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Parecer do MP/RS em apelação de sentença absolutória proferida em crime de racismo contra o povo judeu (Lei 7716/89)

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Parecer vencedor de vários prêmios, do Procurador de Justiça Carlos Otaviano Brenner de Moraes

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL

PROCESSO Nº 695 130 484

APELAÇÃO - PORTO ALEGRE

APELANTES: MAURO JUAREZ NADVORNY E

FEDERAÇÃO ISRAELITA DO RGS

APELADO: SIEGFRIED ELLWANGER

RELATOR: DES. MOACIR DANILO RODRIGUES

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
 

"Queremos afirmar desde já que não temos a intenção de incriminar o povo alemão. Se a massa anônima do povo alemão tivesse aceitado volunta-riamente o programa do Partido Nacional Socia-lista, não teriam sido necessárias as SA nem os campos de concentração ou a Gestapo."

Eram dez horas da manhã do dia 20 de novembro de 1945. Com essas palavras, ressal-tando que não pretendia de qualquer modo atentar contra a raça alemã, para não incorrer em uma outra e criminosa discriminação racial, o acusador público americano Robert Jackson instalou solenemente, em Nuremberg, Alemanha, o Tribunal Militar Internacional que iria julgar os 23 réus - os sobreviventes da alta cúpula do III Reich que foram capturados ou se entregaram aos aliados ao final da Segunda Guerra, o maior conflito da humanidade. As acusações: conjuração contra a paz, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
 

Do recurso

Trata-se de apelação da sentença absolutória proferida em favor de Siegfried Ellwanger, acusado da prática do crime previsto no art. 20, caput, da Lei nº 7.716, de 5 de março de 1989, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 8.081/90, que é a seguinte: "Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional: pena de reclusão de dois a cinco anos".

O recurso é interposto pelos Assistentes da Acusação, regularmente admitidos no processado, Sr. Mauro Juarez Nadvorny e a Federação Israelita do Rio Grande do Sul, representada pelo Sr. Samuel Burg.

Da imputação

Descansa a imputação no fato de que o apelado, na qualidade de escritor e sócio dirigente da Revisão Editora Ltda, com sede em Porto Alegre, de forma reiterada e sistemática, tem editado e distribuído ao público, mediante venda, obras de autores nacionais e estrangeiros que "abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias, procurando incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica" (fl. 2). De acordo com a denúncia, os livros de sua responsabilidade, em termos de edição, distribuição e comercialização, são as seguintes: O Judeu Internacional, de Henry Ford, 2ª reedição, 1989; A História Secreta do Brasil, de Gustavo Barroso, 1ª reedição, 1990; Protocolos dos Sábios de Sião, apostilado por Gustavo Barroso, 4ª reedição, 1989; Brasil Colônia de Banqueiros, de Gustavo Barroso, 1ª reedição; Hitler - Culpado ou Inocente, de Sérgio Oliveira, 2ª edição, 1990; Os Conquistadores do Mundo - Os Verdadeiros Criminosos de Guerra, de Louis Marschalko, 3ª edição. Obra de sua autoria, sob o pseudônimo S.E. Castan: Holocausto Judeu ou Alemão ? - Nos Bastidores da Mentira do Século, com mais de vinte e nove edições. A peça reproduz vários trechos destas obras que expressam as mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias imputadas.
 

Do fundamento absolutório

A absolvição está fundamentada no inc. I do art. 386 do CPP. "Os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestação de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo. Lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram e, por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimentos discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica ... As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são, senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão" (fls. 861 e 862). Portanto, sob a ótica da sentença, o réu não obrou com dolo, suas ações não incitaram nem induziram à discriminação racial, desprezo ou preconceito contra o povo de origem judaica e, ao realizá-las, exercia direito constitucional de opinião.

Das preliminares de nulidade

Argúem os apelantes a nulidade da sentença por falta de fundamentação e desvio no objeto da causa. Desenvolvem raciocínio procurando demonstrar que a Dra. Juíza não leu as obras, residindo aí o porquê da falta de fundamentação. A Promotoria de Justiça discorda da alegação de desvio e observa que a fundamentação somente é exigível no caso de sentença condenatória.

Antes de qualquer outra consideração, é de se registrar que seria injustificável tivesse sido proferido sentença sem a prévia leitura das publicações incriminadas. Na oficialidade do processo, naquilo que de capa-à-capa contém, até a chegada dos autos a essa Câmara, as publicações realmente não estavam apensadas, mas isto não exclui a possibilidade de que a Dra. Juíza tenha lido alguma ou todas as obras. Caso contrário, o feito teria sido decidido com certa dose de desdém, com desprezo aos relevantes valores que lhe subjazem, em uma outra postura discriminatória ou preconceituosa, que seria grave pela fonte de que emanaria, o próprio aparelho judiciário, em seu primeiro grau de atuação.

Independentemente disso, porém, vale notar que o de-vido processo legal não foi respeitado. Este princípio-garantia constitucional pressupõe decisões fundamentadas do Poder Judiciário (1), sob pena de nulidade, e fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão (2). Em se tratando de processo penal, mais avulta a inadmissibilidade de motivação implícita, aliunde ou per relationem. Absolutamente indispensável, na sentença condenatória, a demonstração da correlação entre o fato punível e o modelo legal. Na sentença absolutória, não menos imperiosa a indicação das razões justificativas ou excludentes da autoria, da criminalidade ou da tipicidade (3).

A afirmação é de Mário Guimarães: "Não se compre-ende possa um juiz aplicar a pena a alguém sem dizer por que motivo o faz. Igualmente, quando absolve, em face de uma acusação, que é afinal repelida, a sociedade e o próprio réu precisam saber o que, na verdade, se apurou" (4). E Heleno Cláudio Fragoso a complementa: "a motivação se constitui também em garantia para o Estado, já que a este interessa seja aplicada e corretamente administrada a justiça" (5).

Daí que, vênia da Dra. Promotora, sua posição é isolada e insustentável à luz dos princípios reitores do processo penal. A sen-tença, como decisão do Poder Judiciário, deve ser fundamentada, para condenar ou absolver (art. 93, IX, da CF).

E a motivação é de extrema precariedade. Não passa de um discurso puramente teórico, com frases ou expressões de efeito, sem o enfrentamento exegético e valoração dos trechos postos pela denúncia frente à norma incriminadora e ao sentido protetivo que esta veicula: "Os textos dos livros publicados não implicam induzi-mento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestações de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo ... Os fatos históricos, é sabido, não possuem uma só versão. Interpretá-los ou relatá-los sob ângulo diverso da maioria, questionando fatos até então não questionados, ainda que a conclusão seja desfavorável a um determinado povo, não pode ser considerada conduta criminosa, na forma do art. 20 da Lei 8081/90. A irresignação da comunidade judaica, com relação as obras do acusado é perfeitamente compreensível, porquanto é a sua própria história, sofrendo outra interpretação e avaliação, do que aquela narrada nos compêndios de História até agora publicados, dando-lhe a condição de povo sofrido. As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são, senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão" (fls. 861/862).
 

Se substituídos fossem os textos incriminados repro-duzidos pela denúncia, a motivação poderia ser mantida, tal como está, funcionando como decisão padrão, já que a eles não se refere uma só vez. Nem mesmo art. 20 a Lei nº 8.081 possui (o art. 20 é da Lei nº 7.716/89).

Os pontos questionados na causa, e que mereceriam o enfrentamento sentencial, dizem com a dignidade do homem e da raça judaica, execrada pelas obras. Não se esgotam em fatos históricos que permitam ou mereçam revisão ou reexame sob ótica ou ângulo diversos, nem na específica história dos judeus.

Basicamente dizem com atributos pejorativos, juízos (e não fatos) infamantes do homem e da raça judaica. Por exemplo, dentre outros: Horda de judeus; judeus desafetos do bem e protago-nistas de uma incessante luta contra toda e qualquer forma de organização social, política e econômica; autocratas encarniçados.

Uma vez imputados na denúncia, deveriam ser analiticamente examinados pela sentença, inclusive para verificação da regularidade no exercício do direito de opinião que simplistamente proclamou, correlação indispensável mesmo em sede de decisão absolutória. O sistema processual é alicerçado na paridade das partes. O processo penal é instrumento de realização da Justiça e a Justiça não está unicamente no interesse do acusado.

O prejuízo desta precária e incompleta fundamentação é manifesto, apesar do pedido de absolvição feito pela Promotoria em suas alegações escritas. O Assistente também é interessado na averiguação da verdade substancial e tem direito à decisão justa (6).

Com efeito, o parecer do Ministério Público é pela declaração de nulidade da sentença. Toda a vez que houver infringên- cia a princípio ou norma constitucional-processual, que desempenhe função de garantia, o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre nulo, sanção que decorre da própria Constituição ou dos princípios gerais do ordenamento, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada. É que as garantias constitucionais-processuais, ainda que aparentemente postas em benefício da parte, visam ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal (7). Há, ainda, a cominação expressa de nulidade na CF (art. 93, IX) e lei processual (CPP, art. 564, III, alínea m).

Quanto à outra preliminar, o parecer é pela rejeição. Não houve o alegado desvio, devido ao entrelaçamento dos temas, e disso bem se encarregou a Dra. Promotora em demonstrar.

Do error in judicando

Dentre os ingredientes do juízo absolutório, está o de que os livros, "lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram e, por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimentos discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica" (fl. 81).

A sentença não revela, porém, a base concreta de tal assertiva. E aí mais uma vez peca em termos de fundamentação. É de se supor, em face desta injustificável omissão, tenha procurado expressar que as obras, apesar de lidas por um vasto número de pessoas, não produziram, como resultados fenomenológicos, sensíveis no mundo da realidade, sentimentos discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica, em evidente error in judicando. É que o crime não exige a produção de resultado material. Consuma-se com a simples realização da conduta típica. Irrelevante tenham sido ou não aflorados nos leitores os sentimentos discriminatórios ou preconceituosos a que se refere. A Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, foi editada com a finalidade de estabelecer os crimes e fixar as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceitos de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados por meio de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, buscando preservar o tratamento igualitário que a ordem jurídica se propõe a assegurar. Tratamento igualitário que é princípio estrutural das democracias modernas, no sentido de que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput, da CF). Para assegurá-lo, a própria Carta estabeleceu que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades funda-mentais" (art. 5º, inc. XLI). Nesse vinculante contexto constitucional é que surgiu a Lei, com a nítida e necessária tendência de punir as práticas discriminatórias de qualquer natureza, como meio asseguratório e protetivo do princípio da igualdade e de maneira mais ampla do que originariamente feito pela Lei nº 7.716/89.

Especificamente em relação ao crime definido no art. 20, que é o delito imputado ao réu, as ações nucleares de praticar, induzir ou incitar devem ser desenvolvidas pelos meios de comunicação social ou por publicações de qualquer espécie ou natureza, compreendendo-se por meios de comunicação social todos os que servirem a "manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo" (art. 220, caput, da CF). Praticar é levar a efeito; fazer, realizar, cometer, executar; expor ou exprimir por palavras; dizer, proferir. Induzir consiste em causar, inspirar, incutir; sugerir, persuadir. Incitar significa instigar, impelir, mover; estimular, instigar, açular, excitar; provocar.

Crime formal ou de mera conduta, cuja característica é o da consumação antecipada, configura-se independentemente da pro-dução de qualquer resultado fenomenológico. "Basta, para o aperfei-çoamento do crime, a realização de qualquer ato caracterizador da prática, induzimento ou realização de discriminações ou preconceitos através dos meios de comunicação e de publicações de qualquer natureza" (8), sendo indiferente que se concretizem ou não as finalidades de discriminação e de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional. Discriminação como ato ou efeito de discriminar, de separar, de apartar, de segregar uma raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, como política de segregação, de isolamento de um grupo social. Preconceito como conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, geradores de suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etnias etc.

Assim, em termos de adequação típica da conduta e consumação do delito, o importante é a aptidão ou potencialidade das abordagens veiculadas nas obras em termos de malferimento da igualdade constitucional e, de modo especial, a probabilidade de lesão aos valores protegidos pela norma.

Esta probabilidade de lesão, ou lesão potencial, que é a alma da ilicitude, é pura valoração acerca do caráter lesivo de uma ação humana, relação entre o fato e o valor como objeto da tutela. Aliás, é a noção de lesividade que fundamenta e dá conteúdo ao tipo. As condutas previstas no art. 20 são sancionadas não porque anti-jurídicas, mas porque juridicamente desvaloradas pelo Direito. A norma traduz o desvalor do Direito à conduta. Quando o legislador define o ilícito penal, significa postura axiológica negativa referente à conduta descrita. O Direito Penal é na sua essência tutela de valores, complexo de normas predispostas à garantia das exigências ético-sociais domi-nantes. Fora do resguardo aos valores, o Direito Penal perde a razão de sua existência e se transforma fatalmente num instrumento de terror ou num meio técnico de profilaxia social (9). Lesividade que não se esgota nem se confunde com o dano material provocado pela conduta (10). É uma noção normativa pura, intelectiva (11). Exatamente por isso, diz Carnelutti, "a ilicitude resolve-se em um juízo da lesividade do fato praticado, pois uma antijuridicidade sem conteúdo não tem razão de ser"(12).

Nesse ótica, percebe-se, em definitivo, a irrelevância do aspecto a que a sentença deu tamanho destaque, pois, ainda que milhares de pessoas possam ter lido as obras incriminadas sem se sentirem tomadas por preconceito contra a comunidade judaica, o que releva notar é a potencialidade dos textos em induzir ou incitar o leitor a sentimento discriminatório ou preconceituoso em relação aos judeus, como povo, raça, etnia, procedência nacional. O art. 20 contém um tipo de crime de perigo. Perigo como probalidade de lesão ao bem jurídico tutelado. E os trechos denunciados, lidos e avaliados no conjunto de cada obra, materializam a tese acusatória quanto à potencialidade discriminatória e preconceituosa:

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" ... Agora, porém, compreenderam os alemães, que foram explorados por uma horda de judeus, que haviam preparado tudo para tirar enormes proveitos da miséria geral do povo teutônico. Onde quer que se pudesse especular com as necessidades do povo, ou que se apresentasse ocasião de obter ganâncias intermediárias, seja em Bancos, sociedades de guerra, empréstimos públicos, ou em ministérios que formulavam os gigantescos pedidos de apetrechos bélicos, alí apareciam os judeus" (O Judeu Internacional, Henry Ford, 2ª reedição, pág. 23).

Horda como bando indisciplinado de malfeitores, amigos e construtores do mal. Grupo malfazejo movido pela ganância e especulação,no sentido mais sórdido que possam estas expressar, para fazer desabrochar no espírito do leitor os sentimentos de discriminação e preconceito devido à ambição ilícita e desmedida da raça, usuária de meios degradantes e baixos para alcançar fins ignóbeis e infames.

"... Num mundo de Estados territoriais organizados, o judeu tem apenas duas fórmulas: derrubar os pilares de todos os sistemas nacionais dos Estados ou criar o próprio Estado nacional" ... "O judeu é adversário de toda ordem social não ju-daica" ... "O judeu é um autocrata encarniçado" ... "A democracia é apenas o argumento utilizado pelos agitadores judeus, para se elevarem a um nível superior àquele que se julgam subjugados. Assim que conseguem, empregam imediatamente seus métodos, para obter determinadas preferências, como se estas lhes coubessem por direito natural" ... "Porque todo judeu é impelido pela mesma tendência, que se enraíza no sangue: o anseio de dominação" ... "Os métodos de ação das classes baixas judaicas não visam somente a libertar-se da repulsão social, mas anelam francamente o poder. É essa vontade de dominar que caracteriza seu espírito" ... "não existe raça alguma que suporte a autocracia mais voluntariamente do que a raça judia, que deseje e respeite mais do que esta o poder" ... "O judeu é um caçador de fortunas, principalmente porque, até este momento, só o dinheiro lhe tem proporcionado os meios de conquistar certo poderio" ... "O supremo intuito que eles denotam consiste em solapar toda ordem humana, toda constituição de Estados, para erigir um novo poder, em forma de despotismo ilimitado" (O Judeu Internacional, Henry Ford, 2ª reedição, 1989, págs. 24, 25, 65, 75 e 79).

Referindo-se aos judeus como inimigos mortais de toda a ordem social não judaica, autocratas encarniçados comprometidos com a quebra dos sistemas nacionais dos Estados e protagonistas deliberados de uma falsa adesão e defesa da democracia, a obra os coloca como perigosos agentes da anarquia, que inspirados na negação da autoridade, e por congênita deficiência moral, buscam romper o equilíbrio das estruturas política, social e econômica, colocando sob risco os fundamentais interesses da sociedade e do Estado, pela confusão ou desordem gerada por essa situação, para conseguirem o poder soberano, ilimitado e absoluto, próprio dos déspotas tirânicos e opressivos, poder sem restrição nem neutralização, como dominação poderosa da classe, que é baixa, dissimulada, vaidosa e arrogante. Sem a menor dúvida, por mais liberal que se queira ser na interpretação de tais textos, há afronta aos princípios da não-discriminação e do não-preconceito racial, com correlata exposição destes valiosos interesses constitucionalmente protegidos à perigo de dano.

"... Que os outros lavrem a terra: o judeu, quando pode, viverá do lavrador. Que os outros suem nas indústrias e ofícios: o judeu preferirá assenhorar-se dos frutos de sua atividade. Esta inclinação parasitária deve, pois, formar parte de seu caráter" (O Judeu Internacional, Henry Ford, 2ª reedição, 1989, pág. 171).

Mais uma vez, a marca inconfundível das obras, de dis-criminação e preconceito com a raça judaica, mostrando-a não só ga-nanciosa ou anárquica, mas, como se disse antes, de caráter profun-damente vil, como que por defeito de nascença, que sabe e quer en-ganar, manhosa e maldosamente, agindo do mesmo modo que o animal que se alimenta do sangue de outro, para viver, sem trabalhar, à custa do esforço e da miséria alheia. Raça chupim e arrimadiça.

Em Os Conquistadores do Mundo - Os Verdadeiros Criminosos de Guerra (de Louis Marschalko, 3ª edição), numa clara evidência da articulação em discriminar, já no prefácio, novas e veementes referências ao caráter repulsivo, simulado e parasitário dos judeus:

"Qualquer pessoa que esteja de olho no mundo e nos negócios deste, poderá perfeitamente compreender esse plano (totalitarismo perfeito e absoluto), que já tomou forma ... A humanidade está dividida não apenas pelas raças naturais, criadas por Deus, e pelas nações. Hoje em dia, até as nações estão divididas. A Alemanha esta dividida em Oriental e Ocidental, o mesmo acontecendo com a Coréia: do Sul e do Norte. A China e a Indochina estão divididas ou separadas, enquanto a Europa está dividida pela Cortina de Ferro. As populações são separadas e divididas em pessoas brancas e de cor, capitalistas e bolchevistas, empregadores e empregados, gente rica e classes operárias, católicos e protestantes, supressores e suprimidos, vencedores e vencidos. Mas, como veremos adiante, toda essa divisão, toda essa desordem, todo esse caos, é dirigida pela mesma vontade férrea, pela mesma força secreta que age segundo o interesse dos líderes de uma raça de 15 milhões de pessoas ... São elas que instigam multidões furiosas a fazerem greves e passeatas, enquanto ao mesmo tempo elas dão aumento de salários e promovem a inflação ... Elas são as arqui-inimigas dos ideais patrióticos; pregam contra a soberania dos Estados e contra a discriminação racial, enquanto que durante todo esse tempo elas representam um nacionalismo racial de uma veemência até hoje sem paralelo na história de todos os países do globo terrestre" ... "Esse diabólico nacionalismo tribal tem o poder mundial na mão" ... "O judeu jamais foi um internacionalista; ele foi, isto sim, o representante consciente de um nacionalismo tribal que visava dominar todos os outros países do mundo" (págs. 9/10 e 18 - as transcrições da denúncia estão grifadas).

Na mesma linha editorial, com o indisfarçável ânimo de afetar a dignidade do judeu e de sua raça, passagens não desvincu-ladas do contexto discriminatório das obras, do tipo "Povos antijudaicos do mundo, uni-vos, antes que seja tarde demais" (Os Conquistadores do Mundo, pág. 112), "Como o sírio, o judeu não passa sem prestações. É uma inclinação racial" ... "Judeu sem prestação não é judeu" ... " ... Um dia, os povos compreenderão a verdadeira origem de todos os seus males e, então, as bichas vorazes e nojentas serão duramente castigadas" ... "O nosso Brasil é a carniça monstruosa ao luar. Os banqueiros judeus, a urubuzada que a devora" (Brasil, Colônia de Banqueiros - Gustavo Barroso, 1ª reedição, págs. 34, 37, 46 e 95), "Em vista de seu número relativamente pequeno, os judeus, sozinhos, certamente não podem vencer a população no meio da qual vivem como parasitas, mas inventaram um modo de suicídio para os cristãos, provocando habilmente entre eles discórdias intestinas e uma desorganização maldosamente preparada" ... "Para os judeus, o único direito é a força ... Todas as religiões serão abolidas, salvo a de Moisés. Para mostrar seu poder, os judeus esmagarão e escravizarão pelo assassínio e o terrorismo cada um dos povos da Europa" (Os Protocolos dos Sábios de Sião, Gustavo Barroso, 4ª reedição, pág. 95). Em Hitler - Culpado ou Inocente ?, de Sérgio Oliveira, dentre várias outras manifestações preconceituosas, é dito que os judeus seguem o Torah, cujo teor aponta para o ódio a tudo que não for judeu, para a desarmonia, desigualdade e desentendimento entre os povos. Em Holocausto: Judeu ou Alemão ? - Nos Bastidores da Mentira do Século, de autoria do réu, sob o pseudônimo S.E. Castan, a expressão máxima da discriminação, baseada em inversões dos fatos que marcaram a história deste século, pretensamente mascaradas com dados relativos a fatos verdadeiros (13).

Em uma síntese, os livros publicados e editados pelo apelado tentam negar o holocausto, atribuindo aos judeus, como substrato da ação dos Aliados, e exatamente pela congênita perversão de caráter, a falsificação de documentos e a montagem de fotografias e filmes, simulando episódios que não teriam ocorrido na Alemanha e nos territórios por esta ocupados, em uma criminosa distorção da realidade histórica, realidade que é pública e notória, oficialmente reconhecida pela própria Alemanha, e veiculam, explicita e implicitamente, nas linhas e entrelinhas, mensagens de cunho nitidamente anti-semitas, discriminatórias e preconceituosas.

Ainda a respeito desta potencialidade lesiva das obras incriminadas ao bem jurídico protegido pelo tipo, cumpre ressaltar que os autos reúnem manifestações de repúdio emanadas de diferentes setores da sociedade civil (Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira - fl. 75; Associação Riograndense de Imprensa - fls. 76/77; Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Marítimos Fluviais e Aéreos - fls. 78/79; Instituto Solano Trindade - fl. 80; Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Porto Alegre - fl. 81; Associação Gaúcha de Escritores - fls. 82/84; da Secção do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil - fl. 87; Movimento Negro Brasileiro e Movimento Popular Anti-Racismo - fls. 109/126) e de diversas pessoas vinculadas ao judaísmo, que pelo fato de serem judias não perderam a condição moral para depor (fls. 44/47; 53/59; 139/153). São dados concretos que não poderiam ter sido tão facil-mente desprezados pela decisão apelada.

Desse modo, e que no pertine ao mérito da sentença, não há como mantê-la com base na falta de produção de dano ao bem jurídico protegido. Não se deve permitir a confusão entre dano (ofensa material e sensível) e lesão (ofensa potencial e negativa-mente valorada pelo cotejo da norma com as concretas exigências sociais de tutela).

Da ausência de dolo

O dolo, como vontade de realização da conduta proibida pelo tipo, revelador de um estado de psíquico-espiritual do agente, geralmente é demonstrado com o auxílio do raciocínio (14). O delito do art. 20, apesar de unicamente previsto na modalidade dolosa, admite o dolo direito e eventual (15). A conduta do réu, na global análise que se impõe em face das circunstâncias concretizadas, e no que se inclui a valoração do próprio bunker que edificou, talvez debochadamente com o nome Editora Revisão, é nitidamente dolosa, e por dolo direto. Sua obstinada atuação voltada ao anti-semitismo e ao nazismo, feita através das publicações que promove e pelos sentimentos espúrios que procura difundir, é amplamente conhecida no Brasil e no exterior (16), e não se concilia à simples luz do razoável com propósitos diversos daqueles que o tipo penal em questão pretende evitar. A propósito, o parecer do Ministério Público integralmente endossa as alegações finais da Assistência da Acusação, que, lastreadas em circunstanciado exame dos trechos, torna irrecusável compreensão diversa, seja por inexistência de dolo, seja pela existência de dolo diverso e não compreendido pelo tipo em questão (fls. 802/803).

Do direito ou liberdade de opinião

Correlata à crítica sobre o terceiro e último elemento formador da convicção absolutória expressada no julgado recorrido - direito constitucional de opinião, pela afinidade que com este tema encerra, complementando o que acima foi dito a respeito do agir doloso do réu, sua sistemática e agressiva postura discriminatória e preconceituosa para com a raça judaica, revelada até mesmo no decorrer do processo, dá a medida exata do elemento subjetivo. As inverdades sobre fatos notoriamente conhecidos pela humanidade e as deformações de episódios históricos incontroversos, constituem-se em provas definitivas do ânimo de incitar e induzir à discriminação e ao preconceito racial. Não há outra conclusão plausível. E o dolo, como dito por Mittermayer, é detectado pelo uso do raciocínio.

Tamanho o exagero nas inverdades históricas, criadas por sua inteligência ou pela de outros, cujas obras publica, e a vora-cidade nos assaques contra os judeus, homem e etnia, que somente podem ser entendidas em um contexto deliberadamente criminoso, atentatório de um dos bens mais valiosos que o ser humano pode titular, bem que a Conferência de Puebla disse ser inviolável, a dignidade do ser humano e da raça a que pertence, e que a CF erigiu em princípio fundamental, sem que haja mínimo espaço a uma discussão rotulada pelo sugestivo título do revisionismo (17), de que se vale o réu para fazer crer que seu único propósito é o de revisar a história, como se esta trágica passagem da história, aliás o maior conflito da história de humanidade e o momento decisivo da história do século XX, fosse passível de revisão em suas principais circunstâncias e, especialmente, em seus efeitos sobre a dignidade humana (18). Revisar o que é notório, fazendo-se de conta que o racismo (19), as idéias de eugenia (20) e o anti-semitismo (21) não tenham dado corpo à ideologia nazista, ideologia excludente e condenatória (22), é querer acobertar inverdades e preconceitos. Nada além disso. O anti-semitismo como ideologia e, depois, o extermínio dos judeus (23), funcionaram como elementos centrais na configuração ideológica e na organização do Estado nazista. O genocídio de seis milhões de judeus, fato histórico que não permite discussão ou revisão, era e foi prioridade do nazismo, levado a cabo como uma linha de produção da morte, medida em termos de custo e benefício (24). Na visão nazista do mundo, não havia lugar para os judeus, e o espaço foi sendo reduzido cada vez mais, até que significou a morte. A tese principal de Mein Kampf, um tratado sobre sua filosofia política, concluído por Hitler durante a prisão na fortaleza de Landsberg (25), era simples: o homem era um animal combativo; portanto, sendo a nação uma comunidade de combatentes, ela era uma unidade de combate. Qualquer organismo vivo que deixasse de lutar por sua existência estava fadado à extinção. Um país ou raça que deixasse de lutar estava igualmente condenado. A capacidade de luta de uma raça dependia de sua pureza. Daí a necessidade de livrá-la dos elementos contaminadores estrangeiros. A raça judaica, por sua universalidade, era necessariamente pacifista e internacionalista. O pacifismo era o mais letal dos pecados, pois significava a rendição da raça na luta pela vida. O primeiro dever de todo país, portanto, era nacionalizar as massas (26). Surgiram, assim, o racismo, a eugenia, o anti-semitismo e o anticomunismo como instrumentos de concreção de um Estado totalitário e lastros de uma política de exclusão e mais tarde de eliminação dos judeus, a terrível Endlösung, que também serviram para implementar as políticas e os alvos que definiram a IIª Guerra Mundial (27).

Do mesmo traço ideológico se revestem as publicações de responsabilidade do acusado, em que pesem os disfarces que lhes busca dar, em clara adequação de suas ações ao tipo incriminador que dá embasamento à pretensão punitiva deduzida na denúncia. Jescheck, certamente o maior escritor de Direito Penal da atualidade, secundado pelos não menos renomados Maurach e Welzel, adverte de que, quando o agente não tenha querido atuar juridicamente, em conformidade com o Direito, não lhe pode ser reconhecida uma causa de justificação, mesmo que, por acaso, de sua conduta resulte algo valioso, pelo que não se há de aceitar tenha o réu atuado ao abrigo de um direito constitucional de opinião.

Se esta cegueira jurídica (28) não fosse o bastante para afastar a hipótese de exercício de um direito constitucional, há de se considerar que inexiste direito que comporte exercício ilimitado, direito que prescinda de regularidade em seu exercício (29).

A CF assegura o direito de manifestação do pensamento (30) (art. 220 e §§), como direito inerente ao status libertatis do indivíduo em suas relações com os outros, no que se distingue da liberdade de pensamento, que é direito do indivíduo sozinho, de per si, e da inviolabilidade da correspondência, que é a liberdade de não emitir o pensamento (31). É a liberdade de opinar, de criticar, de discutir, de propagar crenças, de pregar opiniões (32). É esta liberdade conhecida em todos os tempos, em todos os quadrantes, em todas as latitudes, desde Sócrates quando preferiu beber cicuta a abjurar o seu direito de expender o próprio pensamento, de difundir suas idéias, até a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, hoje bandeira de todos os povos cultos, fruto do liberalismo francês (33).

Mas nem por isso está imune a uma limitação em termos de exercício, como condição da própria licitude da conduta. É a própria Carta consigna que: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (art. 5º, inc. LXXVII). Pelo Pacto de San José, ao qual o Brasil aderiu, conforme Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, publicado no D.O.U de 9 de novembro do mesmo ano, "a lei deve proibir toda a propaganda a favor da guerra, bem como toda a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua infração à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência" (Cláusula 13).

É elementar a noção de que todo o direito tem o seu limite lógico na fronteira dos direitos alheios. A ordem jurídica não pode deixar de ser um equilíbrio de interesses. Não é lógico nem razoável a possibilidade de uma colisão de direitos, autenticamente tais. O exercício de um direito degenera em abuso, e torna-se atividade antijurídica, quando invade a órbita de gravitação do direito alheio.

Relativamente ao direito de opinião, em quase todo o mundo civilizado tem sido objeto de regulamentação especial (34), que lhe traça limites (35), não podendo, por outro lado, ficar alheio a uma interpretação sistêmica do Direito, e aqui surge o princípio constitucional da isonomia, que é indesjungível da lei, nos casos de conflito (aparente) com outro direito constitucional, pois inexistem contradições entre dispositivos internos da Constituição, e a CF assegura que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput), que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (art. 5º, inc. XLI), como meio garantidor de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é o de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (36), e também dispõe que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei" (art. 5º, inc. XLII).

A partir desse espírito de tratamento igualitário, e como condição de seu resguardo e efetivação, proíbe-se a prática de discri-minações e preconceitos de raça, cor, origem étnica, preferência religiosa e procedência nacional.

Havendo o conflito entre normas constitucionais, entre a que impõe o dever de não-discriminar e a que consagra o direito de expressar o pensamento, deve-se buscar a conservação do valor de não-fazer e, nesse passo, a liberdade de pensamento não pode desprezar outros direitos fundamentais, sendo primordial a tutela do interesse público prevalente (37). Nenhum direito fundamental, calcado na Constituição, possui, em verdade, valência absoluta frente a outros direitos também fundamentais (38).

A CF garante a livre manifestação do pensamento. Mas esta disposição é sobre a liberdade de pensamento em si e não sobre os crimes que por seu intermédio possam ser cometidos, adverte Marrey Neto (39).

Aliás, a garantia da CF ao direito de opinião não atinge os excessos que em nome dessa liberdade sejam praticados, muito menos quando em detrimento de outros valores constitucionais. O direito à opinião termina exatamente na fronteira do território inerente à dignidade do ser humano, que dá fundamento e conteúdo ao princípio constitucional da igualdade.

Quando direitos fundamentais estão em conflito com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos, é mister a ponderação dos bens e direitos a fim de se obter, se possível, uma concordância prática entre os vários bens e direitos protegidos em nível jurídico-constitucional. Estas tarefas de ponderação e concordância prática são formas de concretização das normas consagradoras de direitos fundamentais (concretização-restrição) (40).

Na busca de solução concreta do conflito entre o direito de opinião e o dever constitucional da não-discriminação e do não-preconceito, não se pode descurar da teoria das limitações horizontais, através da qual se percebe que o exercício de direitos pressupõe uma reserva de amizades e de não prejudicialidade, como limites dos pressupostos jurídicos e fáticos desses mesmos direitos (41). Aplicada à espécie, como caso concreto, e observados os pressupostos que propõe, a teoria das limitações horizontais conduz o intérprete à conclusão da supremacia do direito à não-discriminação e ao não-preconceito sobre o direito de opinião.

No cotejo entre o direito de opinar (titulado pelo réu), e o direito à não-discriminação e ao não-preconceito (neste caso titulado pelos judeus como gente, raça, etnia), é forçoso convir que a regularidade no exercício do direito de opinião, em detrimento daquele outro, somente se as informações fossem verdadeiras, conhecida-mente verdadeiras, inevitáveis para passar as mensagens (42) e desde que estas não afetassem a bens jurídicos tutelados, o que não se verifica, até mesmo porque, em sua maioria, as obras finalisticamente se prestam para veicular opiniões desairosas à raça e não propria-mente informações sobre os fatos em que esta raça ou etnia se viu envolvida ao longo de sua trajetória na história da humanidade.

Sanções devem ser reservadas para as situações em que a evidente intenção da opinião é a de discriminar raça, credo, seg-mento social ou nacional, muito embora disfarçada de revisionismo.

Como conseqüência, a licitude da resolução deste con-flito está na supremacia valorativa do dever de não-discriminar, considerando-se, para tanto, que a própria Constituição do Brasil estabelece restrição no exercício do direito de opinião e suas formas de exteriorização, quando potencialmente capaz de malferir o princípio isonômico ou da igualdade, na medida em que expressamente proíbe os preconceitos de raça, cor, etnia, por motivos religiosos e de procedência nacional. Essa franca limitação constitucional inclusive permite a prévia censura judicial. Prevê a lei a busca e apreensão do material destinado a divulgar a postura discriminatória ou preconcei-tuosa (art. 20, § 1º, incs. I e II da Lei nº 7.716/89, c/c o art. 1º da Lei nº 8.081/90) (43).

Para expressar a derradeira manifestação sobre a tese sustentada pelo réu, parafraseando Rudolf Von Ihering, consigna o Ministério Público que, se um direito concreto se vangloria da sua existência para pretender um exercício ilimitado, sem fronteiras, faz recordar o filho que levanta a mão contra a própria mãe, insultando a idéia do direito, porque a idéia do direito será eternamente um movimento progressivo de transformação com vistas ao bem comum, à realização do homem e dos mais caros interesses da sociedade, objetivos inatingíveis quando atingida a dignidade do ser humano, gratuita, leviana e criminosamente, considerado o ser humano em sua individualidade ou como membro de grupo, raça, etnia.

As Nações Unidas, em Assembléia Geral realizada há mais de trinta anos (20 de novembro de 1963), à unanimidade, aprovou a declaração sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, recomendando aos países subscritores a efetivação de medidas concretas especiais à proteção deste interesse superior, pois qualquer incitamento ou quaisquer atos de violência praticados, quer por pessoas ou organizações, contra qualquer raça ou grupo de pessoas de outra cor ou origem étnica serão considerados como uma ofensa à sociedade e puníveis em conformidade com a lei (art. 9º).

Do parecer

Diante do exposto, reafirmando o posicionamento quanto à questão preliminar, o Ministério Público opina pela declaração de nulidade da sentença, devido à falta de fundamentação, em flagrante violação da regra constitucional de que as decisões judiciais serão fundamentadas, sejam elas condenatórias ou absolutórias. O processo é uma relação. À exemplo de uma moeda, possui duas faces. Acusação e Defesa, sociedade e cidadão.

Relativamente ao mérito, se a Colenda Câmara não acolher a preliminar de nulidade, o parecer é pelo provimento da apelação, para que o réu seja punido pelas graves ações praticadas ao longo das publicações apontadas na denúncia, subsumíveis na norma incriminadora, objetiva e subjetivamente, sopesando-se, no respectivo apenamento, o alto grau de sua culpabilidade. Sua postura de vida, quase condição de vida (o emprego do pseudônimo S. E. Castan talvez para acobertar a descendência étnica - Ellwanger; a criação da Editora Revisão, como verdadeiro bunker de proteção aos ideais segregacionistas que oxigenizam suas ações; as manifestações públicas, orais e escritas; e as relações próximas e contactos que habitualmente mantém com os movimentos de ideologia racista - os autos possuem vários documentos comprobatórios), fruto de consciente e voluntário ânimo racista, discriminatório e preconceituoso, que tem de provocado desvaliosos sentimentos no seio da comunidade judaica (também em outras - manifestações de repúdio antes indicadas), é juridicamente proibida e socialmente intolerável, recomendando apenamento severo. Em uma culpabilidade normativa, consideradas as condições pessoais de saúde mental, pleno conhecimento da ilicitude e poder-agir-de-outro-modo, a censura é de peso, proporcional à intensidade do ânimo ativo juridicamente repreensível. Não há como juridicamente admitir, a pretexto de exercício da liberdade de opinião, tenha ou possa o réu impunemente promovido as publicações segregacionistas, na medida em que a segregação racial é expressamente vedada e incriminada pela Constituição e legislação penal brasileira.

As eventuais discriminações feitas pelos judeus a outros povos, ou à sua própria gente, por racismo contra os negros, preconceito religioso contra os palestinos cristãos ou por inconfor-midade com a dissidência de militares; a procedência ou improcedên-cia das críticas ao movimento sionista; a correção ou incorreção das ações políticas e governamentais dos líderes Begin, Sharon e Eltan, ou das ações dos membros do Estado Maior do exército israelense; as críticas que se possam fazer à política desenvolvida pela Confede-ração ou Federações Israelitas (fls. 337/338; 419/425), ou os prece-dentes absolutórios relativos às mesmas obras, emanados de autori-dades judiciárias de outros países (fl. 287), não afetam nem prejudicam o exame da conduta imputada a Siegfried Ellwanger, ou S. E. Castan, à luz do direito brasileiro e dos valores fundamentais cultuados por nossa sociedade, como se à raça judaica não se pudesse endereçar a máxima de Kant: "Não deixeis calcar impunemente o vosso direito aos pés de outrem" (44).

E o juízo de censura a Siegfried Ellwanger, ou S. E. Castan, não permite, modo algum, a chamada à memória, para fins comparativos, dos episódios históricos envolvendo Giordano Bruno ou Galileu, como quis ele fazer através da publicação juntada à fl. 289.

Esta colocação foi unicamente da Defesa, pessoal e técnica, como expediente defensivo, pois o ponto nuclear da demanda está na propositada violação da igualdade, da não-discriminação e do não-preconceito, como regras de direito natural, historicamente consa-gradas nos textos constitucionais do Brasil, feridas pela realização das ações hipotizadas no art. 20 da Lei, imputadas e imputáveis ao réu.

A advertência final é de Sebastian Soler: "Las penas más crueles han sido fundadas en la afirmación de que un sujeto era brujo o hereje. En nuestros propios tiempos hemos visto fundar las más extremas medidas sobre la base de la condición óntica de judío o de negro" (45).

Porto Alegre, 27 de dezembro de 1995

CARLOS OTAVIANO BRENNER DE MORAES,

Procurador de Justiça.
 

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Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Carlos Otaviano Brenner. Parecer do MP/RS em apelação de sentença absolutória proferida em crime de racismo contra o povo judeu (Lei 7716/89). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 20, 12 out. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16289. Acesso em: 22 dez. 2024.

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