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Habitação: ilegalidade de índices e valores cobrados pelo agente financiador

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02/02/2006 às 00:00
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Extensa e fundamentada sentença em ação civil pública movida pelo Ministério Público em face de agente do Sistema Financeiro da Habitação, que declarou ilegais as seguintes condutas: aplicação de índice de correção diverso do pactuado, extrapolação do limite de equivalência salarial e cobrança de valores, taxas e multas indevidos ou não especificados.

Autos n. 001.98.005626-2

Ação: Ação Civil Pública

Autor: Ministério Publico Estadual

Réu: Empresa de Gestão de Recursos Humanos e Patrimônio de Mato Grosso do Sul


"Não farás injustiça no juízo, nem favorecendo o pobre, nem comprazendo ao grande; com justiça julgarás o teu próximo. (Levítico 19 : 15)"

"Fará sobressair a tua justiça como a luz e o teu direito, como o sol ao meio-dia (Salmos 37: 6)"


Sumário: Relatório. 1. Breve escorço histórico. 2. Da aplicação das normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor: boa-fé objetiva; equilíbrio; justiça; vida digna; função social do contrato; transparência; informação; vulnerabilidade; proporcionalidade. 3. Da competência do juízo. 4. Da preliminar de ilegitimidade passiva. 5. Mérito. 5.1.Da revisão contratual e das práticas abusivas face o direito do ser humano à vida digna e do dever do estado de promover a moradia.5.2 Das alterações unilaterais: Reajuste das parcelas e reajuste do saldo devedor pelo índice Taxa Referencial – TR.5.2.2. Do saldo devedor. 5.3. Dos juros.5.4. Da alegada inexistência da avaliação dos imóveis para transferência a terceiros e exigência de pagamento da taxa.5.5. Da alteração do número de parcelas contratadas.5.6. Da alegação de violação ao princípio da isonomia quanto ao valor das parcelas.5.7. Da alegação de mau atendimento aos consumidores e inadequação na forma de prestar informações.5.8. Da alegação de que os valores das parcelas ultrapassam 30% (trinta por cento) da renda dos mutuários.6.Das cláusulas manifestamente abusivas não alegadas pelo autor.6.1. Do Seguro.6.2. Da Multa e demais encargos de cobrança. Da aquisição de mais de um imóvel pelo SFH. Dispositivo. Abrangência da sentença.


Vistos etc.

O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, por seu representante propôs a presente Ação Civil Pública em face de PREVISUL – INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DE MATO GROSSO DO SUL, atual EMPRESA DE GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS E PATRIMÔNIO DE MATO GROSSO DO SUL, aduzindo em síntese que o requerido é órgão integrante do Sistema Financeiro de Habitação e exerce práticas abusivas em desfavor dos mutuários adquirentes de imóveis que consistem em:

  • a) alteração unilateral do índice de reajuste das parcelas passando a utilizar a Taxa Referencial como índice ao invés do Plano de Equivalência Salarial e conseqüentemente capitalização dos juros, os quais diz não poderem exceder a 12% (doze por cento) ao ano;

  • b) inexistência de avaliação dos imóveis para transferência a terceiros e exigência de pagamento da taxa de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais);

  • c) alteração do número de parcelas contratadas;

  • d) violação ao princípio da isonomia quanto ao valor das parcelas;

  • e) atendimento inadequado aos consumidores sem a prestação das informações devidas;

  • f) os valores das parcelas ultrapassam 30% (trinta por cento) da renda dos mutuários.

Por fim pugna pela anulação das cláusulas abusivas e restituição em dobro dos valores cobrados a maior, corrigidos e acrescidos de juros e multa, e, abatidos os valores indevidos das prestações futuras.

Formula pedido de concessão de medida liminar e antecipação dos efeitos da tutela consistente na revisão dos valores e suspensão da aplicação do índice TR combatido e da cobrança que diz indevida.

Juntou documentos de fls. 27-725.

Recebida a inicial à fl. 727-728, foi deferido o pedido liminar de suspensão da correção monetária pelo índice TR, determinada sua substituição pelo IPC-r.

O requerido apresentou contestação às fls. 802-824, alegando em sede de preliminar nulidade da citação ao argumento de que foi efetivada em pessoa que não dispõe de poderes para tanto. Levantou também preliminar de ilegitimidade passiva do Ministério Público para propositura da ação sob a fundamentação de que não versam os autos sobre direitos transindividuais.

Aduz haver litisconsórcio passivo do Conselho Monetário Nacional, Banco Central e Caixa Econômica Federal por serem os ditadores das regras do Sistema Financeiro de Habitação do qual o requerido faz parte, e por haver interesse da União no feito defende a incompetência da Justiça Estadual para apreciação da lide.

No mérito sustenta a tese de inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor sob o fundamento de que a maioria dos contratos foram celebrados em data anterior à sua promulgação.

Assevera que tão somente observa as normas traçadas pelo Sistema Financeiro de Habitação, inclusive quanto ao Plano de Equivalência Salarial por categoria, sustentando que por isso há a diferenciação na valoração das prestações.

Defende que nem todos os mutuários fizeram a opção pelo citado reajuste, e que alguns servidores públicos embora não obtivessem aumento no salário-base, auferiram vantagens salariais que compõem a remuneração para efeitos de reajustamento das prestações do financiamento.

Alega que o Sistema Financeiro de Habitação não pode ficar à mercê das flutuações dos rendimentos daqueles que não tenham remuneração fixa, de modo que dizem ter sido fixado para estes índices de reajustes gerais.

Defende a cobrança da taxa de transferência de direito dizendo haver incidência de impostos e despesas contratuais diversas.

Aduz acerca da legalidade da aplicação da Taxa Referencial como índice de correção monetária, bem como das alterações contratuais.

Assim, pugna pela improcedência da ação. Juntou documentos de fls. 825-1179.

Em impugnação à contestação (fls. 1181-1214) o autor rebateu integralmente as teses do requerido, repisando as alegações iniciais. Juntou os documentos de fls. 1215-1271.

Sobre os documentos manifestou-se o requerido à fl. 1273-1276, juntando ainda os documentos de fls. 1277-1335.

Deferida dilação de prazo para cumprimento da liminar à fl. 1340.

Às fls. 1342-1356, consta a cópia da decisão do recurso de agravo que afastou as preliminares de ilegitimidade ativa do Ministério Público e incompetência da Justiça Estadual.

Por despacho de fl. 1361. foi determinada a correção do pólo passivo de maneira que o requerido PREVISUL foi substituído pela ré EMPRESA DE RECURSOS HUMANOS E PATRIMÔNIO DE MATO GROSSO DO SUL – EGPRHP/MS.

Os autos vieram-me conclusos.

Relatei o necessário. Decido.

A presente ação foi proposta em 17.03.98 (fl. 726), e encontra-se apta a ser sentenciada desde meados de agosto de 1998, pois comporta o julgamento antecipado, eis que a matéria discutida é unicamente de direito nos termos do art. 330, I do Código de Processo Civil; contudo, foi remetido a esta Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos na data de 17.02.2005, ainda pendente deste julgamento.

São pontos controvertidos enfocados nesta ação:

  1. aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor;

  2. abusividade e ilegalidade na prática de alteração unilateral das cláusulas contratuais quanto ao índice de correção, juros e número de parcelas;

  3. práticas abusivas consistentes na inexistência de avaliação dos imóveis para transferência a terceiros e exigência de pagamento da taxa de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais); bem como no desrespeito ao princípio da isonomia quanto ao valor dos pagamentos e atendimento inadequado aos consumidores sem a prestação das devidas informações;

  4. ilegalidade dos valores das parcelas que ultrapassam 30% (trinta por cento) da renda dos mutuários.


1. Breve escorço histórico

A evolução histórica da sociedade de consumo é ponto culminante da instituição do Estado Democrático de Direito pela Constituição Federal de 1988 e a implementação da transformação do sistema jurídico brasileiro estabelecendo a defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5º, inciso XXXII), e princípio da ordem econômica (art. 170, inciso V)*.

Como é sabido, a Carta Magna, ordenou a elaboração de um código de defesa do consumidor no art. 48. dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias*, rompendo com a doutrina do monossistema e implantando a doutrina dos microssistemas.

Desta forma foi criado o sistema jurisdicional coletivo composto basicamente pela Constituição Federal, a Lei de Ação Civil Pública, o Código de Defesa do Consumidor e, subsidiariamente, o Código de Processo Civil, sem prejuízo da aplicação das legislações específicas no que for compatível. Trata-se de microordenamento em que o Juiz atua amparado pelos princípios constitucionais, de maneira que os textos legais são aplicados de acordo com os valores da Constituição buscando a efetividade da prestação jurisdicional invocada.

Por isso, no presente caso, a evolução dos direitos do consumidor deve ser analisada face os direitos fundamentais erigidos pela Constituição Federal e a função da Administração Pública, pois envolve o direito à moradia.

Os direitos fundamentais nasceram com o cristianismo*, dos ideais implantados pela doutrina cristã de igualdade, solidariedade e vida digna ao homem.

Do Antigo Testamento, herdamos a idéia de que o ser humano representa o ponto culminante da criação divina, tendo sido feito à imagem e semelhança de Deus. Da doutrina estóica greco-romana e do cristianismo, advieram, por sua vez, as teses da unidade da humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade (para os cristãos, perante Deus).1

O reconhecimento da existência dos direitos fundamentais partiu da Idade Média com o pensamento jusnaturalista, cujo pensador de maior relevância foi Tomás de Aquino, que pregava a resistência da população como punição aos governantes que desobedeciam o direito natural de valor fundamental consistente na dignidade da pessoa humana. Com Picco della Mirandola, baseado nas lições de Tomás de Aquino, firmou-se o fundamento de dignidade da pessoa humana do qual nasceria a qualidade do valor natural e inalienável como objeto da personalidade do homem, asseverando que "ao homem é dada a oportunidade para realizar seu projeto existencial." 2

Na Idade Moderna, merecem destaque os filósofos alemães Hugo Donellus e Johannes Althusius que, respectivamente, dentre os séculos XVI e XVII, ensinavam sobre a extensão do direito à vida e a idéia de igualdade humana e soberania popular, professando que os homens estariam submetidos à autoridade apenas à medida que tal submissão fosse produto de sua própria vontade e delegação, pregando, ainda,que as liberdades expressas em lei deveriam ser garantidas pelo direito de resistência.3

Já no século XVII, na Inglaterra a idéia de submissão das autoridades aos direitos naturais do homem face a concepção contratualista da sociedade adquirem peculiar relevância, positivando-se por meio das Cartas de Direitos assinadas no período. Rousseau (França), T. Paine (América) e Kant (Alemanha), propagaram o início do processo de elaboração doutrinária do contratualismo em face dos direitos naturais do homem, terminologia esta, inclusive, substituída e popularizada por T. Paine como "direitos do homem".

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Nas palavras de Norberto Bobbio, Kant inspirado em Rousseau, delimitou o campo dos direitos humanos através do parâmetro da coexistência de liberdades dos demais seres humanos.

Sumamente relevante para a evolução condutora da existência dos direitos fundamentais foi a Reforma Protestante através da reivindicação e gradativo reconhecimento da liberdade de opção religiosa e culto em diversos países da Europa.

Atente-se, ainda, para a circunstância de que a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais, recém-traçada de forma sumária, culminou com a afirmação (ainda que não em caráter definitivo) do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa, por sua vez determinante para a concepção clássica dos direitos fundamentais que caracteriza a assim denominada primeira dimensão (geração) destes direitos.4

Exemplo histórico precursor da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana deve ser citada a Declaração dos Direitos do Homem, da França em 1789, que em seu preâmbulo anuncia:

"Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Em razão disto, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:(...)"5 (sem grifo no original)

A explanação histórico-evolutiva visa demonstrar o berço dos direitos fundamentais, que culminaram com a positivação em nossa Carta Magna atual, nos termos do artigo 5º a seguir transcrito:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

(...)


2. Da aplicação das normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor

Não pairam dúvidas quanto a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor aos presentes contratos objeto da lide.

Face os contratos acostados aos autos às fls.29-33;213-226; 267-286; 382-393 e 519-526, verifica-se que foram firmados variavelmente nos anos de 1983; 1988 e 1991, portanto, em alguns casos em datas anteriores ao advento do Código de Defesa do Consumidor e até mesmo da Constituição Federal. Contudo, a partir da Constituição de 1988, o nosso modelo político é o Estado Democrático e Constitucional de Direito com sistema garantista que representa pela invalidade da norma que contrarie a Constituição Federal; neste sentido é que a existência da norma por si só não garante o Estado de Direito, somente a efetividade da norma reconhece os direitos dos cidadãos.

Com o advento da Constituição Federal o ordenamento jurídico passou por uma releitura de todo o sistema jurídico, situação esta que passa desapercebida pela maioria da comunidade jurídica que ainda acredita que as normas constitucionais são dirigidas ao legislador e não têm aplicação imediata; muito pelo contrário, o fato é que o ordenamento jurídico deve ser interpretado sobre o prisma da dignidade da pessoa humana como valor absoluto a ser aplicado em todas as searas do direito, especificamente em interesse do caso presente concreto, dispondo a defesa dos direitos dos consumidores no artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.*

Assim, instituída a legislação consumerista como norma de ordem pública , ou seja, de interesse à vida, à incolumidade da prosperidade da comunidade, à organização da vida social, sendo, por isso, oficialmente reconhecida pela ordenação jurídica6, decorrente do interesse geral da sociedade, dos anseios da coletividade, da necessidade de manter a soberania nacional e os bons costumes; por isso de aplicação imediata na medida em que é instituída para fazer cessar situações contrárias ao ordenamento jurídico, princípios gerais do direito, tradições, concepções morais e religiosas, ideologias políticas e econômicas, dentre outras.

Daí a aplicabilidade imediata de tais normas como espectro de alcance a todas as relações jurídicas em vigência após a publicação, ainda que iniciada em data anterior, excetuando-se tão somente as relações findas.

É manifesta a finalidade da institucionalização da defesa do consumidor como meio de equilibrar as relações contratuais consumeristas, com o objetivo de igualar as partes, observada a vulnerabilidade do consumidor, banindo-se ilegalidades e abusos praticados pelos até então detentores intocáveis da força – os fornecedores de produtos e/ou serviços, e, independentemente de ter a ilicitude do ato se iniciado em momento anterior à lei, é princípio fundamental de direito que a lei seja aplicada aos atos anteriores a sua promulgação em virtude do interesse público.

Pois bem, ressalte-se o exercício de atividade de instituição financeira promovida pela requerida no caso vertente, nos termos do artigo 17 da Lei 4.595/64, verbis:

Art. 17. - Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.

(sem grifo no original)

No mesmo norte, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como destinatário final, enquanto fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, nos termos dos artigos 2º e 3º ambos do Código de Defesa do Consumidor*

Assim, o parágrafo segundo do citado art. 3º da lei consumerista dispõe:

§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

(sem grifo no original)

Desta feita, conclui-se pelas normas legais apresentadas que a requerida, in casu, age como instituição financeira uma vez que realiza a captação da moeda para emprestar a terceiros, assim, caracterizando ser fornecedora de crédito e, por essa razão, submete-se ao Código de Defesa do Consumidor.

Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. SALDO DEVEDOR. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. TAXA REFERENCIAL. 1.(...) 2. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido da aplicação do CDC aos contratos de financiamento habitacional, considerando que há relação de consumo entre o agente financeiro do SFH e o mutuário.(...).

(Processo RESP 678431 / MG ; RECURSO ESPECIAL 2004/0071881-3 Relator(a) Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 03/02/2005 Data da Publicação/Fonte DJ 28.02.2005 p. 252)

Ante a relação jurídica posta à apreciação, necessário se faz o entrelaçamento dos princípios constitucionais que regem o Poder Público e os regentes dos contratos de fornecimento de produtos pela Administração Pública, pois como já dito, a relação reconhecidamente é de consumo.

Assim sendo é imperativa a revisão contratual à luz das normas do sistema jurisdicional coletivo para que sejam adequadas, reparadas, sanadas as cláusulas configuradas abusivas do contrato que evidentemente é de adesão.

O contrato firmado pela Administração Pública por meio inicialmente do PREVISUL, posteriormente substituído pela EMPRESA DE RECURSOS HUMANOS E PATRIMÔNIO DE MATO GROSSO DO SUL – EGPRHP/MS, com os mutuários, caracteriza-se contrato privado da Administração e por envolver relação de consumo, é regulado pelo Código de Defesa do Consumidor.

Deste modo, o Estado – representado pela requerida EMPRESA DE RECURSOS HUMANOS E PATRIMÔNIO DE MATO GROSSO DO SUL assume situação jurídica semelhante aos agentes da iniciativa privada (incorporadores, corretores imobiliários, etc.), de modo que se despoja das peculiaridades de ente público, tendo-se apenas de considerar a capacidade do contratante em função das correspondentes normas administrativas, tal como ocorrerá em geral com as pessoas jurídicas.7

Antes, porém, de enfrentar os pontos controvertidos debatidos pelas partes, cabe ligeira explanação acerca dos princípios norteadores da presente decisão:

Jesus Cristo quando indagado acerca dos tributos cobrados do povo ordenou que se desse a César o que fosse de César e a Deus o que fosse de Deus8, estabelecendo, desde tempos remotos, que não só nas relações humanas, como igualmente na relação Povo-Governo deve ser observado o princípio da boa-fé objetiva, consistente na moral e boa conduta, com a finalidade de alcançar a justiça social equânime, que tem a finalidade de harmonizar interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o cumprimento dos deveres da Administração.

O princípio da boa-fé objetiva que ao contrário do que pretendem alguns doutrinadores, não é inovação do Código Civil de 2002 e encontra-se atrelado ao princípio do equilíbrio, que devem pautar as relações jurídicas assegurando a igualdade nas convenções formuladas pelas partes.

Ademais o princípio da boa-fé objetiva encontra-se estampado no art. 4º e o do equilíbrio contratual no art. 51, IV e §1º, III , todos do Código de Defesa do Consumidor*.

Como se vê os dois princípios possuem ligação íntima, porquanto visam a concretização do princípio da justiça, com a solução de tratamento equitativo (art. 3º, I, CF)*, de forma a assegurar o princípio da vida digna (art. 1º, III da CF e art. 4º, caput do CDC), do qual decorre o princípio da função social do contrato, segundo o qual o contrato deve servir de instrumento sobretudo para a satisfação dos interesses da sociedade.

Também deve ser observado o princípio da transparência (art. 4º da Lei 8078/90), que é oportunização ao consumidor de conhecimento do verdadeiro conteúdo do contrato, sendo complementado pelo princípio da informação (art. 6º, III, CDC)*, do qual decorre o direito do consumidor ser informado e o dever do fornecedor informar adequadamente.

O inovador princípio da vulnerabilidade , expressamente disposto no art. 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor*, estabelece que o consumidor é sempre parte vulnerável, ou seja, em regra, a parte fraca na relação jurídica de consumo em decorrência da falta de conhecimento técnico e menor capacidade econômica em relação ao fornecedor.

Por fim, há que se mencionar o princípio da proporcionalidade, decorrente da necessidade de harmonização das normas de grau equânime por meio da ponderação dos interesses apresentados no caso concreto, e como bem define FREDIE DIDIER, "trata-se de princípio que torna possível a justiça do caso concreto, flexibilizando a rigidez das disposições normativas abstratas."9

Todos os princípios mencionados decorrem do princípio constitucional maior que é o da isonomia, disposto no art. 5º, caput da Constituição Federal e que preceitua tratamento igualitário em todas as situações jurídicas ou de fato, inclusive ao Estado-Administração quando se coloca a exercer atividades próprias das relações privadas, e quanto mais como meio alternativo de cumprir sua própria obrigação legal, como no caso vertente em que instaura relações transindividuais de fornecimento de produtos e/ou serviços que proporcionam condições de vida dignamente: a moradia.

Para tanto deve a Administração observar, primeiramente, os princípios expressos no artigo 37 da Constituição Federal, quais sejam, da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, assim como os princípios implícitos, como da supremacia do interesse público sobre o particular, razoabilidade, proporcionalidade e motivação, dentre outros.

Como se vê, referidos princípios visam assegurar a limitação do Poder Estatal face os administrados, como meio de assegurar o interesse público primário: o bem geral; antes do interesse público secundário: o modo pelo qual os órgãos da administração vêem o interesse público, 10 em profundidade ainda maior quando encerra relação de consumo, dado o caráter protetivo da norma a ser aplicada (CDC) de origem mandamental constitucional, nos termos do citado art. 5º, inciso XXXII.

Importante a explanação principiológica, pois segundo ANTONIO AUGUSTO MELLO DE CAMARGO FERRAZ citado por FILOMENO "na verdade, a defesa do consumidor não se faz pela proteção de uma determinada coisa, material ou corpórea, mas de princípios, ou valores, necessários para preservar o equilíbrio nas relações de consumo, compensando-se a situação de inferioridade em que se encontra o consumidor isolado frente às grandes empresas e ao próprio Estado, inferioridade essa que se acentuou dramaticamente com a produção em massa, com a velocidade e intensidade atuais da publicidade, com as práticas de monopólio, com os contratos de adesão." 11 (sem grifo no original)

As normas escritas devem ser analisadas face os princípios como garantia da regra da justiça que consiste em atribuir tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, porque nas palavras de NORBERTO BOBBIO:

"A lei, enquanto norma geral e abstrata, estabelece qual seja a categoria à qual deve ser reservado um determinado tratamento. Cabe ao juiz estabelecer em cada situação quem deve ser incluído na categoria e quem deve ser dela excluído. O preceito da imparcialidade é necessário, porque a aplicação de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer uma interpretação na qual intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes tipos de lei, o juízo pessoal do juiz." 12

O cerne da importância da matéria principiológica abordada é muito bem definida por BANDEIRA DE MELLO:

"(...) violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada." 13

Ainda no mesmo sentido são as lições de JOSÉ SOUTO MAIOR:

"A violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria Constituição, representando, por isso mesmo, uma inconstitucionalidade muito mais grave do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional." 14

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Dorival Moreira. Habitação: ilegalidade de índices e valores cobrados pelo agente financiador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 946, 2 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16665. Acesso em: 22 dez. 2024.

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