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O Brasil que não queremos

26/05/2020 às 16:30
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O que se viu naquele indigitado dia foi um total desrespeito às instituições democráticas, às funções exercidas por outros Poderes ou órgãos da Administração Pública e, o mais importante: ao povo brasileiro.

O douto Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, em decisão de 22-05-20, determinou que parte do vídeo da reunião ministerial realizada em 22-04-20 fosse trazida a público.

A atitude daquele douto magistrado, decano da Excelsa Corte (ministro mais antigo do STF), com fundamentação robusta, como de costume, nada mais fez do que pôr em prática preceito constitucional.

A rigor, o Texto Maior, em seu artigo 37, caput, determina que todos os órgãos da Administração Pública são regidos pelo princípio da publicidade.

Ademais, para corroborar a necessidade de publicidade dos atos administrativos, art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal, possibilita a expressão do pensamento, desde que seja identificado o manifestante da opinião (em nosso país o anonimato é constitucionalmente vedado).

Isso quer dizer que a regra, em nosso Estado Democrático de Direito, é a de que os atos praticados por agentes públicos (servidores da Administração Pública ou mandatários eleitos pelo povo) devem ser trazidos ao conhecimento do povo. Em especial, aqueles praticados pelo Chefe do Poder Executivo Central.

A exceção são os atos que envolvam, fundamentalmente, as questões de segurança nacional.

Mas, o assunto tratado na fatídica reunião ministerial não chegou sequer perto de ser classificado como de segurança nacional.

Pelo contrário: em tese, a pauta daquele encontro era o gerenciamento da pandemia causada pelo covid-19 (ao que tudo indica).

Mas, os servidores públicos (aqueles que devem servir o povo - daí o nome de servidor) ali presentes não cumpriram sua missão.

As críticas feitas pela maioria dos participantes daquela reunião voltaram-se contra atos, decisões e competências (constitucionalmente atribuídas) de outros Poderes ou de outros órgãos de nossa República.

Essas manifestações, sejam elas do Exmo. Sr. Presidente da República, sejam de seus Exmos. Ministros, extrapolaram, em muito, o que pode ser admitido como legítima forma de expressão numa democracia.

Os xingamentos proferidos, as palavras usadas, o modo como foram ditos não condizem com a postura do Chefe do Poder Executivo e tampouco com seus Ministros (assessores diretos do Presidente da República).

O que se viu naquele indigitado dia foi um total desrespeito às instituições democráticas, às funções exercidas por outros Poderes ou órgãos da Administração Pública e, o mais importante: ao povo brasileiro.

Povo que vem passando por uma crise financeira, política, social e emocional jamais vista em nosso país.

Isso, ao que tudo indica, sequer foi levado em consideração naquele dia. Aliás, não só naquele dia, mas durante a tentativa de gerenciamento dos efeitos da pandemia.

E falo em tentativa, pois, o que se vê, é uma total falta de comando do alto escalão dos governos central, estaduais e municipais.

O país foi transformado em um grande balão de ensaio em que praticamente todos os que exercem cargos eletivos tomam decisões no afogadilho e, dias depois, voltam atrás sem sequer pensar nas consequências do que decidiram e da revisão daquela decisão.

Infelizmente, passamos por uma crise sem precedentes em nossa história. 

Certamente, as decisões tomadas durante esse período vão ecoar por anos em todos os setores de nossa sociedade.

Mas, é inadmissível que exercentes de cargos públicos ajam da forma que agiram. Já é hora daqueles que ocupam essas posições tomarem consciência da função que possuem e que as decisões tomadas (sejam elas consideradas certas ou erradas) estão acarretando a morte de milhares de pessoas.

E não estou me referindo somente à covid-19. Mas, aos efeitos que ela trouxe ao país.

Há pessoas que não estão infectadas com o vírus, mas estão morrendo de fome. Sim, de fome. Mulheres sendo agredidas em casa, pessoas com depressão, praticando suicídio, batendo em seus filhos e tantas outras mazelas que estão acontecendo.

Eu mesmo estou passando pela experiência mais impactante da minha vida: trabalhar como juiz federal e decidir, a todo instante, o futuro de pessoas que batem à porta do Judiciário para clamarem por ajuda pública.

Nota-se, mesmo que somente diante de palavras escritas nos autos virtuais, o desespero dessas pessoas.

O trabalho da grande maioria de juízes e servidores públicos (para mencionar somente aqueles vinculados ao Poder Judiciário) tem sido diuturno e dedicado.

A responsabilidade que já era grande aumentou. E não há um dia sequer em que aqueles que atuam de forma responsável em suas funções não pensem no próximo.

Nesses últimos meses senti, pessoalmente, a solidariedade daqueles que trabalham à minha volta. E, tenho de confessar, eu mesmo passei a me preocupar ainda mais com aqueles que estão passando por necessidades básicas: falta de comida, de dinheiro, de estrutura, de norte para tomarem as rédeas de suas vidas novamente.

Concluo no sentido de esperar que nossos governantes mudem. Deixem de olhar para os próprios umbigos (e bolsos) e passem a notar que, todas as decisões tomadas, impactam na vida de nosso povo. Ultimamente, infelizmente, esse impacto tem sido negativo.

É chegada a hora de tomarmos consciência de que temos de mudar. Acaso continuemos dessa maneira, o país certamente vai à bancarrota e milhares (quiçá milhões) morrerão por pura incompetência ou impulsividade daqueles que exercem o poder.

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Nesses tempos, o país precisa contar com pessoas calmas, lúcidas, que ouvem a opinião de vários especialistas para, somente depois, manifestarem-se.

Fazer algo sem observar essa regra certamente levará à tomada de decisões errôneas, desvinculadas de nossa realidade e catastrófica para o nosso futuro.

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Sobre o autor
Miguel Florestano Neto

Juiz Federal há 20 anos.Bacharel em Direito e Economia, especialista em Processo Civil e mestre em Direito Constitucional, todos pela PUC/SP. Professor de Direito Penal em cursos de graduação e espeialização.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Miguel Florestano. O Brasil que não queremos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6173, 26 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/noticias/82436. Acesso em: 19 abr. 2024.

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