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Quando a exageração na propaganda é crime

12/07/2021 às 13:00
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A malícia verbal na propaganda pode, muita vez, implicar sanção penal, por violação do Código de Defesa do Consumidor. Sentido, pois!

I. A par dos mitômanos[1], que não conhecem outra linguagem senão a da mentira, estão aqueles que não trepidam em exagerar, a qualquer respeito, as qualidades e atributos de suas coisas.

Teor de proceder é esse que, as mais das vezes, ninguém toma ao sério, por sabê-lo fruto de fantasia desordenada, ingênua hipérbole ou mera bazófia.

É da condição humana, com efeito, isto de exagerarem as pessoas as notas positivas de tudo o que possuem: tanto lhes agrada ter e cobiçar o melhor ou o mais raro de uma ordem ou classe!

Não foi, portanto, matéria para estranheza haver certo comerciante, num rasgo de orgulho e vaidade, mandado afixar à porta de seu estabelecimento (de carnes e embutidos), cartaz em que anunciava, à guisa de publicidade, a venda das “melhores linguiças do mundo”. (Os fregueses simplesmente adquiriam o produto, que decerto presumiam superior à craveira mediana, mas nenhuma importância ligavam à existência do termo de comparação, por onde pudessem aferir as excelências da mercadoria!).

As patranhas que, nas Aventuras do Barão de Münchhausen, os garotos de primeira instrução liam outrora, fascinados, parecem havê-los acompanhado pela vida fora!…

 

II. Há casos, porém, em que essa a que pudéramos denominar malícia verbal da propaganda cede o lugar à sanção penal, visto se trata de crime[2].

É desse número a hipótese que versou o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, no acórdão a seguir reproduzido:

 

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Alçada Criminal

Décima Quinta Câmara

Apelação Criminal nº 1.206.637/1

Comarca: Guarujá

Apelante: KCO

Apelado: Ministério Público

Voto nº 2291

Relator

 

–  Pratica estelionato (art. 171, “caput”, do Cód. Penal) o sujeito que vende linhas telefônicas e recebe do comprador de boa fé o preço total da transação, mas não lhas transfere sob o argumento de não as haver disponíveis. É manifesto o dolo (“animus laedendi”) de quem assim procede, pois dá à venda o que não tem.

–  Incorre nas penas do art. 67 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), por delito de propaganda enganosa, aquele que, no intento de vender produtos e prestar serviços, apregoa-lhes, para conciliar clientela, atributos que não possuem ou não respondem à verdade.

 

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Guarujá, condenando-a à pena de 2 anos de reclusão, no regime aberto, além de 25 dias-multa, por infração do art. 171, “caput”, combinado com o art. 29, do Código Penal, e 2 anos de detenção, no regime aberto, por infração dos arts. 67 e 69 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, KCO.

Nas razões de apelação, afirma que a prova acusatória, frágil e insegura, era inidônea para justificar o decreto condenatório.

Requer, destarte, o provimento de seu recurso para ser absolvida, por insuficiência de provas (fl. 364).

A douta Promotoria de Justiça, reexaminando a matéria dos autos, propugnou a confirmação da r. sentença apelada (fls. 368/369).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido e criterioso parecer do Dr. José Albino Zorthea, opina pelo provimento parcial do recurso, a fim de absolver a ré pelo crime do art. 69 do Código do Consumidor (fls. 378/380).

É o relatório.

 

2. O Ministério Público ofereceu denúncia contra a ré porque, no dia 23 de março de 1996, na Avenida Emílio Carlos, na cidade de Guarujá, obrando em concurso e com unidade de intuitos com MAS, obteve para si vantagem ilícita, em prejuízo de Valdemar Perez Dantas, induzindo-o e mantendo em erro, mediante o artifício de vender linha de telefone inexistente.

Consta dos autos que a vítima, atraída pela publicidade, comprou à empresa (…) uma linha telefônica, mediante o pagamento de sinal e mais 4 parcelas.

A quantia de R$ 1.800,00, referente ao pagamento da entrada, foi entregue aos réus no momento da celebração do contrato; as mais parcelas, posteriormente.

A linha telefônica, entretanto, essa não foi jamais instalada.

Apurou-se ainda que os réus promoveram publicidade enganosa e abusiva, uma vez prometiam a instalação de linhas telefônicas, sem condições de cumpri-lo.

Instaurada a persecução criminal, tramitou o processo na forma da lei; ao final, foram condenados pela r. sentença de fls. 343/347.

Inconformada com a decisão condenatória, a ré manifestou recurso para esta colenda Corte de Justiça, na expectativa de ser absolvida.

 

3. A solução do litígio não podia ser outra que a consubstanciada na r. sentença recorrida, pois indiscutivelmente o conjunto probatório evidenciou a responsabilidade criminal da ré.

A vítima, inquirida em Juízo, narrou ter comprado à empresa (…) um telefone em 4 prestações; pagou a importância total de R$ 3.080,00, mas nunca o recebeu.

A prova literal de suas alegações acha-se entranhada nos autos (fls. 10/12).

Pelo mesmo teor o depoimento da testemunha Gilberto Dantas Lima. Confirmou as palavras da vítima e garantiu que, a despeito de haver pago integralmente o preço da linha telefônica, a empresa da ré não procedeu à instalação de seu telefone; tampouco lhe devolveu o dinheiro expendido para a sua aquisição (fl. 72).

A prova oral obtida na fase de instrução do processo revelou, à saciedade, que a ré, proprietária de empresa que anunciava a venda e pronta entrega de linhas telefônicas, induziu em erro a vítima, causando‑lhe vultoso prejuízo econômico.

Foi criminoso, portanto, o seu procedimento, definido e punido pelo art. 171 do Código Penal.

A alegação de que se tratava de matéria que devia ser desatada na esfera cível mostra-se de todo improcedente. É o caso dos autos exemplo de ilícito penal, porquanto a ré, ao prometer a venda das linhas telefônicas, sem as possuísse, atuara maliciosamente, com o dolo de obter lucro mediante fraude.

Que operações comerciais desse quilate configuram estelionato bem o persuadem arestos infinitos de todos os Tribunais do País. Por me não demasiar, faço menção deste apenas:

“Pratica o crime de estelionato o agente que autoriza a celebração de contrato com a vítima, de venda de linha telefônica, como se já estivesse com ela à sua disposição, quando, na verdade, já sabia que, por ser ela inexistente, não tinha condições de transferi-la para o nome da vítima. Evidente, portanto, o escopo de lucro ilícito e não mero negócio frustrado por problemas financeiros surgidos após a sua concretização” (Rev. Tribs., vol. 736, p. 648; rel. Mesquita de Paula).

Comprovada, além de toda a dúvida sensata, a imputação atribuída à ré, era força julgar procedente a denúncia.

À derradeira, importa ressaltar que a ré não se empenhou em restituir o dano à vítima, com que patenteou sua insigne má-fé.

 

4. Outro tanto, o delito de propaganda enganosa (art. 67 da Lei nº 8.078/90), ficou suficientemente caracterizado, visto que, a pôr fé inteira nas palavras da sentença, “as cópias dos panfletos da empresa da ré noticiavam credibilidade total para sua segurança final” (fl. 345).

Mais mentiroso, conforme áspero epigrama, só elogio de epitáfio (“transeat”)!

Não só amplificados, os termos que a ré empregou para qualificar seus serviços eram também mentirosos e armavam ao intuito de ilaquear a boa fé das pessoas.

O pregão que fazia de sua atividade era, portanto, de caráter enganoso.

Vem aqui a talho de foice a lição do provecto e reputado jurista Paulo José da Costa Jr.:

“Ao fazer ou promover a publicidade, que sabe ser enganosa ou abusiva, o agente se conduz iluminado pelo dolo genérico, consistente na vontade de realizar a conduta, consciente dos efeitos que dela irão desencadear-se, em detrimento do consumidor, da paz pública, do meio ambiente” (Crimes contra o Consumidor, 1999, p. 44).

Que o comerciante, com o propósito de conciliar o interesse da clientela, exalte as qualidades de seus produtos ou serviços, bem está; que o faça, porém, por meio de mentira e engodo, não se admite e a própria lei o reprime severamente (art. 67 do Código de Defesa do Consumidor).

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A infração do art. 69 do Código de Defesa do Consumidor (“deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade”), como o ressaltou, com raro aviso, o parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça, não depara no processado elementos probatórios que a configurem; pelo que, é força absolver a ré desta acusação, o que faço com fundamento no art. 386, nº VI, do Código de Processo Penal.

 

5. A pena fixada à ré pelo estelionato (2 anos de reclusão), não sofre modificação alguma: acima do mínimo legal, por amor das inúmeras vítimas que, com dolo intenso, lesou, e pelas graves repercussões sociais do fato na urbe de Guarujá.

Pelo que respeita à pena privativa de liberdade estipulada à ré, por infração do art. 67 do Código de Defesa do Consumidor (propaganda enganosa), é força reduzi-la a 6 meses de detenção, metade do máximo legal cominado ao tipo. Não será de bom exemplo exasperar ao extremo, sem causa que o justifique, a pena prevista para os crimes. “Virtus in medio”!

Ao demais, da data do fato — 23.3.96 (fl. 2) — até à data do recebimento da denúncia pelo ven. acórdão de fls. 381/388 — 30.4.98 — decorreu lapso de tempo superior a 2 anos.

Destarte, fixada em 6 meses, a pena de detenção acha-se prescrita, ao módulo do art. 109, nº VI, do Código Penal.

Assim, quanto ao crime do art. 67 do Código de Defesa do Consumidor, cumpre julgar extinta a punibilidade da ré, pela prescrição da pretensão punitiva estatal.

Em suma: provejo parcialmente o recurso para absolver a ré quanto à infração do art. 69 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e reduzir-lhe a 6 meses de detenção a pena referente ao art. 67 do mencionado estatuto legal; no tocante a este delito, julgo-lhe extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal (art. 107, nº IV, 1a. fig., e 109, nº VI, do Cód. Penal), mantida no mais a r. sentença de Primeiro Grau, máxime a condenação por estelionato e o regime prisional.

 

6. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para os fins que constarão no acórdão.

São Paulo, 14 de julho de 2000

Carlos Biasotti

Relator


Notas

[1] Já entrou em provérbio a notória vocação dos pescadores para a mentira: dizia um deles que era tão grande o peixe que pescara, que somente a sua fotografia pesou 2 kg. Nos ranchos em que se acomodam, é também frequente dar-se com esta inscrição: Aqui se reúnem pescadores e outros mentirosos!

[2] Art. 66 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor):

Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:

Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber enganosa ou abusiva.

Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Quando a exageração na propaganda é crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6585, 12 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/91800. Acesso em: 18 abr. 2024.

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