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Ausência de licitação de linhas de ônibus.

Sentença em ação civil pública

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24/08/2006 às 00:00
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A decisão analisa, dentre outros, os seguintes temas: possibilidade de intervenção judicial na atividade administrativa, controle incidental de constitucionalidade em ação civil pública, modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

Comarca de Guaíba

1ª Vara Cível

Nº de Ordem:
Processo nº: 052/1.05.0002023-7
Natureza: Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Réu: O Município de Guaíba, Auto Viação DND Ltda, Viação Alegria Ltda, Viação Pelicano Ltda, Emílio Silveira Soares-ME, Fronteiratur Ltda
Juiz Prolator: Juiz de Direito - Dr. Gilberto Schäfer
Data: 24/04/2006


            Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou a presente Ação Civil Pública contra o Município de Guaíba e outros, todos já devidamente qualificados nos autos.

            Aduziu que as permissões concedidas pelo município aos demais réus para o fim de delegação de serviço público de transporte coletivo ocorreram de forma ilegal, uma vez que outorgados sem os devidos procedimentos, ou seja, licitações.

            Requereu, liminarmente, a determinação para que o município réu proceda à licitação no caso de abertura de novas linhas de transporte, bem como proceda à regularização das existentes, no prazo máximo de 8 meses. Requereu a procedência da ação, com a confirmação dos pedidos liminares, declarando, ainda, a nulidade das permissões já concedidas e a das que porventura sejam concedidas sem o devido processo licitatório. Juntou documentos (fls. 02/517).

            Indeferida a liminar (fl. 518), o Ministério Público interpôs agravo (fls. 519/545).

            Em contestação, o município aduziu que o pedido de licitação para o caso de novas linhas é desnecessário, visto que não há projeto algum para novas linhas, bem como o município não deixaria de efetuar as licitações. Sustentou que o descumprimento dos atos existentes geraria graves prejuízos às empresas permissionárias, considerando o investimento feito por elas.

            Disse que a própria recusa do município protege os interesses da população, porque o transporte coletivo é tido como satisfatório aos interesses da comunidade, bem como observou a proteção da confiança legítima no ato estatal. Sustentou a prevalência do princípio da segurança jurídica sobre o princípio da legalidade. Requereu a improcedência da ação. Juntou procuração. (fl. 573).

            Os demais réus apresentaram contestação aduzindo, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do Ministério Público, bem como a violação do princípio constitucional da separação dos poderes. No mérito, discorreram acerca das permissões anteriores a 1988, da convalidação do ato anulado e da proteção da confiança legítima e do princípio da segurança jurídica. Aduziram, ainda, a teoria do fato consumado e a ponderação de valores. Requereram a extinção e a improcedência da demanda. Juntaram documentos (fls. 588/644).

            Houve réplica (fls. 646/651).

            Os autos vieram conclusos para análise.

            Relatei.


            Decido.

            A matéria comporta julgamento imediato consoante artigo 330, I, do CPC, já que desnecessário produzir provas em audiência, pelo que passo à análise das preliminares suscitadas.


I – Das Preliminares

            A – Legitimidade do MP e Interesses Difusos

            A legitimidade do MP está assegurada constitucionalmente, conforme se pode ler:

            Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

            II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

            III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

            Dessa forma, percebe-se que a proteção dos interesses difusos e da moralidade estão assegurados na própria constituição.

            Nos termos da lei brasileira (art. 81, I, do CDC), os interesses difusos "são os transindividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". Segundo a doutrina, apresentam como características a indeterminação dos sujeitos,a indivisibilidade do objeto, litigiosidade interna e transição ou mutação no tempo e no espaço.

            Uma das características presentes no caso é a indivisibilidade. Na locução de Barbosa Moreira, a satisfação de um só implica, por força, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só implica a lesão da inteira comunidade. [01] Aqui há um litígio, conforme o autor [02], "essencialmente coletivo" onde os direitos e interesses se caracterizam, sob o ponto de vista subjetivo, por um número indeterminado e, pelo menos, para efeitos práticos, indeterminável de sujeitos: não há um grupo definido, e, sim, uma série que comporta extensão em princípio indefinida. Do ponto de vista objetivo, o seu objeto é indivisível. E não se trata de uma justaposição de litígios menores, que se reúnem para formar um litígio maior. O seu objeto é por natureza indivisível, como acontece, por exemplo, em matéria de proteção do meio ambiente, defesa da flora e da fauna, tutela dos interesses na preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural e espiritual da sociedade. Acontece igualmente no campo de defesa do consumidor quando se trata de proibir a venda, a exploração de um produto considerado perigoso ou nocivo à saúde. "Não se está focalizando, nessa perspectiva, o problema isolado de cada pessoa, e sim algo que necessariamente assume dimensão coletiva incindível, do que resulta uma conseqüência muito importante (...) que é impossível satisfazer o direito ou o interesse de toda a coletividade, e vice-versa: não é possível rejeitar a proteção sem que essa rejeição afete necessariamente a coletividade como tal". [03] Em uma mutilação de paisagem, conforme exemplifica Barbosa Moreira, a solução do litígio não pode aproveitar alguns e não aproveitar a outros dos membros dessa coletividade.

            Os interesses não se apresentam jungidos a um vínculo jurídico básico, mas a situações de fato contingenciais que os tornam, em conseqüência, mutáveis, como essas nossas situações de fato, desaparecendo e fenecendo de acordo com o declínio e a extinção dessas situações. Eles se repetem e transformam-se indefinidamente, sendo substituídos por outros interesses, em outras circunstâncias.

            No presente caso, justamente estão presentes todos esses elementos que caracterizam os direitos e interesses difusos. Trata-se de um caso que afetará um número indeterminado de sujeitos, cujo objeto é a análise da própria legalidade em seu sentido amplo e a moralidade da permissão (portanto, indubitável a relevância do bem protegido). Além disso, como se percebe, há uma intensa litigiosidade com interesses diversos, como o poder público, empresas, trabalhadores e usuários.

            Ademais, mesmo quando se trata da defesa de interesses individuais homogêneos, o Ministério Público pode atuar, desde que se faça presente a relevância social da tutela [04]. Essa atuação se funda na razão de se obter uma sentença única, homogênea, com eficácia erga omnes da coisa julgada, evitando-se decisões conflitantes [05].

            Por isso, tenho que o Ministério Público é parte legítima para propor a presente demanda.

            B - Separação dos Poderes

            A questão da separação dos poderes não poderá ser óbice para a resolução da presente demanda. O judiciário tem o poder/dever de sindicar a legalidade e constitucionalidade dos atos estatais.

            A presente ação é um daqueles instrumentos jurisdicionais de participação no poder como a ação popular, mandado de segurança, habeas data. As referidas ações, como se anotou na doutrina, se transformaram em instrumentos de participação no poder. [06] A ação popular é considerada uma ação que permite a participação política do cidadão na administração, pois "tem-se participação democrática (...) na ação popular, onde se vê o cidadão contribuindo para a fiscalização da moralidade pública e podendo criar condições para o anulamento de atos administrativos lesivos ao patrimônio público" [07]. Essa ação coloca-se ao lado do mandado de segurança coletivo [08] e da ação civil pública (ACP). Mediante via jurisdicional se poderá suprir a omissão do poder público ou irregularidade do particular que deve ser corrigida ou reparada em prol de todos. [09]

            Trata-se de buscar reparar o ato inquinado como ilegal ou inconstitucional em prol de todos, ou seja, a verdadeira conceituação de interesses difusos.


II – Da Nulidade das Permissões

            O mérito, que passo a analisar, consiste na declaração da nulidade das permissões já concedidas e a das que porventura venham a ser outorgadas no curso do processo, sem a devida licitação.

            Antes, contudo, uma palavra sobre a natureza do exame e a posição atual dos STF que assume uma função prejudicial ao problema objeto de análise.

            A) O ato objeto de controle

            A.1 ) natureza do ato normativo: ato administrativo em forma de lei.

            O ato cuja nulidade se busca tem assento no art. 59 da lei 1614/2001, que preceitua:

            "Art. 59. Ficam convalidados, sob o regime de permissão, pelo prazo de dez anos, as delegações das empresas Fronteiratur Ltda, Auto Viação DND Ltda e Viação Alegria Ltda., para o transporte de ônibus na modalidade convencional, com a participação percentual por elas detidas nesta data, e a Viação Pelicano Ltda, para o transporte de ônibus na modalidade seletivo, com tarifa 20% (vinte por cento) superior à dos ônibus convencionais."

            A primeira questão a ser examinada é a estrutura normativa desse artigo: se ele é lei em sentido formal ou se é um ato administrativo revestido de lei.

            No Brasil tem-se exigido do ato normativo para que possa ser chamado de lei seja dotado de um caráter de generalidade e abstração. Trata-se da velha distinção entre lei material e lei formal. [10] "Para que se pudesse falar em lei na última acepção impunha-se que o preceito fosse genérico, abstrato e impessoal, do contrário a lei só seria lei em sentido formal, o que vale dizer que seria ato administrativo com roupagem de lei". [11]

            A doutrina brasileira sempre distinguiu essa matéria quando se tratava das espécies de atos do Poder Legislativo, para fins de mandado de segurança, pois havia atos estatais revestidos das formalidades constitucionais necessárias à sua caracterização como lei, independentemente da matéria nela elencada e que se diz lei formal. A lei formal sempre emana do órgão legislativo. Já a lei em sentido material pode emanar de qualquer órgão.

            No entanto, nem sempre é fácil fazer essa distinção entre lei formal e lei material, estando a matéria sujeita à ampla gama de controvérsias. O Supremo não admite o controle de constitucionalidade de leis orçamentárias por via da ação direta, [12] mas aceita o controle das leis ordinárias estaduais que criam municípios que muitos consideram leis de efeitos concretos. [13] De qualquer forma, nesse caso, cabe controle realizado pelas vias difusas. Para o STF "isso não impede que eventuais prejudicados se valham das vias adequadas ao controle difuso de constitucionalidade, sustentando a inconstitucionalidade da destinação de recursos prevista na Lei em questão". [14]

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            O entendimento é de que se permite que os efeitos concretos de qualquer lei apenas formal sejam atacáveis via qualquer ação, especialmente as de caráter constitucional, como mandado de segurança, ação popular e especialmente quando se trate de ação civil pública [15].

            No presente caso, se observa que os contratos de permissão são efeitos diretos do art. 59 da Lei Municipal nº 1.614/2001, conforme se depreende dos documentos juntados às fls. 263/274 dos autos. E este artigo, é, no sentido material, um verdadeiro ato administrativo, embora, do ponto de vista formal seja um artigo na lei, porque dispõe para o caso concreto, como verdadeiro ato administrativo. Não há generalidade e abstração. Há a resolução de uma determinada situação fática.

            Contudo, caso não se aceite que se trata de um ato administrativo em forma de lei, não há óbice para que se declare a inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública, como passo a demonstrar.

            A.2) Controle de Constitucionalidade em Ação Civil Pública:

            A declaração de inconstitucionalidade de direito municipal mereceu um tratamento próprio na jurisprudência do STF, especialmente na Medida Cautelar da Reclamação 1.733-SP, Relator do Ministro Celso de Mello [16], e depois na ação civil pública, que declarou a inconstitucionalidade do art. 8º da Lei Orgânica do Município de Sorocaba/SP com efeitos para o futuro [17].

            O direito municipal requer um exame de constitucionalidade diante das Constituições Federal e Estadual. Esse exame é feito nas formas concentrada e difusa. No controle incidental ele é feito de forma difusa perante qualquer juízo ou tribunal. Produz efeitos apenas inter partes e, nos tribunais, quando necessário observa-se o princípio do plenário com o recurso extraordinário como forma de garantir o exercício da guarda da Constituição Federal pelo STF [18].

            Dessa forma, temos no caso a consideração de que a permissão concedida, com base do art. 59 da Lei Municipal, pode ser declarada nula, em processo judicial, também por esses fundamentos.

            B - Da Necessidade Constitucional e Legal de Licitação:

            Duas são as situações a serem analisadas no presente processo. As delegações realizadas para empresas que já operavam anteriormente à Constituição de 1988 e a permissão realizada com a empresa Viação Pelicano Ltda, para o transporte de ônibus na modalidade seletivo.

            Os serviços de transporte coletivo devem ser organizados e prestados diretamente ou sob regime de concessão ou permissão pelo município [19], não havendo outra figura diferente desta prevista em lei, e sujeitam-se à licitação.

            Na Constituição Federal a determinação consta no art. 37, inc. XXI (o grifo é meu):

            XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

            Art. 175 - Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

            Portanto, a necessidade de licitação é uma exigência constitucional. As normas que disponham em sentido contrária não são válidas.

            Na legislação federal essa norma é explicitada e reforçada pela Lei nº 8.666, de 21.06.1993, que determina que os serviços, quando realizados por terceiros, sejam precedidos de licitação [20]. A Lei nº 8.987, de 13.02.1995, dispõe sobre o Regime de Concessão e Permissão da Prestação de Serviços Públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências:

            Art. 14 - Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios de legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.

            Art. 40 - A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.

            Parágrafo único. Aplica-se às permissões o disposto nesta Lei.

            Constata-se, por conseguinte, que há na lei um sentido unívoco da necessidade de licitação. E o parágrafo único diz que se aplica às permissões o disposto na lei. Assim, são aplicadas as regras das disposições finais e transitórias, que se referem à concessão:

            Art. 42. As concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada em vigor desta Lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou no ato de outorga, observado o disposto no art. 43 desta Lei.

            § 1º Vencido o prazo da concessão, o poder concedente procederá a sua licitação, nos termos desta Lei.

            § 2º As concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses.

            (...)

            Art. 43. Ficam extintas todas as concessões de serviços públicos outorgadas sem licitação na vigência da Constituição de 1988.

            Parágrafo único. Ficam também extintas todas as concessões outorgadas sem licitação anteriormente à Constituição de 1988, cujas obras ou serviços não tenham sido iniciados ou que se encontrem paralisados quando da entrada em vigor desta Lei.

            A lei nos dá o sentido de uma aproximação entre a permissão e a concessão [21], que, aliás, pode ser mais próxima do que se imagina, pois se pode questionar em face do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança a própria idéia de precariedade que se atribuí às permissões.

            Resulta daí que a permissão de serviço público deve ser feita mediante licitação [22] e cumpre dizer que o caso em tela não se amolda a nenhuma das modalidades de dispensa de licitação inscritas no art. 24 da Lei de Licitações [23], ou na expressão de Celso Antônio [24] "a permissão de serviço público sempre necessita ser precedida de licitação. Se por al não fora, sê-lo-ia ex vi do precitado art. 175 da Constituição".

            Ora, se há algo incontroverso em toda esta discussão é a necessidade de licitação. A decisão judicial proferida nos autos 62376, em que foi ré a empresa Pelicano, determinou que se realizasse licitação numa modalidade de disputa mais ampla do que a carta-convite, a administração municipal jamais poderia não realizar licitação. Reproduzo a ementa do acórdão prolatado no reexame necessário 70002605723, Relatora Desembargadora Teresinha de Oliveira Silva, inteiro teor às fls. 294/300, que determinou a nulidade da licitação pela modalidade carta-convite:

            AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. TRANSPORTE DE PESSOAS. EMPREENDIMENTO DE VULTO. MODALIDADE CARTA-CONVITE. IMPOSSIBILIDADE.

            O procedimento licitatório através de carta-convite, é destinado às contratações de pequeno valor. Quando a permissão dos serviços, envolver valores de vulto, por uma questão lógica e bom senso, a administração pública deveria ter utilizado a concorrência pública, de convocação "erga omnes", modalidade que melhor atende aos princípios licitatórios.

            SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME NECESSÁRIO

            Daí se extrai um corolário de que, se é inválido realizar licitação na modalidade carta-convite, jamais se poderia não realizar licitação. Assim, é inexorável a realização de licitação pela empresa Viação Pelicano. Os tribunais têm firme jurisprudência exigindo licitação, para transferência, exploração de novas linhas [25].

            As empresas operavam com instrumentos precários denominados termos de autorização (fl. 34, 35, 36), ao que se depreende dos autos renovados sem licitação. Nesse caso, é evidente que deve ser realizada a licitação.

            Por isso, se aplica à espécie a Lei Federal 8.987/95 nos artigos 42 a 45 já citados acima, aplicando-se, no que couber, à permissão o disposto sobre a concessão, como dissemos antes, pois "ambas estão submetidas às mesmas ‘amarras’ estabelecidas no art. 175 da Constituição Federal, quando seu objeto for a delegação da execução do serviço público ao particular [26]".

            Poder-se-ia ainda perguntar, se a lei federal pode regulamentar a matéria já que se trata de serviços públicos municipais. A resposta deve ser afirmativa, na medida em que se trata de formulação normativa concernente à licitação e compete à União legislar sobre normas gerais em matéria de licitação [27].

            Embora denominada privativa, essa competência é na verdade concorrente, já que a União tem poder para legislar apenas sobre as regras gerais. A doutrina tem mostrado um certo desassossego na conceituação dessas regras gerais [28]. As dificuldades são imensas especialmente porque essas normas aparecem misturadas com "as normas específicas voltadas à sua própria administração". Embora os critérios não sejam totalmente esclarecedores, avulta um papel primordial dos tribunais na consecução dessas normas. Deve-se entender por geral a norma que não for dirigida ao próprio ente e não tiver densidade normativa concreta (formalmente se tratar de um ato administrativo). Quanto estabelecer um quadro para todos os entes administrativos, nesse caso, deve ser observada pelas legislações estaduais e municipais.

            Como disse, as disposições são aplicadas porque se referem à licitação, mesmo que o diploma também regule outros aspectos do serviço público. No caso em concreto, vê-se que isso foi desobedecido, quando deveria ter sido operada nova licitação, no mínimo, dentro do prazo fixado pela lei geral nacional de competência da União. Essa desobediência, realizada na via legislativa, induz a uma invalidade, quer se pense ela como afronta à competência legislativa da União (legislar sobre normas gerais em matéria de licitação– ADI-3059) ou ilegalidade, por ofensa, direta à norma geral, mesmo que em outro diploma legal, ao não realizar a licitação no prazo previsto.

            Para arrematar, a determinação de licitação já tinha sido definida em acórdão (fls. 401/408) do Tribunal de Justiça referente às empresas rés:

            Transporte coletivo urbano. Linhas clandestinas e concedidas precariamente, sem contrato ou licitação. Suspensão de imediato da operação daquelas e em noventa dias destas. Princípios inafastáveis da impessoalidade, transparência e moralidade no trato da coisa pública; aquilo que é viciado, nuto, ilegal, irregular ou tangente à lei não de convalida ou qualifica, merecendo antes corrigenda pela via legal Preliminares de deserção e incompetência rejeitada Agravo provido. (Agravo de Instrumento Nº 70002237931, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Julgado em 26/06/2001).

            Portanto, temos exigências constitucionais e legais que não foram observados pela lei municipal e pelos novos contratos firmados, levando a invalidade dos mesmos.

            C - Modulação dos Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade

            A idéia de modulação dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade não é nova. No Brasil é possível citar vários precedentes [29], em que houve a necessidade de ajuste, inclusive entre a declaração abstrata e genérica [30].

            Mesmo nos Estados Unidos, onde a teoria da nulidade dos atos inconstitucionais nasceu, o que equivaleria a um desconstituir desde sempre, esse princípio foi relativizado [31]. O próprio Mauro Cappelletti em sua obra sobre o controle de constitucionalidade aborda esses aspectos [32].

            Zavascki sintetiza a questão: "Com efeito, não é nenhuma novidade, na rotina dos juízes, a de terem, diante de si, situações de manifesta ilegitimidade cuja correção, todavia, acarreta dano, fático ou jurídico, maior do que a manutenção do status quo. Diante de fatos consumados, irreversíveis ou de reversão possível, mas comprometedora de outros valores constitucionais, só resta ao julgador – e esse é o seu papel – ponderar os bens jurídicos em conflito e optar pela providência menos gravosa ao sistema de direito, ainda quando ela possa ter como resultado o da manutenção de uma situação originariamente ilegítima. Em casos tais, a eficácia retroativa da sentença de nulidade importaria a reversão de um estado de fato consolidado, muitas vezes, sem culpa do interessado, que sofreria prejuízo desmensurado e desproporcional". [33]

            Os estudos apresentados tentam sempre demonstrar a importância de não criar injustiças e preservar o mínimo de confiança nas relações jurídicas [34], de preservar os efeitos consolidados, e em alguns casos, preservar inclusive a boa-fé jurídica [35].

            Importante observar justamente o caso do número de vereadores, no qual o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 197.917/SP, Relator o Ministro Maurício Corrêa, julgou inconstitucional o parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica nº 226, de 1990, do Município de Mira Estrela/SP, mandando, entretanto, que se respeitasse o mandato dos atuais vereadores. É dizer, emprestou efeito para o futuro à decisão ("DJ" de 07.5.2004). A idéia primordial é de que modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos, o que iniciei dizendo, inclusive sustentando o histórico dessa decisão.

            Passo, nesta ótica, a apreciar o caso em comento. Em primeiro lugar, penso que não se deva invocar o princípio da confiança subjetiva para as empresas rés, no sentido, de que violem a sua boa-fé objetiva.

            As empresas sabiam que estavam em uma questão intrincada, numa luta jurídica que foi trazida ao Poder Judiciário, por parte das empresas rés e resultou daí que a licitação original foi declarada nula, enquanto as demais não estavam regularizadas, necessitando da sua prorrogação. Aplicar o princípio da segurança jurídica, na sua vertente subjetiva, da proteção da confiança, nesses casos, poderá levar a conluios de setores organizados –economicamente fortes - com a própria administração. Não se trata, no caso, de um cidadão desprotegido que tenha acreditado num ato público, mas indubitavelmente de uma longa negociação, na qual certamente as empresas rés puderam influir decisivamente no jogo político.

            Na modulação dos efeitos levo em conta a pauta hermenêutica fornecida pela lei de controle de constitucionalidade, em dois conceitos indeterminados, que são a segurança jurídica e no excepcional interesse social [36]. As empresas realizaram um planejamento, para atender os compromissos com os fornecedores e com os seus empregados e, para cumprir esse desiderato, realizaram investimentos e devem se readequar a uma nova licitação, quando, existe sempre a possibilidade de não saírem vencedoras. É necessário que, após o contrato perdurar por mais de cinco anos, não tendo sido iniciado logo o seu questionamento, as empresas se organizassem para cumprir o disposto na lei municipal.

            Isso significa, além da manutenção das relações já exauridas e consolidadas no tempo, também proporcionar tempo para organizar o futuro e para permitir que a administração do município realize as adequações necessárias para a nova lei.

            Foi precisamente essa a razão determinante no julgamento da ADI-3022 que teve como principal objetivo deferir eficácia para o futuro para que o legislador pudesse dispor adequadamente da matéria. No presente caso, trata-se de permitir que o administrador possa-se organizar adequadamente para cumprir essa decisão.

            Por outro lado, há também um interesse social na manutenção e na continuidade do serviço. Embora a matéria não tenha sido objeto de prova, o serviço, após a implantação do novo sistema, notoriamente melhorou em relação ao sistema antigo e mesmo em relação ao sistema que havia sido implementado. O poder público optou por realizar uma diferenciação de tarifas, como forma de manter atraentes economicamente os serviços, na medida em que há diferenças nas isenções e responsabilidades no sistema de transporte municipal.

            Por tudo isso, duas questões devem ser resolvidas. Os efeitos do contrato devem ser mantidos enquanto o serviço pendurar, até que seja ultimada a licitação. A segunda questão é o prazo para iniciar a licitação: pelas razões acima, fixo o prazo em 6 meses, após a análise da matéria pelo Tribunal Justiça, em recurso ou reexame necessário. Na fixação desse prazo, busca-se equacionar os interesses envolvidos, com o menor custo jurídico. Ademais, da decisão do Tribunal de Justiça não caberá mais recurso com efeito suspensivo.

            Dessa forma, fica resolvido também o pedido de antecipação de tutela formulado pelo MP.

            D – Criação de Novas Linhas:

            No pertinente à eventual criação de novas linhas não vislumbro necessidade do atuar do judiciário, porque não há qualquer elemento de que estejam em estudo novas delegações sem a referida licitação. Não cabe o julgamento em tese de uma determinada situação, mas há necessidade de um perigo concreto, mesmo quando se atua de forma preventiva.

            Do ato de que não foram realizadas licitações anteriormente não se pode inferir que as novas sejam realizadas sem a obediência de licitações.

            Assim, não há interesse de agir, consubstanciado no pedido acima, motivo pelo qual deixo de conhecer o mesmo, sem julgamento de mérito (art. 267, VI, do CPC).

            E – Multa:

            Na forma do art. 11 da Lei da Ação Civil Pública na ação "que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor".

            Assim, para a efetividade das determinações fixo multa diária de R$ 2.000,00 para o caso de descumprimento das determinações fixadas na sentença. A multa ficará a cargo do município que é quem deve realizar as obrigações de fazer aqui determinadas.

            Entendo que esse valor é suficiente e razoável na espécie.

            Deixo de fixar multa como requerido pessoalmente ao prefeito municipal, entendendo que o mesmo pode ser responsabilizado por outras formas, inclusive mais eficazes, como a responsabilidade.

            Diante do exposto, tenho em JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE a presente ação para o fim de:

            a)declarar nulas as permissões concedidas e as que venham a ser concedidas sem licitação para as empresas rés, com efeito futuro, até que seja ultimadas as novas licitações;

            b)determinar que em seis meses após o julgamento da matéria pelo Tribunal de Justiça sejam iniciadas as novas licitações;

            c)determinar que o prazo para que sejam concluídas as licitações, com o início da prestação de serviços, seja de 10 meses a contar do início da licitação;

            d)fixar multa diária ao município, para o caso de descumprimento das determinações acima, no valor de R$ 2.000,00.

            e)Deixo de conhecer o pedido concernente às novas linhas (art. 267, VI, do CPC).

            Condeno os réus ao pagamento das custas. Dispensados os honorários por estes não serem cabíveis ao órgão ministerial, tendo em vista que, por definição legal, art. 23 da Lei 8.906/94, os honorários são destinados tão-somente ao advogado.

            Para nortear o cumprimento da sentença o Município deverá trazer aos autos os documentos do início da licitação, bem como comunicar o seu término.

            Decorrido o prazo para recurso voluntário, proceda-se a remessa em reexame necessário dos autos ao Egrégio Tribunal de Justiça (475, inc. II, do CPC).

            Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

            Guaíba, 24 de abril de 2006.

            Gilberto Schäfer,

            Juiz de Direito

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Ausência de licitação de linhas de ônibus.: Sentença em ação civil pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1149, 24 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16707. Acesso em: 19 abr. 2024.

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