Fato concreto conforme comunicado verbalmente:
"Delegado de Polícia em vez de intimar a pessoa suspeita para comparecer perante si para ser ouvida em inquérito policial e comunicar ao seu superior hierárquico essa intimação, requisita diretamente ao superior hierárquico a presença do funcionário para indiciamento dando conhecimento do fato imputado."
Questionamentos:
1.- Poderia a autoridade ter agido dessa forma? Se for negativa a resposta, qual seria o procedimento correto?
2.- Praticou a autoridade algum ilícito penal ou de outra natureza?
3.- Existe alguma medida jurídica a ser tomada?
4.- Existe alguma nulidade no inquérito a ser declarada?
Preliminares:
Entendo que para enfrentar o caso proposto devemos analisar os seguintes pontos:
a) Obrigatoriedade do suspeito ao comparecimento;
b) A forma correta de se efetuar a intimação do funcionário público; e
c) O sigilo do inquérito policial em dois aspectos:
c.1) garantia da aplicação da lei na busca da verdade real; e
c.2) garantia do suspeito no caso das acusações serem infundadas.
Introdução - Atos processuais.
Embora se refiram ao processo penal em si, vez que poucas são as nulidades que têm nascedouro no inquérito policial, são perfeitamente aplicáveis aqui, mudando o que deve ser mudado, as sábias palavras encontradas no início da magistral obra "As nulidades no Processo Penal", de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho:
"A tarefa de aplicar o direito às situações concretas não é realizada aleatoriamente pelos órgãos estatais; ao contrário, a atividade processual também é regulada pelo ordenamento jurídico, através de formas que devem ser obedecidas pelos que nela intervêm.
Nesse sentido, afirma-se que o processo exige uma atividade típica, composta de atos cujos traços essenciais são definidos pelo legislador. Assim, os participantes da relação processual devem pautar o seu comportamento segundo o modelo legal, sem o que essa atividade correria o risco de perder-se em providências inúteis ou desviadas do objetivo maior, que é a preparação de um provimento final justo." (Editora Revista dos Tribunais, 1997, 6ª edição, pg. 17, itálico no original).
1.- Obrigatoriedade ao comparecimento.
O Código de Processo Penal prevê a ouvida do indiciado durante o inquérito policial no artigo 6º, inciso V, mandando observar, no que for aplicável o Capítulo III, do Título VII, do Livro I, ou seja, o tratamento que deve ser dado ao acusado já na fase judicial, isto é, no decorrer da ação penal já instaurada.
No referido capítulo encontra-se o artigo 260 que tem em sua cabeça a seguinte disposição:
"Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá conduzi-lo à sua presença".
A interpretação que a doutrina dá ao artigo é a seguinte: "quer o legislador dizer que o interrogatório do indiciado deverá ser realizado dentro daquelas mesmas normas e garantias que norteiam o interrogatório levado a efeito pela Autoridade Judiciária, respeitado ainda o seu direito ao silêncio." (Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual de Processo Penal, 2001, Editora Saraiva, pg. 62).
2.- Forma da intimação
Com exeção do militar que é citado por intermédio do chefe do respectivo serviço (artigo 358 do CPP) as demais citações e intimações devem ser feitas pessoalmente.
Tratando-se de funcionário público a lei prevê uma maneira especial conforme se depreende da leitura do artigo 359 do CPP:
"O dia designado para funcionário público comparecer em juízo, como acusado, será notificado a ele como ao chefe de sua repartição." (negritos acrescidos nesta oportunidade).
Note bem, a lei menciona que o que deve ser comunicado é o dia designado, nada mencionando quanto ao conteúdo da acusação.
É bem verdade que o dispositivo se refere ao comparecimento a juízo, mas a disposição é recomendável para o comparecimento às repartições policiais porque não há previsão na lei para a intimação nestas, até porque, nos dois casos (juízo e repartições policiais) se trata de entes públicos e é princípio de direito administrativo que o particular só não pode fazer o que a lei veda e o administrador da coisa ou do serviço público só deve fazer o que a lei manda.
Frise-se que a finalidade da comunicação ao superior hierárquico do funcionário, com antecedência, é feita em benefício da administração, já que o serviço público não pode sofrer interrupções, visa então propiciar tempo para se convocar o substituto ou organizar o serviço de modo que a necessária saída do funcionário de seu posto não prejudique os administrados.
3.- Sigilo do inquérito policial
Reza o artigo 20 do Código de Processo Penal:
"A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade".
Acrescenta Fernando Capez:
"Não é demais afirmar, ainda, que o sigilo no inquérito policial deverá ser observado como forma de garantia da intimidade do investigado, resguardando-se, assim, seu estado de inocência." (Curso de Processo Penal, 5ª edição, revista, 2000, Editora Saraiva, pg. 69).
Como se vê, a lei visa garantir o sucesso da empreitada: proteger o trabalho do investigante na colheita de provas, na identificação dos envolvidos, enfim, realizar seu trabalho com serenidade, procurando separar o joio do trigo.
Nesse sentido a doutrina:
"O dispositivo visa evitar que a publicidade em relação às provas já colhidas e àquelas que a autoridade pretende obter prejudique a apuração do ilícito." (Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves, Sinopses Jurídicas - volume 14, Processo Penal, Parte Geral, Editora Saraiva, 1999, pg. 6).
Essa restrição da publicidade não se aplica ao advogado, conforme art. 7º, III, da Lei n. 8.906/94 - Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, o que, no dizer dos autores citados no parágrafo anterior, na mesma obra e página, acarretou a perda substancial de sua utilidade.
Na parte que diz respeito à incolumidade do cidadão, urge esclarecer que o Código de Processo Penal data de 1941 e deve ser atualmente interpretado extensivamente, à luz da Constituição Federal de 1988, que assegura, além do já mencionado princípio da presunção de inocência, o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, livrando o ser humano de qualquer tratamento desumano e degradante (artigo 5º, incisos V, VII, X e III).
Acrescento, por oportuno, que mesmo ao condenado a lei assegura direitos que não foram atingidos com a condenação: Lei de Execução Penal, artigo 3º:
"Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei."
Resposta aos questionamentos.
Resposta: O primeiro quesito deve ser respondido negativamente. A lei prevê (art. 6º, V, c.c. 260 e 359 do Código de Processo Penal) que o funcionário público deve ser notificado da data em que deve comparecer à repartição policial e que esta data, e somente esta, deve ser comunicada (informada, avisada) ao superior hierárquico com a antecedência necessária para as providências administrativas de substituição daquele que irá se ausentar.
2.- Praticou a autoridade algum ilícito penal ou de outra natureza?
Resposta: Entendendo não ser o momento nem a pessoa indicada a emitir juízo de valor sobre a conduta da autoridade, vez que para a verificação da prática de ato ilícito penal demanda o devido processo legal além do juiz competente, opinamos no sentido de indicar que, se estiver presente o dolo de lesão à honra da pessoa indiciada, poderia o fato ser tipificado no artigo 4º, letra h, da Lei 4.898/65 - Abuso de Autoridade:
"Art. 4º. Constitui também abuso de autoridade:
(...)
h) o ato lesivo da honra, ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal." (negritos acrescidos nesta oportunidade).
3.- Existe alguma medida jurídica a ser tomada?
Resposta: Sugere-se a comunicação do fato ao Delegado Seccional, a que pertencer a autoridade, que certamente, se for o caso, tomará as medidas cabíveis no âmbito administrativo ou penal, já que são de sua competência. Por fim, sugere-se o acompanhamento das investigações para futura propositura de ação civil para reparação de dano moral, caso este tenha se verificado e acarretado prejuízos.
4.- Existe alguma nulidade no inquérito a ser declarada?
Resposta: Caso a pessoa envolvida tenha, ao tomar conhecimento da requisição, comparecido perante a autoridade, sendo ouvida e indiciada, nenhuma nulidade ocorreu pois o fêz de livre e espontânea vontade e, em processo penal, inquérito policial, no caso, vige o princípio da instrumentalidade das formas, ou seja, se, mesmo praticado o ato da forma incorreta, ele atingiu a sua finalidade, nada pode ser alegado.
Nesse sentido a doutrina:
"Não sendo o inquérito policial ato de manifestação do Poder Jurisdicional, mas mero procedimento informativo destinado à formação da opinio delicti do titular da ação penal, os vícios por acaso existentes nessa fase não acarretam nulidades processuais, isto é, não atingem a fase seguinte da persecução penal: a da ação penal. A irregularidade poderá, entretanto, gerar invalidade e a ineficácia do ato inquinado, v.g. do auto de prisão em flagrantge como peça coativa; do reconhecimento pessoal, da busca e apreensão, etc.." (Fernando Capez, Curso de Processo Penal, 5ª edição, revista, 2000, Editora Saraiva, pg. 71).
E também a jurisprudência:
INQUÉRITO POLICIAL. VÍCIOS. "Eventuais vícios concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subseqüente processo penal condenatório. As nulidades processuais concernem, tão somente, aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória"(STF, 1ª T., rel. Min. Celso de Mello, DJU, 4.out. 1996, p. 37100). (apud Fernando Capez, Curso de Processo Penal, 5ª edição, revista, 2000, Editora Saraiva, pg. 71).
Caso a pessoa tenha se negado a comparecer ela deve aguardar a intimação regular. Nem em tese estará praticando o crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal) pois a ordem não foi dada a ela e sim a seu superior que não tem o poder de obrigá-la a comparecer perante a autoridade.