do Iguaçu, causando um verdadeiro caos em setores relacionados à economia, saúde, educação, entre outros.

5 Reflexos do Bloqueio à Tríplice Fronteira

O que, inicialmente, seria um bloqueio de apenas quinze dias, acabou se estendendo por um longo período durante o ano de 2020. A reabertura da Ponte da Amizade só ocorreu em 15 de outubro, e os reflexos negativos desse longo período de segregação pôde ser sentido por ambas nações.

Com o fechamento da fronteira, a principal fonte de renda da cidade paraguaia fora bruscamente interrompida. A pandemia da COVID-19 atingiu em cheio as lojas localizadas em Ciudad del Este, cujo faturamento vem majoritariamente do público brasileiro, com destaques para eletrônicos como smartphones e videogames[18].

Esta situação resultou em uma onda de desemprego em massa, centenas de empresas falidas e uma população extremamente insatisfeita com as determinações do governo paraguaio. A crise econômica que se instaurou em CDE pela queda do comercio levou a cidade à beira de um grave surto social. [19]

Outro agravante a ser mencionado é o fato de muitos estudantes de medicina terem deixado o Paraguai e voltado para o Brasil em decorrência do fechamento da fronteira. Os reflexos do lapso nesta outra importante fonte de renda de CDE pôde ser sentido pelas faculdades, donos de imóveis e comércio legal.[20] Sem contar no enorme prejuízo causado no âmbito educacional.

No entanto, os dissabores em decorrência do bloqueio não afetaram somente o lado paraguaio. Foz do Iguaçu e Puerto Iguazu, a cidade do lado argentino, também sofrem com os graves reflexos do fechamento fronteiriço nos mais diversos setores que compõem suas particularidades e subsistência. Segundo Nogueira e Cunha:

Justamente entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina, na Tríplice Fronteira do Sul Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu, e Ciudad del Este , foi onde ocorreu o maior impacto socioeconômico da pandemia, em razão da intensa mobilidade da população residente, de turistas, de migrantes e trabalhadores no transporte de cargas.[21]

Devido ao fato de em Puerto Iguazú, o turismo ser indiscutivelmente o motor que movimenta a economia da cidade, o fechamento das fronteiras terrestres causa grandes prejuízos à vida da população local. Com o turismo suspenso, o comércio permanece fechado e os hotéis sem hospedes, transformando a pequena cidade argentina em uma verdadeira província fantasma. [22]

Em Foz do Iguaçu não é diferente, um dos principais motivos de se conhecer o local é, justamente, a possibilidade e comodidade em visitar dois outros países. Sendo assim, o fechamento das fronteiras com Paraguai e Argentina motivaram um enorme declínio no setor turístico da cidade.

Segundo dados fornecidos pela prefeitura da cidade, o Aeroporto Internacional de Foz do Iguaçu mantinha 43 voos diários entre pousos e decolagens. Esse mesmo aeroporto ficou 20 dias sem voo. Entre 14 de abril e 04 de maio o aeroporto não recebeu nenhum voo comercial[23].

A interdição das duas pontes que ligam os países vizinhos alterou o perfil da cidade, marcado pelo acesso terrestre que permite deslocamentos como se Ciudad del Este e Puerto Iguazú fossem bairros da cidade. Foz do Iguaçu se viu sem a característica e histórica aglomeração da travessia da Ponte Internacional da Amizade e tudo o que ela representa em termos de movimentação financeira e social. [24]

Nota-se, portanto, que as cidades componetentes da tríplice fronteira sofrem brutalmente com o bloqueio das pontes. Enquanto CDE amarga o declínio de sua principal atividade econômica, o comércio, Puerto Iguazu sofre as mesmas consequências com a queda do turismo. Foz do Iguaçu, por sua vez, arca com prejuízos relacionados à ambas fontes de renda, e os resultados da crise já podem ser sentidos em números.

Segundo relatório da ACIF- Associação Comercial e Industrial de Foz do Iguaçu "5.691 pessoas perderam o posto de trabalho entre janeiro e junho de 2020[25] . Além disto, cerca de 18.070 trabalhadores estavam, no mês de julho, com jornada reduzida ou com trabalho suspenso[26]. Grande parte destes trabalhadores dispensados ou suspensos integravam o funcionamento de bares, restaurantes, hotéis e demais componentes do setor turístico da cidade.

Um estudo realizado acerca dos impactos iniciais da Covid-19 na área gastronômica de Foz do Iguaçu demonstrou que as primeiras consequências versaram sobre queda no faturamento, corte de custos, demissões de funcionários, renegociação com fornecedores e adaptações frente à uma nova demanda com destaque para a implantação ou intensificação do serviço de delivery[27].

Além dos prejuízos à economia regional que puderam ser sentidos por todas as cidades da tríplice fronteira, há ainda que se falar nos desfalques sentidos na área da saúde, visto que o processo saúde-doença em uma região de fronteira possui características particulares associadas à mobilidade de pessoas entre países[28].

Sendo assim, em Foz do Iguaçu a questão saúde na fronteira é agravada pelo fato do município ter limites territoriais com dois países, o que leva a uma complexa integração da saúde pública de zona fronteiriça. Muitos paraguaios e argentinos recorrem a tratamentos médicos em território brasileiro, sejam particulares ou até mesmo aqueles emergenciais fornecidos pelo sistema único de saúde. Neste sentido:

Dentre os princípios do sistema de saúde brasileiro, está o de universalidade e integralidade, que instituem a possibilidade de acesso da população fronteiriça aos serviços de saúde. Apesar de suas restrições técnicas e financeiras, sendo certo que os serviços ofertados pelo sistema em Foz do Iguaçu possuem competência de atendimento aos usuários em todos os níveis de complexidade. Fato este que somado ao constante fluxo da fronteira, atrai a cidade parte da população dos municípios brasileiros do oeste do Paraná, assim como os brasileiros e migrantes que residem nos países vizinhos, buscando atendimento assistencial.[29]

Desta forma, se mesmo em condições normais a questão da saúde de migrantes em regiões fronteiriças já se faz um tema complexo e ainda pouco regulamentado, com o fechamento das fronteiras devido a uma crise sanitária de nível mundial estas importantes questões relacionadas à saúde ficaram ainda mais comprometidas.

Segundo um levantamento realizado pelo Boletim de Conjuntura acerca do acesso à saúde em regiões de fronteiras, com enfoque especial à tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina), ficou evidente que não foram desenvolvidas políticas voltadas à saúde pública e ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), tampouco políticas de apoio social e econômico às famílias, menos às famílias migrantes[30].

Esta constatação é possível mediante análise dos inúmeros casos de pessoas que tiveram seus tratamentos de saúde interrompidos devido ao fechamento das fronteiras, ou dos tantos nacionais que ficaram impedidos de voltar a seus países de origem, vivendo em condições insalubres nas divisas entre Estados. Ademais, há que se falar ainda nas vidas que foram perdidas em tentativas frutadas de furar o bloqueio e atravessar a fronteira de forma clandestina. [31]

Em âmbito social a pandemia covid-19 evidencia e potencializa as segregações e preconceitos já existentes em regiões fronteiriças, fortalecendo desigualdades históricas e incentivando atos xenofóbicos baseados no medo e insegurança causados pelo momento atual. [32]

Todo esse cenário evidencia que as políticas nacionais de enfrentamento à covid-19 têm sido de extrema ineficácia nas regiões fronteiriças ao deixar passar despercebida à necessidade de um olhar especial para estas localidades que comportam uma série de particularidades e dificuldades provenientes de suas instalações territoriais.

6 Considerações Finais

Apesar de sucinto, o presente estudo foi permissivo a uma análise inicial dos primeiros impactos da pandemia Covid-19 na região da tríplice fronteira do Sul, que liga Brasil, Argentina e Paraguai, tornando possível constatar que, apesar de ser uma ação facultada aos Estados, o fechamento da fronteira resultou em consequências negativas a todos os envolvidos.

O bloqueio das Pontes da Amizade e Tancredo Neves, efetivando a segregação na tríplice fronteira, demonstrou a falta de uma gestão pública eficiente que trabalhasse para garantir a segurança, saúde e bem-estar da população integrante desta região.

O que se viu, no entanto, foi uma completa crise de dimensão social, cultural, econômica e política que pôde ser demonstrada através de diversos fatores, como as elevadas taxas de desemprego nas principais cidades do entorno.

A falta de emprego deixou à mingua um grande número de trabalhadores, formais e informais, que dependem do mercado fronteiriço com meio de subsistência, principalmente os das regiões mais vulneráveis, que tiveram um comprometido de sua sobrevivência e a consequente restrição de seus direitos fundamentais.

Além das graves consequências econômicas ocasionadas pelo declínio do comércio e do turismo em função do fechamento das fronteiras, referido bloqueio também ocasionou prejuízos ao acesso à saúde e educação, o aumento da violência e atividades ilegais nas fronteiras e o reforço das desigualdades sociais e dos preconceitos já existentes neste cenário.

As revoltas populares, as condições desumanas em que estiveram os indivíduos presos na fronteira e as mortes em decorrência das tentativas de travessia clandestina só evidenciam que as políticas, nacionais e municipais, foram de extrema ineficiência no enfrentamento da crise sanitária no território da tríplice fronteira, não tendo sido capazes de atender às necessidades reais deste território.

Vale mencionar que este estudo ainda é superficial e preliminar, a pandemia ainda não acabou e o momento atual ainda é de crise. Sendo assim, as consequências aqui expostas são apenas o começo de uma jornada que levará tempo, esforço e muita dedicação para ser efetivamente combatida.

Ainda se faz necessária a criação de mecanismos capazes de dialogar com a realidade que vigora na região, dando voz à sociedade civil componente desta localidade, fortalecendo o sistema único de saúde, unindo nações e não as segregando.


Referencial Bibliográfico

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Autor

  • Isadora Neves

    Graduada em Direito; Aprovada no XXXIII Exame de Ordem; Especialista em Direito Médico; Mestranda em no programa 'Master of Science in Legal Studies, Emphasis in International Law', Professora do ensino superior.

    Lattes: http://lattes.cnpq.br/1448193965715706

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Isadora. Direito e fronteira: os primeiros impactos do fechamento da tríplice fronteira - Brasil, Argentina e Paraguai - em decorrência da pandemia de covid-19. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6963, 25 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99248. Acesso em: 23 abr. 2024.