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Ação declaratória de constitucionalidade em defesa das medidas do racionamento

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01/10/2001 às 00:00
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4. DO SENTIDO E ALCANCE DO PROGRAMA EMERGENCIAL DE REDUÇÃO DO CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA

Ainda no que toca ao complexo fático que ensejou a edição da Medida Provisória em questão, fazem-se necessárias algumas considerações sobre o Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, implementado pelas normas cuja declaração de constitucionalidade ora se requer.

A Medida Provisória n.º 2.152-2, de 2001, foi originariamente editada sob o n.º 2.147, de 15 de maio de 2001, com a finalidade de se dar uma rápida e inadiável resposta normativa à crise de energia em que se encontra o País. Não é sem razão que assim prescreve o art. 1º da Medida Provisória n.º 2.152, de 2001:

"Art. 1º Fica criada e instalada a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica - GCE com o objetivo de propor e implementar medidas de natureza emergencial decorrentes da atual situação hidrológica crítica para compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica de forma a evitar interrupções intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia elétrica."

Em pouco mais de um mês, foram expedidas três medidas provisórias sucessivas a disciplinar a atual situação. Às primeiras normas foram acrescidas outras ou se estabeleceu até mesmo uma nova regulação. Isso se deveu sobretudo à necessidade de uma tomada de decisões rápidas e inadiáveis e à impossibilidade de se iniciar o diálogo sem um plano básico a guiar as discussões. As primeiras decisões foram tomadas, portanto, em condições de incerteza, sem que se tivesse uma visão integral de como se daria o comportamento do consumidor de energia elétrica - problema inexorável e já problematizado pela doutrina sob a rubrica de fatos e prognoses legislativos (vide, a respeito, MENDES, Gilmar Ferreira, "Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial", in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos, 2ª ed., pp. 493. e s.). Algumas das primeiras medidas eram adequadas, mas acabaram por se revelar desnecessárias, em face da extraordinariamente favorável resposta da população brasileira ao Programa. Observou-se que os consumidores passaram a implementar o Programa em suas casas antes mesmo do início da cobrança da tarifa especial, prevista para 4 de junho. A rigor, o fator humano é decisivo e imponderável, sobretudo em razão da opção pelo modelo de autogestão, como se demonstrará abaixo. Em conseqüência, procedeu-se a uma revisão de alguns pontos do plano, como uma resposta ao sucesso da aposta na cidadania.

Assim sendo, instituiu-se o Programa Emergencial de Redução de Consumo de Energia Elétrica firmado em três instrumentos básicos: 1) a fixação de metas de consumo decorrentes da atual situação hidrológica crítica; 2) o pagamento de uma tarifa especial por aqueles que ultrapassarem a respectiva meta e 3) a suspensão do fornecimento de energia elétrica na hipótese de descumprimento reincidente da meta.

Consideremos, de início, os consumidores residenciais.

Para o cálculo da meta de cada consumidor, tomou-se como parâmetro fundamental o consumo verificado nos meses de maio, julho e julho do ano 2000, para se determinar, no art. 14. da Medida Provisória, que os consumidores residenciais cuja média mensal seja superior a 100 kWh deverão observar a meta de 80% (oitenta por cento) da média do consumo mensal verificados naqueles meses, assegurada, em qualquer caso, inocorrência de suspensão de fornecimento de energia elétrica para aqueles que apresentarem consumo mensal inferior a 100 kWh.

O montante de 20% (vinte por cento) estabelecido como meta de redução do consumo de energia elétrica foi extraído do já mencionado Relatório do Operador Nacional do Sistema - ONS (anexo), que assim assevera quanto a este aspecto: "Este montante é considerado como necessário afim de que sejam respeitados os níveis de segurança do final do período seco, previamente estabelecidos, de modo a se assegurar a controlabilidade do sistema" (fl. 27).

Dessa maneira, estabeleceu-se a meta de 80% (oitenta por cento) de consumo, cuja observância implicará uma redução autogerida, em que são preservadas a autonomia e as prioridades individuais. Com efeito, cada consumidor adequará as suas necessidades à execução da meta, elegendo entre forma alternativas de consumo, isto é, optando pelo desligamento de alguns eletrodomésticos, pela utilização de lâmpadas fluorescentes, pela redução do uso do chuveiro e ferro elétricos, dentre outras opções.

Em face da escassez do bem energia elétrica e da conseqüente elevação de seu custo, instituíram-se tarifas especiais para aqueles consumidores que consumirem acima da meta e bônus - a saber, a necessária contrapartida tarifária de estímulo à poupança - para aqueles que reduzirem seu consumo em parcela excedente à poupança determinada pela respectiva meta. Tais medidas serão detalhada e completamente explicitadas em tópico específico.

O terceiro instrumento previsto no Programa é a suspensão do fornecimento energia elétrica, comumente denominado "corte". Trata-se de um mecanismo de redução compulsória do consumo, se inoperante a redução voluntária. Assegura-se, em conseqüência, o cumprimento da meta em benefício de toda a coletividade, já que, sendo a energia elétrica um bem ou recurso comum, se ela faltar, faltará para todos. Logo, aos não-solidários consumidores de energia elétrica reservou-se a suspensão do fornecimento de energia, como instrumento que garanta eficácia da observação da devida meta. Reitere-se que, aos consumidores cujo consumo mensal seja igual ou inferior a 100 kWh, não se aplica a suspensão do fornecimento por inobservância da meta, já que, além de o seu consumo já ser reduzido e afigurar-se pouco expressivo um eventual excesso, não haveria como se lhe exigir uma redução ainda maior.

Consentânea com o princípio da isonomia, o § 5º do art. 15. da Medida Provisória em tela dispõe expressamente que caberá às concessionárias distribuidoras, segundo diretrizes estabelecidas pela GCE, decidir sobre os casos de consumidores residenciais sujeitos a situações excepcionais. Para tanto, já se editou a Resolução nº 05, de 23 de maio de 2001 (cópia anexa), em que se distinguem situações excepcionais tais como a ocorrência de consumo atípico, a existência de consumidores residenciais que dependem de consumo ininterrupto de energia elétrica em decorrência de tratamento de saúde, condomínios residenciais, atendimento a novas cargas, mudanças de domicílio, consumo hospitalar e de entidades de ensino, entre outras. Com isso, pretende-se promover, além da demonstração da legitimidade in abstracto do Programa em exame, a possibilidade de evitar-se a produção, in concreto, de resultados absolutamente desproporcionados em face de circunstâncias peculiares de determinados consumidores.

E aqui sobressai outro aspecto do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, qual seja, a existência de cláusulas delegatórias, a autorizar a expedição, em estrita obediência à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (como se verá abaixo), de regulamentos autorizados, a fim se de permitir respostas a situações não inicialmente definidas quando da elaboração da Medida Provisória, mas ainda enquadradas dentro dos parâmetros por ela previstos e estabelecidos. Ganha-se aqui dinamicidade para ir-se adequando o plano às necessidades e contingências de sua execução, tendo em vista, por exemplo, o sucesso na implementação dos seus objetivos já amplamente divulgados.

Do mesmo modo, definiram-se para os consumidores não-residenciais, nos arts. 16, 17 e 18 da Medida Provisória sob exame, as metas de consumo, a suspensão de fornecimento se inobservada a respectiva meta e ainda formas de elevação do preço de aquisição da energia escassa. Para esse grupo, observou-se a peculiaridade do que o respectivo consumo de energia representa para o consumo total bem como o significado da atividade econômica para a preservação do emprego e da renda. Com isso, preservou-se a eficiência no consumo de energia, buscando sobreonerar as atividades eletrointensivas e minimizando o ônus daquelas cuja relação entre o consumo de energia e a respectiva participação no emprego e na renda afigura-se mais favorável. Assim fazendo, as normas editadas concretizaram a exigência de busca do pleno emprego, de garantia do desenvolvimento nacional e de realização dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa constitucionalmente impostos (respectivamente, arts. 170, VIII; 3º, II, e 1º, IV).

O aspecto singular do Programa para os consumidores não-residenciais reside na circunstância de que o consumo superior às respectivas metas, caso não compensado com saldos acumulados em relação às mesmas metas, será adquirido ao preço do Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE. No MAE, o preço da energia elétrica corresponde ao preço de mercado e, portanto, ao preço que efetivamente reflete e incorpora o custo do déficit de energia elétrica. Esse custo da escassez constitui valor em muito superior à tarifa de 200% aplicada a tão-somente 4% dos consumidores residenciais. Com efeito, os preços no Mercado Atacadista de Energia Elétrica alcançam valores de 300% a 1000% superiores àqueles praticados nos contratos de fornecimento a consumidores residenciais. Se, ao contrário da preservação do consumo residencial levado a efeito pelo Programa, houvesse opção pela alocação puramente econômica ou via mercado da energia elétrica, somente se manteria o fornecimento de energia elétrica àqueles setores que dispusessem de maior disponibilidade financeira para adquiri-la. Assim, parece claro que, no que toca ao consumo elevado de consumidores residenciais, pratica-se ainda - e como é devido - preços administrados e subsidiados, absolutamente inferiores aos reais preços de mercado da energia elétrica e que se afigurariam ainda mais elevados no atual momento de escassez decorrente de situação hidrológica crítica. Tal situação, ao considerar os distintos critérios que devem presidir o fornecimento de energia elétrica para fins residenciais e econômicos, realiza, em ótimo grau, a isonomia - como se verá a seguir.

O Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica consiste, destarte, em uma clara opção pela gestão autônoma e individual de um esforço nacional de redução do consumo de energia elétrica, afirmando-se a subsidiariedade das medidas compulsórias para o fim de assegurar a indispensável redução do consumo tão-somente se inoperante sua promoção voluntária.


5. DA LEGITIMIDADE DO REGIME ESPECIAL DE TARIFAÇÃO: A TARIFA ESPECIAL E O BÔNUS CONSTANTES DO ART. 15. DA MP Nº 2.152-2, DE 2001

De início, haveremos de considerar a natureza jurídica do regime especial de tarifação aplicável aos consumidores residenciais e previsto no art. 15. da Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001, em face da especial atenção que despertou nos julgados já proferidos sobre a matéria.

Determina o art. 15. da Medida Provisória em tela:

"Art. 15. Aplicam-se aos consumidores residenciais, a partir de 4 de junho de 2001, as seguintes tarifas:

I - para a parcela do consumo mensal inferior ou igual a 200 kWh, a tarifa estabelecida em Resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL;

II - para a parcela do consumo mensal superior a 200 kWh e inferior ou igual a 500 kWh, a tarifa estabelecida em Resolução da ANEEL acrescida de cinqüenta por cento do respectivo valor;

III - para a parcela do consumo mensal superior a 500 kWh, a tarifa estabelecida em Resolução da ANEEL acrescida de duzentos por cento do respectivo valor.

§ 1º Aos consumidores residenciais cujo consumo mensal seja inferior à respectiva meta conceder-se-á bônus individual (Bn) calculado da seguinte forma:

I - para o consumo mensal igual ou inferior a 100 kWh, Bn=2(Tn-Tc), onde:

a) Tn corresponde ao valor, calculado sobre a tarifa normal, da respectiva meta de consumo, excluídos impostos, taxas e outros ônus ou cobranças incluídas na conta; e

b) Tc corresponde ao valor tarifado do efetivo consumo do beneficiário, excluídos impostos, taxas e outros ônus ou cobranças incluídas na conta;

II - para o consumo mensal superior a 100 kWh, Bn será igual ao menor valor entre aquele determinado pela alínea "c" deste inciso e o produto de CR por V, sendo:

a) CR=s/S, onde s é a diferença entre a meta fixada na forma do art. 14. e o efetivo consumo mensal do beneficiário, e S é o valor agregado destas diferenças para todos os beneficiários;

b) V igual à soma dos valores faturados em decorrência da aplicação dos percentuais de que tratam os incisos II e III do caput deste artigo e destinados ao pagamento de bônus, deduzidos os recursos destinados a pagar os bônus dos consumidores de que trata o inciso I deste parágrafo;

c) o valor máximo do bônus por kWh inferior ou igual à metade do valor do bônus por kWh recebido pelos consumidores de que trata o inciso I deste parágrafo.

§ 2º O valor do bônus calculado na forma do § 1º não excederá ao da respectiva conta mensal do beneficiário.

§ 3º A GCE poderá alterar as tarifas, os níveis e limites de consumo e a forma do cálculo do bônus de que trata este artigo.

§ 4º Os percentuais de aumento das tarifas a que se referem os incisos II e III do caput não se aplicarão aos consumidores que observarem as respectivas metas de consumo definidas na forma do art. 14.

§ 5º Caberá às concessionárias distribuidoras, segundo diretrizes a serem estabelecidas pela GCE, decidir sobre os casos de consumidores residenciais sujeitos a situações excepcionais.".

Sobre a matéria, cometeram-se múltiplos equívocos decorrentes da incompreensão fundamental do regime especial de tarifação introduzido pela Medida Provisória em questão.

Sustenta-se que a tarifa especial introduzida seria "inadequada" ou não seria "plausível". A isso, acrescenta-se que somente seria possível vislumbrar duas qualificações jurídicas para a tarifa especial: ou seria ela acréscimo de tarifa e possuiria "índole negocial" ou seria ela compulsória e possuiria natureza tributária. Afirma-se ainda que, em qualquer das hipóteses, faltaria à tarifa especial "embasamento legal". Objeta-se que, carecendo sua natureza jurídica de exata definição, afirma-se que seu caráter compulsório ou mesmo sancionatório e sua destinação para a constituição de "dois fundos" (em favor das concessionárias e dos consumidores) haveriam de configurá-la como tributo.

Passemos a considerar tais freqüentes impugnações.

Todas essas suposições constituem, em uma palavra, equívocos grosseiros. Para demonstrá-lo, procederemos a seguir à plena explicitação da natureza jurídica e da legitimidade do regime especial de tarifação introduzido pela Medida Provisória sob consideração.

5.1. Da Natureza Jurídica do Regime Especial de Tarifação e da Alegada Violação da Proibição de Confisco

Alega-se que a fixação de tarifas especiais possuiria natureza tributária, exigindo a edição de lei complementar para a sua disciplina, impondo a observância do princípio da anterioridade e demandando o respeito à proibição de confisco.

Tais impugnações partem do equivocado pressuposto de que a tarifa cobrada pelo fornecimento de energia elétrica possui natureza tributária - que, uma vez desfeito, comprometeria a consistência de todas essas impugnações.

Sobre o conceito de tributo, assevera o ilustre Professor argentino Giuliani Fouronge, in verbis:

"Cremos que ninguém mais põe em dúvida o caráter publicístico do tributo, concebido, genericamente, como uma prestação obrigatória, comumente em dinheiro, exigida pelo estado, em virtude de seu poder de império e que dá lugar a relações jurídicas de direito público (...)

..............................................................................................

Conforme o exposto, elemento primordial do tributo é a coerção por parte do estado, já que é criado pela sua vontade soberana - com prescindência da vontade individual - circunstância que o distingue dos ingressos de tipo patrimonial. Os tributos são prestações obrigatórias e não voluntárias - como reconhece toda a doutrina - constituindo 'Manifestações de vontade exclusiva do estado, visto que o contribuinte só tem deveres e obrigações', segundo expressões da Corte Suprema argentina; conceito mais explicitamente consignado outras vezes. 'Os impostos - foi dito - não nascem de uma relação contratual entre fisco e habitantes, mas trata-se de vinculação de direito público'; acrescentando: 'não existe acordo algum de vontades, entre o estado e os indivíduos sujeitos à sua jurisdição, relativamente ao exercício do poder tributário implicado em suas relações, já que os impostos não são obrigações que emergem dos contratos, mas a sua imposição e força compulsiva de cobrança são atos de governo e de poder público." (Conceitos de Direito Tributário, São Paulo, Edições Lael, 1973, fls.19 e 21)

O Código Tributário Nacional, em seu art. 3º, define tributo como "toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada". Quanto ao caráter compulsório, assevera Hugo de Brito Machado:

"A prestação tributária é obrigatória. Nenhum tributo é pago voluntariamente, mas em face de determinação legal, de imposição do Estado. Não são tributos as prestações de caráter contratual, pois a compulsoriedade constitui sua característica marcante. É da essência do tributo.

É certo que as prestações contratuais também são obrigatórias, mas a obrigatoriedade, neste caso, nasce diretamente do contrato, e só indiretamente deriva da lei. Na prestação tributária a obrigatoriedade nasce diretamente da lei, sem que se interponha qualquer ato de vontade daquele que assume a obrigação." (Curso de Direito Tributário, São Paulo, Malheiros, 14ª ed., 1998, p. 43).

Dito isso, a interpretação da tarifa especial incorre em um erro fundamental, uma vez que não constitui tributo mas sim de espécie de preço público denominada tarifa - pois o serviço encontra-se concedido a terceiros.

Com efeito, leciona Carlos Valder do Nascimento, verbis:

"O preço público possui característica que o faz distinto de taxa. Assim:

a) é uma prestação contratual pecuniária, decorrente da aquisição de um bem, que é alienado por uma entidade pública ou entidade privada, agindo por delegação, autorização, concessão ou permissão. Contratual aí se acha em sentido amplo, porque toda vez que o consumidor adquire um bem pelo qual deve arcar com o pagamento de um preço ou tarifa estará realizando um vínculo contratual, ainda que não o seja por escrito e ainda que adira ao que foi fixado pelo prestador da atividade de venda. É pecuniária a prestação, porque aferida em termos monetários;

b) é prestação facultativa, em decorrência mesmo da contratualidade. A facultatividade está no fato de que o usuário ou adquirente do bem só pagará preço, se, efetivamente, quiser firmar o contrato. É facultativo para o usuário adquirir ou não o bem. Não haverá lei, impondo obrigação desse tipo, porém, mera manifestação de vontade;

c) exigibilidade do pagamento do preço pelo ente estatal ou por empresa privada, na condição de concessionária ou permissionária de serviço público (há quem entenda que ente estatal não pode cobrar preço público, apenas, entes privados autorizados pelo poder público, na manutenção de seu jus imperii);

d) remuneração de aquisição de bem ou de serviço. O preço público é utilizado para pagamento de serviço ou aquisição de bem, seja este produto de caráter industrial ou comercial, pouco importa. A contraprestação é marca indelével do preço público." (Comentários ao Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro, Forense, 1ª ed., 1997, pp. 144-145).

De fato, a tarifa especial fixada na Medida Provisória em comento não é, evidentemente, tributo. Cuida-se tão-somente - tal como a tarifa ordinária - de contraprestação destinada a remunerar as pessoas jurídicas privadas (concessionárias ou permissionárias) que exploram os serviços de energia elétrica. Não se destina, ademais, aos cofres públicos, característica elementar das imposições de caráter tributário.

Sobre o tema, afirmou ainda Cretella Jr.:

"O fato de que tarifas constituem emanação da vontade do Estado não é suficiente para imprimir-lhes natureza tributária. Faltam-lhes, de uma parte, o liame a um serviço público obrigatório, oriundo da soberania do Estado. A contribuição dos particulares é voluntária, no sentido de que a simples disponibilidade do serviço não justifica a imposição do pagamento, fazendo-se mister a utilização pessoal, de outro lado, a fixação das tarifas é materialmente um ato administrativo, usualmente exercido pelo Poder Executivo" (Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Forense, 3ª ed., p. 320).

A admissibilidade de tarifas, desprovidas de caráter tributário, para a remuneração da prestação indireta de serviços públicos viu-se igualmente reconhecida pela doutrina. Sobre o tema, observe-se o que asseverou Sacha Calmon Navarro Coêlho:

"É dizer, o Estado além das atividades econômicas exercíveis em lide concorrencial pode, mediante instrumentalidades, prestar serviços públicos mediante contraprestação ou pgamento de preços ou tarifas pelos usuários. Não fora assim, teria sentido cuidar de imunidade de impostos entre pessoas políticas, suas instrumentalidades, predicando a exclusão daquelas que cobram preços ou tarifas? O art. 175. completa a ordenação da matéria e o parágrafo único dispõe:

'A lei disporá sobre:

I - o regime de empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalizção e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários;

III - política tarifária;

V - a obrigação de manter serviço adequado.'" (Comentários à Constituição de 1988: Sistema Tributário, Rio de Janeiro, Forense, 6ª ed., 1996, p. 57).

Em verdade, o Supremo Tribunal Federal reconhece duas características da tarifa: destinar-se a concessionárias bem como à remuneração do serviços prestados (aí incorporados todos os custos a eles eventualmente referidos, inclusive futuros). Nesse sentido, é expressiva a seguinte manifestação do ilustre Ministro Moreira Alves (em voto vencedor) no Recurso Extraordinário nº 117.315 - RS, in verbis:

"E essa tarifa é o preço público que corresponde à contraprestação remuneratória por parte do usuário de prestação, pela concessionária, desse serviço público facultativo, o que implica dizer que é da essência dessa tarifa - como preço público que é - ter como destinatário o prestador do serviço, que, com ela, não só tem a justa remuneração de seu capital, mas também dispõe de recursos para o melhoramento e a expansão de seus serviços, bem como tem assegurado o equilíbrio econômico e financeiro do contrato.

Se é da essência da tarifa - como preço público que é - ter como destinatário o prestador do serviço, que dela se torna proprietário para os fins aos quais ela visa por força do texto constitucional anteriormente referido e então vigente, quer isso dizer que a sobretarifa, para ser um adicional da tarifa (e, portanto, também preço público), há de ter o mesmo destinatário - o prestador do serviço -, ainda que tenha por fim reforçar apenas uma das parcelas (como é o caso da relativa ao melhoramento e à expansão do serviço) que se levam em conta na fixação de seu valor." (RTJ 132/888).

Tal entendimento viu-se reiterado em nova decisão, prolatada em 4 de março de 1999 e publicada em 17 de dezembro de 2000.

Com efeito, vislumbrou-se, no julgamento do RE nº 209.365-3/SP, pela voz autorizada do Ministro Carlos Velloso, distinção entre serviços públicos essenciais e não essenciais, aplicando-se aos primeiros a cobrança de taxas e aos últimos, porque delegáveis, de tarifas. O voto do Ministro Velloso reproduzia então orientação esposada no RE nº 218.061/SP (DJ de 08.09.2000, p. 00022). Afirmou-se, após se asseverar que a noção de serviços essenciais é de certo modo relativa, porque varia de Estado para Estado e de época (em conformidade com a lição de Jèze citada RE nº 89.876/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ nº 98/238 e com texto resumido e adaptado da palestra do mesmo e eminente Ministro Moreira Alves publicado no "Caderno de Pesquisas Tributárias", vol. XI, co-edição Ed. Resenha Tributária e Centro de Estudos de Extensão Universitária, São Paulo, 1986), naquela ocasião:

"3) Serviços públicos não essenciais e que, não utilizados, disso não resulta dano ou prejuízo para a comunidade ou para o interesse público. Esses serviços são, de regra, delegáveis, vale dizer, podem ser concedidos e podem ser remunerados mediante preço público. Exemplo: o serviço postal, os serviços telefônicos, telegráficos, de distribuição de energia elétrica, de gás, etc." (RE nº 209.365-3/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 17.12.2000).

Assim, de todas as lições acima expostas, parece possível recuperar os seguintes elementos:

  • a) preços públicos ou tarifas não possuem caráter tributário e distinguem-se, de modo absoluto, de taxas;

  • b) preços públicos ou tarifas "remuneram serviços públicos, concedidos ou não (cf. art. 175, III, CF)" (voto do Ministro Sepúlveda Pertence no citado RE nº 209.365-3/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 17.12.2000);

  • c) em havendo concessão de serviços públicos, consideram-se tarifas os valores destinados a remunerar as concessionárias e relativos a quaisquer parcelas do custo do serviço - inclusive parcelas futuras e específicas, tais como investimentos.

Assim, se as tarifas especiais introduzidas pelo art. 15. remunerarem serviços públicos e destinarem-se - tratando-se de concessão - a remunerar as concessionárias, restará inequívoca sua específica natureza, afastando-se o alegado caráter tributário.

No que toca ao primeiro ponto, afigura-se evidente a natureza de serviço público não essencial - portanto, delegáveis por meio de concessão, permissão ou autorização e suscetíveis de remuneração por meio de tarifa - o fornecimento de energia elétrica por concessionárias distribuidoras.

Com efeito, já o afirmou o Supremo Tribunal Federal, pela voz do Ministro Ilmar Galvão, ao sustentar uma tal natureza para todos aqueles serviços públicos previstos no inciso XII do art. 21. da Constituição Federal. Invocando o que assentado no RE nº 89.876/RJ, assentou o Ministro Ilmar Galvão no julgamento do multicitado RE nº 209.365-3/SP, verbis:

"..., visto não se estar diante de serviço público 'ínsito à soberania do Estado', ou prestado 'no interesse da comunidade' (RE n. 89.876-RJ, Min. Moreira Alves). Aliás, nenhum dos serviços relacionados no item XII possui tais características. Não passam de atividades de natureza econômica que, por revestidas, isso sim, de interesse público, a Carta de 88 incumbiu à União, autorizando-a a explorá-las (e não a prestá-las) diretamente ou por via de empresa privada" (RE nº 209.365-3/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 17.12.2000).

Como sabido, encontra-se prevista na alínea "b" do inciso XII do art. 21. da Carta Magna a possibilidade de exploração do serviço público de energia elétrica:

"Art. 21. Compete à União:

..............................................................................................

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

..............................................................................................

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;".

Dito isso, parece evidente a configuração do fornecimento de energia elétrica como serviço público federal e a conseqüente superação do primeiro requisito.

Importa considerar agora a destinação dos recurso arrecadados com a tarifa especial, em atenção à claríssima jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acima mencionada.

A tarifa cobrada pelo fornecimento de energia elétrica, por expressa determinação da Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001, destina-se a remunerar a atividade privada de exploração do fornecimento de energia elétrica. Não se destina de modo algum aos cofres públicos. Para assim concluir, basta a singela leitura do art. 20. da Medida Provisória em exame. Com efeito, estabelece o referido dispositivo a destinação dos recursos decorrentes da aplicação da tarifa especial prevista no art. 15. da mesma Medida Provisória, nos seguinte termos:

"Art. 20. Os valores faturados em decorrência da aplicação dos percentuais de que tratam os incisos II e III do caput do art. 15, deduzidos, se incidentes, os tributos e taxas, serão destinados a:

I - constituir provisão de dois por cento desses valores, para a cobertura dos custos adicionais das concessionárias distribuidoras com a execução das resoluções da GCE;

II - remunerar o bônus previsto no § 1º do art. 15.

§ 1º As concessionárias contabilizarão em conta especial os débitos ou créditos, os valores definidos no caput assim como os custos decorrentes da aplicação das medidas definidas pela GCE, na forma a ser definida pela ANEEL.

§ 2º O saldo da conta especial será compensado integralmente nas tarifas na forma a ser definida pela ANEEL."

Possuem tais recursos, destarte, três destinações: 1) remunerar custos ampliados das concessionárias distribuidoras com a execução das resoluções da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica; 2) redistribuir, de modo isonômico, os custos do fornecimento de energia elétrica sob condições de escassez por meio do financiamento do bônus aos que poupam; 3) compensação em futuras revisões tarifárias. Assim, parece evidente que os recursos serão destinados, integralmente, à remuneração das concessionárias distribuidoras e serão por elas absorvidos. Se tal circunstância é evidente nas destinações referidas nos itens "1" e "3" acima expostos, isso não é menos verdadeiro - embora menos óbvio - no item "2". Com efeito, o financiamento do bônus por meio da tarifa especial não elimina o fato básico de que todos os recursos arrecadados com a tarifa especial destinar-se-ão a remunerar a concessionária distribuidora e jamais serão percebidos em espécie pelos consumidores que pouparem além das metas de consumo.

Em verdade, a bonificação corresponde tão-somente a uma operação contábil que permite, em clara realização do princípio da isonomia, redistribuir custos da remuneração da concessionária distribuidora, atribuindo aos maiores consumidores o maior custo e, dada a necessidade de que extrapolem a meta para que incida a tarifa especial, impondo-se o excesso de custo decorrente da extrapolação da meta exatamente aqueles que a inobservarem. Tal regime especial de tarifação constitui prática tradicional em nossa disciplina jurídica do fornecimento de energia elétrica (tal como a tarifa relativa a consumidores de baixa renda atualmente em vigor) e verificou-se, em especial, nas experiências de racionamento ocorridas na década de 1980 (vide, abaixo, transcrição da Portaria do DNAEE nº 51, de 29 de abril de 1987).

Em momento algum, criou-se qualquer "fundo", ao contrário do que, de modo absolutamente insustentável, sustentam alguns. Não há fundo algum em favor das concessionárias distribuidoras. Os recursos destinam-se exclusivamente a remunerar a contraprestação do serviço oferecido por parte das distribuidoras e são destinados especificamente à distribuidora que presta serviços ao usuário que paga a tarifa especial.

Reafirma-se, ainda uma vez, o caráter de contraprestação da tarifa especial. Tais recursos serão arrecadados por parte das distribuidoras e por elas mantidos para, em primeiro lugar, fazer frente a custos operacionais elevados em decorrência dos instrumentos do racionamento - e, obviamente, os custos operacionais das distribuidoras sempre constituíram parcela importante da definição do valor da tarifa. Assim, não existe nenhum fundo em favor das distribuidoras, mas exatamente um acréscimo de tarifa para fazer frente a seus custos adicionais.

É inegável, de resto, a existência de custos adicionais, como passamos a demonstrar.

De início, basta considerar os denominados custos administrativos do racionamento. Com efeito, a simples adoção dos procedimentos de racionamento eleva os custos das concessionárias distribuidoras, chamadas a obter novas informações, a prestá-las aos consumidores, a desempenhar novas atividades junto a esses e atender a seus reclamos.

O custo da distribuidora aumenta na medida em que precisa adotar procedimentos adicionais e novas rotinas; rever os programas de informática; renovar seus instrumentos de controle de dados; proceder ao cruzamento de dados dos consumidores; ampliar as equipes de leitura, de corte, de ligação, de atendimento; ampliar ou instalar serviços telefônicos de informação ao consumidor (o denominado "call center"); introduzir contabilidade específica e diferenciada para a tarifa especial, seus próprios custos e a concessão de bônus. A isso, acrescente-se que tais custos administrativos do racionamento aumentam de logo, independentemente de cumprimento de meta ou não, isto é, independentemente da efetiva arrecadação de tarifas especiais. Mas não são apenas esses os custos verificados.

Como acima explicitado, a redução de consumo em 20% decorre da necessidade de fazer ao período de estiagem. Nessa medida, a meta define o limite do consumo de energia para além do qual sequer se encontra disponível o bem. A isso, acrescente-se que é fato conhecido da experiência e da teoria econômica que o preço de um bem decorre de sua escassez relativa - isto é, sua escassez em face de sua própria demanda. Mantida essa relação, para a parcela de consumo de energia superior à meta de determinado consumidor, o custo é infinito, porque o bem simplesmente não existe - ou, dito de outro modo, sua escassez é absoluta.

Assim, como não existe energia em nível superior à meta, para o consumidor que vai além da meta não provoque o colapso, a energia por ele consumida deve originar-se da poupança excedente à própria meta realizada por outro consumidor. Como o bem é comum, afigura-se absolutamente legítimo - e mesmo devido - que se adquira ou remunere poupança realizada em nível superior àquela determinada pela própria meta de consumo.

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Quem consome além da própria meta está, em última análise, dissipando energia reservada a outrem. É justo, destarte, que se transfira para o consumidor incapaz de poupar o custo de remunerar o não-consumo ou a compra da poupança de outra pessoa. A remuneração dessa poupança de outra pessoa é realizada pela concessionária distribuidora, que agrega também esse custo adicional aos custos administrativos decorrentes da implantação dos procedimentos e rotinas de racionamento.

Em uma palavra, sempre que alguém consome além da meta, o custo da concessionária distribuidora aumenta, pois, como não existe essa energia excedente, a quantidade excedente precisa ser disponibilizada pela poupança excessiva de outrem e essa poupança deve ser adquirida pela concessionária. Ao adquirir a poupança excedente, a concessionária faz jus àquele que poupa, mas também projeta sobre seus custos enorme oneração que não encontra contrapartida na tarifa regular paga por aquele que consome além da meta. Assim, para fazer frente a tal custo evidentemente acrescido, instituiu-se a tarifa especial prevista nos incisos II e III do art. 15. da Medida Provisória em exame.

Do mesmo modo, para disponibilizar a poupança excedente que faça frente ao descumprimento da meta por determinados consumidores, instituiu-se o bônus. Se o bônus entra como custo na contabilidade da concessionária distribuidora (que é a entidade que efetivamente concede e arca com os custos do bônus), esse custo adicional deve, obviamente, vir a ser reproduzido na tarifa especial. Demonstra-se assim - e uma vez mais - que a tarifa especial destina-se exclusivamente às concessionárias distribuidoras que, ao comprar a poupança de quem consome aquém da própria meta, absorvem custo extraordinário e transcendente ao custo regular e que deve ser, legitimamente, repassado para aqueles que inobservaram a própria meta.

Observe-se, por fim, que a prova definitiva de que os recursos da tarifa especial destinam-se a remunerar a concessionária reside no fato de que o limite para o bônus é o valor da conta mensal do beneficiário (art. 15, § 2º, da Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001), o que demonstra, de modo incontrastável, que a combinação de tarifa especial e bônus constitui mera redistribuição contábil dos custos da concessionária e que os recursos são integralmente por ela incorporados.

Do mesmo modo, não se instituiu fundo algum em favor dos consumidores que promoverem redução de seu consumo para níveis inferiores à respectiva meta. Tais recursos jamais serão destinados aos consumidores - o que resta corroborado pela já mencionada circunstância de que o limite do valor do bônus é o valor total da conta mensal do beneficiário. Tais recursos serão, também aqui, arrecadados e absorvidos pelas distribuidoras.

O que ocorre é que tais recursos continuarão a remunerar o custo do serviço de fornecimento de energia elétrica e observarão agora uma explícita concretização do princípio da isonomia, segundo a qual aqueles que, em condições de escassez de energia elétrica, promoverem um consumo acima do patamar de 200kWh (que corresponde ao consumo residencial médio na Região Sudeste e, portanto, não é um dado arbitrário) haverão de remunerar, de modo mais intenso, o custo total do serviço. Como se trata de um bem finito, escasso e de consumo comum, cuida-se apenas de redistribuir, de modo inequivocamente isonômico, entre os consumidores frugais e os perdulários o custo de remuneração do serviço de fornecimento de energia elétrica.

Cuida-se, portanto e tão-somente, de 1 remunerar o custo do serviço e 2 tais valores destinam-se exclusivamente às distribuidoras, constituindo, por evidente, um mero aumento de tarifa e não uma taxa nos termos dos requisitos acima explicitados e decorrentes da transcrita jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Como se não bastassem os custos administrativos e a necessidade de promover-se a poupança por meio de sua aquisição junto aos consumidores cuja redução de consumo exceda a própria meta, outros custos operam junto às concessionárias. Considerando a aposta fundamental na cidadania em que se funda todo o Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, a ênfase reside na autogestão da observância da própria meta de consumo. Assim, as concessionárias não limitam o fornecimento de consumo, o que permite o excesso sobre a meta.

Ocorre, contudo, que também as concessionárias distribuidoras possuem um limite de energia que lhes é imposto pelos contratos de fornecimento com as concessionárias geradoras. Esses contratos de fornecimento de longo prazo - ditos Contratos Iniciais - possuem um preço fixo para o fornecimento de determinada quantidade de energia especificamente contratada. Caso a concessionária distribuidora venda energia em quantidade superior àquela estabelecida como limite no contrato de fornecimento celebrado com a concessionária geradora, a distribuidora vê-se obrigada a adquirir energia junto ao já mencionado Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE. Como já mencionado, os preços praticados no MAE afiguram-se de 300% a 1000% superiores àqueles praticados nos contratos de fornecimento de energia elétrica.

Ocorre ainda que o Anexo V de tais Contratos Iniciais (contratos-padrão aplicados em todo o País, segundo informações da ANEEL: cópia anexa) determina que, em havendo uma situação hidrológica crítica, autoriza-se a alteração e redução das quotas de energia que as concessionárias geradoras encontram-se obrigadas a fornecer às concessionárias distribuidoras. Nessa medida, também a concessionária distribuidora vê-se obrigada a observar meta ou redução da quantidade de energia a fornecer a seus consumidores. Se os consumidores não observarem a respectiva meta, contudo, a distribuidora venderá mais energia do que aquela de fornecimento obrigatório pela geradora.

Nessas circunstâncias, a distribuidora será obrigada a adquirir energia ao preço praticado no MAE que, como visto, é muito superior à tarifa especial de 200% - razão pela qual essa tarifa incide, uma vez inobservada a meta, sobre toda a energia excedente aos níveis de consumo discriminados nos incisos II e III do art. 15. da Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001. Sob esse aspecto, observe-se ainda que o custo da energia no MAE - sujeita a preços elevadíssimos (o que é potencializado pela escassez) e a disponibilidades incertas - pode atingir a condição de "custo do déficit", que reflete a falta absoluta de energia para atender toda a demanda, implicando, em última análise, o desligamento ou colapso (o denominado "apagão").

Em uma palavra, se o valor de um bem decorre de sua escassez, a escassez absoluta ou a inexistência do bem projetam seu custo ao infinito, isto é, constituem um custo inestimável ou ilimitado. Diante de tais circunstâncias, comprova-se não só a elevação dos custos a que sujeita a concessionária distribuidora, mas também - e sobretudo - o caráter ainda administrado e subsidiado da tarifa especial, que possuirá níveis em muito inferiores ao aumento efetivo do custo das distribuidoras com a aquisição da energia ao preço MAE caso inobservadas as metas de consumo. Essa circunstância explica ainda a razão objetiva e incontornável pela qual, sob condições de escassez de energia elétrica decorrente de situação hidrológica crítica, o consumo, ainda que reduzido, torna-se mais caro do aquele verificado em situações regulares ou de normalidade. Demonstra-se assim a absoluta razoabilidade da tarifa especial introduzida.

Essas considerações demonstram, em definitivo, não só 1 que os valores arrecadados com a tarifa especial destinam-se à remuneração das concessionárias, mas também que 2 tais valores fazem frente a múltiplas circunstâncias que determinam um efetivo aumento do custo dos serviços prestados pelas concessionárias distribuidoras. Por fim, acerca da eventual alegação de que, como não se sabe qual será os efetivos consumos superiores e inferiores à meta, não se pode assegurar que os valores arrecadados com a tarifa especial sejam integralmente consumidos com os custos acrescidos das concessionárias distribuidoras.

Tais dados são presentemente apenas estimados, o que não deslegitima a medida adotada, uma vez que toda a fixação de tarifa pauta-se sempre por dados meramente estimados. Nada obstante, ainda que haja excedentes arrecadados, tais excedentes continuarão destinados a remunerar as concessionárias e vincular-se-ão integral e estritamente à compensação em reajustes ou revisões tarifárias futuros (nos termos do § 2º do art. 20. da Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001). Com isso, produziu-se um efetivo e exato aumento de tarifas, amplamente legitimado pelo ordenamento jurídico em vigor.

Por fim, observe-se que, sem prejuízo da ampla caracterização como tarifa acima exposta, argumento sucessivo ou ancilar permitiria, em nome do princípio da eventualidade, esgotar toadas as possibilidades de compreensão da tarifa especial, explicitando sua condição como tarifa. Para tanto, considere-se a lição magistral de Marçal Justen Filho, que revela exatamente a possibilidade de emprego da tarifa extrafiscal - tal como a presente. Explicita o renomando jurista o sentido de um tal tarifa:

"3) Tarifa 'Extrafiscal'

Outra manifestação anômala é a tarifa cuja fixação seja orientada a produzir modificação do comportamento do usuário, antes do que propiciar a remuneração do serviço. São os casos onde o valor unitário da utilidade ofertada é elevado em função da intensidade do consumo do sujeito. A elevação da tarifa deixa de ser proporcional ao consumo para tornar-se progressiva. Tal se dá no campo de fornecimento de energia elétrica, especialmente. Poderia cogitar-se disso também no tocante ao fornecimento de água. Trata-se de buscar fim específico, consistente em desestimular a intensificação do consumo individual.

Parte-se da constatação de que as utilidades ofertadas são limitadas e que ampliação descontrolada do consumo produziria o colapso do sistema. Ao invés de impor-se limitação individual de consumo (racionamento), adota-se critério indireto, consistente no agravamento da tarifa para quem consome mais intensamente o serviço. Daí a utilização de vocábulo tradicional no campo tributário (extrafiscalidade) em virtude da semelhança da natureza da atividade estatal. Verifica-se o desenvolvimento da chamada função promocional do Direito, onde o Estado não se vale de sanções em sentido tradicional.

Reputa-se válida a adoção de tarifas extrafiscais, destinadas a desincentivar o consumo excessivo do serviço público. Deverão ser observados limites definidos, produzidos pelo princípio da isonomia. Logo, não se admite o agravamento da tarifa quando tal não retratar uma efetiva diferença na realidade. Ademais e especialmente, o agravamento da tarifa não poderá ser proporcionado ao patrimônio do sujeito. Não se admite que o consumo de quantidades equivalentes acarretem tarifas diferentes para sujeitos distintos. Por fim, deverá justificar-se o agravamento da tarifa como via de realização dos fins públicos.

Se houver ampla e ilimitada disponibilidade de oferta de utilidades, não será possível o agravamento da tarifa. Então, deverá apresentar-se a necessidade de reduzir o consumo ou de contê-lo em certos limites para autorizar-se tarifa extrafiscal. Fora de tais hipóteses, prevalece o princípio da modicidade das tarifas, que significa obrigatoriedade de ela ser, em face das circunstâncias, a menor possível." (Concessões de Serviços Públicos, São Paulo, Dialética, 1997, pp. 164-165).

Entre nós, opera exatamente essa legitimação adicional da tarifa especial, pois como alternativa à redução voluntária do consumo - isto é, ao "racionamento" - opera a tarifa especial para os níveis elevados de consumo na hipótese de inobservância da meta fixada para o respectivo consumidor. Uma vez mais, afirma-se o caráter não tributário dessa tarifa extrafiscal.

Demonstrou-se assim que a tarifa especial e o bônus correspondem a um mero regime especial de tarifação, afastando-se seu caráter tributário e, conseqüentemente, as alegações a essa ancilares relativas à necessidade de edição de lei complementar (observando-se aliás que tais elevações de tarifa, como se demonstrará abaixo, sequer se encontram previstas em lei em toda a tradição do direito brasileiro), de observância do princípio da anterioridade e da proibição do confisco.

5.2. Do Caráter Isonômico da Tarifação Especial

Com efeito, a Medida Provisória ora considerada obedeceu fielmente às exigências de isonomia. Buscou-se, com o regime de tarifas diferenciadas, dar tratamento a categorias de consumidores que não poderiam ser igualadas.

Deste modo, no que se refere aos consumidores residenciais, foram estabelecidas três faixas de consumo:

  1. na primeira encontram-se aqueles que realizam consumo mensal inferior ou igual a 200 kWh, que ficarão sujeitos à tarifa ordinária (estabelecida em Resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL);

  2. na segunda encontram-se aqueles que realizam consumo mensal superior a 200 kWh e inferior a 500 kWh, que ficarão sujeitos à tarifa ordinária acrescida de 50% do respectivo valor;

  3. na terceira faixa encontram-se aqueles que realizam consumo mensal superior a 500 kWh, que ficarão sujeitos à tarifa ordinária acrescida de 200% do respectivo valor.

Evidentes, na diferenciação entre os consumidores residenciais, o propósito em onerar com menor intensidade o consumo relativamente reduzido e, em contraposição, a fixação de maior ônus para o consumo relativamente elevado. A alternativa a tal opção seria a sujeição de todos os consumidores residenciais à elevação linear do preço do produto. Isto significaria impor àqueles que têm pouca margem para redução de consumo tratamento idêntico àqueles que, a partir de medidas de racionalização no uso da energia, podem, com menos transtorno, reduzir seu consumo. Note-se, ademais, que - como já ressaltado à exaustão - a tarifa especial não equivale ainda ao preço do mercado, pois esse é em muito superior à tarifa especial de 200% e corresponde ao preço praticado no MAE - Mercado Atacadista de Energia, ao qual não têm acesso os pequenos consumidores de energia.

Na mesma linha, de respeito ao princípio da isonomia, opera a disciplina estabelecida para os consumidores comerciais, industriais e do setor de serviços (art. 16, caput e §§). Esses consumidores - que, comparados aos consumidores residenciais, efetivamente participam com maior intensidade no consumo de energia -, caso não cumpram a meta de consumo de 80% da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, terão de adquirir a parcela do consumo mensal excedente junto às concessionárias distribuidoras ao preço praticado no Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE (caso não ocorra a compensação prevista no § 2º do art. 16).

Cabe lembrar que os preços do MAE são fixados conforme os ditames da oferta e da procura e correspondem, em condições normais, a preços de 300% a 1000% superiores aos preços normalmente contratados. Em condições de escassez, o ágio cobrado no MAE afigurar-se-á obviamente superior. Nada mais razoável, destarte, que o grande consumo comercial de energia elétrica sofra oneração superior ao consumo residencial e que o preço da energia aplicado a tais consumidores corresponda exatamente ao preço de mercado - isto é, àquele praticado no Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE.

Em verdade, as tarifas especiais aplicáveis ao consumo residencial sofreram elevação ainda administrada e amplamente subsidiada, se se tem presente o custo efetivo da escassez determinado pelo preço praticado no Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE.

Ora, o disposto no § 4º, art. 15. da Medida Provisória n.º 2.148-1, de 2001, é de uma clareza solar:

"§ 4º Caberá às concessionárias distribuidoras, segundo diretrizes a serem estabelecidas pela GCE, decidir sobre os casos de consumidores residenciais sujeitos a situações excepcionais." [sem grifos no original]

Ademais, no que toca à fixação das metas tendo-se como referência a média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, dispõe expressamente o art. 14, § 1º da Medida Provisória em questão:

"§ 1º Na impossibilidade de caracterizar-se a efetiva média do consumo mensal referida neste artigo, fica a concessionária autorizada a utilizar qualquer período dentro dos últimos doze meses, observando, sempre que possível, uma média de até três meses."

Em conformidade com os dispositivos acima transcritos, a GCE editou a Resolução n.º 5, de 23 de maio de 2001, que "dispõe sobre diretrizes para atendimento a casos de novas ligações residenciais e de consumidores residenciais sujeitos a situações excepcionais."

Logo, as situações excepcionais estão sim protegidas pela Medida Provisória n.º 2.148-1, de 2001, e expressamente disciplinadas pela referida Resolução da GCE.

A isso, acrescente-se que a configuração de uma ofensa à isonomia não decorre tão-somente da identificação de uma não-identidade. A configuração de uma ofensa à isonomia exige, para além da identificação de uma diferença, a desqualificação das razões normativamente relevantes que poderiam justificar um tratamento diferenciado em favor exatamente da realização efetiva da eqüidade.

Nesse sentido, por exemplo, as Leis que estabelecem disciplina processual específica nos feitos em que figura como parte a Fazenda Pública (reconhecidas como legítimas pelo Supremo Tribunal Federal) afirmaram inequivocamente a possibilidade de identificar-se critério suficientemente relevante para o estabelecimento de um expresso e deliberado tratamento diferenciado da Fazenda Pública em juízo. Nessa medida, conclui-se que a compatibilidade de uma não-identidade com o princípio da isonomia reside na existência de razões suficientes para justificar a necessidade de um tratamento diferenciado dadas as circunstâncias ou os atributos especiais de situações, contextos ou pessoas singulares.

Robert Alexy, em sua prestigiosa e internacionalmente difundida teoria dos direitos fundamentais, oferece uma síntese constitucionalmente adequada da problemática relativa ao princípio da isonomia. Para Alexy, a máxima segundo a qual se deve "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais" (em que se converte a aplicação do princípio da isonomia) dá origem a duas normas: "Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual" (norma de tratamento igual) e "Se há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento desigual" (norma de tratamento desigual) - vide, a respeito, ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 408. Segundo Alexy, a aplicação das normas constitutivas do princípio da isonomia vincula-se ao oferecimento de razões suficientes, aptas a autorizar um tratamento desigual ou mesmo exigi-lo. Assim, a mera identificação de uma não-identidade permitiria apenas a avaliação da medida em que as razões potencialmente justificadoras do tratamento diferenciado poderiam vir a ser consideradas suficientes ou normativamente relevantes para sustentar a compatibilidade de determinada não-identidade com o princípio da isonomia. Com isso, a aplicação do princípio da isonomia converte-se em um discurso prático acerca da eventual existência e suficiência de razões legitimadoras de não-identidades em face do princípio da isonomia.

Essa lição encontra expresso respaldo entre nós. Em verdade, é novamente Marçal Justen Filho que explicita seu cabimento em face do caso específico da política tarifária prevista no inciso III do parágrafo único do art. 175. da Constituição Federal, verbis:

"Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários.

1) Critérios de Fixação das Tarifas

Numa primeira abordagem, poderia imaginar-se que a fixação das tarifas obedeceria a uma estrita avaliação de custo e consumo. Poderia supor-se que a determinação das tarifas far-se-ia pela repartição do custo total do serviço entre os usuários, segundo a dimensão do consumo individual. A questão é mais complexa, merecendo respaldo da regra do art. 13.

A fixação das tarifas não se faz necessariamente por repartição aritmética dos custos entre os usuários. Deve atentar-se para peculiaridades que possam representar variações de custos, identificáveis de modo inquestionável. Assim, por exemplo, o fornecimento de água para certas regiões do Município pode envolver custos muito mais elevados do que para outras. São as hipóteses de custo diferenciado em virtude de características técnicas do serviço para certos setores.

Há outras hipóteses onde a diferenciação deriva de características relacionadas com a atividade ou situação pessoal do usuário. Nessa linha, estabelecem-se, por exemplo, variações conforme a possibilidade ou não de transferência dos efeitos econômicos da tarifa para terceiro. Isso se passa nos casos de consumo do serviço público para efeitos empresariais. O custo da energia elétrica fornecida para uma fábrica é integrado no custo do produto, contrariamente ao que se passa com o custo da energia elétrica consumida para fins residenciais.

Essas diferenciações são admissíveis nos limites do princípio da isonomia, tem como delineado por Celso Antônio Bandeira de Mello. A validade da diferenciação de tarifas dependerá, em primeiro lugar, da existência de uma efetiva diferença no mundo fático entre as situações diferenciadas. Isso significa que não basta a afirmativa da diferença, pois se impõe sua comprovação. Em segundo lugar, o tratamento diferencial deverá ser proporcional e compatível com a diferença. Então, a diferença real não poderá ser mero pretexto para adoção de tratamento discriminatório arbitrariamente eleito. A diferenciação de tarifas deverá retratar, no mundo jurídico, a diferenciação entre as situações concretas atendidas. Por fim, a diferenciação deverá ser compatível com os valores jurídicos consagrados constitucionalmente." (JUSTEN FILHO, Marçal, op. cit., p. 163).

De fato, existem tais razões suficientes e legitimadoras de uma não-identidade.

Na atual conjuntura de crise energética no País, o consumo precisa ser reduzido, sob pena de faltar energia para todos os consumidores. Há, portanto, mais do que razões suficientes para se estabelecer um tratamento diferenciado entre os consumidores desse produto agora escasso. Justifica-se, portanto, que aquele que consome mais haverá que pagar mais pelo mesmo produto. Até porque, sendo a energia elétrica um bem comum, ou todos poupam, ou quem poupar estará beneficiando o perdulário, o não-solidário. Pergunta-se: é isonômico que, em tempos de escassez de energia elétrica, uma pessoa que utilize 1.000 kwh para aquecer a sua piscina pague o mesmo que o indivíduo que usa tão-somente 75 kwh para acender uma única luz no seu cortiço? Obviamente que não, sob pena de, aí sim, infringir-se o princípio da isonomia.

Uma tal orientação já determinou inclusive a adoção no regime regular vigente da denominada Subclasse Residencial Baixa Renda para o fim de promover redistribuição dos custos favorável à viabilização do consumo por parte desta classe de consumidores.

Se tem presente ainda que, tal como asseverado pelo Supremo Tribunal Federal, o "reajuste de tarifas do serviço público é manifestação de uma política tarifária, solução, em cada caso, de um complexo problema de ponderação entre a exigência de ajustar o preço do serviço às situações econômicas concretas do seguimento social dos respectivos usuários ao imperativo de manter a viabilidade econômico-financeira do empreendimento do concessionário (...)" (RE 191.532. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em 27/05/97. RTJ 164, p. 803: esse acórdão é examinado em maior detalhe em tópico posterior), importa considerar exatamente a distribuição sócio-econômica dos níveis de consumo e da conseqüente incidência da tarifa especial. Os dados sobre consumo de energia elétrica no Brasil demonstram que a 65% dos consumidores de energia elétrica no Brasil não será aplicada a tarifa especial estabelecida no art. 15. da Media Provisória. Em relação a 29% do total de consumidores, aplicar-se-á tarifa estabelecida em Resolução da ANEEL acrescida de 50% do valor. E somente em relação a 6% do número total de consumidores a tarifa especial, será aquela estabelecida em Resolução da ANEEL, acrescida de 200%. Com isso, resta evidente o caráter isonômico e a razoabilidade da tarifação especial, que preserva o pequeno consumidor de energia elétrica.

Evidenciada tal assimetria, parece evidente a legitimidade da tarifação especial adotada igualmente em face do princípio da isonomia.

5.3. Do Alegado Caráter Negocial e da Suposta Falta de Embasamento Legal

Inicialmente, é de se ressaltar que tarifa de energia elétrica nunca foi matéria quer de caráter negocial quer de reserva de lei no direito brasileiro. As leis sempre autorizaram genericamente os valores, percentuais, níveis de consumo, que acabavam sendo especificadas por meio de ato secundaríssimos: portarias do Ministério das Minas de Energia e do DNAEE, sem qualquer ato "negocial" entre as distribuidoras de energia elétrica e os respectivos consumidores finais.

Aliás, o direito em vigor já prevê que as tarifas apresentadas pelas concessionárias sejam homologadas pela ANEEL. Isto é: nem mesmo atualmente e antes da introdução do necessário Programa de Redução do Consumo de Energia Elétrica a fixação de tarifas é estabelecida em lei ou negociada com os consumidores finais.

Com efeito, assim prescreve o art. 15. da Lei n.º 9.427, de 26 de dezembro de 1996, que "instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica e dá outras providências":

"Art. 15. Entende-se por serviço pelo preço o regime econômico-financeiro mediante o qual as tarifas máximas do serviço público de energia elétrica são fixadas:

I - no contrato de concessão ou permissão resultante de licitação pública, nos termos da Lei n.º 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;

II - no contrato que prorrogue a concessão existente, nas hipóteses admitidas na Lei n.º 9.074, de 7 de julho de 1995;

III - no contrato de concessão celebrado em decorrência de desestatização, nos casos indicados no art. 27. da Lei n.º 9.074, de 7 de julho de 1995;

IV - em ato específico da ANEEL, que autorize a aplicação de novos valores, resultantes de revisão ou de reajuste, nas condições do respectivo contrato.

§ 1º A manifestação da ANEEL para a autorização exigida no inciso IV deste artigo deverá ocorrer no prazo máximo de trinta dias a contar da apresentação da proposta da concessionária ou permissionária, vedada a formulação de exigências que não se limitem à comprovação dos fatos alegados para a revisão ou reajuste, ou dos índices utilizados.

§ 2º A não manifestação da ANEEL, no prazo indicado, representará a aceitação dos novos valores tarifários apresentados, para sua imediata aplicação."

Dessa forma, as tarifas de energia elétrica são fixadas nos próprios contratos de concessão ou permissão e qualquer novo valor resultante de revisão ou reajuste das mesmas deverá estar previsto em ato específico da ANEEL. Não há, portanto, que se cogitar que tais tarifas haveriam de estar previstas em lei, sob pena de inconstitucionalidade.

Ademais, as próprias medidas de contigenciamento do fornecimento de energia elétrica sempre foram estabelecidas mediante atos secundários. A título de ilustração, especificamente nos casos de racionamento dos anos de 1986/87 (Regiões Sul e Sudeste), o racionamento e a suspensão do fornecimento de energia elétrica foram determinados em Portarias do DNAEE. As Portarias do Ministério das Minas de Energia, à época, afiguram-se meramente autorizativas e carentes de qualquer conteúdo. Senão, vejamos.

"PORTARIA N.º 12, DE 16 DE JANEIRO DE 1986

O DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DE ÁGUAS E ENERGIA ELÉTRICA - DNAEE, no uso de suas atribuições legais e de acordo com as disposições do Decreto n.º 10.563, de 12 de outubro de 1942 e da Portaria MME n.º 046, de 16 de janeiro de 1985, resolve:

Art. 1º - Determinar que os concessionários de serviços públicos de energia elétrica, localizados nos estados da Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul adotem o racionamento de consumo de energia elétrica em suas respectivas áreas de concessão.

Art. 2º - Constituir uma Comissão com o objetivo de coordenar, acompanhar os resultados, orientar e adotar medidas junto aos concessionários de energia elétrica localizados nos referidos estados para o cumprimento das disposições da presente Portaria.

Parágrafo Único - A referida Comissão terá poder de decisão e será presidida pelo Diretor da Divisão de Controle de Serviços de Eletricidade do DNAEE, Engº Benedito Carraro, e será integrada pelos seguintes representantes: [...]

Art. 3º - O racionamento a que se refere o artigo 1º deverá obedecer os seguinte critérios e condições:

a) suspender novas ligações e aumentos de carga, exceto nos casos que forem julgados de força maior pela Comissão;

b) suspender os fornecimentos de energia elétrica para fins ornamentais, recreativos, esportivos, e de propaganda, bem como de quaisquer outros igualmente prescindíveis a juízo da Comissão;

c) reduzir a carga de iluminação pública até níveis aceitáveis de segurança da população;

d) o fornecimento de energia elétrica para as demais utilizações, deverá ser reduzido de tal forma que ocorra uma diminuição de até 20% no consumo global de cada concessionário, de acordo com condições e critérios a serem estabelecidos pela Comissão, no prazo máximo de 05 (cinco) dias, contados a partir da vigência desta Portaria.

Art. 4º - Autorizar os concessionários a suspenderem a fornecimento de energia elétrica aos consumidores incluídos no artigo 3º letra "d" da presente Portaria, que ultrapassarem a quota de consumo que vier a ser fixada pelo concessionário.

Art. 5º - Caberá aos concessionários a manterem os seus respectivos consumidores devidamente orientados e esclarecidos quanto às medidas adotadas a que por eles devam ser comadas visando atender o racionamento ora determinado.

Art. 6º - Para fins de faturamento, às unidades consumidoras atingidas pelas disposições da presente Portaria aplicar-se-ia:

a) para unidades consumidoras do grupo A, cujo fornecimento tenha sido objeto de restrição, a demanda medida deverá ser rateada proporcionalmente ao número de dias do efetivo fornecimento, tomando-se para base de cálculo o período de 30 (trinta) dias;

b) para unidades consumidoras do grupo B, cujo fornecimento tenha sido racionado, o consumo faturável será o verificado por medição.

Art. 8º - Os casos não previstos nesta Portaria serão decididos pela Comissão.

Art. 9º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação."

"PORTARIA N.º 94, DE 27 DE JANEIRO DE 1987

O Ministro de Estado das Minas e Energia, no uso de suas atribuições, de acordo com as disposições do Decreto nº 93.901, de 09 de janeiro de 1987 e, Considerando que os estudos efetuados pelos Grupos Coordenadores para Operação Interligada - CGOI e Comitê Coordenador de Operações Norte-Nordeste - CCON indicam a necessidade de redução de carga, a curto prazo, no sistema interligado das regiões Norte/Nordeste tendo em vista os seguinte motivos:

- baixo nível do principal reservatório da região Nordeste - Usina Sobradinho

- e das afluências que vêm se verificando na bacia do rio São Francisco;

- necessidade de enchimento do reservatório da Usina de Itaparica, a partir de 01 de janeiro de 1988;

- crescimento do mercado de energia elétrica da região acima dos valores previstos, determinar:

I - Que se implante o racionamento preventivo de energia elétrica nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará - área atendida pela subestação de Marabá, da Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A - ELETRONORTE, a partir de 1º de março de 1987, de forma que se atinja a redução de 15% (quinze por cento) do consumo global das áreas sob racionamento.

II - Que o Departamento Nacional de Energia Elétrica - DNAEE, adote as providências necessárias inclusive as que se referem ao estabelecimento de critérios especiais de faturamento, para a implantação do racionamento a que se refere esta Portaria.

III - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação."

Observem-se, igualmente, a Portaria n.º 13, de 27 de janeiro de 1987, que estabelece, dentre outras providências, cotas de redução e restrição do fornecimento de energia elétrica; a Portaria n.º 51, de 29 de abril de 1987 e a Portaria n.º 112, de 30 de julho de 1987, que prevêem, expressamente, a instituição de uma tarifa especial; todas elas Portarias expedidas pelo Diretor-Geral do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica -DNAEE, não existindo, em conseqüência texto legal que discipline de maneira exaustiva tal disciplina.

Vale ainda ressaltar que a referida Portaria n.º 51, de 1987, fixou tarifa especial em valores muito superiores aos da Medida Provisória em questão, estabelecendo como fator de multiplicação para a unidade consumidora 25,0. Ou seja, enquanto a Medida Provisória estabelece os valores de 50% ou 200% para a tarifa especial, aquele ato secundário determinou valores de até 2.500% para a tarifa especial. Vale aqui transcrever a Portaria em questão:

"PORTARIA Nº 51, DE 29 DE ABRIL DE 1987

O DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DE ÁGUAS E ENERGIA ELÉTRICA - DNAEE, do Ministério das Minas e Energia, usando de suas atribuições legais e,

Considerando as disposições do Decreto nº 93.901, de 09 de janeiro de 1987, da Portaria MME nº 094, de 27 de janeiro de 1987, e da Portaria DNAEE nº 013, de 27 de janeiro de 1987;

Considerando as diretrizes da legislação acima mencionada, que determinam a aplicação de tarifas especiais no caso de descumprimento, pelo consumidor, de normas, instruções ou qualquer outra determinação relativa ao racionamento; e

Considerando as sugestões apresentadas pelos Secretários de Estado que atuam na Área de Energia, das Regiões Norte e Nordeste, através do documento emitido em 15 de abril de 1987, resolve:

I - Fixar as tarifas especiais a que se refere a letra "a" do Artigo 5º do Decreto nº 93.901, de 09 de janeiro de 1987, por quilowatt-hora que ultrapassar a quota de consumo estabelecida pelo concessionário de serviços públicos de energia elétrica, com base nos critérios definidos pela Comissão de Coordenação do Racionamento das Regiões Norte/Nordeste - CCR-N/NE, criada pela Portaria DNAEE n 013, de 27 de janeiro de 1987, conforme segue:

1 - Unidade Consumidora do Grupo A:

A tarifa especial será obtida pelo produto do fator de multiplicação, da tabela abaixo pela tarifa de consumo que for aplicável ao respectivo subgrupo:

CONSUMO EXCEDENTE FATOR DE MULTIPLICAÇÃO

À QUOTA (%) CONSUMO EXCEDENTE

Até 5% 4

Acima de 5% e Até 10% 8

Acima de 10% 12

2 - Unidade Consumidora do Grupo B:

A tarifa especial será obtida da seguinte forma:

2.1. Subgrupo B1: Pelo produto do fator de multiplicação, da tabela abaixo, pela tarifa de consumo correspondente ao último bloco em que se situar o valor total do consumo registrado na unidade consumidora.

FAIXA DE CONSUMO REGISTRADO FATOR DE MULTIPLICAÇÃO PARA

NA UNIDADE CONSUMIDORA, EM KWh O CONSUMO EXCEDENTE

Entre 81 e 200 1,2

Entre 201 e 300 1,4

Entre 301 e 500 1,8

Entre 501 e 1.000 2,6

Entre 1.001 e 2.000 4,0

Entre 2.001 e 3.000 7,0

Entre 3.001 e 5.000 13,0

Acima de 5.000 25,0

2.2. Subgrupos B2 e B3: 3 (três) vezes a tarifa aplicável ao respectivo subgrupo.

II - O concessionário de serviços públicos de energia elétrica fica autorizado, observado o disposto no Parágrafo Único do Art. 5º da Portaria DNAEE nº 013, de 27 de janeiro de 1987, a aplicar as tarifas especiais de racionamento, conforme item I desta Portaria, aos fornecimentos efetuados a

partir de 1º de maio de 1987

III - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação."

Portanto, no Brasil a fixação de tarifa para energia elétrica e o estabelecimento de mecanismos para racionamento de energia elétrica sempre foram matéria de regulamentos autorizados, de que são exemplos as Portarias acima transcritas. A legalidade era requerida para tão-somente para estabelecer uma autorização genérica para emissão de normas.

A respeito da admissão da autorização legislativa - e do denominado regulamento autorizado no direito brasileiro - é conclusivo o eminente Ministro Carlos Velloso, fundado em consolidade e tradicional jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal, verbis:

"Já o regulamento delegado ou autorizado (item 5) intra legem, é admitido pelo Direito Constitucional brasileiro, claro, porém, que não podem 'ser elaborados praeter legem, porquanto o seu campo de ação ficou restrito à simples execução de lei'.

Votando no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Aliomar Baleeiro traçou os contornos desse regulamento, exatamente como admitido pelo Direito brasileiro: se a lei fixa exigências taxativas, é exorbitante o regulamento que estabelece outras, como é exorbitante o regulamento que faz exigência que não se contém nas condições exigidas pela lei. Mas, acrescentou o Ministro Baleeiro:

'Meu voto confirmaria o v. acórdão se a Lei 4.862 expressamente autorizasse o regulamento a estabelecer condições outras, além das que ela estatuir. Aí, não seria delegação proibida de atribuições, mas flexibilidade na fixação de standards jurídicos de caráter técnico, a que se refere Stati'.

Esse é, aliás, o tipo de regulamento que a Corte Suprema americana tem permitido, sem embargo de consagrar a Constituição dos EUA de 1787, a separação dos Poderes e estabelecer, expressamente, no seu art. 1º, Sec. I, que 'All legislative powers herein granted shall be vested in a Congress of the United States, which consist of a Senate and House of Representatives' (Todos os poderes legislativos conferidos por esta Constituição serão confiados a um Congresso dos EUA, composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes). É que, como anota Bernard Schwartz, 'segundo a atual teoria americana, o poder Legislativo pode ser conferido ao ramo executivo, desde que a outorga de autoridade seja limitada por determinados padrões'.

Em United States v. Chicago, M., St. P. and. P.R.R., 282 U.S. 311, 324 (1931), a Suprema Corte decidiu que 'o Congresso não pode delegar qualquer parte de seu poder legislativo exceto sob a limitação de um padrão estabelecido'. Acrescenta Schwartz: 'O arbítrio conferido não pode ser tão amplo que se torne impossível discernir os seus limites. Outrossim, precisa haver certa intenção legislativa com a qual se deve harmonizar o exercício do poder delegado,' certo que, 'a menos que o ato de delegação de poderes contenha um padrão - limite ou orientação com respeito ao poder conferido que se possa exercer -, ele será inválido ou nulo'.

Em voto proferido no Tribunal Federal de Recursos, o Ministro Armando Rollemberg, em tema de imposto de renda, expressou a melhor doutrina e manteve decreto regulamentar que mandava excluir as provisões do capital invertido, por isso que, ao assim proceder, o regulamento não contrariou a lei regulamentada, mas apenas explicitou-a. Vale a transcrição do voto, para se verificar como o Ministro soube distinguir a delegação do poder de legislar, que é proibida, 'da autorização para completar os contornos da lei, desenvolvendo-a dentro de órbita circunscrita'

Escreveu o Ministro Rollemberg:

'Examinei, tendo em conta tais princípios, a regra do art. 44. do Decreto 24.239, de 1947, e, sem embargo dos fundamentos do voto vencido e das lúcidas razões do procurador da embargante, não me convenci de que ali houvesse exorbitância na regulamentação da Lei 154, do mesmo ano. Esta, ao fixar o critério para o pagamento do imposto de renda pelas empresas concessionárias de serviço público, utilizou como elemento o capital invertido para a obtenção do lucro, de cujo cômputo o regulamento excluiu as provisões. O que se há de indagar, portanto, é se tal exclusão é contrária à lei, ou se, ao invés disso, estava implícita na norma legal, o que afinal importa em perquirir se as provisões são ou não utilizadas pelas empresas para a obtenção de lucro.

A resposta há de ser buscada no exame da natureza das provisões.

Que são elas afinal? São fundos 'destinados a amparar situações indecisas ou pendentes, que passam de um exercício para outro', di-lo Miranda Valverde (Sociedade por ações, v. 2, n. 676), que 'correspondem à existência de um risco efetivo, de sorte que sua inscrição no balanço corresponde a uma necessidade', afirmam Hamel e Lagarde (Traité de droit commercial, 1954, v. 1, n. 722). Destinam-se a fazer face a perdas e encargos eventuais comprovados, esclarecem Duverger (Finances publiques, 5. ed., p. 533) e Louis Trotabas (Finances publiques, 1964, p. 408).

Ora, se as provisões têm por finalidade acudir perdas e encargos eventuais ou prováveis, as importâncias respectivas hão de estar sempre, senão em caixa, empregadas em títulos de pronta realização e, conseqüentemente, não são investidas no negócio para a obtenção de lucros.

É inafastável, a meu ver, assim, a conclusão de que o regulamento, ao excluir as provisões do capital invertido pelas empresas concessionárias para obtenção de lucro, não alterou a lei e sim explicitou-a, dando à expressão o seu real alcance'.

Esse voto foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 74.589-SP, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque.

Já no AI 51.085 - (AgReg) - GB, Relator o Ministro Barros Monteiro, a Corte Suprema liquidou com o regulamento que, extravasando a legislação regulamentada, extinguiu benefício cuja concessão era prevista em lei.

É que, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, 'o regulamento mais não poderá fazer além de expedir comandos intra legem, pois nem contra, nem extra, nem praeter, nem ultra legem caber-lhe-á introduzir qualquer determinação. Sobretudo, no direito brasileiro - ante os preceptivos reiteradamente citados -, é evidente tal limitação'." (VELLOSO, Carlos Mário da Silva, Temas de Direito Público, Belo Horizonte, Del Rey, 1994, pp. 432-434).

Assim, no direito brasileiro, a fixação de tarifas de energia elétrica constituiu típico e evidente ato regulamentar autorizado expressamente por lei e cujos limites e parâmetros essenciais encontram-se definidos intra legem, o que consagra, para além de qualquer questionamento idôneo, sua ululante constitucionalidade.

Como se não bastasse essa circunstância, antes da Medida Provisória em questão, encontravam-se em vigor o Decreto-lei n.º 4.295, de 13 de maio de 1942, e a Lei Delegada n.º 4, de 26 de setembro de 1962, constando de ambos autorização para a edição de um tal regulamento.

Assim prescreviam os arts. 1º e 2º do Decreto-lei n.º 4.295, de 1942:

"Art. 1º A fim de melhor aproveitar e de aumentar as disponibilidades da energia elétrica no país, caberá ao Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (C.N.A.E.E.) determinar ou propor medidas pertinentes:

I - À utilização mais racional e econômica das correspondentes instalações tendo em vista particularmente:

a) o melhor aproveitamento da energia produzida, mediante mudanças de horários de consumidores ou por seu agrupamento em condições mais favoráveis, bem como o fornecimento a novos consumidores cujas necessidades sejam complementares das dos existentes, e quaisquer outras providências análogas;

b) a redução de consumo, seja pela eliminação das utilizações prescindíveis seja pela adoção de hora especial nas regiões e nas épocas do ano em que se fizer conveniente.

II - Ao acréscimo de capacidade ou ao mais eficiente aparelhamento das mencionadas instalações, pela execução compulsória das modificações ou ampliações, de que trata o decreto-lei n.º 2.059, de 5 de março de 1940, tanto nas instalações a que se refere esse decreto-lei como em quaisquer outras destinadas à produção, transmissão, transformação e distribuição de energia elétrica.

III - Ao estabelecimento compulsório de novas instalações de produção de energia elétrica e das complementares de transmissão, transformação e distribuição, para evitar deficiência nas zonas de operação atribuídas às empresas.

§ 1º Serão determinadas por meio de resolução do C.N.A.E.E.:

a) as medidas constantes do inciso I e suas alíneas, quando envolverem apenas pessoas ou empresas que exploram a indústria da energia elétrica;

b) as modificações de instalações previstas no inciso II deste artigo e no citado decreto-lei n.º 2.059, de 5 de março de 1940.

§ 2º As demais medidas de que trata o presente artigo serão determinadas por decreto do Governo Federal, cujo projeto incumbirá ao C.N.A.E.E..

§ 3º Quando o estabelecimento de novas instalações ou a ampliação ou modificação das existentes tiverem o caráter compulsório e for verificada, para sua execução, a impossibilidade financeira, total ou parcial, por parte da empresa, ficará, a respectiva efetivação condicionada à abertura do crédito necessário cujo montante será indicado pelo C.N.A.E.E.

Art. 2º Enquanto não for possível, em certas zonas, atender a todas as necessidades do consumo de energia elétrica, o fornecimento será racionado segundo a importância das correspondentes finalidades, adotando-se, em cada caso concreto, uma seriação preferencial estabelecida pelo C.N.A.E.E.." [sem grifos no original]

A Lei Delegada n.º 4, de 1962, que "dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo", prevê em seu art. 2º, II que tal intervenção consistirá "na fixação de preços e no contrôle do abastecimento, nestes compreendidos a produção, transporte, armazenamento e comercialização". Para tanto, estabelece no art. 6º quais instrumentos podem ser empregados:

"Art. 6º Para o contrôle do abastecimento de mercadorias ou serviços e fixação de preços, são os órgãos incumbidos da aplicação desta lei, autorizados a:

I - regular e disciplinar, no território nacional a circulação e distribuição dos bens sujeitos ao regime desta lei, podendo, inclusive, proibir a sua movimentação, e ainda estabelecer prioridades para o transporte e armazenamento, sempre que o interêsse público o exigir;

II - regular e disciplinar a produção, distribuição e consumo das matérias-primas, podendo requisitar meios de transporte e armazenamento;

III - tabelar os preços máximos de mercadorias e serviços essenciais em relação aos revendedores;

IV - tabelar os preços máximos e estabelecer condições de venda de mercadorias ou serviços, a fim de impedir lucros excessivos, inclusive diversões públicas populares;

V - estabelecer o racionamento dos serviços essenciais e dos bens mencionados no art. 2º, inciso I, desta lei, em casos de guerra, calamidade ou necessidade pública;

VI - assistir as cooperativas, ligadas à produção ou distribuição de gêneros alimentícios, na obtenção preferencial das mercadorias de que necessitem;

VII - manter estoque de mercadorias;

VIII - superintender e fiscalizar através de agentes federais, em todo o País, a execução das medidas adotadas e os serviços que estabelecer." [sem grifos no original]

Por força do art. 10, § 1º, a "União exercerá as suas atribuições através de ato do Poder Executivo ou por intermédio dos órgãos federais a que atribuir tais poderes." Desse modo, não se exigia qualquer lei para o emprego do racionamento previsto no art. 6º, inciso V retrotranscrito, sendo bastante ato do Poder Executivo ou, mais, provimento de qualquer órgão federal.

Em uma palavra: já havia expressa autorização legal para que o Chefe do Poder Executivo e órgãos da administração pública adotassem medidas para racionamento de energia elétrica. Ressalte-se ainda que tal autorização é bastante genérica e que os atos normativos secundários é que efetivamente implementavam as medidas.

No presente caso, além de a Medida Provisória, consoante a Constituição Federal, ter força de lei, restando, portanto, superada a discussão acerca do princípio da legalidade, ela mesma expressamente autorizou a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica - GCE a editar normas relativas ao Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica e ao Programa Estratégico Emergencial de Energia Elétrica, definir níveis e limites de consumo, a promover a interrupção de consumo e a definir no Programa os regimes especiais de tarifação.

Consta, de resto, da própria Medida Provisória muito mais do que apenas os lineamentos básicos do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica. A Medida Provisória, portanto, muito mais do que fixar os standards jurídicos, conforme exigência da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fixa a própria forma de definição das metas de consumo (arts. 14, 16, 17,18, 19), o cálculo das tarifas especials e do bônus introduzidos (art. 15) e da aquisição ao preço MAE (relativamente ao consumo não-residencial), bem como as hipóteses e critérios de suspensão do fornecimento de energia elétrica (art. 14, §§ 2º e 3º, art. 16, §§ 3º, 4º, art. 18, §§ 1º e 2º, arts. 21. a 23), remanescendo para os atos normativos secundários da GCE tão-somente a definição de prazos, procedimentos, minúcias e formas de aplicação dos expressos e específicos comandos legais.

Desse modo, a alegada ausência de embasamento legal sequer merece vir a ser cogitada.

Ressalte-se que todo esse conjunto de atos primários e secundários que sempre disciplinou a fixação unilateral de tarifas pela Administração Pública afasta, à evidência, o alegado caráter negocial da fixação de tarifa. Não é possível, sequer em hipótese, alegar-se que o contrato de geração, fornecimento distribuição de energia elétrica bem como as relações jurídicas entre consumidores finais e distribuidoras de energia elétrica seriam contratos de natureza privada ou de caráter negocial. Tal alegação, como se demonstrou, vai de encontro a toda a regulamentação da matéria no ordenamento jurídico brasileiro. Caso contrário, seria necessário que fosse revisto e considerado inconstitucional todo o regime de tarifas de energia elétrica ao longo da história do País e sempre sujeito a revisão de tarifas (tal como ora ocorre), sem que alterasse o respectivo contrato.

É impensável crer que a cada tarifa existira e existirá um novo contrato. Mesmo antes da presente alteração da tarifa, alterações análogas já vinham sendo realizadas, mediante resoluções da ANEEL. Esta afirmação mostra-se tão surreal que exigiria que toda a alteração de tarifa viesse precedida da renegociação dos respectivos contratos.

Estabelecida a natureza jurídica da tarifa especial, cabe indagar se a sua consagração na Medida Provisória nº 2.152-2, de 2001, não estaria a ferir qualquer suposto direito adquirido do consumidor a determinada tarifa. Mais, se a Medida Provisória poderia interferir em contratos de natureza privada, de caráter negocial.

Para Cretella Júnior, a instituição de tarifas (e conseqüentemente a sua modificação) é atributo do Poder de Polícia. Neste sentido, não há que se falar que uma alteração de níveis tarifários interferiria indevidamente em contratos de caráter negocial. Assim se manifesta:

"O fato de que as tarifas constituem emanação da vontade do Estado não é suficiente para imprimir-lhes natureza tributária. Faltam-lhes, de uma parte, o liame a um serviço público obrigatório, oriundo da soberania do Estado. A contribuição dos particulares é voluntária, no sentido de que a simples disponibilidade do serviço não justifica a imposição do pagamento, fazendo-se mister a utilização pessoal, de outro lado, a fixação das tarifas é materialmente um ato administrativo, usualmente exercido pelo Poder Executivo.

(...)

A faculdade de estabelecer e regular tarifas é considerada, pela doutrina, como atribuição inerente ao poder de polícia, alicerçando-se no princípio de que o concedente regula todo o serviço público sobre pontos básicos, fixados ou não, desde que não interfiram no direito de propriedade do concessionário que tem proteção constitucional efetiva dentro e fora da lei" (CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 320).

Em 1968, esse Supremo Tribunal, por unanimidade, considerou que:

"Os contratos sobre concessões de serviço público são administrativos, distinguindo-se dos civis pela mutabilidade e pelas 'cláusulas exorbitantes' - o Estado-cliente não deixa de ser o Estado-príncipe" (AG 42.854. Rel. Min Aliomar Baleeiro. Julgado em 07/05/68. Publicado no DJ de 28/06/68).

O Ministro Aliomar Baleeiro, em seu voto vencedor, explicitou a figura da cláusula exorbitante no contrato administrativo:

"Se, no curso do contrato, a União necessitou do que era dela, exerceu um direito que se entende contido nos contratos administrativos, mormente no de concessão, pactos esses que se distinguem dos contratos civis exatamente pela sua 'mutabilidade' e pelas chamadas 'cláusulas exorbitantes', expressas ou implícitas, incompatíves com o Direito Civil.

'Il est em tout cas très remarquable et introduit dans le contrat adminstratif des possibilités d'evolution et de mutabilité qui contrastent indiscutiblement avec la fixité beaucoup plus grand du contrat administratif apparait, au cours de son exécution, comme un système en quelque sorte vivant, c'est à la notion de changement des circonstances que a trait est dû est lié'. (...)

Aliás, em qualquer hipótese, o Estado-contratante não se despe de sua soberania nem de suas atribuições de poder de polícia. Ou, segundo a frase repetida de LONG: 'L'État apparait à l'entrepreneur sous deux aspects différentes: - tantôt prince, tantôt client ... Toujours quelque chose en lui manifeste le prince même qu'il se présente comme client...'" (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro. Idem).

Como bem reparou o Ministro Aliomar Baleeiro, as cláusulas exorbitantes existentes nos contratos administrativos lhes concedem o caráter de mutabilidade não existente nos contratos de Direito Civil. Este caráter permite que, no caso, o Poder Concedente altere, rescinda unilateralmente, fiscalize a execução ou aplique penalidades aos concessionários para além dos termos iniciais do contrato de concessão. Essa mutabilidade existente nos contratos administrativos permite, de outra parte, que seja mantido o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Na expressão de Hely Lopes Meirelles, tal equilíbrio seria a "relação estabelecida inicialmente pelas partes entre os encargos do contratado e a redistribuição da Administração para a justa remuneração do objeto do ajuste" (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 199).

Neste sentido, parece clara a natureza do contrato entre o Poder Concedente e a concessionária: indubitavelmente a de contrato administrativo, desviando-se, portanto, da normativa regendo o contrato civil típico.

O desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos de concessão de serviços públicos tem por principal conseqüência a necessidade de revisão das tarifas. Isto, por si só, já justificaria a alteração de tais tarifas pela Medida Provisória 2.152-2, de 2001.

A Lei 9.427, de 26 de dezembro de 1996, no seu art. 15, II, prescreve que

"Art. 15. Entende-se por serviço pelo preço o regime econômico-financeiro mediante o qual as tarifas máximas do serviço público de energia elétrica são fixadas:

(...)

IV - em ato específico da ANEEL, que autorize a aplicação de novos valores, resultantes de revisão ou de reajuste, nas condições do respectivo contrato".

Este Supremo Tribunal já se manifestou acerca da possibilidade de revisão de tarifa por meio de lei. No Mandado de Segurança nº 17.957, o Tribunal reconheceu que:

"Na concessão de serviço público, como ato complexo, meio-regulamentar, meio contratual, o concedente pode modificar, por lei, o funcionamento do serviço, alterando o regime dos bens públicos envolvidos e até impondo novos ônus ao cessionário, desde que a este assegure o equilíbrio financeiro, para remuneração e amorotização do capital efetivamente investido" (MS 17.957. Rel, Min. Aliomar Baleeiro. Julgado em 6/12/67. RTJ 46, p. 144).

Em tal julgamento, diversos Ministros se manifestaram favoravelmente acerca da tese desenvolvida pelo Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Ao se referir à figura da concessão, assim este se pronunciou:

"Hoje admite-se que não apenas a parte estatutária desse ato complexo, misto, duplo, contrato - e regulamento, possa ser modificado. Também a parte contratual, dado que a empresa tem sempre a garantia da equação financeira.

O que o Governo não pode é tirar-lhe o equilíbrio financeiro, não pode, de maneira nenhuma, privá-la de uma renda pela qual ela possa obter seu lucro, pagar dividendos e juros de seus empréstimos, obter novos empréstimos, amortizá-los dentro do prazo contratual, realizar novos investimentos e reaver, no tempo, o capital efetivamente aplicado. Acredito que no serviço público, por meio de regulamento, lei ou contrato, o concedente pode modificar a estrutura do serviço, alterando o regime dos bens públicos envolvidos e até impondo novos ônus às concessionárias

(...)

(...) durante o prazo de concessão, o legislador federal poderá regular o assunto discricionariamente, mantendo ou retirando a delegação para venda de seus bens confinados à concessionária e dispondo como lhe parecer melhor sobre o destino e administração desses elementos do patrimônio nacional. Poderá rescindir o contrato a qualquer momento e, nesse caso, não deverá mais do que o investimento efetivo ainda não amortizado.

(...)

O Estado não abdica de seu poder regulamentar, mas está no dever de tornar efetiva a equação ou equilíbrio financeiro do concessionário, de sorte que este não seja ludibriado na expectativa de recuperar o capital, remunerá-lo durante a exploração, desde que se conforme com padrões racionais de exploração econômica, aliás, hoje regulados em lei ou regulamentos, e fiscalizados pelas autoridades. (...) Se isso vier a ser negado abusivamente à impetrante, terá ela então meios judiciais de pedir a composição dos prejuízos reais daí resultantes. Nunca, porém, a violenta pretensão de invalidar um decreto-lei, um ato-regra do legislador federal, no campo de sua competência" (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro. Idem, pp. 149-151).

Em sentido similar se manifestou o Ministro Hermes Lima:

"(...) As cláusulas contratuais se modificam ou por mútuo acordo ou por intervenção de Poder Legislativo.

No caso, a autoridade que expediu o Dl. 128, de 31.1.67, podia fazê-lo? Penso que sim.

(...)

(...) São, em última análise as normas do direito público que regem a natureza das concessões porque elas são outorgadas por deliberação da lei, da intervenção do Poder Legislativo. Desde logo, isto mostra que o Poder Público autorizado a contratar assim o faz como fiador do interesse público. De onde, o caráter especial dos contratos de concessão, em que o vínculo jurídico estabelecido não exclui a intervenção do Estado para modificar as próprias condições de contrato" (Voto do Ministro Hermes Lima. Idem, pp. 156-157).

No RE 191.532, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, considerou que o reajuste de tarifas seria manifestação de uma política tarifária. Neste sentido, ficou assentado que:

"O reajuste de tarifas do serviço público é manifestação de uma política tarifária, solução, em cada caso, de um complexo problema de ponderação entre a exigência de ajustar o preço do serviço às situações econômicas concretas do seguimento social dos respectivos usuários ao imperativo de manter a viabilidade econômico-financeira do empreendimento do concessionário (...)" (RE 191.532. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em 27/05/97. RTJ 164, p. 803).

Ora, a Medida Provisória manifesta nada menos que uma opção em termos de política tarifária. Neste sentido, os arts. 20. e 28 da Medida Provisória em comento, além do art. 9º, § 2º da Lei 8.987, vêm justamente corroborar o posicionamento unânime do plenário deste Supremo Tribunal Federal. A instituição de faixas para os consumidores residenciais segue na sua inteireza o dever de proporcionalidade a que se vincula o legislador.

Os arts. 20. e 28 da Media Provisória disciplinam, respectivamente, a destinação dos valores faturados na aplicação dos percentuais pelas faixas de consumo e a eventual e futura necessidade de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. A constituição de provisão para a cobertura de custos adicionais das concessionárias distribuidoras (art. 20, II) e a futura e eventual reconstituição do equilíbrio econômico-financeiro (art. 28), assim, nada mais que se adaptam à natureza essencialmente mutável existente nos contratos administrativos e, especialmente, nos de concessão.

Mesmo sem tais provisões, o ordenamento jurídico brasileiro, como não poderia deixar de ser, reconhece de longa data a tal reconstituição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, como deixa bem explicitado em seu voto no MS 17.957, o Ministro Aliomar Baleeiro. Destarte, o art. 9º, § 2º da Lei 8.987 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos - , de 13 de fevereiro de 1995 dispõe que:

"Art. 9o A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

(...)

§ 2º Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro".

Se se observam as percentagens de níveis de consumo e sua relação com as faixas instituídas pela Media Provisória, vê-se com clareza que a incidência da tarifa especial leva em conta as peculiaridades existentes entre os consumidores de energia elétrica no Brasil. Assim:

Consumo Inicial kWh/mês Distribuição % consumidores

100 29,7

200 35,3

300 18

400 11

500 3,8

600 1,7

700 1,2

[1000] 0,8

[2000] 0,3

[3000] 0,2

Deste gráfico se retira que a 65% dos consumidores de energia elétrica no Brasil não será aplicada a tarifa especial estabelecida no art. 15. da Media Provisória. Em relação a 29% do total de consumidores, aplicar-se-á tarifa estabelecida em Resolução da ANEEL acrescida de 50% do valor. E somente em relação a 6% do número total de consumidores a tarifa especial será aquela estabelecida em Resolução da ANEEL, acrescida de 200%.

A aplicação da tarifa especial, portanto, rende preito ao princípio da proporcionalidade e, mais especificamente, à ponderação que se faz necessária - e que o julgamento supracitado explicitamente se refere - para que se respeite o mencionado princípio. Em outras palavras:

"Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito)" (MENDES, Gilmar Ferreira. A Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, pp. 72).

Portanto, a existência de faixas diversas de consumo de energia elétrica se coaduna a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal.

Neste ponto, parece claro que, se o Poder Concedente pode alterar o contrato, impondo novos ônus à Concessionária, desde que mantido o equilíbrio econômico-financeiro, e se, ao mesmo tempo, a forma de recomposição do equilíbrio nos termos da Lei de Concessões se dá por meio de reajuste ou revisão tarifária, torna-se evidente que o usuário nenhum direito possui a manter vigentes quaisquer níveis tarifários, não cabendo falar, portanto, em direito adquirido a determinada tarifa.

Se não há dúvidas quanto à natureza da relação contratual entre o Poder Concedente e a Concessionária, há tempos a doutrina discute acerca da natureza da relação entre a Concessionária e o Consumidor. Maria Sylvia Zanella de Pietro explicita bem esta querela:

"Uma das características do contrato de concessão de serviço público é a de produzir efeitos trilaterais: embora celebrado apenas entre poder concedente e concessionário, os seus efeitos alcançam terceiros estranhos à celebração do ajuste e que são os usuários do serviço concedido.

Com efeito, quer por força das normas regulamentares da concessão, quer por força das cláusulas contratuais, o usuário assume direitos e obrigações perante as partes. Segundo alguns, ele mantém uma relação contratual com o concessionário, por meio de um contrato de adesão; para outros, uma vez iniciada a execução do serviço, o usuário assume uma situação estatutária, porque ele passa a submeter-se às normas regulamentadoras do serviço, independentemente de qualquer relação contratual; para outros, finalmente, o usuário ora participa da relação por meio de um contrato de adesão, ora participa de uma situação estatutária.

Na realidade, os efeitos do contrato sobre o usuário são também uma decorrência da duplicidade de aspectos da concessão; além do aspecto contratual propriamente dito, a concessão mantém sua natureza regulamentar no que diz respeito à prestação do serviço; sob o ponto de vista dos usuários, sua posição não se altera, seja o serviço prestado diretamente pela Administração Pública, seja prestado indiretamente pelo concessionário, já que as normas regulamentadoras do serviço são as mesmas.

Muito clara e precisa é a lição de Héctor Jorge Escola (1979:70-71): "A situação do usuário, nos serviço públicos concedidos, é idêntica à que lhe cabe quando o serviço é prestado diretamente pela administração: é o beneficiário, é o destinatário do serviço público, e como tal não é parte na relação contratual concedente-concessionário, mas sobre ele repercutem os efeitos do contrato celebrado, que se estendem em relação a ele. De tal modo, a situação do usuário não é senão uma situação jurídica objetiva, que se origina no fato mesmo da utilização do serviço público. São indiferentes - estando sempre no campo dos serviços públicos uti singuli - as modalidades que ofereçam o serviço e as formas adotadas para sua prestação. Só o fato de sua utilização é que dá lugar ao nascimento de relações entre o concessionário e o usuário; só dita utilização gera direitos e impõe obrigações."

Acrescenta o autor que "estas relações jurídicas, estabelecidas entre o concessionário e o usuário, resultantes da utilização potencial ou efetiva do serviço, podem aparecer às vezes com o caráter e o alcance de uma relação contratual, quando as normas legais assim o estabeleçam, quando efetivamente se formaram sob a forma de uma relação dessa classe, ou quando a regulamentação do serviço permite utilizar o mecanismo contratual, e em outras aparecem com o caráter e o alcance de uma relação regulamentar".

Com efeito, em alguns casos é mais nítida a relação contratual entre a empresa concessionária e o usuário, como ocorre nos serviços de telefone; outras vezes, é muito menos nítida, como ocorre com o pagamento de pedágio nas estradas.

O que é importante realçar, no entanto, é precisamente o fato de que o usuário está sujeito aos efeitos da concessão, por ser ele o beneficiário de um serviço público.

Parece evidente, nesta linha, que não existe nem poderia existir um direito do consumidor de energia elétrica a uma determinada tarifa. Como ressaltou Maria Sylvia Zanella de Pietro, "o usuário está sujeito aos efeitos da concessão". E, sendo a tarifa oriunda de uma atividade de polícia por parte do Estado (Poder Concedente), nada mais coerente que, dada a possibilidade deste modificar as condições do contrato administrativo, o usuário do serviço público também fique submetido a estas mudanças. Do contrário, abrir-se-ia a possibilidade - inviável sequer em hipótese - de que as diversas relações entre o usuário e a concessionária fossem modificadas caso a caso, com a agravante de que as novas condições impostas pelo Poder Concedente ao Concessionário fossem respeitadas invariavelmente, levando em consideração, evidentemente, o equilíbrio econômico-financeiro.

O usuário do serviço público é submetido à relação contratual entre o Poder Concedente e a concessionária simplesmente porque, caso contrário, anular-se-ia a característica principal do contrato administrativo, qual seja, a sua mutabilidade. Portanto, não poderia ser reconhecido direito adquirido a uma relação (entre Poder Concedente e Concessionária) indireta que é, por natureza, mutável. Do contrário, advogar-se-ia absurdamente a tese de que as concessionárias teriam um direito adquirido ao regime instituído por determinado contrato. Neste caso, não somente a regulação de todas as atividades administrativas ficariam seriamente comprometidas, como também figuras como a concessão de serviço público não mais poderiam existir, uma vez que engendrariam situações altamente complexas e impassíveis de controle de modo minimamente razoável e satisfatório.

Tanto isto é verdade que, em relação ao já mencionado RE 191.532, onde o Supremo Tribunal Federal reconheceu que "o reajuste de tarifas do serviço público é manifestação de .uma política tarifária", não se pode falar em um direito do usuário a determinada tarifa (e sequer o caráter de adquirido a este direito). Existe, de fato, um política tarifário que depende, exclusivamente, de opções tomadas ou a serem tomadas pelo Estado. Este entendimento é corroborado pela própria Constituição Federal. Em seu art. 175, § 3, utiliza ela o termo "política tarifária", demonstrando claramente que o estabelecimento ou a modificação de tarifas depende de opções políticas do Estado, não havendo que se falar num suposto direito a determinada tarifa. Assim:

"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

(...)

III - política tarifária".

Também já é de longa data a consolidada jurisprudência deste Tribunal acerca da impossibilidade de direito adquirido frente a determinado regime estatuário. Tal jurisprudência baseia-se exatamente no caráter de mutabilidade das relações de direito administrativo que, diferenciando-se das relações de caráter negocial, implicam em relações diferenciadas. Assim se considerou e ainda se considera, mesmo com o advento da Carta de 1988:

"Autarquia. Regime de acesso de servidores. Alterabilidade por conveniência do serviço. Não se verifica ofensa a qualquer texto legal, com o proclamar o acórdão sub-censura o princípio de que o funcionário público não tem direito adquirido à manutenção do regime estatutário vigorante ao tempo de sua investidura" (RE 24.362. Relator Min. Ribeiro da Costa. Julgado em 26/08/54. DJ 02/12/54)

"Funcionário Público. Não há direito adquirido à permanência de uma equiparação de vencimentos de funcionário público. O regime do servidor e o estatutário, passível de modificação pela lei" (RMS 11.165. Rel. Min. Hermes Lima. Julgado em 24/03/65. DJ 22/04/65).

"1. O Estado não firma contrato com seus servidores, mas estabelece, unilateralmente, regime estatutário, sendo-lhe lícito, a qualquer tempo, alterar as condições de serviço e pagamento, desde que o faça por lei e sem discriminações pessoais.

2. A tese de suporte ao pedido não é nova no âmbito desta Corte, que insistentemente tem entendido não caracterizar violação ao direito adquirido, quando lei superveniente cria situação diferente de remuneração, sobretudo no cálculo de adicionais" (RMS 21.587. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julgado em 19/12/97. DJ 11/04/97)

Vê-se, portanto, que não existe propriamente um direito a determinada tarifa. É impossível falar, justamente pela inexistência de um direito a certa tarifa, que a Medida Provisória tenha atingido qualquer direito adquirido.

Por outro lado, se se sabe que a correção da tarifa é o método usual de promoção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos - como demonstram os dispositivos legais já citados -, poder-se-ia alegar que a alternativa à elevação da tarifa seria a indenização, por parte da União, às diversas Concessionárias, dado o rompimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

A adoção de uma tal opção, embora possa, erroneamente, parecer generosa, esconde efeitos mais danosos que a simples elevação da tarifa. Neste caso, o que se faz é apenas trocar a face do cidadão-consumidor de energia elétrica pela do cidadão-contribuinte. Estas duas figuras representam, destarte, nada mais que a dupla face do cidadão que é, ao mesmo tempo, consumidor e contribuinte.

A análise minuciosa demonstra que esta "troca de face" representa, do ponto de vista social, um gravame maior e mais perverso. Os níveis de consumo são diferenciados, enquanto o tesouro paga linearmente, tanto por aqueles que consomem mais do que precisam como os que possuem o consumo aquém do que poderiam. Enquanto a lógica da elevação de tarifa, conforme disposta na Medida Provisória, segue a regra do equilíbrio entre os que gastam muito e aqueles que gastam pouco - adequando-se, assim, ao princípio da proporcionalidade -, a lógica da indenização às Concessionárias é linear, fazendo com que todos, sem distinção, paguem por todos - sejam os perdulários, sejam os poupadores.

Esta lógica de indenização às Concessionárias, portanto, tem por conseqüência a criação de um modelo injusto e desproporcional, porque não considera as peculiaridades do consumo de energia elétrica e é incapaz de distribuir razoavelmente os ônus e o consumo excessivo e em demasia. Impõe-se, destarte, factual e normativamente a elevação tarifária.

Em verdade, o caráter compulsório (e não negocial) do pagamento da tarifa não a transforma em tributo e está sempre presente na fixação de tarifas pela prestação de serviços públicos concedidos a terceiros. Caso assim não fosse, sequer existiriam tarifas públicas e somente haveria tributos a remunerar serviços públicos concecidos. O absurdo da conclusão reforça a precariedade da alegação.

É evidente, destarte, a improcedência da alegação e a incompreensão do regime tarifário pelo Juízo a quo.

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Sobre o autor
Gilmar Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. Ação declaratória de constitucionalidade em defesa das medidas do racionamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. -639, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/noticias/16423. Acesso em: 22 nov. 2024.

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