6. O dolo eventual
Dolo é a vontade de concretizar as características objetivas do tipo. Constitui elemento subjetivo implícito do tipo (STF, Inq. 380, rel. Ministro Marco Aurélio, DJU 18.12.92, p. 24373; STJ, RHC 1.914, DJU 26.4.93, p. 7222; STJ, Recurso de Habeas Corpus 1.248, 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, j. 28.9.92, DJU 26.4.93, p. 7222). Não é simples representação do resultado, o que constitui um acontecimento psicológico. Exige representação e vontade, sendo que esta pressupõe aquela, pois o querer não se movimenta sem a representação do que se deseja. Assim, não basta a representação do resultado, exigindo-se vontade de realizar a conduta e de produzir o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo). Possui, pois, dois elementos:
1º - cognitivo: conhecimento dos elementos objetivos do tipo;
2º - volitivo: vontade de comportamento (CARLOS CREUS, Derecho Penal, Parte Geral, Buenos Aires, Editorial Astrea, 1996, p. 240).
Para a doutrina tradicional, o dolo é normativo, i. e., contém a consciência da antijuridicidade (MAGALHÃES NORONHA, Direito Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 1997, n. 79). Para nós, entretanto, que adotamos a teoria finalista da ação, o dolo é natural: corresponde à simples vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo, não portando a consciência da ilicitude (DAMÁSIO E. DE JESUS, Direito Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 1997, 20ª ed., I:234).
O dolo possui os seguintes elementos:
1º) consciência da conduta e do resultado;
2º) consciência da relação causal objetiva entre a conduta e o resultado;
3º) vontade de realizar a conduta e produzir o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo).
Classifica-se em direto e indireto (determinado e indeterminado).
No dolo direto, o sujeito visa a certo e determinado resultado (Código Penal, art. 18, I, 1ª parte). Por exemplo: o agente desfere golpes de faca na vítima com intenção de matá-la. O dolo se projeta de forma direta no resultado morte. Há dolo indireto quando a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado.
O dolo indireto apresenta duas formas:
dolo alternativo; e
dolo eventual.
Há dolo alternativo quando a vontade do sujeito se dirige a um ou outro resultado. Ex.: o sujeito desfere golpes de faca na vítima com intenção alternativa: ferir ou matar.
Ocorre o dolo eventual, também chamado condicionado, quando o sujeito assume o risco de produzir o evento, i. e., prevê, admite e aceita o risco de produzi-lo (Código Penal, art. 18, I, parte final). Nesse sentido: JTJ, 167:312-313. Ele não o quer, pois se assim fosse haveria dolo direto. Antevê o resultado e age. A vontade não se dirige diretamente ao fim (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele (vontade relacionada indiretamente ao evento). Percebe que é possível causá-lo e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e poder causar o resultado, este se lhe mostra indiferente. Como disse o Ministro VICENTE CERNICCHIARO, "o agente tem previsão do resultado; todavia, sem o desejar, a ele é indiferente, arrostando" a sua ocorrência (Recurso de Habeas Corpus 6.368, 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, j. 12.8.97, v. un., DJU 22.9.97, p. 46.559). No mesmo sentido: JTJ, 167:313; TJSP, RT, 454:362 e 513:393; TACrimSP, JTACrimSP, 81:258 e RT, 582:346.
Sobre o tema, existem várias teorias:
Teoria da representação: para a existência do dolo eventual basta a representação do resultado.
Teoria do sentimento (de MAYER): há dolo eventual quando o sujeito tem sentimento de indiferença para com o bem jurídico.
Teoria da probabilidade ou da verosimilhança (de SAUER): não é suficiente a previsão da possibilidade da ocorrência do evento. É preciso que seja provável, admita-o ou não o autor da conduta (GUILHERMO SAUER, Derecho Penal, Parte Geral, trad. de Juan del Rosal e José Cerezo, Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1995, p. 268).
Teoria do consentimento, também denominada da vontade, da aprovação ou aceitação, de FRANK): para ela, formulada pela doutrina alemã, não basta a representação do evento e a consideração da possibilidade de sua causação, sendo necessário que o sujeito consinta em sua produção. Para essa doutrina, são exigidos dois requisitos: 1º - intelectivo: que o sujeito preveja a possibilidade de produção do resultado em face dos meios utilizados e do fim almejado, não se exigindo consciência da probabilidade; 2º - volitivo: que consinta em sua concretização, reconhecendo e conformando-se com essa possibilidade (PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, Curso de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, Editora Saraiva, 1991, I:83; DIEGO MANUEL LUZÓN PEÑA, Curso de Derecho Penal, Parte Geral, Madri, Editorial Universitas, 1996, I:419).
Desdobra-se em duas teorias:
1ª - teoria hipotética do consentimento: atualmente, quase abandonada, funda-se na previsão da possibilidade do evento, de acordo com a fórmula 1 de Frank ("a previsão do resultado como possível somente constitui dolo quando, antevisto o evento como certo pelo sujeito, não o deteve"). A previsão da possibilidade do resultado deixa de atuar como freio inibitório da conduta.
2ª - teoria positiva do consentimento: com base na fórmula 2 de Frank, entende que no dolo eventual o sujeito não leva em conta a possibilidade do evento previsto, agindo e assumindo o risco de sua produção ("seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei").
Hoje, a teoria do consentimento é prevalente na doutrina e nas legislações estrangeiras (FRANCISCO MUNÕZ CONDE e MERCEDES GARCÍA ARÁN, Derecho Penal, Parte Geral, Valencia, Tirant Lo Branch Ed., 1996, p. 289; MUÑOZ CONDE, Teoria Geral do Delito, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 60; DIEGO MANUEL LUZÓN PEÑA, op. e loc. cits.; EMILIO OCTAVIO DE TOLEDO Y UBIETO e SUSANA HUERTA TOCILDO, Derecho Penal, Parte Geral, Teoría jurídica del delito, Madri, Rafael Castellanos Editor, 1986, p. 129; CÁNDIDO CONDE-PUMPIDO FERREIRO, Contestaciones de Derecho Penal al Programa de Jidicatura, Madri, Editorial Colex, 1996, p. 151).
Nosso Código Penal adotou a teoria positiva do consentimento (JUAREZ TAVARES, Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo, Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Penais da Faculdade de Direito Cândido Mendes, 1972, 6:29; LUIZ RÉGIS PRADO e CÉZAR ROBERTO BITENCOURT, Elementos de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 87).
7. Crime culposo e preterdoloso
Culpa é a abstenção do cuidado objetivo necessário na realização de uma conduta que causa um resultado danoso. São elementos do fato típico culposo:
1º) conduta humana voluntária, de fazer ou não fazer;
2º) inobservância do cuidado objetivo necessário manifestada na imprudência, negligência ou imperícia (Código Penal, art. 18, II);
3º) previsibilidade objetiva (RT, 599:343 e 606:337);
4º) ausência de previsão;
5º) resultado involuntário;
6º) nexo de causalidade (RT, 601:338); e
7º) tipicidade.
O fato se inicia com a realização voluntária de uma conduta de fazer ou não fazer. O agente não pretende praticar um crime nem quer expor interesses jurídicos de terceiros a perigo de dano. Falta, porém, com o dever de diligência exigido pela norma, descumprindo o dever de cuidado no trato das relações sociais (2º elemento). Nesse sentido: RT, 700:383.
Exige-se a previsibilidade objetiva, que significa a possibilidade de antevisão do resultado (do ponto de vista objetivo de um homem comum). Nesse sentido: ACrim 495.163, JTACrimSP, 97:231; STJ, REsp 40.180, 6ª Turma, rel. Ministro Adhemar Maciel, RJ, Porto Alegre, 1996, 224:110 e 112.
Outro elemento é a ausência de previsão. É necessário que o sujeito não tenha previsto o resultado. Se o previu, não estamos no terreno da culpa, mas do dolo (salvo a culpa consciente). O resultado era previsível, mas não foi previsto pelo sujeito. Daí falar-se que a culpa é a imprevisão do previsível.
O quinto elemento é a produção involuntária do resultado. Sem evento não há falar-se em crime culposo.
O último elemento é a tipicidade. Acrescendo a ilicitude temos um crime culposo.
O legislador, algumas vezes, após descrever o crime em sua forma fundamental, acrescenta-lhe um resultado que aumenta abstratamente a pena imposta no preceito sancionador. São os crimes qualificados pelo resultado. Explos.: Código Penal, arts. 127; 129, § 1º, II, § 2º, V, e § 3º; 133, §§ 1º e 2º; 134, §§ 1º e 2º; 135, parágrafo único etc. Esses crimes são punidos, em sua maioria, a título de preterdolo ou preterintenção. Entre nós, crimes qualificados pelo resultado e delitos preterdolosos não são categorias diferentes e autônomas, como acontece em outros países. Na doutrina nacional, salvo exceções de pensamento, todo crime preterintencional é qualificado pelo resultado, embora nem todo delito qualificado pelo resultado seja preterdoloso.
Crime preterdoloso ou preterintencional é aquele em que a conduta produz um resultado mais grave que o pretendido pelo sujeito (JUAN ANTONIO MARTOS NÚÑEZ, La preterintencionalidad, Madri, Revista de Derecho Penal y Criminologia, Universidad Nacional de Educación, 1993, n. 3, p. 557). É a chamada "preterintencionalidade substitutiva". O agente quer um minus e seu comportamento causa um majus, de maneira que se conjugam o dolo na conduta antecedente e a culpa no resultado (conseqüente). Daí falar-se que o crime preterdoloso é um misto de dolo e culpa: dolo no antecedente e culpa no conseqüente.
No crime preterdoloso, não é suficiente a existência de um nexo de causalidade objetiva entre a conduta antecedente (que constitui o primum delictum) e o resultado agravador. Assim, a mera imputatio facti (relação entre a conduta e o resultado - art. 13 do Código Penal), embora necessária, não é suficiente para o processo de adequação típica, uma vez que se exige a imputatio juris (relação de causalidade subjetivo-normativa). É necessário que haja um liame normativo entre o sujeito que pratica o primum delictum e o resultado qualificador. Este só é imputado ao sujeito quando previsível (culpa).
A culpa do delito preterdoloso exige os mesmos elementos do crime culposo: especialmente conduta culposa, descumprimento do cuidado objetivo necessário, previsibilidade do resultado e ausência de previsão.
8. Culpa consciente
A culpa pode ser consciente e inconsciente.
Na culpa inconsciente o resultado não é previsto pelo agente, embora previsível. É a culpa comum, que se manifesta pela imprudência, negligência ou imperícia. Na culpa consciente, também denominada "negligência consciente" e "culpa ex lascivia", o resultado é previsto pelo sujeito, que confia levianamente que não ocorra, que haja uma circunstância impeditiva ou que possa evitá-lo. Por isso, é também chamada culpa com previsão. Esta é elemento do dolo, mas, excepcionalmente, pode integrar a culpa. A exceção está exatamente na culpa consciente. Ex.: numa caçada, o sujeito verifica que um animal se encontra nas proximidades de seu companheiro. Prevê que, atirando na caça e errando o alvo, poderá matá-lo. Confia, porém, em sua pontaria. Atira e mata a vítima. Não responde por homicídio doloso, mas sim por homicídio culposo (Código Penal, art. 121, § 3º). Note-se que o agente previu o resultado, mas levianamente, acreditou que não viria a ocorrer.
9. Culpa consciente e dolo eventual: diferenciação
No dolo eventual o agente tolera a produção do resultado, o evento lhe é indiferente, tanto faz que ocorra ou não, acomoda-se. Ele assume o risco de produzi-lo. Na culpa consciente ou com previsão, ao contrário, o sujeito não quer o resultado, não assume o risco de produzi-lo e nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é representado (previsto), porém confia sinceramente em sua não-ocorrência (SALVATORE PROSDOCIMI, Dolus eventualis, Milão, Giuffrè, 1993, p. 9). No sentido do texto: TJSP, RT, 548:300 e 589:317; TACrimSP, JTACrimSP, 82:374; ACrim 22.911, RT, 429:426; TFR, RCrim 990, DJU 28 ago. 1986, p. 15005; TARJ, ACrim 15.957, RF, 287:363.
10. A hipótese dos autos: responsabilidade penal a título de dolo eventual
Os acusados agiram com dolo eventual e não com preterdolo.
Nos termos do art. 18, I, parte final, do Código Penal, age com dolo eventual quem "assume o risco" de produzir o resultado. A fórmula é imprecisa e não indica, exatamente, o conceito pretendido pelo legislador, não esclarecendo o assunto (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, Lições de Direito Penal, A nova Parte Geral, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1985, 8ª ed., p. 178, n. 150; JUAREZ TAVARES, artigo cit., p. 28). Na verdade, o tipo subjetivo quer dizer que o sujeito prevê o resultado como possível e aceita ou consente em sua ocorrência. Não basta, pois, a simples representação do evento (teoria da representação). Exige-se que seja alcançado pela vontade. Mas não de forma direta, como no dolo determinado, e sim de maneira indireta, tolerando-o, anuindo à sua superveniência, consentindo em sua produção (teoria do consentimento), sendo-lhe indiferente. Ao prever como possível a realização do evento, ensina PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, o agente "não se detém. Age, mesmo à custa de produzir o evento previsto como possível" (op. e loc. cits.). Apesar de não querer o evento como razão de sua ação, dizia MAGALHÃES NORONHA, "o prevê e não obstante age, aceitando sua realização" (Do crime culposo, São Paulo, Edição Saraiva, 1974, p. 117, n. 21). Como consignamos, é a chamada "teoria positiva do consentimento", adotada pelo nosso Código Penal.
E como se manifesta essa anuência à produção do resultado?
Não se exige consentimento explícito, formal, sacramental, concreto e atual. Como ensinava WELZEL, não é necessária uma consciência reflexiva em relação às circunstâncias, sendo suficiente uma "co-consciência" não reflexiva, "uma consciência de pensamento material e não de pensamento expresso" (Derecho Penal Aleman, trad. de Juan Bustos Ramírez e Sérgio Yáñez Pérez, Santiago do Chile, Editorial Jurídica de Chile, 1992, p. 78). Se o sujeito mentaliza o evento e pensa "para mim é indiferente que ocorra, tanto faz, dane-se a vítima, pouco me importa que morra", não é necessário socorrer-se da forma eventual. Se essa atitude subjetiva passa pela mente do sujeito durante a realização da conduta, trata-se de dolo direto, uma vez que a previsão e o acrescido consentimento concreto, claro e atual, não se tratando de simples indiferença ao bem jurídico, equivalem ao querer direto. O consentimento que o tipo requer não é o manifestado formalmente, o imaginado explicitamente, o "meditado", "pensado cuidadosamente". Não se exige fórmula psíquica ostensiva, como se o sujeito pensasse "consinto", "conformo-me com a produção do resultado". Nenhuma justiça conseguiria condenar alguém por dolo eventual se exigisse confissão cabal de que o sujeito psíquica e claramente consentiu na produção do evento; que, em determinado momento anterior à ação deteve-se para meditar cuidadosamente sobre suas opções de comportamento, aderindo ao resultado. Jamais foi visto no banco dos réus alguém que confessasse ao juiz: "no momento da conduta eu pensei que a vítima poderia morrer, mas, mesmo assim, continuei a agir". A consciência profana da ilicitude, na teoria finalista da ação, não faz parte do dolo, que é natural.
Cuida-se da "indiferença do agente em relação ao resultado" (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, op. e loc. cits.), que revela não ter a previsão de sua possível produção impedido a ação, evitando a travessia do Rubicon, na expressão de NÉLSON HUNGRIA. Não obstante passar o evento pela mente do sujeito, ainda assim continua a agir. Como diz ASSIS TOLEDO, "é como se pensasse: vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado" (Princípios básicos de Direito Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 1982, p. 96, n. 46). Nessa forma de dolo, ensina LUIZ LUISI, "o agente se propõe determinado fim" (no caso, pôr fogo na vítima), "e na representação dos meios a serem usados, bem como na forma de operá-los, prevê a possibilidade de ocorrerem determinadas conseqüências. Quando o agente, apesar de prever essas conseqüências como possíveis - e embora não as deseje - tolera, consente, aprova ou anui na efetivação das mesmas, não desistindo de orientar sua ação no sentido escolhido e querido para atingir o fim visado, consciente da possibilidade das conseqüências de tal opção, o dolo, com relação às conseqüências previstas como possíveis, é eventual" (O tipo penal e a teoria finalista da ação, Porto Alegre, A Nação Editora, 1979, p. 74). O sujeito não recusa, tanto que continua agindo, e por isso, tacitamente, aceita, de antemão, "qualquer dos resultados possíveis" (JOSÉ MARIA RODRIGUEZ DEVESA e ALFONSO SERRANO GOMES, Derecho Penal Español, Parte Geral, Madri, Dykinson Editor, 18ª ed., 1995, p. 468), "conformando-se" com a sua ocorrência, na expressão de JESCHECK (Tratado de Derecho Penal, trad. de José Luis Manzanares Samaniego, Granada, Comares Editorial, 1993, p. 269).
A sentença reconhece que os acusados sabiam "perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado" (fls. ). Que efeitos possíveis e prováveis seriam esses? Somente queimaduras? Lesões corporais? Certamente, não. Qualquer pessoa comum neles incluiria a morte. E eles também, jovens retratados nos autos como estudantes inteligentes, estudiosos e espertos. Não obstante, não recuaram no propósito de queimar a vítima. E nisso reside a aceitação da possibilidade da ocorrência do evento. Na palavra de EDUARDO CORREIA, "o agente, com efeito, representando o resultado como conseqüência de sua atividade e não renunciando a ela, pode dizer-se que o aceita, e revela, igualmente, falta de repugnância pela realização consciente de fatos que representam um dano ou perigo de dano que o Direito reprova. Mostra, da mesma forma, que sobrepõe a satisfação dos sentimentos ou interesses próprios à produção daquele dano ou perigo de dano" (Direito Criminal, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, p. 377). No caso, os réus não renunciaram à realização da "censurável" e "selvagem diversão", "reprovável brincadeira", "ignóbil" e "irresponsável conduta", "ato impensado", segundo expressões da sentença, "podendo dizer-se", na esteira do pensamento de EDUARDO CORREIA, "que aceitaram" o resultado fatal, "sobrepondo a satisfação" de seus sentimentos e interesses de diversão à possível causação da morte da vítima. A aceitação do resultado está implícita no atuar, diz SANTIAGO MIR PUIG, nos casos em que o agente tem consciência do perigo e dos riscos da ação, não se resignando à sua realização (Derecho Penal, Parte Geral, Barcelona, PPU, 1995, p. 265). E revelaram, da mesma forma, "falta de repugnância pela realização consciente" de um fato dos mais macabros que os olhos humanos podem ver: a queima de um homem vivo. Ajusta-se à lição de RAFAEL DÍAZ ROCA: "há dolo eventual quando o sujeito representa o resultado como possível sem que a circunstância de o mesmo vir a produzir-se impeça de prosseguir realizando a ação delitiva, já que a concretização do resultado ilícito lhe é indiferente em face do objetivo que o levou a agir" (Derecho Penal General, Madri, Tecnos Edit., 1996, p. 115). A intenção era pôr fogo no suposto mendigo: a previsão de eventuais resultados danosos não os deteve. Eram-lhes, por isso, indiferentes. Se pesassem em suas consciências, não teriam prosseguido.
A doutrina exige que o autor tenha "conhecimento dos efeitos práticos" dos meios empregados (EDUARDO CORREIA, op. cit., p. 374; JOSÉ DE FARIA COSTA, Tentativa e dolo eventual, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra intitulado Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia (1984), Coimbra, Almedina Editora, 1995, p. 40, nota 64). No caso em tela, - repita-se - os acusados, conforme reconhece a sentença, "sabiam dos perigos de mexer com fogo"; "sabiam que o fogo queima, ainda mais álcool combustível, líquido altamente inflamável"; "sabiam que iriam ferir a vítima"; sabiam "perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado" (fls.). Foram subjetivamente além do exigido pela lei, que se contenta com a "possibilidade" de produção do evento, não requerendo sua "probabilidade". Se sabiam das "possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado", como até a sentença considera, inclusive "sabiam que iriam ferir a vítima", sabiam também que podiam matá-la, um dos efeitos possíveis do "incêndio humano".
Note-se que a sentença menciona "conseqüências prováveis" no plural, em consonância com a teoria do dolo eventual. Com efeito. Na mente do sujeito, quando se propõe a realizar um comportamento arriscado, não se depara somente um efeito, mas vários. JOSÉ DE FARIA COSTA, analisando esse fenômeno psíquico, ensina que "um dos pontos nevrálgicos do dolo eventual reside na projeção da possibilidade de virem a ocorrer, em qualquer circunstância, dois ou mais resultados" (op. cit., p. 28). E isso aconteceu no caso dos autos, uma vez que os acusados, segundo seus depoimentos, pensaram até na reação da vítima como uma das conseqüências menores do fato, deixando o mais jovem entre eles longe do sujeito passivo (fls.). E ainda assim, não obstante conscientes das possíveis conseqüências, prosseguiram na premeditada conduta. Não se detiveram em face do perigo possível e até mesmo provável do dano maior. E tiveram tempo para isso. A respeitável sentença considera: "Acrescento que a reprovabilidade da conduta mais se avulta quando estreme de dúvidas que os acusados tiveram muitas e variadas oportunidades de desistir da selvagem diversão" (fls.).
Como diz JOHANNES WESSELS, há dolo eventual quanto o autor não se tenha deixado dissuadir da execução do fato pela proximidade da ocorrência do resultado e sua conduta justifique a afirmação de que ele, por causa do fim pretendido, se tenha conformado com o risco da realização do tipo do que renunciando a prática da ação (Direito Penal, Parte Geral, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1976, p. 53). Essa "conformação", explica GÜNTER STRATENWERTH, ocorre quando o autor, tendo duas opções de conduta, prosseguir na realização do comportamento perigoso ou desistir, prefere a primeira alternativa (Derecho Penal, trad. de Glays Romero, Caracas-Madri, Edersa, 1982, p. 111).
No caso dos autos, os autores não se deixaram dissuadir da execução do fato (incendiar a vítima) pela possibilidade, e até mesmo probabilidade, deles conhecidas de acordo com a decisão, de causar danos pessoais à vítima, entre os quais inclui-se a morte, justificando a assertiva de que eles, por causa do fim pretendido (pôr fogo na vítima a título de brincadeira), conformaram-se com o risco do trágico fim ao invés de desistir da realização da conduta.
Como deve proceder o juiz na investigação do dolo eventual?
Apreciando as circunstâncias do fato concreto e não perquirindo a mente do autor. Como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento. Na lição de PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, os elementos do dolo eventual "não podem ser extraídos da mente do autor, mas deduzidos das circunstâncias do fato" (Comentários ao Código Penal, Parte Geral, São Paulo, Editora Saraiva, 1986, I:174, n. 1). Não era outro o ensinamento de NÉLSON HUNGRIA: "Como reconhecer-se a voluntas ad necem? Desde que não é possível pesquisá-lo no ´foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente, se traduz, de regra, no seu ato" (Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1955, V:49, n. 9). Elementos e circunstâncias que MUÑOZ CONDE denomina "indicadores objetivos" de uma "decisão contra o bem jurídico" (Derecho Penal, em co-autoria com MERCEDES GARCÍA ARÁN, op. cit., p. 290).
Incluem-se, entre os indicadores objetivos, quatro de capital importância:
1º - risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (no caso, a vida);
2º - poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação;
3º - meios de execução empregados; e
4º - desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico (MUÑOZ CONDE e MERCEDES GARCÍA ARÁN, op. e loc. cits.).
Como diz MARÍA LUIZA MAQUEDA ABREU, o dolo eventual contém sempre o risco da produção de um resultado (La relación ´dolo de peligro´ - ´dolo (eventual) de lesión´, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madri, Centro de Publicaciones, 1995, tomo 48, fasc. I, p. 434). Consciente do risco resultante da conduta, apresenta-se ao autor a opção de comportamento diverso. Prefere, porém, sem respeito à objetividade jurídica a ser exposta a perigo de dano, realizar a ação pretendida. Como diz JOSÉ DE FARIA COSTA, a ordem jurídica não só quer que o sujeito não tenha uma atitude de repúdio e de negação "para com os valores que a norma penal cristaliza como também não quer que ele assuma uma posição de indiferença" (op. cit., p. 31).
Na hipótese, concordes com a idéia de incendiar a vítima, procuraram um posto de gasolina. Conversaram com o frentista, afirmando que havia um veículo parado por falta de combustível. Apanharam dois recipientes de plástico sujos. Lavaram-nos e os encheram com dois litros de álcool combustível, altamente inflamável. Mas não agiram em seguida. Rodaram pela cidade com seu automóvel por quase duas horas, certamente esperando que o local onde se encontrava a vítima ficasse deserto, sem testemunhas, propício para o fato. Acercaram-se do lugar. Esconderam o veículo. Atravessaram a avenida. Aproximaram-se da vítima em silêncio. Repartiram os palitos de fósforo. Um deles derramou líquido no corpo da vítima. Riscaram fósforos e lhe atearam fogo. E fugiram com o automóvel em alta velocidade para esconder-se em suas residências. Esse comportamento, certamente, é altamente revelador da ausência de qualquer freio inibitório em relação ao fim visado (incendiar a vítima por brincadeira) e de consciente desprezo para com a vida e a incolumidade física do semelhante, indígena ou mendigo. Como disse a sentença, "um ser humano não é coisa, seja índio ou mendigo".
Os acusados podiam agir de modo diferente, tanto que a sentença lhes reconheceu a "culpabilidade". Tinham "poder de evitação", i.e., condições de optar por conduta diversa. Rodaram com o veículo pela cidade, como ficou consignado, durante quase duas horas. Podiam ter desistido da ação. Não existia, na expressão de GÜNTHER JAKOBS, "dificuldade de evitação" da conduta incriminada (Derecho Penal, Parte Geral, trad. de Joaquin Cuello Contreras e José Luiz Serrano Gonzales Murillo, Madri, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, 1995, p. 326).
E quanto ao meio empregado?
De acordo com citação da sentença, "queimadura" (por fogo) "não mata". Ora, se assim fosse, não haveria razão para existir a figura típica do homicídio qualificado pelo "fogo" (Código Penal, art. 121, § 2º, III, 2ª fig.). Além disso, "as queimaduras extensas", ainda que superficiais, "podem determinar o evento", sendo incluídas entre as "lesões mortais", segundo a doutrina (FLAMÍNEO FÁVERO, Medicina Legal, Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Villa Rica Editora, 12ª ed., 1991, ps. 252 e 255; ERNESTINO LOPES DA SILVA JÚNIOR, Manual de Medicina Legal, São Paulo, Escola de Polícia de São Paulo, 2ª ed., 1959, p. 26). Quanto à extensão, explica ODON RAMOS MARANHÃO, "é de se notar que, no adulto, se 50% da área corpórea foram atingidos, mesmo com lesão de primeiro grau, há possibilidade de morte entre 6 e 16 horas" (Curso Básico de Medicina Legal, São Paulo, Malheiros Editores, 1997, ps. 309 e 310). No caso em tela, queimaram-se 95% do corpo da vítima, só restando ilesos o couro cabeludo e as plantas dos pés (laudo de fls.).
Como fundamento, a decisão afirmou que, tendo dois litros de álcool, os acusados somente jogaram um na vítima. Era o suficiente. Se o sujeito tem dois projéteis no revólver e, antes de disparar um, joga fora o outro, não se pode dizer que não a quis matar.
O álcool (assim como a gasolina) é altamente inflamável. A jurisprudência espanhola, apreciando a existência de dolo eventual em caso de emprego de combustível inflamável, já entendeu pela presença de crime doloso com dolo eventual, "respondendo o sujeito pelas conseqüências", assentando que a experiência comum indica que o "fogo, uma vez iniciado, por intermédio de um meio de potência adequada, pode fugir ao controle e vontade do agente, que eventualmente aceita e responde pelos seus efeitos" (Actualidad Penal, Revista de Derecho Penal, Madri, La Ley Actualidad Ed., 1996, 2:745). O meio empregado pelos réus apresentava "potencialidade lesiva", na expressão da sentença.
Mede-se a quantidade de álcool pela extensão do dano pessoal. Os acusados não lançaram na vítima um simples cálice de álcool, destes de vender pinga em bar, o que justificaria um crime de lesão corporal qualificada pelo resultado. Foi grande a quantidade de álcool que ensopou Galdino, tanto que lhe queimou quase todo o corpo, sobrando ilesos somente 5%.
LUÍS JIMÉNEZ DE ASÚA dizia, com muita propriedade, que, para se saber se um delito é doloso ou preterintencional, analisando a presença ou falta de dolo quanto à morte, "a justiça só tem um recurso: examinar o meio que o sujeito empregou" (Princípios de Derecho Penal, La ley y el delito, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1962, ps. 385/6). Os acusados, para "brincar" com a vítima, podiam ter escolhido meios menos potencialmente lesivos, embora ainda ilícitos: fogo em folha de jornal, lançamento de óleo, tinta, produto ou material fétido, água gelada ou suja etc.
A afobação e o desespero com que se houveram em seguida ao fato não desnatura o dolo. Não podia ser diferente. A visão de uma tocha humana é um fato objetivo dantesco. Aliada ao aspecto anímico do autor do fato, causa mesmo alteração emotiva. E a emoção, ainda mais quando manifestada depois da conduta, não exclui o delito (Código Penal, art. 28, I).
Afirma a sentença que a ausência de indiferença, caracterizadora de dolo eventual, decorre do caráter dos acusados e de seus depoimentos prestados imediatamente após o fato (fls.). A presença do dolo eventual, entretanto, como ensina a doutrina, não pode ser extraída do caráter do agente. Caso contrário, estaria restaurado o "Direito Penal do autor", "de caráter" ou o "pelo modo de vida" (EMILIO OCTAVIO DE TOLEDO Y OBIETO e SUSANA HUERTA TOCILDO, op. cit., p. 132). Como diz EDUARDO CORREIA, o sujeito não é censurado ou não censurado "por ter uma certa personalidade, mas sim por ter ou não tomado posição em face da representação do resultado possível" (op. cit., p. 383).
Como ficou assinalado, entendemos que os acusados agiram com dolo eventual. A sentença desclassificatória não fala em crime culposo como entidade autônoma, com culpa consciente ou inconsciente. Considera a presença do preterdolo. Ocorre que neste, conforme ensina RAFAEL DÍAZ ROCA, "há a representação de um resultado menor como seguro e o que ocorre é que se produz outro de maior gravidade e, naquele (dolo eventual), o resultado" "é conseqüência indeclinável da ação do sujeito" (op. cit., p. 116). No caso em tela, como ficou consignado, não houve por parte dos réus somente "a representação de um resultado menor", uma vez que, de acordo com a própria sentença, "tinham consciência das conseqüências" (no plural) da ação, entre elas não podendo faltar o resultado maior, a morte da vítima.
No crime preterintencional, lecionam CARLOS GANZENMÜLLER, JOSÉ FRANCISCO ESCUDERO e JOAQUÍN FRIGOLA, há incongruência entre o "aspecto objetivo do resultado e o subjetivo do propósito" (Homicidio y asesinato, Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1996, ps. 71/2). A preterintencionalidade, afirma JUAN ANTONIO MARTOS NUÑEZ, supõe uma desproporção entre a intenção e o resultado (op. cit., p. 561). No caso do processo, entretanto, não há essa incongruência, encontrando-se a morte da vítima na mesma linha harmônica do propósito: queimá-la. A "brincadeira", segundo alegaram os acusados, é simples motivo, incapaz de descaracterizar o dolo.
Nos termos da sentença, afastado o crime de homicídio culposo, restavam "somente o homicídio com dolo eventual e o crime de lesões corporais seguidas de morte, denominado ´preterdoloso´, em que há dolo quanto à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio" (fls. ). A seguir, a decisão passou a distinguir dolo eventual de culpa consciente, dela constando: "na culpa consciente o agente não quer o resultado e nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só acontece por erro de cálculo ou por erro na execução".
A sentença reconheceu haver crime de lesão corporal seguida de morte. Trata-se de crime complexo, composto de lesão corporal dolosa e homicídio culposo. Há dois crimes, reunidos num terceiro, que adquire autonomia típica. Verifica-se, pois, que a decisão considerou existir, quanto à morte, homicídio culposo, absorvido pela entidade complexa. E como fez a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, afastando aquele, conclui-se: reputou a presença de lesão corporal seguida de morte com culpa consciente. Realmente, a sentença repudiou a culpa inconsciente, rechaçando o homicídio culposo. Restou, pois, a consciente como circunstância normativa do resultado agravador. Quer dizer, julgou ter sido praticado um crime preterintencional com culpa consciente quanto à circunstância qualificadora (morte). A hipótese é possível, tendo sido mencionada por NÉLSON HUNGRIA ao apreciar o art. 129, § 3º, do Código Penal (lesão corporal seguida de morte), no que tange à previsibilidade ou imprevisão do evento qualificador, obviamente referindo-se à culpa consciente: "é de notar-se que a imprevisão, excludente do dolo, é equiparada à previsão do resultado como improvável ou impossível, ou com a esperança de que o resultado não sobrevenha" (op. cit., V:356, 2º parágrafo).
Pois bem. A culpa, ainda que integrante do tipo qualificado e preterintencional, guarda os elementos do crime culposo, entre eles, na forma consciente, a "inobservância do cuidado objetivo necessário", a "previsão do resultado" e a "confiança que não ocorra" (ou a presença de circunstância potencialmente impeditiva de sua superveniência).
Resta difícil afirmar-se, na hipótese, que os acusados simplesmente deixaram de "observar o cuidado objetivo necessário" nas relações do trato social. Ora, colocaram fogo na vítima! Os casos de culpa consciente são aqueles em que o comportamento inicial é normalmente lícito, como no exemplo clássico da caçada. Aqui sim, pode-se falar em infringência do dever de diligência. Veja-se, a propósito, CÁNDIDO CONDE-PUMPIDO FERREIRO, ligando os casos de culpa consciente à inobservância da obligatio ad diligentiam (op. cit., p. 151).
Se a sentença entendeu haver, quanto ao resultado morte, culpa consciente, implicitamente reconheceu que os acusados agiram com "previsão do resultado", um de seus elementos. Significa: previram o resultado morte. E isso está de acordo com sua fundamentação, tendo em vista ter afirmado que tinham consciência das conseqüências possíveis e prováveis da conduta. Ora, se puseram fogo na vítima, em tal quantidade de álcool combustível que se queimaram 95% de seu corpo, a previsão do resultado se inclina na direção do dolo eventual, não da culpa.
A consideração de que houve lesão corporal qualificada pela morte com culpa consciente é de difícil compreensão. Com efeito. Essa aceitação leva a que os acusados:
1º - agiram com dolo de dano quanto às lesões corporais (queimaduras);
2º - previram o resultado morte.
Ora, se agiram com dolo de lesão corporal, tinham a previsão do resultado e lançaram na vítima tal quantidade de álcool que causou a queima de 95% de seu corpo, é muito difícil afirmar-se que não agiram pelo menos com dolo eventual.
Repita-se: na culpa consciente devem estar presentes, dentre outros requisitos comuns:
1º - vontade dirigida a um comportamento que nada tem com a produção do resultado ocorrido. Ex.: atirar no animal que se encontra na mesma linha da vítima (na hipótese da caçada);
2º - crença sincera de que o evento não ocorra em face de sua habilidade ou interferência de circunstância impeditiva, ou excesso de confiança. O sujeito, segundo CARLOS CREUS, propõe-se a interpor uma habilidade que o evite (excelência na direção de veículo; perícia no tiro etc.) ou acredita na existência de uma circunstância impeditiva (que não haverá transeuntes na rua altas horas da madrugada, crendo que ninguém atravessará seu caminho) (op. cit., ps. 254/5).
A culpa consciente contém um dado importante: a confiança de que o resultado não venha a produzir-se, que se assenta, como dissemos, na crença em sua habilidade na realização da conduta ou na presença de uma circunstância impeditiva. No exemplo da caçada, o sujeito confia em sua habilidade (é um campeão de tiro). A necessidade de "sinceridade" da crença é normalmente referida na doutrina (ASSIS TOLEDO, op. cit., p. 290, n. 247) e foi citada na sentença;
No caso em debate, não há nenhuma circunstância em que os acusados pudessem apegar-se para acreditar que, jogando um litro de álcool na vítima, e ateando fogo, não houvesse conseqüências desastrosas.
3º - erro de execução. Exs.: o agente atira no animal e, por defeito da arma, o projétil mata uma pessoa; defeito de pontaria, em que confiava.
Como ensina FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, o agente, na culpa consciente, "não quer o resultado, mas, por erro ou excesso de confiança (imprudência), por não empregar a diligência necessária (negligência) ou por não estar suficientemente preparado para um empreendimento cheio de riscos (imperícia), fracassa e vem a ocasioná-lo" (op. e loc. cits.).
No caso, como dizer-se que se encontravam presentes esses requisitos se o comportamento dirigiu-se à queima da vítima? Como acreditar sinceramente que o evento não ocorreria jogando um litro de álcool em Galdino e lhe ateando fogo, queimando 95% de seu corpo? Como dizer que houve erro de execução ou simplesmente excesso de confiança? Confiança em quê?
Por fim, o delito preterdoloso é excluído "quando o meio empregado é objetivamente idôneo ou adequado para causar o resultado efetivamente produzido", ocorrendo "somente quando presente absoluta inidoneidade do meio empregado para a agressão e o resultado obtido" (RODRÍGUEZ DEVESA, op. cit., p. 380; JUAN ANTONIO MARTOS NUÑEZ, op. cit., p. 560). NÉLSON HUNGRIA já observava que, para se saber, na lesão corporal seguida de morte, se esta é dolosa ou culposa, "deve ter-se em conta o meio empregado. Já os práticos ensinavam que o agente devia ser condenado somente pelo ferimento, de que haja resultado a morte, quando fez uso de um meio tal ´ex quo verisimiliter non debuit sequi mors´, como, "via de regra, o soco, o pontapé, a mordedura, a cabeçada etc." (op. cit., p. 354). Não se enclui entre os meios de execução que "via de regra" não causam a morte a queima de 95% do corpo da vítima. No caso dos autos, o meio empregado era francamente idôneo à produção do evento morte.
Por essa razão técnica, referente ao meio executório, prosseguia NÉLSON HUNGRIA, o juiz deve "orientar-se sempre no sentido de apurar, em face das circunstâncias apreciadas em , conjunto, se se trata daqueles casos em que, não obstante o emprego de violência, o evento ´morte´ accidit insolenter ac raro, ou como dizia SÃO TOMÁS DE AQUINO, ´per accidens et ut in paucioribus´. Eis a lição de IMPALLOMENI" - concluia: "Insistíamos, pois, no dizer, para evitar sutilezas curiais e moralísticas, que, ao distinguir-se um delito preterintencional de um delito intencional, a via mestra é a de considerar a relação em que a conduta do agente está para com o resultado ocorrido: se este é a conseqüência, não só natural, como ordinária da ação inicial dolosa, é força concluir que foi querido; se não é conseqüência ordinária, isto é, de tal modo que, segundo a experiência comum, não se deva inferir que tenha sido prevista pelo agente, só então é lícito concluir que o delito é preterintencional" (op. cit., ps. 355/6).