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Ação popular contra construção em paisagem notável

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Sentença favorável ao autor de ação popular em defesa do patrimônio paisagístico, visando ao embargo de obras de construção nos rochedos de uma praia, violando a estética do local.

Autos nº 95.0209270-8

2ª Vara Justiça Federal Santos/SP

Vistos.

Cuida-se de ação popular proposta por JIVANILDO GOMES DA SILVA em face de PREFEITURA MUNICIPAL DA ESTÂNCIA BALNEÁRIA DE SÃO VICENTE, LUIZ CARLOS LUCA PEDRO, ERNANDES DE OLIVEIRA PIMENTEL e COBRANÇAS NETUNO S/C LTDA., visando o reconhecimento da lesividade ao patrimônio público da Lei Complementar Municipal nº 63/94, e do contrato administrativo firmado para a construção de um Pier Atracadouro na Praia do Gonzaguinha, além da condenação dos requeridos ao ressarcimento dos prejuízos causados.

Em suma, o autor narrou que em 25.03.1994 o Prefeito do Município de São Vicente sancionou a Lei Complementar nº 63, pela qual foi autorizada a criação de pólos turísticos através da urbanização dos molhes de contenção do mar na Praia do Gonzaguinha, por meio de concessão administrativa de uso de bem público, sendo realizada concorrência pública, saindo vencedor do certame o requerido ERNANDES DE OLIVEIRA PIMENTEL.

Descreveu, também, que o Prefeito do Município autorizou o início da construção de um restaurante sobre o primeiro molhe de pedras, localizado no início da Avenida Antonio Rodrigues, e sustentou que a ocupação indiscriminada da faixa de areia da Praia do Gonzaguinha trata-se de verdadeiro loteamento de bem de uso público, que não pode ser transferido a terceiros, violadora da estética local, prejudicial à beleza natural.

Aduziu, ademais, que o art. 6º da hostilizada Lei Complementar nº 63/94, ultrapassa os limites do interesse político, e que esse instrumento normativo encontra-se dissociado do disposto no art. 13 da Resolução nº 41/94 da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Argumentou, outrossim, a ocorrência de afronta aos comandos dos arts. 273 e 276 da Lei Orgânica do Município de São Vicente, e aos preceitos contidos nos arts. 192 e 225 da Constituição da República.

O pedido foi originariamente distribuído ao Juízo da Colenda 1ª Vara da Comarca de São Vicente onde, em provimento inicial, foi firmado o incabimento de ação popular contra lei em tese, estabelecido o prosseguimento do feito tão-somente com relação ao pedido imbricado com a anulação do contrato, e determinada a emenda da peça inaugural (fls. 30/31).

Por meio do pedido anexado à fl. 36 o autor postulou a declaração da lesividade ao patrimônio público, e a anulação de todos os atos decorrentes da Lei Complementar Municipal nº 63/94, em especial o contrato firmado entre os réus para a construção de um Pier Atracadouro com atividade comercial na Praia do Gonzaguinha, bem como a condenação dos requeridos ao ressarcimento dos prejuízos causados.

Aberta oportunidade (fls. 40/41), o Ministério Público do Estado de São Paulo retificou o pedido inicial, postulando a declaração da nulidade do contrato administrativo, a condenação dos réus à reconstrução do local onde realizado o empreendimento irregular, assim como o ressarcimento dos danos causados (fls. 43/44), sobrevindo a r. decisão de fls. 46/47, pela qual foi deferida medida liminar.

Mencionada decisão teve seus efeitos suspensos por força de liminar deferida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de mandado de segurança impetrado pelo Município de São Vicente (fl.56). À fl. 66 foi determinada a intimação da União Federal para pronunciamento acerca de eventual interesse na solução a ser alcançada.

ERNANDES DE OLIVEIRA PIMENTEL ofertou contestação, suscitando preliminares de ilegitimidade passiva, falta de documentos indispensáveis à propositura da ação e inépcia da inicial por impossibilidade jurídica do pedido, destacando a inviabilidade do Ministério Público emendar a inicial, aventando, no mérito, a total improcedência do pedido (fls.71/82). Às fls. 86/296 foram juntados documentos requisitados na decisão concessiva da liminar.

Às fls. 300/305 foi apresentada a resposta do MUNICÍPIO DE SÃO VICENTE e de LUIZ CARLOS LUCA PEDRO que, em suma, argüiram preliminar de ausência de litisconsorte necessário (Cobranças Netuno S/C Ltda.), e sustentaram, quanto a questão de fundo, não ser possível o acolhimento do postulado na inicial. Através da peça juntada às fls. 352/353 a União Federal manifestou interesse na solução deste feito.

Determinada a remessa dos autos à Justiça Federal (fl. 359), à fl. 363 manifestou-se o Ministério Público Federal, sobrevindo o provimento de fl. 368 excluindo o Órgão Ministerial do pólo ativo da relação processual. Acolhido pedido de inclusão de COBRANÇAS NETUNO S/C LTDA. na lide (fl. 379), regularmente citada, referida pessoa jurídica contestou o pedido, suscitando preliminares, argumentando, no mérito, a improcedência do pedido (fls. 383/389).

Concedida liminar decretando a interdição do estabelecimento construído (fls. 488/496), às fls. 654/655 foi proferido saneador, sendo deferida a realização de prova pericial, que se efetivou, ocorrendo a apresentação pelo perito nomeado do laudo de fls. 674/703, que foi complementado às fls. 742/748 com respostas a quesitos formulados pelo Ministério Público Federal.

Instadas, as partes manifestaram-se sobre a perícia realizada, sendo determinado ao perito o esclarecimento acerca de pontos do trabalho antes apresentado, o que foi concretizado às fls. 809/811. Aberta nova oportunidade, as partes manifestaram-se, vindo aos autos documentos novos, sobre os quais os litigantes se pronunciaram.

É o relatório.

Examinando o documento juntado à fl. 11, constato que o autor fez prova de cidadania, encontrando-se, portanto, regular o pedido, apresentado nos moldes do disposto no art. 1º, § 3º, da Lei nº 4.717/65, não podendo prosperar, assim, a preliminar aventada pela ré COBRANÇAS NETUNO S/C LTDA. (fls. 383/384).

A inicial foi instruída com documentos necessários ao desenvolvimento válido e regular do processo. Por força da r. decisão de fls. 46/47 vieram aos autos cópias dos documentos relativos à concorrência pública e ao contrato celebrado entre os réus para a realização da obra hostilizada (fls. 86/296), não podendo ser albergada, assim, a prejudicial aventada na contestação de fls. 71/82.

De acordo com a melhor doutrina, o pedido é juridicamente impossível quando o ordenamento jurídico expressamente o proíbe, como, por exemplo, a cobrança de dívida de jogo, o que não ocorre no presente caso. Insubsistente, pois, a preliminar aventada na contestação de fls. 71/82.

Atuando na via da ação popular o Ministério Público defende o interesse público em sentido amplo, cabendo zelar para que a argüida ilegalidade ou lesividade ao patrimônio público seja eficientemente apurada e, caso comprovada, prontamente coarctada, com a condenação dos responsáveis pela prática do ato.

Nessa via processual, como consignado por José Afonso da Silva em artigo publicado na Revista "Justitia" nº 45 - outubro/dezembro 1983 -, o Ministério Público também atua como parte principal e como titular da ação. Improsperáveis, portanto, as preliminares suscitadas nas respostas acostadas às fls. 71/82 e 383/389.

Consoante o disposto no art. 6º da Lei nº 4.717/65, a ação popular será proposta contra as pessoas públicas ou privadas, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, e contra os beneficiários diretos do mesmo.

Conforme a lição do eminente Juiz Federal Heraldo Garcia Vitta, colhida na obra "O Meio Ambiente e a Ação Popular" (Saraiva, 2000, pág. 47): "...todos os que tiveram alguma participação no ato ou contrato deverão ser citados para defender-se da ação...", como ocorreu na espécie.

Dessa forma, à luz do comando legal referido e da orientação doutrinária citada, resta manifesta a legitimidade passiva de todas as pessoas físicas e jurídicas figurantes no presente feito, não merecendo acolhida, destarte, as preliminares de ilegitimidade invocadas nas contestações apresentadas.

Superadas as questões preliminares invocadas, cumpre perquirir os fatos como se passaram, segundo as provas produzidas nos presentes autos sob o manto do princípio do contraditório e da ampla defesa, inserto no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República.

A presente ação foi proposta com o fim de assegurar a anulação de contrato administrativo entabulado para a construção de um Píer-Atracadouro sobre um dos molhes erigidos para a contenção das marés, levado a efeito com apoio na Lei Complementar Municipal nº 63/74, como meio de preservação da beleza natural da Praia do Gonzaguinha.

Em verdade, a presente tem o escopo de assegurar a anulação do contrato para construção do Píer-Atracadouro, para a proteção da paisagem local – Praia do Gonzaguinha/São Vicente-SP, dado que, como bem assentado na r. decisão de fls. 30/31, não é cabível ação popular contra lei em tese, no caso a Lei Complementar Municipal nº 63/94.

Analisando o contrato de concessão administrativa impugnado, juntado por cópia às fls. 287/296, tenho como manifesta a impossibilidade da sua subsistência, visto que tem por objeto a realização de obras de urbanização sobre bem da União – molhe III da Praia do Gonzaguinha -, que em momento algum participou da avença, não havendo nos autos qualquer prova da autorização desse ente público federado para a realização do negócio.

Ao que tudo indica, os fatos aqui apurados ocorreram por equivocada interpretação com relação a quem pertence o bem que recebeu as obras de urbanização. De fato, o edital de licitação que deu origem ao contrato aqui impugnado, juntado às fls. 154/164, elaborado sob a égide da Lei nº 8.666/93, teve por objeto:

"...a concessão administrativa de uma área pública municipal do molhe de contenção existente na Praia do Gonzaguinha, no Município de São Vicente, constante da planta que integra..." (fl. 154 -grifei).

A planta anexada à fl. 106 e as fotografias carreadas aos autos no curso da instrução (fls. 18/21; 439/450; 692/698; 724 e 748), tornam certo que as obras foram realizadas sobre o molhe III de contenção das marés, que se amolda com perfeição à definição de terrenos acrescidos, cuidando-se, portanto, de bem da União. Para maior clareza reproduzo os arts. 1º, "a", e 3º, Decreto-Lei nº 9.760/46:

"art. 1º. Incluem-se entre os bens imóveis da União:

os terrenos de marinha e seus acrescidos;

......................................................

art. 3º. São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha" (grifei).

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Sobre os terrenos de marinha, ensina o festejado mestre Hely Lopes Meirelles que:

"...são todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, em sua foz, vão até a distância de 35 metros para a parte das terras, contados desde o ponto em que chega o preamar médio (Aviso Imperial de 12.7.1833). Tais terrenos pertencem ao domínio da União, por contidos nas reservas do art. 64 da Constituição de 1891, conforme têm entendido os mais autorizados juristas pátrios. A utilização dos terrenos de marinha, inclusive para edificações, depende de autorização federal..." (Direito Administrativo Brasileiro, RT 15ª edição, p. 454).

Ao analisar os bens públicos, em especial os terrenos de marinha e seus acrescidos, Maria Sylvia Zanella di Pietro ressalta que:

"...a Constituição, nos dois dispositivos citados, faz menção aos terrenos de marinha e seus acrescidos, que também pertencem à União.

Os terrenos acrescidos são definidos pelo art. 3º do Decreto-lei nº 9.760 como ‘os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagos, em seguimento aos terrenos de marinha’.

Os terrenos acrescidos, como se verifica por esse dispositivo, tanto se formam para o lado do mar, em acréscimo aos terrenos de marinha, como para o lado do rio, em acréscimo aos terrenos reservados. Os primeiros pertencem à União (art. 20, VII, da Constituição)." (Direito Administrativo, Atlas, 10ª edição, 1998, p. 473/474 – grifo original).

Como bem ressaltado na r. decisão de fls. 488/496, as fotografias juntadas aos autos no curso da instrução demonstram que as obras foram executadas sobre o molhe, adentrando sobre o mar, ou seja, foram contratadas e executadas sobre bem da União (terreno acrescido de marinha, art. 20, inciso VII, da Constituição), independentemente da sua participação ou aquiescência, não podendo, portanto, subsistir o contratado, sob pena de violação aos arts. 64 e 72 do Decreto-Lei nº9.760/46.

Conforme consignado na r. decisão concessiva da liminar, especificamente à fl. 496, não socorre aos réus a alegação de que os terrenos de marinha localizados ao longo da praia do Gonzaguinha teriam sido aforadas desde 1928 à municipalidade de São Vicente, uma vez que tratam-se de bens públicos da União, como assinalado por Hely Lopes Meirelles, desde o Aviso Imperial de 1833, contidos nas reservas da Constituição de 1891, não podendo ocorrer a cessão do uso sem a expressa autorização federal.

Sendo a concessão de uso o contrato administrativo por meio do qual a Administração consente que particular utilize privativamente bem público (cf. Odete Medauar, Direito Administrativo Moderno, RT, 5ª edição, 2001, p. 294), no caso bem da União, imprescindível apresentava-se para a realização do negócio impugnado neste a observância do disposto nos arts. 125 e 126 do Decreto-Lei nº 9.760/46, o que não ocorreu.

Sob outro enfoque, cumpre consignar que o art. 225, § 4º, da Constituição elenca a Zona Costeira como patrimônio nacional, estabelecendo que sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais, não existindo no caso qualquer prova do cumprimento das exigências legais.

Na obra "Direito Constitucional Ambiental", ensina José Afonso da Silva:

"Praia é área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema (Lei 9.660/88, art. 10, § 3º).

Elas foram incluídas entre os recursos naturais que o PNGC conservará e preservará prioritariamente. Recebem, assim, a sua primeira manifestação normativa protecionista de uma lei federal, que define o regime de sua proteção no art. 10. Até aqui ficaram relegadas aos interesses da administração municipal, nem sempre atenta à natureza de bem de uso comum do povo, como os mares, nos termos do art. 65 do Código Civil.

Essa caracterização fica, agora, definitivamente expressa por força do disposto no art. 10 da Lei do Gerenciamento Costeiro (Lei 7.661/88), onde se define seu regime jurídico, como bens de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, o livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. Por isso, não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo da Zona Costeira que impeça ou dificulte o livre e franco acesso ali assegurado." (Malheiros, 2ª edição, 1994, p.109 - grifei).

O documento juntado à fl. 69, ofício encaminhado pelo Terceiro Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros – Polícia Militar do Estado de São Paulo, dá conta dos efeitos nocivos da obra à utilização do local por banhistas, como se verifica do trecho que segue:

"...atualmente, o local é freqüentado por banhistas e considerado seguro (águas calmas) por não apresentar correnteza forte, valas ou buracos, o que será alterado com a conclusão da obra, quer em função ao obstáculo físico propriamente dito, quer em função da tendência de formação de depressões ao redor dos pilares que ficarão parcialmente submersos, influindo assim na movimentação das águas." (grifei).

Assim, certo que o contrato tem por objeto a construção sobre bem da União que, como já destacado, não manifestou aquiescência e tampouco participou da realização do negócio, cuja execução encontra-se dissociada da regra do art. 225, § 4º, da Lei Maior, apresenta-se manifesta a ilegalidade do edital e o consequente contrato aqui hostilizado, encontrando-se o pedido perfeitamente amoldado, pois, às regras inscritas nos arts. 1º e 2º, alíneas "a" e "c", ambos da Lei nº 4.717/65

Evidenciada a ilegalidade, cumpre examinar a ocorrência de lesividade. A teor do art. 23, inciso III, da Lei Fundamental, é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, proteger as paisagens naturais notáveis, estabelecendo o art. 24, inciso VII, da Constituição, a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar sobre a proteção ao patrimônio turístico e paisagístico.

A Lei nº 6.531, de 20.12.1997, recepcionada pela Constituição em vigor, criou as áreas e os locais de interesse turístico, definindo que:

Art. 1º - Consideram-se de interesse turístico as Áreas Especiais e os Locais instituídos na forma da presente Lei, assim como os bens de valor cultural e natural, protegidos por legislação específica, e especialmente:

......................................................

V - as paisagens notáveis;

......................................................

art. 3º - Áreas Especiais de Interesse Turístico são trechos contínuos do território nacional, inclusive suas águas territoriais, a serem preservados e valorizados no sentido cultural e natural, e destinados à realização de planos e projetos de desenvolvimento turístico.

art 4º - Locais de Interesse Turístico são trechos do território nacional, compreendidos ou não em Áreas especiais, destinados por sua adequação ao desenvolvimento de atividades turísticas, e à realização de projetos específicos, e que compreendam:

......................................................

II - os respectivos entornos de proteção e ambientação.

§ 1º - Entorno de proteção é o espaço físico necessário ao acesso do público ao Local de Interesse Turístico e à sua conservação, manutenção e valorização.

§ 2º - Entorno de ambientação é o espaço físico necessário à harmonização do local de Interesse Turístico com a paisagem em que se situar." (grifei).

A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, na 12ª sessão realizada em Paris aos 12.12.1962, editou recomendação relativa a proteção da beleza e do caráter das paisagens e sítios, estabelecendo a definição e o princípio geral que transcrevo:

"I- Definição.

Para os efeitos da presente recomendação, entende-se por salvaguarda da beleza e do caráter das paisagens e sítios a preservação e, quando possível, a restituição do aspecto das paisagens e sítios, naturais, rurais, ou urbanos, devidos à natureza ou obra do homem, que apresentam um interesse cultural ou estético, ou que constituem meios naturais característicos.

As disposições da presente recomendação visam também a complementar as medidas de salvaguarda da natureza.

II- Princípios Gerais

......................................................

a)Construção de edifícios públicos e privados de qualquer natureza. Seus projetos deveriam ser concebidos de modo a respeitar determinadas exigências estéticas relativas ao próprio edifício e, evitando cair na imitação gratuita de certas formas tradicionais e pinturescas, deveriam estar em harmonia com a ambiência que se deseja salvaguardar." (grifei).

Importante ressaltar que aos 20.10.2000, em Florença, foi realizada a 718ª reunião do Comitê dos Ministros do Conselho da Europa, quando firmada a Convenção Européia da Paisagem, mais abrangente que a Convenção da Comunidade Européia, que, em síntese, estabelece a necessidade de proteção de todos os tipos de paisagens – excepcionais ou degradadas, urbanas ou rurais -.

Olvidando-se da regra inserta no art. 333, inciso II, do Código de Processo Civil, não obstante as oportunidades concedidas, os réus não demonstraram que a combatida construção do Píer-Atracadouro não ofende a privilegiada paisagem da Praia do Gonzaguinha, Município de São Vicente/SP, conhecido como a célula mãe do Brasil que, por infortúnio, teve quase totalmente aniquilado seu patrimônio histórico-cultural.

O laudo pericial acostado às fls.675/690 é preciso quanto a ocorrência do comprometimento da paisagem do local. Com efeito, em resposta a quesito formulado pelo Ministério Público Federal, à fl. 687 foi consignado que:

"Resposta: As pessoas que percorrem o passeio em frente à choperia destes autos têm, entre si e a Baía de São Vicente, a construção que foi erguida pela co-ré sobre o molhe 3.

A referida construção interrompe parcialmente a visão da baía e dos morros em frente, para um observador que, do passeio, se posicione em frente a ela.

Essa a razão de o projeto arquitetônico ter procurado dar uma relativa transparência à construção, fazendo nela predominar como fechamento, painéis de vidro, evitando, ao máximo, o uso de paredes de alvenaria.

Para compensar essa limitação que ainda restou, o edital de licitação permitiu o acesso do público, gratuitamente, ao deck, criando-se, assim, um mirante (deck) com total visão da baía e dos pontos pitorescos que a cercam, com 167,09 m2 de área coberta."

As fotografias anexadas às fls. 449/450; 693 e 696, espancam qualquer dúvida quanto ao comprometimento da paisagem local, tornado concreto com a construção erguida sobre o molhe III. Agora, além de ver-se impossibilitado de desfrutar das riquezas estéticas e arquitetônicas do patrimônio histórico-cultural de São Vicente/SP, o primeiro Município do Brasil, em razão da falta de proteção e de conservação, agora o povo experimenta prejuízo no desfrute de parte da beleza da paisagem da Praia do Gonzaguinha.

Ao tratar dos meios de tutela do patrimônio cultural na obra "Ordenação Constitucional da Cultura", no qual encontra-se inserida a paisagem – confira-se art. 1º, § 2º, Decreto-Lei nº 25, de 30.11.1937 -, José Afonso da Silva adverte que:

"Não basta, pelo que se vê, mera proteção formal, com a integração do bem no patrimônio cultural nacional, estadual ou municipal, pelo reconhecimento de seu valor. É necessário dar-lhe proteção vital, por meio de atos e procedimentos destinados a preservá-lo e revitalizá-lo. Por ‘preservar’ entende-se impedir a indiscriminada destruição de elementos componentes do patrimônio ambiental urbano, onde a ação destruidora é mais intensa, e nos casos em que a mesma não seja imprescindível para o desenvolvimento urbano, em função de soluções alternativas. (Malheiros, 2001, p. 150 – grifei).

Em vista da construção combatida encontrar-se totalmente dissociada das normas constitucionais e legais protetoras da paisagem, bem como das orientações da ONU com relação a proteção da beleza e do caráter das paisagens, em manifesta contradição com as recomendações previstas na Convenção Européia da Paisagem, diante do comprovado comprometimento da paisagem, emerge manifesta a lesividade do contrato administrativo firmado para a construção do Píer-Atracadouro.

Concluindo, registro meu entendimento no sentido da inaplicabilidade ao caso da teoria do fato consumado, visto que o ato nulo não pode ser convalidado. Sob outro prisma, apesar de em razão do tempo decorrido entre a redistribuição à Justiça Federal e a análise do pedido de liminar, ter sido erigido o imóvel sobre o molhe III da Praia do Gonzaguinha, por força da r. decisão de fls. 488/496, o bem foi interditado, não se podendo falar, assim, da ocorrência de fato consumado.

Ao apreciar o Mandado de Segurança nº 137, versante sobre questão relativa a direito adquirido de construir, em sessão realizada aos 02.04.1990, por votação unânime, a Colenda 1ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em v. aresto relatado pelo Ministro Garcia Vieira, decidiu que:

"Autorizada a construção sem o prévio cumprimento dos regulamentos administrativos pode ser ela (a licença), revogada, ou anulada porque deferida ao arrepio da lei, uma vez tratar-se de área considerada como de preservação permanente pela Lei Municipal nº 1.721/79.

A concessão de alvará nas condições acima descritas o desqualifica como ato gerador de direito adquirido e afasta a sua presunção de definitividade."

Frente às conclusões do precedente citado, que entendo aplicável à espécie, mudando o que deve ser mudado, tenho como impossibilitada a aplicação da teoria do fato consumado, o que faço também com esteio nos julgados da Suprema Corte proferidos nos Recursos Extraordinários nºs 121.798/RJ (DJ 08.04.1989), e 105.634/PR (DJ 08.11.1985).

Dispositivo.

Ante o exposto, com apoio no art.269, inciso I, do Código de Processo Civil, e com base no art. 11 da Lei nº 4.717/65, c.c. o art. 117 do Código de Defesa do Consumidor e o art. 1º da Lei nº 7.347/85, julgo procedente o pedido, desconstituindo o contrato de concessão administrativa de uso de bens públicos municipais nº 007/95, firmado entre os réus, em face da sua nulidade (art. 2º, alíneas "a" e "c", da Lei nº 4.717/65), condenando os réus a promoverem o retorno das coisas à situação em que se encontravam antes da realização das obras sobre o molhe III da Praia do Gonzaguinha-São Vicente/SP.

Ficam os réus condenados, também, ao ressarcimento dos prejuízos causados, o que deverá ser apurado em execução por artigos, e ao pagamento custas, das despesas processuais e honorários advocatícios, que fixo em dez por cento sobre o valor atribuído à causa.

P.R.I.

Santos/SP, 19 de novembro de 2.001.

Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz Federal Substituto

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Sobre o autor
Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz federal em Bauru (SP). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS FILHO, Roberto Lemos. Ação popular contra construção em paisagem notável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -151, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16549. Acesso em: 22 dez. 2024.

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